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Resistências à colaboração interprofissional na formação em serviço na atenção primária à saúde* * Extraído da tese: “Práticas profissionais na residência multiprofissional em saúde: uma pesquisa sócio-clínica”, Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 2019.

RESUMO

Objetivo:

fazer uma análise pelas resistências à colaboração interprofissional nas práticas profissionais de residentes na atenção primária à saúde.

Método:

Pesquisa qualitativa Sócio-clínica com 32 residentes de uma Residência Multiprofissional, realizada de 2017 a 2018. A produção de dados incluiu Análise Institucional das Práticas Profissionais, análise documental; diário do pesquisador; e observação. Os dados foram analisados a partir de conceitos da Análise Institucional.

Resultados:

Revelaram-se contradições entre a reprodução da educação uniprofissional com foco na especialidade e práticas colaborativas interprofissionais. A análise resistencial apontou dois eixos: não-saber como analisador de resistências à colaboração; interferências interprofissionais e relações de saber-poder. As práticas dos residentes foram caracterizadas pela resistência à colaboração interprofissional.

Conclusão:

A análise resistencial na Residência Multiprofissional evidenciou movimentos integrativos de assimilação e disputas com o poder médico-centrado, com prejuízos ao compartilhamento do cuidado e à comunicação interprofissional. A análise coletiva questionou a formação de profissionais de saúde, revisitando a perspectiva do cuidado integral orientado pelas necessidades dos usuários.

DESCRITORES
Educação Interprofissional; Internato não médico; Educação Profissional em Saúde Pública; Prática Institucional; Atenção Primária à Saúde; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Objective:

to analyze the resistance to interprofessional collaboration in the professional practices of residents in primary health care.

Method:

Social and clinical qualitative research with 32 residents of a Multiprofessional Residency, carried out from 2017 to 2018. Data production included Institutional Analysis of Professional Practices, document analysis; investigator’s diary; and observation. Data were analyzed based on Institutional Analysis concepts.

Results:

There were contradictions between the reproduction of uniprofessional education with a focus on the specialty and interprofessional collaborative practices. The resistance analysis pointed to two axes: not-knowing as an analyzer of resistance to collaboration; interprofessional interference and knowledge-power relations. Residents’ practices were characterized as resistant to interprofessional collaboration.

Conclusion:

The resistance analysis in the Multiprofessional Residency showed integrative movements of assimilation and disputes with physician-centered power, with damage to the sharing of care and interprofessional communication. The collective analysis questioned health professionals education, revisiting the perspective of comprehensive care guided by the users’ needs.

DESCRIPTORS
Interprofessional Education; Internship, Nonmedical; Education, Public Health Professional; Institutional Practice; Primary Health Care; Qualitative Research

RESUMEN

Objetivo:

Hacer un análisis por medio de las resistencias a la colaboración interprofesional en las prácticas profesionales de residentes médicos en la atención primaria a la salud.

Método:

Investigación cualitativa socio clínica con 32 residentes de una Residencia Multiprofesional, realizada entre 2017 y 2018. La producción de datos incluyó Análisis Institucional de las Prácticas Profesionales, análisis documental; apuntes diarios del investigador; y observación. Los datos fueron analizados a partir de conceptos del Análisis Institucional.

Resultados:

Se revelaron contradicciones entre la reproducción de la educación uniprofesional con énfasis en la especialidad y prácticas colaborativas interprofesionales. El análisis de la resistencia destacó dos ejes: el no saber cómo método de análisis de resistencias a la colaboración; interferencias interprofesionales y relaciones de saber y de poder. Las prácticas de los residentes fueron caracterizadas por la resistencia a la colaboración interprofesional.

Conclusión:

El análisis de resistencia en la Residencia Multiprofesional evidenció movimientos integrativos de asimilación y disputas con el poder médico centrado, con daños a la división del cuidado y a la comunicación interprofesional. El análisis colectivo cuestionó la formación de profesionales de salud, revisitando la perspectiva del cuidado integral orientado por las necesidades de los pacientes.

DESCRIPTORES
Educación Interprofesional; Internado no Médico; Educación en Salud Pública Profesional; Práctica Institucional; Atención Primaria de Salud; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

O modelo de atenção à saúde proposto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro tem centralidade na Atenção Primária à Saúde (APS) e objetiva colocar em prática a clínica ampliada. Sua efetivação faz-se em meio a disputas e interesses diversos, em processo de permanente construção movido por forças instituídas que advogam pela manutenção e forças instituintes de transformações de práticas, do cuidado, e da formação de profissionais de saúde orientadas pelas necessidades dos usuários, de modo a garantir os princípios da universalidade, integralidade e equidade(11. Campos GWS. Future prospects for the SUS? Cien Saude Colet. 2018;23(6):1707-14. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05582018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

A Educação Interprofissional em Saúde tem sido proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS)(22. World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice. Geneva: WHO; 2010 [cited 2021 Aug 25]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3F73D3C614EAB0849BE7651214EF99E?sequence=1
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
) e incentivada pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)(33. Pan American Health Organization. Interprofessional education in health care: improving human resource capacity to achieve universal health. Washington: PAHO; 2017 [cited 2021 Aug 30]. Available from: http://iris.paho.org/xmlui/handle/123456789/34353
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) na região das Américas para qualificar o cuidado centrado na pessoa por meio da aprendizagem interativa e compartilhada entre as áreas profissionais, e com a comunidade. Além disso, no Brasil, o modelo de trabalho em equipe esteve presente nas políticas de saúde desde a criação do SUS e nas políticas de formação, o que reforça a potencialidade para o cuidado ampliado em saúde, na perspectiva das necessidades de saúde, na participação do usuário valorizando a autonomia e protagonismo em seu autocuidado e na humanização das práticas a partir do desenvolvimento de relações de vínculo entre profissionais da equipe e pessoas cuidadas(44. Agreli HF, Peduzzi M, Silva MC. Patient centred care in interprofessional collaborative practice. Interface (Botucatu). 2016;20(59):905-16. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0511
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).

Esta pesquisa tem por objeto a formação interprofissional na Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), uma modalidade de pós-graduação lato-sensu com foco na formação em serviço e destinada às categorias profissionais que integram as áreas de saúde, com exceção da medicina(55. Ceccim RB, Dallegrave D, Amorim ASL, Portes VM, Amaral BP. EnSiQlopedia of residencies in health. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2018. [cited 2021 Jan 26] Available from: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-vivencias-em-educacao-na-saude/EnSiQlopedia-das-Residencias-em-Saude
http://historico.redeunida.org.br/editor...
). No processo de institucionalização das RMS, a formação interprofissional, apoiada na integralidade e no compartilhamento de saberes, encontra resistências, pois a lógica fragmentada do ensino de graduação ainda é dominante, o que estimula a primazia do trabalho uniprofissional(66. Silva LB. Multi-professional Residency in Health in Brazil: Some aspects of the historic trajectory. Revista Katálysis. 2018;21(1):200-9. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-02592018v21n1p200
https://doi.org/10.1590/1982-02592018v21...
), ao mesmo tempo que se constituem enquanto espaço de Educação Permanente em Saúde, com disputas e pactuações.

Quando nos referimos à prática interprofissional na APS, consideramos as relações, o contexto e a organização do trabalho das equipes(77. Peduzzi M, Agreli HF. Teamwork and collaborative practice in primary health care. Interface (Botucatu). 2018;22 Suppl 2:1525-34. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0827
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017....
). Os profissionais nos serviços de saúde dispõem de diferentes formas interconectadas de atuação como: trabalho em equipe, colaboração, coordenação e construção de redes interprofissionais, que devem ser acionadas de forma contingencial, articuladas às suas especificidades(88. Reeves S, Xyrichis A, Zwarenstein M. Teamwork, collaboration, coordination, and networking: Why we need to distinguish between different types of interprofessional practice. Journal of Interprofessional Care. 2018;32(1):1-3. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2017.1400150
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2017....
). Destaca-se, no contexto deste trabalho, a colaboração interprofissional, prática flexível que requer responsabilidade compartilhada, certa interdependência entre os profissionais, clareza de papéis, objetivos e cuidado centrados no usuário(77. Peduzzi M, Agreli HF. Teamwork and collaborative practice in primary health care. Interface (Botucatu). 2018;22 Suppl 2:1525-34. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0827
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017....
99. Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, Souza, HS. Teamwork: revisiting the concept and its developments in inter-professional work. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(Suppl 1):e0024678. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00246
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) que se concretiza nas dimensões: governança, objetivos compartilhados, formalização e internalização(1010. Arruda GMMS, Barreto ICHC, Ribeiro KG, Frota AC. The development of interprofessional collaboration in different contexts of multidisciplinary residency in Family Health. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 1):1309-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0859
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
).

Organizações como OMS(22. World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice. Geneva: WHO; 2010 [cited 2021 Aug 25]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3F73D3C614EAB0849BE7651214EF99E?sequence=1
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) e OPAS(33. Pan American Health Organization. Interprofessional education in health care: improving human resource capacity to achieve universal health. Washington: PAHO; 2017 [cited 2021 Aug 30]. Available from: http://iris.paho.org/xmlui/handle/123456789/34353
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) entendem a colaboração como ferramenta para promover saúde, racionalizar os recursos e reorientar o modelo de cuidado centrado na pessoa com a coordenação na APS, metas ainda pouco alcançadas em um contexto global. Assim, também no Brasil, a perspectiva da centralidade no usuário reitera a importância do diálogo com as pessoas cuidadas, suas famílias e comunidades(99. Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, Souza, HS. Teamwork: revisiting the concept and its developments in inter-professional work. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(Suppl 1):e0024678. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00246
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), aspectos essenciais para a qualidade do cuidado na perspectiva da interprofissionalidade.

A interprofissionalidade pode ser abordada como um movimento instituinte, parte do movimento de institucionalização da formação universitária de profissionais de saúde. A partir da Análise Institucional (AI), referencial teórico-metodológico adotado nesta pesquisa, entende-se instituição como um conjunto de normas e regras permanentemente transformadas em um processo contínuo de contradições, resultante da disputa entre momentos. O momento do instituído, ou momento da universalidade, no qual o conceito exprime toda sua positividade, onde se encontra a racionalidade estabelecida (regras, formas sociais e códigos); o instituinte, ou momento da particularidade, apresenta-se como uma negação do momento precedente, são acontecimentos, desenvolvimentos e movimentos sociais que questionam estas normas. Essas forças conflitantes geram um terceiro movimento-momento, resultado da contradição dialética entre os dois momentos anteriores: o processo de institucionalização ou momento da singularidade, que representa o que vemos concretamente(1111. Lourau R. A análise institucional. 3th ed. Petrópolis: Vozes; 2014.).

A formação universitária de profissionais de saúde, enquanto uma instituição, porta suas normas e é atravessada pelo modelo instituído de formação competitivo, que valoriza a individualidade no aprender no trabalho e não estimula a cultura colaborativa nos serviços de saúde. Ao mesmo tempo, podem ocorrer forças instituintes a favor da integração e compartilhamento do saber-poder, com foco na colaboração. Nesses movimentos, encontram-se resistências marcadas pela disputa de forças e pela frágil integração entre as diferentes áreas de saberes e de práticas.

Na perspectiva da AI, a resistência é definida como “uma força social que se atualiza em oposição a uma outra (força social), chamada poder. Essa disputa de forças favorece, pelo menos provisoriamente, a segunda”(1212. Monceau, G. Le concept de résistance en éducation: conceptualisation descriptive et opératoire [Thesis]. Paris: Université Paris 8, 1997.). Assim, a resistência se produz e se exprime nas práticas, no funcionamento dos estabelecimentos, e na interface com outras instituições presentes como: a divisão técnica e social do trabalho, as profissões, a saúde, entre outras. A análise resistencial, ou análise pelas resistências, deve ser diferenciada da análise das resistências, uma vez que atos de resistência sustentam a análise e não existem de forma isolada. As resistências são parte do contexto social que as produzem e, como tal, são rastros de força que abrem caminhos para o trabalho analítico dos sujeitos. A resistência como analisador pode, portanto, revelar as contradições institucionais, e, mais ainda, pode ativá-las, despertá-las(1212. Monceau, G. Le concept de résistance en éducation: conceptualisation descriptive et opératoire [Thesis]. Paris: Université Paris 8, 1997.,1313. Dóbies DV. Práticas profissionais e resistências: movimentos em uma rede de saúde mental. Curitiba: Appris; 2021.).

A resistência é um conceito dialético dividido didaticamente em três momentos: defensivo, ofensivo e integrativo(1212. Monceau, G. Le concept de résistance en éducation: conceptualisation descriptive et opératoire [Thesis]. Paris: Université Paris 8, 1997.). O primeiro é conservador, o segundo revolucionário e o terceiro é uma alternativa a essa oposição mútua, de caráter adaptativo. Eles relacionam-se entre si e influenciam uns aos outros, e essas relações variam de acordo com a situação(1212. Monceau, G. Le concept de résistance en éducation: conceptualisation descriptive et opératoire [Thesis]. Paris: Université Paris 8, 1997.).

Em um trabalho realizado na área da saúde nessa perspectiva, um grupo de profissionais de saúde mental refletiu sobre a relevância do trabalho interprofissional e em rede para sustentar e produzir cuidado integral em saúde. O grupo ganhou legitimidade frente à gestão construindo um coletivo de trabalho com mais autonomia e uso de ferramentas que os aproximaram da autogestão(1313. Dóbies DV. Práticas profissionais e resistências: movimentos em uma rede de saúde mental. Curitiba: Appris; 2021.).

Neste artigo, o objetivo é fazer uma análise pelas resistências à colaboração interprofissional nas práticas profissionais de residentes na APS. Isso se torna relevante tendo em vista que os movimentos de interprofissionalidade em um Programa de Residência Multiprofissional e suas repercussões na APS da rede municipal exibem alguns caminhos e desafios para fazer emergir as potencialidades de transformação das práticas que podem ser provocadas pelas resistências presentes na formação em serviço.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Esta é uma investigação de abordagem qualitativa do tipo pesquisa-intervenção, que retrata resultados de uma tese de doutorado, na qual foram adotados conceitos do referencial da AI na abordagem Sócio-clínica Institucional, arcabouço teórico- metodológico para intervenções longas e uso de dispositivos variados, elaborado nos anos 2000 a partir de uma releitura das intervenções socioanalíticas(1414. Monceau G. A socioclínica institucional para pesquisas em educação e em saúde. In: L’Abbate S, Mourão LC, Pezzato LM (editors). Análise Institucional e Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 91-103.).

Ao recusar a tradicional neutralidade do pesquisador e a distância entre este e o objeto de pesquisa, a Sócio-clínica Institucional propõe a imersão dos pesquisadores no campo para a análise de efeitos, em um trabalho que reúne oito características: análise da encomenda e demanda; participação dos sujeitos na abordagem sob modalidades variáveis; trabalho dos analisadores dando acesso a questões que normalmente não se expressam; análise das transformações que ocorrem à medida que o trabalho avança; aplicação de modalidades de restituição que devolvem os resultados provisórios do trabalho aos participantes; trabalho das implicações primárias e secundárias; intenção de produção de conhecimentos; e atenção aos contextos e interferências institucionais(1414. Monceau G. A socioclínica institucional para pesquisas em educação e em saúde. In: L’Abbate S, Mourão LC, Pezzato LM (editors). Análise Institucional e Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 91-103.).

População

O estudo foi produzido no período de julho de 2017 a fevereiro de 2018 com residentes de diferentes áreas da saúde: Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrição e Metabolismo, Odontologia, Psicologia e Terapia Ocupacional.

Local

O estudo foi realizado no município de Ribeirão Preto, SP, Brasil, no Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Integral à Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Coleta de Dados

A produção de dados foi realizada pela primeira autora deste artigo, doutoranda no momento de realização da pesquisa, por meio de dispositivos como análise documental, observação em Unidades de Saúde da Família (USF), Análise Institucional das Práticas Profissionais (AIPP), e suporte do diário de pesquisa.

A análise documental incluiu a análise do projeto pedagógico do curso e o edital de convocação dos residentes. Na observação, a pesquisadora acompanhou momentos da prática de grupos de três a sete residentes em seis USF de outubro a dezembro de 2017, com registro no diário de pesquisa. O tempo médio de observação foi de duas a três horas por semana em cada equipe, com uso de roteiro de observação da dinâmica de trabalho e interação dos participantes, em atividades interprofissionais como consultas compartilhadas, grupos de promoção de saúde, reuniões de equipe e reuniões de matriciamento.

A AIPP, uma das modalidades da Sócio-clínica Institucional(1414. Monceau G. A socioclínica institucional para pesquisas em educação e em saúde. In: L’Abbate S, Mourão LC, Pezzato LM (editors). Análise Institucional e Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 91-103.), foi desenvolvida em oito sessões com frequência mensal, em uma sala da Universidade, no formato de rodas de conversa, com duração aproximada de uma hora, que foram audiogravadas e transcritas. As sessões de AIPP ocorreram no espaço de formação comum denominado Módulo Teórico Comum (MTC), no período de agosto de 2017 a fevereiro de 2018, com participação em média de 25 residentes entre R1 e R2, não incluíram os profissionais de saúde, preceptores ou usuários, e houve uma sessão com participação de dois docentes convidados pelos residentes(1515. Mesquita-Lago LP, Matumoto S, Silva SS, Mestriner SF, Mishima SM. Analysis of professional practices as a multiprofessional residency education tool. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 2):1625-34. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0687
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). Alguns exemplos de temas abordados no MTC pelos residentes foram referentes ao Núcleo Ampliado de Saúde da Família, Intersetorialidade e Política Nacional de Atenção Básica.

As sessões foram conduzidas pela primeira autora, que tinha aproximação com a Sócio-clínica Institucional e não conhecia os integrantes do grupo até dar início à pesquisa. A partir dos registros no diário de pesquisa, a pesquisadora redigia uma narrativa e a lia no início de cada sessão a fim de disparar movimentos de autoanálise no coletivo(1515. Mesquita-Lago LP, Matumoto S, Silva SS, Mestriner SF, Mishima SM. Analysis of professional practices as a multiprofessional residency education tool. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 2):1625-34. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0687
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06...
).

Análise e Tratamento dos Dados

O diário de pesquisa foi utilizado como ferramenta para registro no momento das observações, nas sessões de análise de práticas profissionais e para a análise de implicações da primeira autora durante todo o processo da investigação. A noção de implicação institucional diz respeito ao “conjunto de relações que existem, conscientemente ou não, entre o ator e o sistema institucional”(1111. Lourau R. A análise institucional. 3th ed. Petrópolis: Vozes; 2014.), entre pesquisador e participantes e cada ator em relação às instituições que os envolvem. Essas relações podem ser de caráter afetivo, organizacional ou ideológico(1616. Monceau G. Implication, over implication and professional implication. Fractal: Revista de Psicologia. 2008;20(1):19-26. DOI: https://doi.org/10.1590/S1984-02922008000100007
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).

A análise documental teve enfoque em base histórica(1717. Beaud S, Weber F. Guide de l’enquête de terrain. 4th ed. Paris: La Découverte; 2010.), que considerou as condições de produção do documento, de uso e divulgação do mesmo e as referências teóricas nas quais se apoiam. Essa análise permitiu caracterizar o curso e os movimentos de seu processo de institucionalização.

Ao final das sessões da AIPP, procedeu-se à organização do corpus e análise de dados, com apoio do referencial teórico- metodológico da Análise Institucional na abordagem Sócio-clínica Institucional, elucidando-se os principais analisadores, ou seja, fenômenos que revelaram o que estava oculto nas instituições e efeitos da pesquisa, ou seja, fenômenos recorrentes que se reproduziam nas instituições(1818. Hess R, Savoye A. Les effets. In: Hess R, Savoye A, (editors). L’analyse institutionnelle. 2th ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1993. p. 72-83.).

Foram realizadas leituras do material transcrito e cruzamento dos resultados obtidos nos diferentes dispositivos: sessões de análise de práticas, observações nas unidades de saúde, análise documental e diário de pesquisa. A síntese dos principais resultados foi apresentada aos participantes em sessões de restituição, momento característico nas pesquisas sócio-clínicas, realizadas com as equipes nas USF para que elas pudessem conhecer e problematizar as análises elaboradas. Essas ocorreram em janeiro de 2018, com uso do dispositivo de Power Point e uma proposta de jogo de dramatização por aproximadamente uma hora, em data pactuada previamente com a proposição de um momento reflexivo sobre o trabalho colaborativo em equipe e registros no diário de pesquisa.

Aspectos Éticos

O convite para participar da pesquisa foi feito por e-mail a todos os residentes das turmas de 2016–2018 (R2) e 2017–2019 (R1) e agendado um encontro para esclarecer objetivos e formalizar a participação, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa está em conformidade com a Resolução 466/12 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer número 2.111.731 em 2017.

RESULTADOS

Participaram do estudo 32 residentes de diferentes áreas da saúde. Foram 14 R2: Farmácia (2); Fisioterapia (2), Fonoaudiologia (2), Nutrição (2), Odontologia (3), Psicologia (1) e Terapia Ocupacional (2), e 18 R1: Farmácia (3), Fisioterapia (2), Fonoaudiologia (3), Nutrição (2), Odontologia (3), Psicologia (2) e Terapia Ocupacional (3).

O Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Integral à Saúde previa carga horária de 60% na APS, e definia como objetivo promover o trabalho em equipe com foco nas doenças crônicas não transmissíveis, na rede municipal. No entanto, ao analisar o processo de institucionalização desse curso, observaram-se interferências institucionais representadas por maiores investimentos em atividades de pesquisa, e um modelo de gestão universitária centralizada e produtivista que fragilizaram os processos pedagógicos colaborativos e criaram limites ao cuidado integral na APS. Na perspectiva da Sócio-clínica Institucional, pode-se afirmar que houve um efeito da falsificação do objetivo proposto no momento de sua fundação, de sua profecia inicial de cuidado integral em saúde. O “Efeito Mühlmann”, como também é conhecido, é um efeito muito corriqueiro, que se caracteriza por uma mudança de direção durante o processo de institucionalização, motivada pela burocratização; é um momento em que a instituição trai e falsifica a profecia inicial na qual foi fundada, evidenciando o fracasso institucional(1818. Hess R, Savoye A. Les effets. In: Hess R, Savoye A, (editors). L’analyse institutionnelle. 2th ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1993. p. 72-83.).

Os resultados, apresentados a seguir, analisam a disputa de poder no âmbito da formação e do trabalho em dois eixos de análise: o não-saber como analisador da resistência à colaboração; interferências interprofissionais e as relações de saber-poder. Evidenciam, assim, a necessidade de instituir ferramentas que pudessem favorecer o compartilhamento de papéis e objetivos, estabelecer maior confiança entre uns e outros, e questionar a perda da centralidade do cuidado no usuário.

O Não-Saber Como Analisador da Resistência à Colaboração

Nesse eixo, as dúvidas sobre os diferentes papéis, competências profissionais e possibilidades de atuação interprofissional tiveram como efeito as resistências à colaboração. Diante de seu “não-saber”, os residentes isolavam-se em suas práticas e, ao mesmo tempo, colocavam em análise a necessidade de espaços para troca de informações e discussão da colaboração como ferramentas para aumentar a resolutividade na APS. Nas sessões de AIPP, houve análise dos residentes sobre sua atuação junto aos demais profissionais das equipes e sobre o quanto ambos resistiam a aprender a trabalhar conjuntamente, o que os afastava do foco da integralidade, favorecendo o instituído da especialidade.

Na observação nas equipes de APS e no MTC durante a AIPP, residentes expressaram a naturalização da prática de “passar o caso” para diferentes especialistas e a lógica do cuidado médico-centrado, evidenciando conflitos internos quanto à corresponsabilidade do cuidado com o usuário: eu acho que a gente está reproduzindo um pouco o modelo médico porque isso de ter 1.000 especialidades então … não é ortopedista … é o ortopedista da mão … é o médico de cabeça e pescoço [ ] Então na verdade a gente (residentes) acaba reproduzindo essas coisas …[ ] mas às vezes ele (usuário) não precisaria, tem coisas que talvez desse para ser manejado lá (na Unidade de Saúde da Família) mas é todo um sistema de saúde, de FORMAÇÃO em saúde… (MTC – Residente Terapia Ocupacional R1 (A) 29/08/17).

No relato anterior, o residente refletiu sobre os limites da resolutividade na APS e a grande expectativa da equipe por atendimento individual especializado, modelo instituído frente ao novo profissional especialista. A dificuldade dos residentes em terem voz ativa na equipe, diante dos demais atores do programa de residência, eram reflexos de relações instituídas hierárquicas e de não se reconhecerem como membros da equipe. Porém, lidar com essas dificuldades e não-saberes exigia um acompanhamento reflexivo em relação ao processo de trabalho da equipe e, algumas vezes, foi possível falar sobre sua responsabilidade frente à busca por preencher as lacunas de conhecimento: Eu, particularmente … eu acho que as lacunas (de conhecimento) não estão só entre a gente… mas na própria coordenação… (MTC – Residente Fonoaudiologia R1 (B) 07/11/17).

Nessa perspectiva, os encontros de AIPP também foram permeados por muito silêncio, pois o individualismo presente em suas práticas, por vezes, impedia-os de expor seus não-saberes e de colocá-los em análise no coletivo. O não-saber foi ressignificado enquanto uma produção institucional, abrindo possibilidades para integração das práticas profissionais. A autoanálise no grupo de residentes sobre suas “lacunas de conhecimento” revelou não-ditos, houve o reconhecimento de seu não-saber e de que há outras pessoas que também não sabem, como tutores e preceptores corresponsáveis pelo processo ensino-aprendizagem. A análise de suas implicações com o lugar de formação e a análise pela resistência à colaboração questionaram a reprodução do método de ensino instituído da Universidade, caracterizado pela transmissão de conhecimentos e hierarquização dentro da sala de aula, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, e provocou a reflexão sobre o protagonismo e movimentos de cogestão em seu processo formativo.

Ao identificarem suas dificuldades, as contradições institucionais e os pontos de bloqueio, o coletivo de residentes propôs-se a encontrar soluções, e ampliar canais de comunicação com os docentes, convidando-os a discutir os objetivos do MTC na formação. Nesse processo de reconhecimento de seu não- saber e dos desafios de sua formação, o grupo conseguiu, moderadamente, democratizar o saber, o poder e manejar decisões referentes ao MTC junto aos demais atores da residência.

Interferências Interprofissionais e as Relações de Saber-Poder

As relações de saber e poder, reveladas a partir do encontro interprofissional e de interferências interprofissionais, estavam presentes como resistências no momento em que as instituições, intrínsecas às diferentes profissões, chocaram-se, cruzaram-se e disputaram entre si, tensionando a produção do cuidado colaborativo interprofissional. Nessas interferências, as implicações organizacionais e ideológicas provocaram resistências a um modelo mais integrado de trabalho: a dificuldade em implementar essa ideia (de atendimento compartilhado) na verdade, é de como a gente se organiza para o médico conseguir ficar comigo no mesmo horário por conta da agenda dele. (MTC – Residente Fonoaudiologia R1 (A) 29/08/2017)

Colaborar com o outro não depende só de um esforço para que o usuário seja mais bem entendido, trata-se de um processo de relações humanas. Essas relações permeiam a organização da agenda de trabalho e são atravessadas por um modelo de gestão do trabalho com base na produção de saúde enquanto máquina quantitativa. Muitos elementos somam-se no momento de definir a agenda, desde a escolha de quem irá participar, até como e por quanto tempo. Algumas equipes tentaram instituir uma agenda integrada para atendimentos compartilhados entre residentes multiprofissionais e médicos, mas, infelizmente, a dinâmica institucional mantinha agendamentos individuais, e o cuidado fragmentado.

As interferências interprofissionais determinaram a aproximação ou o afastamento dos residentes multiprofissionais dos profissionais médicos (tanto médicos da unidade como médicos residentes). Alguns médicos estavam mais abertos ao diálogo em momentos informais, de pausa para um café na cozinha, reconhecendo estes como espaços possíveis para a colaboração.

Ainda assim, foi possível observar sob a perspectiva das relações de gênero, brechas de implicação afetiva a favor da colaboração produzidas na convivência e na construção de confiança, por exemplo, no caso de um atendimento compartilhado entre a Fonoaudióloga, a Fisioterapeuta e a Médica-residente (que havia se graduado também em Fisioterapia). Nesse caso, a relação interprofissional de confiança entre as mulheres residentes possibilitou a colaboração. A resistência das mulheres movimentou um enfrentamento à relação de saber-poder estabelecida, criando alternativas ao poder médico-centrado instituído a partir de uma interferência institucional de gênero.

As mulheres estavam à vontade para trabalharem juntas, estabeleceram uma zona de confiança entre si com compartilhamento de saberes entre residentes mulheres e a usuária. Por exemplo, foi realizado um cuidado compartilhado junto a uma usuária, jovem adolescente, que estava em tratamento de uma paralisia facial. A prática colaborativa incluiu o diálogo sobre o tratamento, houve interação sobre qual seria a melhor decisão na resolução e cuidado com a jovem, que tinha vergonha de sorrir, e a escrita de informações e observações no prontuário apoiaram o matriciamento. No tratamento, a jovem manifestou que estava contente com a melhora de seu quadro.

O encontro do feminino atuou como resistência a favor do cuidado colaborativo, pois o compartilhar fluiu, produziu parceria e diluição do saber-poder. O encontro entre a mulher-médica, a mulher-fisioterapeuta e a mulher-fonoaudióloga com a mulher-usuária abriu uma brecha, que fez a prática da interprofissionalidade ultrapassar o poder médico instituído. Em complementaridade, era importante restabelecer a estética prejudicada, despertando outras implicações de caráter afetivo entre as mulheres, com objetivo comum de proteger a aparência da jovem e defender sua autonomia.

Em uma outra equipe, por outro lado, a reunião de matriciamento foi um movimento de integração rodeada de interferências institucionais e de resistências entre o poder médico e não-médico. A médica preceptora propôs uma reunião de matriciamento, incluindo os residentes médicos, graduandos em medicina e residentes multiprofissionais. O espaço acolhia especificamente demandas do atendimento médico, enquanto os demais residentes, que ficavam à disposição com seu saber especializado, atuavam como paramédicos, ou, auxiliares dos médicos.

Nesse caso, o residente acomodava-se na relação de saber- poder instituída e mantinha-se integrado a um projeto ou objetivo comum, o modelo médico-centrado, sem movimentar- se em busca da integralidade. De tal modo que essa posição paramédica ou de matriciamento paramédico constituía-se uma resistência ao trabalho interprofissional.

DISCUSSÃO

Os resultados mostram diferentes efeitos nas práticas profissionais dos residentes. O dispositivo de AIPP, com apoio das anotações no diário de pesquisa e das narrativas lidas no coletivo, abordou a análise das encomendas e demandas, a elucidação de analisadores e a análise pelas resistências do grupo(1515. Mesquita-Lago LP, Matumoto S, Silva SS, Mestriner SF, Mishima SM. Analysis of professional practices as a multiprofessional residency education tool. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 2):1625-34. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0687
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), principalmente a confrontação entre resistência às práticas interprofissionais colaborativas e o poder instituído da fragmentação e hierarquização entre as profissões.

Primeiro, vale destacar o efeito da falsificação da profecia inicial, ou “Efeito Mühlmann”(1818. Hess R, Savoye A. Les effets. In: Hess R, Savoye A, (editors). L’analyse institutionnelle. 2th ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1993. p. 72-83.), uma vez que, no início da pesquisa, as práticas dos residentes caminhavam no sentido contrário ao previsto no momento da criação do curso, afastando-os da integralidade do cuidado e de seu lugar de protagonistas. Ao mesmo tempo, os residentes, integrados ao poder instituído, mantinham a reprodução da instituição, reforçando a não integração de práticas e o cuidado pouco centrado no usuário e mais centrado em ações profissionais fragmentadas.

Segundo, sob o “Efeito Lapassade”(1818. Hess R, Savoye A. Les effets. In: Hess R, Savoye A, (editors). L’analyse institutionnelle. 2th ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1993. p. 72-83.), os residentes encontraram meios de resistir aos mecanismos de controle institucionais e de criar diferentes arranjos em sua formação. O “Efeito Lapassade” caracteriza uma tendência social de desvio das regras institucionais a favor do coletivo, com invenção de modos de funcionamento que tendem a resistir aos mecanismos de controle e domínio institucionais(1919. Monceau G. Le concept de résistance: de la pédagogie institutionnelle à l’intervention socianalytique. Limoges: Le Gai Savoir; 2002.). Um movimento presente nesse processo de institucionalização da formação em serviço incluiu a organização de agenda e a demanda por apoio pedagógico à pesquisadora e à gestão do curso.

Os movimentos de autoanálise, produzidos no grupo de residentes, possibilitaram um movimento de desculpabilização pelo fracasso diante do seu não-saber e um movimento de re-responsabilização(1919. Monceau G. Le concept de résistance: de la pédagogie institutionnelle à l’intervention socianalytique. Limoges: Le Gai Savoir; 2002.), ou seja, a evidência de certa autonomia do grupo a partir da análise das encomendas e demandas.

O agendamento de reunião com docentes e coordenação provocou ampliação de canais de comunicação e diálogo, o que pode ter contribuído, por certo período, para a governança das práticas interprofissionais por meio da conectividade entre os diferentes atores(1010. Arruda GMMS, Barreto ICHC, Ribeiro KG, Frota AC. The development of interprofessional collaboration in different contexts of multidisciplinary residency in Family Health. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 1):1309-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0859
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), um elemento importante da colaboração. A partir desta perspectiva, os residentes se aproximaram de processos de cogestão com base no compartilhamento de conhecimentos e de poder(2020. Viana MMO, Campos GWS. Paideia training for matrix support: a pedagogical strategy centered on reflection of practice. Cad Saude Publica. 2018;34(8):e00123617. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311x00123617
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), porém sem um direcionamento institucional. Diante dos desafios oriundos de espaços institucionais democráticos, há uma variedade de dispositivos que norteiam as práticas na direção da cogestão, com o objetivo comum de criar ambientes dialógicos entre profissionais, gestores e usuários nos quais problemas, necessidades e possíveis soluções sejam colocadas em análise(2121. Doricci G, Guanaes-Lorenzi C. Integrative review on co-management in the context of the National Humanization Policy. Cien Saude Colet [Internet]. 2019 [cited 2021 Jan 26];26(8):2949-59. Available from: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/revisao-integrativa-sobre-cogestao-no-contexto-da-politica-nacional-de-humanizacao/17429?id=17429&id=17429
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).

Neste estudo, notou-se uma tendência à reprodução de práticas já conhecidas, quando as equipes que viviam sob uma insegurança do fazer comum na APS se fechavam, mantendo muros entre si. Dessa forma, quando se faz referência à prática colaborativa interprofissional, autores defendem uma abordagem contingencial às equipes, e o estímulo a uma identidade e responsabilidade compartilhadas, papéis e objetivos claros, interdependência, integração nas tarefas da equipe(77. Peduzzi M, Agreli HF. Teamwork and collaborative practice in primary health care. Interface (Botucatu). 2018;22 Suppl 2:1525-34. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0827
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,88. Reeves S, Xyrichis A, Zwarenstein M. Teamwork, collaboration, coordination, and networking: Why we need to distinguish between different types of interprofessional practice. Journal of Interprofessional Care. 2018;32(1):1-3. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2017.1400150
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), aspectos que se apresentaram frágeis no contexto institucional estudado, a exemplo de ações fragmentadas nos serviços de saúde, com poucos momentos para discussão de casos ou reflexão sobre o processo de trabalho nas equipes multiprofissionais.

A impotência que os residentes sentiam diante da responsabilidade pela própria formação revelava um funcionamento institucional que se rendeu à responsabilização (accountability) do tipo gerencial, aquela produzida pela demanda dos gestores por desempenho do serviço público e de seus atores(2222. Coelho VSP, Marcondes LM, Barbosa M. Accountability e redução das desigualdades em saúde: a experiência de São Paulo. Estud CEBRAP. 2019;38(2):323-49. DOI: https://doi.org/10.25091/s01013300201900020003
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). Esse é um pressuposto do paradigma da Nova Gestão Pública ou gerencialismo, o que acarretou prejuízo no compartilhamento de responsabilidades no cuidado ao usuário, e fortalecimento da lógica do produtivismo.

Além disso, a AIPP colocou em evidência a valorização do método tradicional de ensino universitário com base na transmissão de conhecimentos e o conflito diante da prioridade dada pela universidade à produção científica com base na performance e produtividade(2323. Silva AB. Multilevel academic productivism: performative merchandise in Brazil’s graduate schools of management. Revista de Administração de Empresas. 2019;59(5):341-52. DOI: https://doi.org/10.1590/s0034-759020190504
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). Esse cenário revela aspectos da política institucional, que pouco incentiva a formação docente e a implementação de novos métodos de ensino na formação de profissionais de saúde na direção de práticas mais colaborativas. Tal fato reitera a relevância da adoção de processos de análise coletiva, potencializando espaços de tutoria de campo, para que seja possível encontrar novos caminhos nas residências multiprofissionais e avançarmos para um modelo de formação pautado na educação interprofissional em saúde que tem como finalidade o fortalecimento da colaboração interprofissional.

Nesse sentido, as implicações profissionais(1616. Monceau G. Implication, over implication and professional implication. Fractal: Revista de Psicologia. 2008;20(1):19-26. DOI: https://doi.org/10.1590/S1984-02922008000100007
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) indicaram movimentos a favor e outros contra a prática interprofissional. Por outro lado, as implicações afetivas favoreceram a integração das práticas, estiveram relacionadas à disposição para trabalharem juntos e nas experiências com base na confiança e convivência mútuas, no estabelecimento de vínculo com o usuário e com os colegas de trabalho, o que os aproximou do que se denomina de internalização da colaboração(1010. Arruda GMMS, Barreto ICHC, Ribeiro KG, Frota AC. The development of interprofessional collaboration in different contexts of multidisciplinary residency in Family Health. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 1):1309-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0859
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). Além disso, a análise de seus objetivos comuns de cuidado centrado no usuário refletiram na negociação de horário comum na agenda (implicação organizacional) e no interesse na resolução de um caso compartilhado (implicação ideológica com o cuidado integral). Assim, a análise de implicações aponta alguns caminhos para a colaboração interprofissional.

Pondera-se, como limite desse estudo, a lacuna da análise dos usuários e profissionais de saúde sobre as práticas colaborativas, pois não participaram diretamente nos diferentes momentos de realização da pesquisa. Além disso, outra dimensão da colaboração interprofissional que precisa ser fortalecida nesse contexto é a governança, que inclui, além de um direcionamento da gestão, aspectos como o compartilhamento de responsabilidades com lideranças locais, processos de educação permanente e manutenção de espaços que favoreçam a conexão e o diálogo entre seus atores para discussão de problemas e soluções conjuntamente(1010. Arruda GMMS, Barreto ICHC, Ribeiro KG, Frota AC. The development of interprofessional collaboration in different contexts of multidisciplinary residency in Family Health. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 1):1309-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0859
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).

Nessa perspectiva, o reconhecimento e a criação de ferramentas de compartilhamento e conectividade apontaram na direção da colaboração interprofissional no cotidiano da APS; porém, as lacunas mencionadas acima fragilizaram sua governança e formalização(1010. Arruda GMMS, Barreto ICHC, Ribeiro KG, Frota AC. The development of interprofessional collaboration in different contexts of multidisciplinary residency in Family Health. Interface (Botucatu). 2018;22(Suppl 1):1309-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0859
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). A despeito disso, a vivência dos residentes revelou tensões frente à autogestão, ao não-saber, às relações de saber-poder, desafios colocados para a integração de práticas e alcance do cuidado integral centrado no usuário, orientado por suas necessidades de saúde.

CONCLUSÃO

As resistências na prática profissional dos residentes apontaram, claramente, para movimentos integrativos de assimilação ao poder médico-centrado, como o posicionamento dos residentes enquanto paramédicos. No entanto, esse direcionamento apresenta tensões e conflitos que devem ser colocados em análise para o enfrentamento desse poder instituído, quando se intenciona alcançar maior integração de práticas, a colaboração interprofissional e a integralidade no cuidado em saúde com redução das assimetrias e busca de equilíbrio nas relações de poder.

As resistências à colaboração revelaram as relações de saber- poder e as disputas com o poder médico no cuidado, com prejuízos ao compartilhamento do cuidado, e representam obstáculos na comunicação interprofissional, estabelecimento de parceria e de interdependência. Diante da análise de suas implicações, o usuário ganhava destaque, quando os profissionais reconheciam o cuidado como objetivo comum, mesmo trabalhando de forma interdependente.

A partir da reflexividade, os residentes ressignificaram suas práticas, tomando posicionamentos e compartilhando espaços decisórios para qualificar o cuidado integral em saúde. Evidencia-se a necessidade de ampliar os momentos de cogestão e de reflexão sobre os espaços comuns de formação e práticas, considerando a potência desses espaços para questionarem seu papel enquanto profissionais de saúde, e retomarem seu objetivo central de produção de vida, com ênfase na colaboração interprofissional centrada nas necessidades de saúde dos usuários.

EDITOR ASSOCIADO

Divane de Vargas

  • Apoio financeiro Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), bolsa de doutorado demanda social do Programa de Pós-graduação Enfermagem em Saúde Pública (EERP-USP).” O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2021
  • Aceito
    24 Abr 2022
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