Aspectos teóricos, metodológicos e analíticos de pesquisas etnográficas em enfermagem obstétrica: revisão integrativa^*

Resumo

Objetivo:

Caracterizar as pesquisas etnográficas na área de enfermagem obstétrica quanto a seus aspectos teóricos, metodológicos e analíticos.

Método:

Revisão integrativa realizada nas bases de dados MEDLINE®, LILACS, BDENF e CINAHL, bem como na biblioteca virtual SciELO.

Resultados:

Após processo de triagem e leitura na íntegra das referências primárias, 30 artigos formaram o corpus analítico. Os métodos mais utilizados foram etnoenfermagem, etnografia e etnografia institucional; o tempo de imersão no campo variou entre 12 visitas e 48 meses, ocorrendo em contextos institucionais. As principais técnicas de coleta de dados foram observação, entrevistas individuais e guias capacitadores da etnoenfermagem. Os dados foram organizados sob a forma de temas e subtemas, analisados por meio do guia de análise da etnoenfermagem, tendo como referencial teórico a Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural.

Conclusão:

Estudos etnográficos na área de enfermagem obstétrica situam-se no âmbito das microetnografias e são operacionalizados com aporte em referenciais teórico-metodológicos da enfermagem, sendo úteis para se analisar a complexidade dos fenômenos que envolvem o cuidado de enfermagem obstétrico, com foco nas perspectivas etic (profissionais) e emic (mulheres).

Descritores:
Cuidados de Enfermagem; Enfermagem Obstétrica; Saúde da Mulher; Cultura; Antropologia Cultural; Revisão

Abstract

Objective:

To characterize ethnographic research in the area of obstetric nursing regarding its theoretical, methodological and analytical aspects.

Method:

An integrative review performed in the MEDLINE®, LILACS, BDENF and CINAHL databases, as well as the SciELO virtual library.

Results:

Thirty (³⁰) articles formed the analytical corpus after screening and reading the primary references in full. The most used methods were ethno-nursing, ethnography and institutional ethnography; the immersion time in the field ranged from 12 visits to 48 months occurring in institutional contexts. The main data collection techniques were observation, individual interviews and training guides for ethno-nursing. The data were organized as themes and subthemes, analyzed through the ethno-nursing analysis guide, implementing the Theory of Diversity and Universality of Cultural Care as theoretical reference.

Conclusion:

Ethnographic studies in the area of obstetric nursing are within the scope of microethnographies and are operationalized based on theoretical-methodological nursing references, being useful to analyze the complexity of phenomena involving obstetric nursing care, and focusing on the etic (professional) and emic (women) perspectives.

Descriptors:
Nursing Care; Obstetric Nursing; Women’s Health; Culture; Anthropology, Cultural; Review

Resumen

Objetivo:

Caracterizar las investigaciones etnográficas en el área de enfermería obstétrica en cuanto a sus aspectos teóricos, metodológicos y analíticos.

Método:

Revisión integrativa llevada a cabo en las bases de datos MEDLINE®, LILACS, BDENF y CINAHL, así como en la biblioteca virtual SciELO.

Resultados:

Tras el proceso de cribado y lectura integral de las referencias primarias, 30 artículos formaron el corpus analítico. Los métodos más utilizados fueron etnoenfermería, etnografía y etnografía institucional; el tiempo de inmersión en el campo varió entre 12 visitas y 48 meses, ocurriendo en contextos institucionales. La principales técnicas de recolección de datos fueron observación, entrevistas individuales y guías capacitadoras de la etnoenfermería. Los datos fueron organizados bajo la forma de temas y subtemas, analizados mediante la guía de análisis de la etnoenfermería, teniendo con marco de referencia teórico la Teoría de la Diversidad y Universalidad del Cuidado Cultural.

Conclusión:

Estudios etnográficos en el área de enfermería obstétrica se ubican en el marco de las microetnografías y se operacionalizan con aporte en marcos de referencia teóricos metodológicos de la enfermería, siendo útiles para analizarse la complejidad de los fenómenos que involucran el cuidado de enfermería obstétrico, con enfoque en las perspectivas etic (profesionales) y emic (mujeres).

Descriptores:
Atención de Enfermería; Enfermería Obstétrica; Salud de la Mujer; Cultura; Antropología Cultural; Revisión

INTRODUÇÃO

A saúde e a doença não podem ser pensadas apenas como consequência de fatores fisiopatológicos, mas como fenômenos complexos significados pela cultura, compartilhados entre grupos, e não devem ser dissociados dos determinantes sociais. Para tanto, o uso de métodos antropológicos, como a etnografia, constitui uma possibilidade para se acessar a estrutura sociocultural que modela a relação saúde-doença, descrevendo as experiências e a inserção das pessoas nesse processo⁽¹⁾.

Dentro desse contexto, a cultura e as relações sociais estão implicadas como determinantes do cuidado de enfermagem⁽²⁾. A compreensão dessa relação teórica e prática na enfermagem iniciou-se na década de 1960, por meio do método denominado “etnoenfermagem”, inspirado pelo método etnográfico⁽³⁾. A etnografia passou a ser utilizada na enfermagem como fundamento metodológico em pesquisas científicas para a apreensão e análise dos modos de vida ou padrões específicos de cuidados expressos em determinada cultura^(2-3).

Especificamente na enfermagem obstétrica, essa necessidade também se apresenta, uma vez que gestação, parto e nascimento são fenômenos vitais significados pela cultura. Dessa forma, o cuidado de enfermagem obstétrico deve ser fundamentado no conhecimento de crenças, valores, práticas e significados culturais e em torno dos processos de gestação, parto e puerpério^(4-6). A ótica da etnografia, nesse cuidado, pode contribuir para as práticas profissionais, a interação com usuários, famílias ou coletividades, a humanização dos processos de gestar, parir e nascer e a integralidade da assistência^(2,6).

Analisando a produção científica nacional e internacional na área da enfermagem obstétrica, percebeu-se que os pesquisadores utilizaram a etnografia como referencial metodológico na condução de suas investigações⁽⁷⁾. Estudo de revisão⁽⁷⁾ que buscou identificar a forma como a etnografia era aplicada na enfermagem, no período de 2009 a 2013, analisou as dimensões ligadas ao processo saúde-doença abordadas nesses estudos sem, contudo, descrever como o método foi empregado ou especificar uma área da enfermagem.

Além disso, os procedimentos metodológicos para realização de estudos etnográficos não são descritos com precisão e não fornecem diretrizes operacionais; além disso, seus vínculos com a compreensão do fenômeno são mal explicados^(8-9). Assim, reconhecendo que os métodos etnográficos constituem estratégia metodológica complexa e sua utilização representa tarefa árdua, estudá-los pode abrir caminho para aplicações que permitam o entendimento da complexidade dos fenômenos envoltos no cuidado de enfermagem obstétrico.

Desse modo, objetivou-se caracterizar as pesquisas etnográficas na área de enfermagem obstétrica quanto aos aspectos teóricos, metodológicos e analíticos. Acredita-se que a utilização da etnografia e dos referenciais teórico-metodológicos, pautados em uma perspectiva antropológico-cultural, possa contribuir para a construção de aportes teórico-conceituais, pressupostos éticos, estéticos, epistemológicos e filosóficos para guiar as ações e fundamentar práticas de cuidado de enfermagem obstétrico.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de revisão integrativa cujo percurso metodológico constituiu-se das seguintes etapas: identificação da questão norteadora; estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão; categorização (extração, organização e sumarização das informações); avaliação dos estudos incluídos; interpretação dos resultados; apresentação da revisão⁽¹⁰⁾.

Identificação da questão norteadora

Na primeira etapa, formulou-se a seguinte questão norteadora: Quais as características teóricas, metodológicas e analíticas das pesquisas etnográficas realizadas na área de enfermagem obstétrica?

Estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão

A operacionalização da pesquisa iniciou-se com a definição dos critérios de inclusão: artigos de pesquisa com abordagem qualitativa em enfermagem obstétrica (envolvendo cuidados prestados às mulheres antes, depois e durante o parto) e aporte nos métodos etnográficos, publicados nos idiomas inglês, português ou espanhol. Foram excluídos estudos com abordagem mista (quantitativa-qualitativa); com adolescentes, tendo em vista que as questões sociais, econômicas, culturais e históricas que envolvem os aspectos reprodutivos no período da adolescência são complexas e multifatoriais⁽¹¹⁾; teses; dissertações; relatos de experiência; não disponíveis em texto completo para download. Não foi estabelecido recorte temporal para inclusão dos artigos, a fim de se abranger o maior quantitativo de publicações.

Fontes de dados e estratégia de busca

De forma pareada, a coleta de dados foi realizada em 2017 por meio do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nas bases de dados Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE®) via PubMed, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Base de Dados em Enfermagem (BDENF), Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL) via EBSCO Information Services, e na biblioteca virtual Scientific Electronic Library Online (SciELO), utilizando o método de busca avançada.

Empregou-se, para a busca, uma associação de seis descritores de assunto do Medical Subject Headings (MeSH) da National Library of Medicine (NLM) e National Institutes of Health (NIH), sendo cinco deles controlados (“obstetric nursing”, "nursing", “culture”, “anthropology” e “anthropology cultural”) e dois não controlados, a saber: um sinônimo (“ethnography”) e uma palavra-chave (“ethnonursing”), para aumentar o escopo da revisão. Utilizou-se, como estratégia de busca, a realização de entrecruzamentos aos pares com o operador booleano “AND” para associação dos descritores.

Inicialmente, foram identificadas 636 referências primárias nas bases de dados/biblioteca virtual selecionadas (Quadro 1).

Quadro 1
Referências encontradas com os respectivos cruzamentos (n=636), 2017.

Estratégias de busca	SciELO	BDENF	LILACS	MEDLINE®	CINAHL	Total
“Obstetric nursing” AND “culture”	7	16	19	69	101	212
“Obstetric nursing” AND “anthropology”	2	9	10	4	4	29
“Obstetric nursing” AND “anthropology cultural”	1	9	-	4	3	17
“Obstetric nursing” AND “ethnography”	2	8	8	3	8	29
“Obstetric nursing” AND “ethnonursing”	1	2	-	-	3	6
“Nursing” AND “ethnonursing”	24	2	13	97	207	343
Total	37	46	50	177	326	636

• SciELO: Scientific Electronic Library Online; BDENF: Base de Dados em Enfermagem; LILACS: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde: MEDLINE®: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online; CINAHL: Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature.

Após a identificação, os artigos foram submetidos a um processo de triagem, por meio de análise do assunto, que incluía leitura do título, resumo e análise segundo critérios de inclusão e exclusão. Nesse processo, os artigos duplicados entre bases de dados e repetidos entre os selecionados foram identificados, tendo sido realizada a seleção definitiva das referências elegíveis para leitura na íntegra.

Utilizou-se o instrumento Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analyses (PRISMA)⁽¹²⁾ para relatar o processo de identificação, triagem, elegibilidade e inclusão dos estudos, conforme representado na Figura 1.

Figura 1
Processo de busca e seleção dos artigos por meio de cruzamentos dos termos Medical Subject Headings (MeSH), via bases de dados e biblioteca virtual.

De modo a assegurar a qualidade dessas etapas e evitar vieses de seleção, adotou-se como estratégia procedimental a dupla checagem de todos os estudos por revisores, que atuaram de forma independente. A avaliação para inclusão ou exclusão dos estudos tinha como parâmetros os critérios previamente estabelecidos e a questão norteadora. Em situações de divergência de opiniões, um terceiro avaliador era designado para repetir o processo de leitura e emitir um novo parecer, visando garantir uniformidade, validade e rigor ao processo de inclusão dos estudos na revisão. Assim, a amostra final foi composta por 30 artigos.

Avaliação dos estudos incluídos

Após a seleção, a avaliação da qualidade metodológica dos estudos foi realizada com base nos itens do instrumento Critical Appraisal Skills Programme (CASP), que classifica os artigos em duas categorias: (A) boa qualidade metodológica e viés reduzido (escores entre seis a 10 pontos) e (B) qualidade metodológica satisfatória, porém com risco de viés aumentado (com escore de pontuação abaixo de 6 pontos)⁽¹³⁾. Esse processo foi realizado por dois avaliadores, sem que houvesse troca de informação entre eles. No somatório dos escores dos dois avaliadores, todos os artigos incluídos na amostra enquadraram-se na categoria A. Destaca-se que não houve discordância entre os pares no processo de avaliação, não havendo necessidade de um terceiro avaliador.

Procedimentos para extração, organização e sumarização dos dados

Para extração dos dados, utilizou-se um instrumento elaborado pelos pesquisadores, contendo as variáveis autoria, ano, periódico, fonte, local, referencial metodológico, definição dos informantes, lócus, cenários e contextos de investigação, processo de imersão no campo, técnicas de coleta de dados, organização dos dados empíricos, análise dos dados, aspectos teóricos, períodos do ciclo reprodutivo, perspectivas e dimensões de análise, rigor metodológico, reflexividade e aspectos éticos.

Análise e tratamento dos dados

Após procedimentos de codificação, as informações foram organizadas por semelhanças e divergências, tendo sido reduzidas e compiladas eletronicamente em planilha do programa Microsoft Office Excel ^® versão 2013 e validadas por meio de dupla digitação para eliminar possíveis erros e garantir a confiabilidade.

No processo de análise, utilizou-se o método de redução de dados, que envolveu leitura minuciosa e técnicas de classificação e divisão em subgrupos das fontes primárias, conforme abordagem e aspectos metodológicos⁽¹⁴⁾.

Esse processo permitiu organizar os dados em uma estrutura lógica, simplificar, sumarizar, abstrair e comparar sistematicamente os resultados oriundos dos estudos primários sobre a questão em estudo⁽¹⁴⁾, facilitando o processo de análise interpretativa, apresentação da revisão sob a forma de síntese descritiva, quadros e figuras com posterior discussão dos achados, em conformidade com a literatura científica.

Aspectos éticos

Em decorrência do fato de a pesquisa utilizar apenas dados de domínio público, sem envolvimento de seres humanos ou que requeiram sigilo ético, justifica-se a dispensa de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

A apresentação dos resultados desta revisão contemplou breve caracterização dos estudos primários, sumarizada no Quadro 2, e posterior síntese descritiva dos aspectos teóricos, metodológicos e analíticos adotados na condução das pesquisas etnográficas.

Quadro 2
Caracterização das pesquisas etnográficas em enfermagem obstétrica.

Autoria	Local	Cenários e contextos de investigação	Imersão no campo	CASP
Bonadio(15)	Cidade de São Paulo, Brasil	Serviço de pré-natal de uma instituição filantrópica	Não citado	A
Woodward(16)	Não informado	Hospital e maternidade de um serviço nacional de saúde	12 visitas	A
Berry(17)	Região Sudoeste dos Estados Unidos	Clínica pré-natal de saúde pública, um hospital e domicílios	11 meses	A
Nahas e Amasheh(18)	Área ocidental de Sydney, Austrália	Comunidade	Não citado	A
Morin et al.(19)	Região do Atlântico Médio dos Estados Unidos	Unidade materno-infantil de um pequeno hospital comunitário	12 meses	A
Angus et al.(20)	Não informado	Quatro hospitais comunitários	20 dias	A
Praça(21)	Zona oeste do município de São Paulo, Brasil	Centro comunitário e domicílios de uma favela	19 meses	A
Hoga(22)	São Paulo, Brasil	Casa de parto	5 meses	A
Jeneral e Hoga(23)	Cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, Brasil	Comunidade de baixa renda	Não citado	A
Medves e Davies(24)	Ontário, Canadá	Hospital maternidade rural	Não citado	A
Bezerra e Cardoso(25)	Fortaleza, Ceará, Brasil	Unidade de internação e centro obstétrico de maternidade pública e domicílios	3 meses	A
Monticelli e Elsen(26)	Região Sul do Brasil	Unidade coletiva de alojamento conjunto de maternidade pública	12 meses	A
Monticelli e Elsen(27)	Região Sul do Brasil	Unidade coletiva de alojamento conjunto de maternidade pública	12 meses	A
Bezerra e Cardoso(28)	Fortaleza, Ceará, Brasil	Unidade de internação e centro obstétrico de maternidade pública	3 meses	A
Foster et al.(29)	República Dominicana	Hospital e maternidade de referência	Não citado	A
El-Nemer et al.(30)	Egito	Hospital e maternidade	3 meses	A
Kennedy e Lyndon(31)	Região norte da Califórnia, Estados Unidos	Hospital de ensino urbano no norte da Califórnia	24 meses	A
Leal e Rodríguez(32)	Cidade de Girardot, Colômbia	Programa de assistência pré-natal do hospital	3 meses	A
Bernal-Roldán et al.(33)	Localidades de Suba e Ciudad Bolivar, Cidade de Bogotá, Colômbia	Domicílios	Não citado	A
MacKinnon(34)	Cidade de Cranbrook, na província ocidental de Colúmbia Britânica, Canadá	Hospital rural regional	48 meses	A
MacKinnon(35)	Cidade de Cranbrook, na província ocidental de Colúmbia Britânica, Canadá	Hospital rural regional	48 meses	A
Maia e Silva(36)	Cidade de Benjamin Constant, Amazonas, Brasil	Comunidade ribeirinha	2 meses	A
Prieto e Ruiz(37)	Cidade de Tunja, Departamento de Boyaca, Colômbia	Domicílios	Não citado	A
Tasçı-Duran e Sevil(38)	Bornova, distrito metropolitano da província de İzmir, Turquia	Centro de saúde da família	10 meses	A
Feyer et al.(39)	Florianópolis, Santa Catarina, Brasil	Domicílios	8 meses	A
Lessa et al.(40)	Cidade do Rio de Janeiro, Brasil	Domicílios	6 meses	A
Lessa et al.(41)	Cidade do Rio de Janeiro, Brasil	Domicílios	6 meses	A
Junges et al.(42)	Região norte da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil	Comunidade urbana	3 meses	A
Alves et al.(43)	Rio Grande do Sul, Brasil	Unidades Básicas de Saúde em comunidade de baixa renda	6 meses	A
Grassley et al.(44)	Mountain West, Estados Unidos	Alojamento conjunto de hospital terciário	Não citado	A

• CASP: Critical Appraisal Skills Programme.

Quanto aos aspectos teórico-metodológicos, o Quadro 3 apresenta a sumarização dos elementos encontrados nos artigos selecionados. Dentre os referenciais metodológicos adotados, destacaram-se a etnografia^{(15-16,21-22,29,31,39)}, a etnografia focada^(19-20,31), a etnografia institucional^{(24,34-35,40-41,44)} e a etnoenfermagem^{(17-18,23,25-28,32-33,36-38,42-43)}.

Quadro 3
Aspectos teóricos e metodológicos das pesquisas etnográficas em enfermagem obstétrica.

Aspectos		Elementos encontrados nos estudos
Teóricos	Paradigma interpretativo, epistemologia construtivista e lógica indutiva	Formulações teóricas ou conceitos à luz da Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural(17-18,23,25,28,32,36-39)
		Antropologia cultural(15,21), da saúde e simbólica(27)
		Princípios pedagógicos da educação para mudanças sociais, no conceito de prática de enfermagem como parceria para transformar comportamentos de saúde(29)
		Abordagem dos quatro princípios fundamentais da ética em saúde(16)
		Modelos conceituais do Critical Success Factors e do Critical Success Factors and the Model for the Evaluation of Rural Sustainability (24)
		Arcabouço analítico do habitus, capital e campo(20)
		Narrativas terapêuticas(26)
Metodológicos	Referenciais	Etnografia(15-16,21-22,29,31,39), etnografia focada(19-20,31), etnografia institucional(24,34-35,40-41,44) e etnoenfermagem(17-18,23,25-28,32-33,36-38,42-43)
	Informantes	Trabalhadores de enfermagem de nível médio(16,26-27,29), enfermeiros docentes, gerentes e/ou assistenciais(16,20,22,24,31,34-35,37,43-44), médicos(24), parteiras(16,31), administradores(24) e outros funcionários(17)
		Gestantes(15,17,21,23,32-33,42), parturientes(25,28,30), puérperas(18-19,37), mães(36,40-41), familiares(17,25-26,37,39), amigos(17,25), companheiros(25) e comunidade(17)
	Cenários	Hospitais, maternidades, casas de parto, clínicas e centros de Saúde da Família(15-17,19-20,22,24-32,34-35,38,44)
		Domicílios(17,21,33,37,39-41) e comunidades(18,21,23,36,42)
	Eventos obstétricos	Parto(16,19-20,22,24-25,28,30-31,34-35,39-41), gestação(15,17,21,23,32-33,38,42-43) e pós-parto(18-19,26-27,29,36-37,44)
	Técnicas de coleta de dados	Observação(20,33-35,38,44) participante(15,21-22,26-27,29,31-32,37,39) e não participante(16,30); observação não estruturada(27) e estruturada(43)
		Observation-Participation-Reflection Model(17-18,23,25,28,42-43), Stranger-Friend Model(17-18,25,28), aculturação(18) e Sunrise Model (17-18,37-38)
		Entrevistas individuais(15-44), não estruturadas(15,26,30-33,37), semiestruturadas(16,19-20,22-23,25,27-29,38,40-41,43) e estruturada(31,36,42,44), entrevistas em grupo(24,31,33,44) não estruturadas(31), estruturadas(44) e grupos focais(24,33,44)
		Questionários(29,36) e fotografias(21), pesquisas e documentos fornecidos pela instituição(15,34-35), prontuários(21) e protocolos(44)
	Organização e processamento dos dados	Temas(15,17-18,21,23,30-33,37-38,44) e subtemas(21,32,38), denominados culturais(23), culturais centrais(15,18,33,37), culturais principais(38), universais(17) e descritores culturais(23)
		Categorias(16,21-22,25-28,36,39-41) e subcategorias(25,28,39-41), classificadas em analíticas(21,36) e temáticas(15,40-41)
		De forma descritiva a partir dos padrões que emergiram empiricamente(19-20,24,29,34-35,43)
		Softwares Leininger-Templin-Thompson Ethno Script Qualitative Software®(17), Ethnograph®(18), Nudist®(19) e Atlas.ti®(31)
	Análise dos dados	Etnoenfermagem(17-18,25-28,36-38,42-43), análise etnográfica componencial(15,32-33), análise de conteúdo(16,21,30-31,40-41,44), arcabouço analítico do habitus, capital e campo(20), modelagem da árvore de decisão etnográfica(29), método analítico em etnografias institucionais(34-35), análise de narrativas(22-23), teoria fundamentada nos dados(30), análise convergente-assistencial(39), modelos conceituais do Critical Success Factors e do Critical Success Factors and the Model for the Evaluation of Rural Sustainability (24) e análise documental(15,21)
	Aspectos éticos e rigor metodológico	Critérios da etnoenfermagem: credibilidade, confirmabilidade, padrões recorrentes, significado no contexto, saturação e transferibilidade(17-18,26), bem como conferência e validação das informações coletadas com os informantes(19,21-23,29,31), credibilidade(19,22) e confiabilidade(29)
		Aprovação por Comitês de Ética em Pesquisa(16,19,21-22,24-29,31-36,38-44) e assinatura do Termo de Consentimento Livre e esclarecido(16-17,19-20,22-33,36-39,41-42,44)

Os principais informantes foram trabalhadores de enfermagem^{(16,20,22,24,26-27,29,31,34-35,37,43-44)}, gestantes^{(15,17,21,23,32-33,42)}, parturientes^(25,28,30), puérperas^(18-19,37) e mães^(36,40-41). Esses participantes eram informantes-chave ou informantes gerais, tendo sido incluídos de forma individual, em grupo e/ou associada. A quantidade de informantes variou entre 4⁽⁴²⁾ e 126⁽²⁰⁾, com média de 20 participantes, selecionados por critérios previamente estabelecidos ou de forma intencional.

As investigações ocorreram em cenários e contextos institucionais^{(15-17,19-20,22,24-32,34-35,38,44)}, domiciliares^{(17,21,33,37,39-41)} e comunitários^{(18,21,23,36,42)}. Em relação à duração do processo de imersão no campo, observou-se que, embora oito estudos^{(15,18,23-24,29,33,37,44)} não tenham especificado a duração ou período, houve variação de 12 visitas de, aproximadamente, 6 horas cada⁽¹⁶⁾ a 48 meses^(34-35), sendo mais frequente o período de 3 meses^{(25,28,30,32,42)}.

A observação^{(15-16,20-22,26-27,29-35,37-39,43-44)} representou a técnica de coleta de dados mais utilizada, com registro em notas de campo^{(17-20,31-33,38)}, anotações gerais⁽¹⁵⁾, diário de campo^{(21,25-27,37,39,42-43)} ou diário reflexivo^(19,30). As entrevistas^(15-44) tinham caráter complementar^{(15-37,39-44)} e foram encerradas pelo critério de saturação teórica^{(17-19,23,26,28,32-33,36-37,39-43)}. Ainda foram utilizados os guias capacitadores^{(17-18,23,25,28,37-38,42-43)} do método da etnoenfermagem para coleta de dados.

Para análise dos dados etnográficos, parte dos estudos recorreu principalmente à etnoenfermagem^{(17-18,25-28,36-38,42-43)}, assim como às vertentes da análise de conteúdo e análise temática. Alguns autores utilizaram softwares ^(17-19,31) para auxiliar na organização e no processamento dos dados qualitativos.

Em relação às questões relativas ao rigor metodológico, a maioria dos estudos não descreveu de modo consistente o papel, o potencial de viés e a influência do pesquisador ao longo da condução dos estudos. Ainda assim, destacou-se a aplicação dos seis critérios qualitativos do método etnoenfermagem. Os estudos fizeram referência ao respeito das diretrizes éticas envolvendo pesquisas com seres humanos.

Quanto aos aspectos analíticos, os estudos centraram as análises em diferentes períodos, aspectos, fenômenos e processos do ciclo reprodutivo, a partir de duas dimensões do cuidado de enfermagem: sob a perspectiva dos profissionais (ou etic, que se refere aos conhecimentos e cuidados profissionais da enfermagem) e das mulheres (ou emic, que se refere aos conhecimentos internos de informantes traduzidos pelos cuidados populares). Essas diferentes características encontram-se sumarizadas na Figura 2.

Figura 2
Distribuição dos focos de análise por períodos do ciclo reprodutivo, perspectivas de análise e dimensões do cuidado, adotados nos estudos primários.

Os focos de análise centrados no pré-natal foram utilizados para compreender^(15,23,42), descrever^(17,23), explicar⁽¹⁷⁾, analisar⁽¹⁷⁾, conhecer⁽¹⁵⁾, descobrir^(32,38) e explorar⁽³³⁾ o contexto sociocultural e a rede de expressões e significados de mulheres que orientavam a práxis cotidiana e os comportamentos culturais de saúde, voltados ao cuidado de si ao longo da gestação. Os estudos cujos focos de análise se direcionavam aos enfermeiros buscaram conhecer⁽⁴³⁾ as práticas de cuidado, os valores culturais e as concepções de enfermeiros, ao assistirem a gestante e mostrarem⁽²¹⁾ o processo de trabalho nos contextos sociais e culturais em que ocorria o cuidado pré-natal.

Os estudos desenvolvidos no período do parto voltaram-se para compreender^(25,28,39), explorar⁽³⁰⁾ ou examinar⁽³⁰⁾ ideias, valores, crenças e práticas culturais, comportamentos, experiências vivenciadas pela parturiente e fatores que interferiam no trabalho de parto e o parto, e na satisfação com os cuidados hospitalares nesse período, bem como descrever⁽¹⁹⁾ a aceitação de cuidados prestados por estudantes do sexo masculino na maternidade. Em contrapartida, como alternativa à realidade dos partos hospitalares, os estudos buscaram, ainda, descrever⁽⁴¹⁾ ou desvelar⁽⁴⁰⁾ relações socioculturais hesitantes no cotidiano, que envolviam o processo de tomada de decisão das mulheres pelo parto domiciliar planejado.

Ainda, exploraram as experiências de trabalho e a forma como os discursos institucionais, recursos, estruturas e processos de trabalho dos enfermeiros eram socialmente organizados, apresentando a complexidade dos relacionamentos profissionais e uma série de tensões sobrepostas ao trabalho em equipe^{(16,20,24,31,34-35)}. No contexto das casas de parto⁽²²⁾ identificaram-se os símbolos que permeavam as ideias, as crenças, os valores, as práticas e os princípios que orientavam a assistência prestada nessas instituições.

Os estudos realizados no período pós-parto voltaram suas perspectivas de análise para identificar⁽³⁶⁾, descobrir⁽¹⁸⁾, descrever^(18,37), discutir⁽³⁶⁾ ou explicar⁽¹⁸⁾ as experiências pessoais, os saberes, as práticas, as crenças, as percepções, os significados e os valores culturais maternos atribuídos ao cuidado de si e dos filhos recém-nascidos durante o período pós-parto. Além disso, nas unidades hospitalares pós-parto, foi descrito o processo de tomada de decisão e aceitação de cuidados prestados por estudantes do sexo masculino⁽¹⁹⁾. Os estudos que abordaram a perspectiva dos profissionais buscaram: identificar⁽²⁷⁾ ou compreender⁽²⁶⁾ a rede de símbolos e significados expressa na vivência de trabalhadores de enfermagem e as representações que possuíam sobre cultura, ao desenvolverem o processo de cuidar em unidades de alojamento conjunto; compreender⁽²⁹⁾ os processos de tomada de decisão; descrever⁽⁴⁴⁾ a capacidade dos profissionais de enfermagem de ofertar apoio às puérperas.

DISCUSSÃO

Diferentes questões epistemológicas, axiológicas e ontológicas acompanham o fazer científico e são subjacentes aos paradigmas de pesquisa⁽⁴⁵⁾. Na pesquisa qualitativa, norteada pelo paradigma interpretativista, a epistemologia construtivista e a lógica indutivista privilegiam a compreensão da interação sujeito-objeto, enfatizando os “significados subjetivos e sociopolíticos, assim como ações simbólicas na forma como as pessoas constroem e reconstroem sua própria realidade”⁽⁴⁵⁾, por meio de interações sociais em determinado contexto sociocultural.

Entre os métodos qualitativos, a etnografia destaca-se por utilizar um conjunto de valores e princípios para compreender as realidades construídas a partir das experiências subjetivas dos indivíduos, dos grupos ou das comunidades, em contextos naturalísticos e configurações de mundo reais^(46-50). A etnografia tem sido utilizada nas ciências da saúde para buscar conhecimentos culturais profundos sobre questões relacionadas à assistência, no sentido de compreender significados, percepções e experiências das pessoas em relação ao processo saúde-doença, ao modo como os comportamentos de saúde são influenciados pela cultura, as dinâmicas de trabalho e relações profissionais de saúde^(51-52).

Nesse escopo, destaca-se que a crescente utilização e a aplicação da etnografia para compreensão de fenômenos relacionados ao cuidado durante o ciclo gravídico-puerperal apontam para uma antropologia do cuidado de enfermagem, referendada por meio do alinhamento teórico-metodológico evidenciado nos estudos da área de enfermagem obstétrica que utilizaram o método da etnoenfermagem associado à Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural. Tal fato reafirma a importância do reconhecimento da cultura como um sistema complexo de significados mediadores entre usuários e profissionais no âmbito das relações de cuidar/cuidado^(9,53-54).

Ao valer-se de teorias de enfermagem para subsidiar os estudos cujo foco de análise é o contexto de cuidados ofertados pelos profissionais, contribui-se para o desenvolvimento de um conjunto estruturado de conhecimentos científicos sobre os comportamentos humanos, capaz de embasar a assistência, o ensino e a pesquisa, para que a enfermagem se fortaleça enquanto profissão e disciplina^(52,54).

A escolha do tipo de etnografia denota que o interesse de pesquisa se volta para aspectos, contextos e fenômenos específicos. Enquanto a etnografia institucional centra seu olhar na cultura organizacional das instituições⁽⁵¹⁾, a etnografia focada⁽⁴⁷⁾ enfatiza o estudo de experiências compartilhadas acerca de um fenômeno confinado a uma cultura, subcultura ou ambientes particulares, como os cenários da enfermagem obstétrica⁽⁵¹⁾, e a etnoenfermagem focaliza nos fenômenos específicos relativos aos cuidados de enfermagem⁽⁵⁵⁾.

Os estudos etnográficos na área de enfermagem obstétrica, em termos metodológicos, situam-se no espectro das microetnografias, que abrangem estudos relativamente curtos e focalizados. Estes, por sua vez, concentram-se em comportamentos particulares ou em uma situação única, em um cenário específico, em múltiplas situações sociais ou uma única instituição social com duração limitada, que pode variar de semanas a meses^(9,47-49).

Os pesquisadores da área da saúde consideram o tempo de imersão no campo pouco importante e subestimam as notas de campo⁽⁵¹⁾. Embora não haja consenso na literatura, há indicação de permanência por períodos prolongados⁽⁵⁶⁾ ou, no mínimo, de 6 meses⁽⁵⁷⁾. Isso permite desvelar e analisar detalhadamente as complexidades e as nuances culturais compartilhadas nos contextos naturalísticos, essenciais para se interpretar o significado dos comportamentos e fenômenos sob investigação^(9,50).

Desse modo, a depender dos fenômenos e das questões que orientam os estudos, a etnografia pode ser um desafio, devido ao tempo de permanência no campo⁽⁵⁷⁾. Esse aspecto pode figurar como possível explicação para a baixa utilização dos métodos etnográficos na enfermagem, tendo em vista que parte dos estudos conduzidos na área concentram-se em programas de pós-graduação stricto sensu, com prazos curtos, que limitam o tempo para imersão no campo e a maturidade teórica necessária à compreensão aprofundada dos fenômenos^(56-57). No entanto, o ciclo gravídico-puerperal possui tempo delimitado, permitindo aos pesquisadores a investigação etnográfica com o acompanhamento dos fenômenos em um tempo relativamente curto.

A definição dos informantes a serem observados deve ocorrer de acordo com o fenômeno de interesse, domínio de investigação e as questões exploradas^(9,28). Assim, nesta revisão, identificou-se que o foco foi as mulheres e os profissionais de enfermagem. Os informantes-chave referem-se às pessoas que vivenciam o fenômeno investigado ou o conhecem profundamente, sendo fundamentais para apreender e refletir normas, valores, crenças, modos de vida culturais e fatores influenciadores do cuidado^(3,9). Em contrapartida, os informantes gerais, apesar de não apresentarem conhecimentos ou informações substanciais acerca do domínio de investigação, possuem ideias reflexivas gerais acerca do fenômeno em estudo, fornecendo opiniões e informações adicionais a partir do contato próximo ou do convívio com informantes-chave^(3,9).

Destaca-se que, na etnografia, pode-se investigar um fenômeno com um número pequeno de informantes, visto que não se prioriza a amostra, mas o significado e a profundidade dos depoimentos, a forma como as pessoas vivenciaram o fenômeno, a visão de mundo e a intensidade das relações estabelecidas entre investigador, informante e cenário de pesquisa^(49,58-60).

Embora comumente os autores estabeleçam critérios de inclusão a partir de características comuns aos participantes, movidos pelo entendimento de que semelhanças forneceriam maior consistência e confiabilidade para os dados, podem-se suscitar reflexões em relação ao caráter restritivo e prescritivo adotado, que não representaria a diversidade de participantes em dado contexto cultural e tampouco retrataria o contexto naturalístico no qual o trabalho de campo ocorreu⁽⁴⁹⁾. Desse modo, embora não haja consenso, os participantes de estudos etnográficos são selecionados intencionalmente ou com base em critérios inerentes ao interlocutor (conhecimentos, crenças, papéis, ideias, valores) que os habilitam a expor suas experiências, fornecendo maior consistência ao fenômeno investigado⁽⁴⁹⁾.

Apesar das distintas abordagens técnicas disponíveis para coleta de dados, não há indicação ou procedimento padrão para usar a etnografia, em decorrência da recontextualização e diversificação que esse método obteve nas diversas disciplinas científicas^(49,51). Desse modo, a profundidade do trabalho de campo, o envolvimento com os informantes em seus ambientes naturais e os elementos interpessoais e relacionais conferem solidez aos achados^{(48,50-51,61)}.

A depender do que se pretende analisar, a observação e a participação no campo constituem características centrais das abordagens etnográficas^(46,49,62). A imersão no cenário busca a investigação e observação da linguagem, comportamentos, códigos e valores locais, auxiliando no reconhecimento de práticas e processos sociais que se desenvolvem de forma rotineira, repetida e padronizada por estarem aceitos e arraigados no grupo social como elementos culturais − para, assim, serem objetos de análise e passíveis de interpretações de segunda ordem^(48-50).

De maneira geral, a etnografia envolve triangulação de informações obtidas de observação, entrevistas e registros documentais sobre os fenômenos investigados, para melhorar a consistência, a validade e a confiabilidade dos dados coletados, bem como orientar o pesquisador na tomada de decisões no decurso das etapas metodológicas^{(48-49,51-52,62)}, constituindo estratégia para conferir rigor metodológico às pesquisas etnográficas⁽⁵¹⁾. Além dessas técnicas tradicionais, o método da etnoenfermagem oferece ferramentas, que funcionam como guias capacitadores, para facilitar o trabalho de campo⁽⁹⁾.

A observação participante aparece como a técnica de coleta de dados mais utilizada nos estudos etnográficos da enfermagem obstétrica. Essa técnica possibilita a imersão dos pesquisadores em cenários, contextos e relações nos quais os informantes encontram-se inseridos^(48,50,62). Os pesquisadores comumente utilizam diários de campo para realizar descrições densas e detalhadas dos fenômenos por meio de registro das observações, situações e significados culturais expressos nas manifestações do cotidiano^(9,62-65).

No contexto da enfermagem obstétrica, esses registros permitem descrever tanto a atuação da equipe de enfermagem, suas interações e manifestações, quanto o cotidiano das pessoas que vivenciam os fenômenos. Nesse sentido, as observações sem roteiros predeterminados são úteis para investigação e exploração dos fenômenos em sua totalidade, fornecendo descrições mais densas^(9,63-65).

O caráter de complementaridade⁽⁵⁰⁾ atribuído às entrevistas permite explorar e aprofundar situações e manifestações previamente observadas e realizar o aperfeiçoamento ou descarte de interpretações observacionais, figurando como recurso importante para obtenção de dados sobre a visão que cada informante apresenta do fenômeno investigado^(3,66-67).

Essas informações podem ser coletadas por entrevistas informais não estruturadas, que permitem ao pesquisador esclarecer aspectos que surgiram no decurso da observação, bem como entrevistas formais que auxiliam a esclarecer os domínios e fatores centrais no estudo, compreender experiências e dimensões socioculturais e desenvolver explicações teóricas para os significados atribuídos pelos informantes^(9,52).

Entre os tipos de entrevista, destacam-se as individuais abertas em profundidade que, em decorrência da liberdade de resposta dos participantes sobre determinado tópico, favorecem a coleta de dados complementares arraigados em descrições culturais e o reconhecimento das conexões lógicas entre as ideias apresentadas pelo informante e aquelas que carecem de maior detalhamento⁽⁵²⁾. Com base nisso, geralmente utiliza-se o critério de saturação teórica dos dados coletados, no qual as informações obtidas atingem o esgotamento e/ou há repetição dos dados^(9,50,58-60).

A utilização dessas técnicas de coleta de dados, de forma associada, possibilita confrontar os achados no plano operativo, a partir das descrições observacionais e, no plano discursivo, por meio dos relatos verbais. A interface entre observações e discursos resulta na natureza reflexiva da etnografia, a partir do entendimento da realidade enquanto produto complexo permeado por significados, sentidos e percepções múltiplas construídas por meio das interações entre pesquisadores e informantes, e de que a utilização de vários métodos capta dados amplos e diversos das perspectivas etic (profissionais) e emic (mulheres)^(9,49).

É prevalente, na literatura, o fato de que, nas pesquisas etnográficas, os pesquisadores constituem o principal instrumento de coleta de dados^(9,48-50,56). Apesar destes incluírem abordagens metódicas e detalhadas de imersão e observação no campo que conferem rigor metodológico à etapa de coleta de dados e de se preconizar uma postura neutra em relação à cultura observada, deve-se evitar que os achados científicos em estudo conflitem e/ou se sobreponham às reflexões subjetivas, as perspectivas, os sentimentos e as opiniões dos pesquisadores sobre a cultura dos informantes^(46,62).

Em termos axiológicos “o interpretativismo assume que o pesquisador nunca possui uma posição neutra, mas sim que suas pressuposições, crenças, valores e interesses sempre intervêm na modelagem de suas investigações”⁽⁴⁵⁾. Além disso, existe uma influência dinâmica e mútua entre pesquisador e campo de pesquisa⁽⁵¹⁾. Esses dois aspectos exigem que os pesquisadores avaliem detalhadamente sua influência sobre os achados e processos de análise de dados^(50,56).

Desse modo, a reflexividade epistemológica e pessoal constitui elemento central da pesquisa etnográfica na medida em que se parte do pressuposto de que os pesquisadores não podem se distanciar ou se desprender totalmente de seus valores, crenças e percepções na condução das análises, sendo imprescindível um processo de reflexão contínuo que permita reconhecê-los como dimensões que afetam os fenômenos, o delineamento metodológico e os resultados obtidos^(9,46,48,56).

Nesse sentido, na descrição etnográfica, permite-se que os pesquisadores exponham explicitamente aspectos que possam influenciar na interpretação dos dados⁽⁵¹⁾. Essa prática se torna importante quando os pesquisadores compartilham valores e perspectivas dos informantes, os contextos investigados lhe são familiares ou se tem conhecimento acerca de rotinas e códigos locais^(9,56).

O trabalho de campo em variados contextos, a imersão em diversos eventos e experiências, o envolvimento com pessoas que compartilham suas vidas, rotinas e condições a que estão sujeitas⁽⁶¹⁾, bem como o encontro com hierarquias existentes entre diferentes grupos de profissionais e a necessidade de não se interromperem rotinas e protocolos, a transformação do exótico em familiar e do familiar em exótico, a assunção do papel de um insider para obter informações privilegiadas, indo além da mera descrição e desvelar o implícito, as mudanças de comportamento dos informantes resultantes da observação dos pesquisadores (efeito hawthorne) e a busca da confiança no cenário de pesquisa constituem desafios implicados no fazer etnográfico^{(9,48,50,56,57)}.

Na pesquisa etnográfica, em função de a coleta de dados ocorrer em um ambiente natural, os pesquisadores estarem imersos no campo e estabelecerem relações de proximidade com os informantes, podem surgir dilemas éticos. Desse modo, os pesquisadores devem estar conscientes das pretensões analíticas em torno do objeto em estudo, dos papéis desempenhados, atentos ao estabelecimento de relacionamentos transitórios e à construção da confiança, para obter uma visão ampliada dos fenômenos^(49,51).

Em decorrência do movimento constante, delimitar o cenário de estudo é imprescindível para controlar a observação de pessoas não consentidas, o que pode conduzir à tomada de decisão sobre a utilização dos registros de campo^(49,51). Entretanto, apesar dos esforços para atender às questões éticas em pesquisas que envolvem seres humanos, observa-se que, nas pesquisas etnográficas, os pesquisadores pouco discutem os dilemas e implicações éticas que tiveram que lidar durante a condução do trabalho de campo⁽⁵¹⁾.

Em relação ao processo de análise de dados, nos estudos etnográficos da enfermagem obstétrica, observou-se predominância do guia de análise da etnoenfermagem, bem como vertentes da análise de conteúdo e da análise temática. Em virtude da amplitude, dinamicidade, complexidade e simultaneidade de acontecimentos que transcorrem no campo, o processo de organização e análise dos dados empíricos na etnoenfermagem requer contínuo aprofundamento das situações observadas para apreender os significados, estabelecer categorias interpretativas e reflexivas acerca do objeto em estudo, conferir rigor metodológico e solidez aos resultados⁽³⁾.

Assim, à medida que as informações são coletadas, o pesquisador deve utilizar procedimentos de descrição, interpretação e análise crítica^(9,52) para buscar os significados a partir dos padrões textuais recorrentes^(9,51). Esses achados são agrupados em categorias ou temas⁽⁵⁰⁾, tendo como base uma análise consistente acerca do fenômeno, evitando assim a mera descrição de trechos e/ou recortes de falas, que podem implicar em falsa representação dos significados e/ou interpretação das afirmações dos informantes.

Nesse processo, os pesquisadores precisam evitar “a imposição de categorias para o estudo empírico de um fenômeno”⁽⁴⁵⁾ e adentrar no campo “com um conjunto predefinido de construtos ou instrumentos para medir a realidade”⁽⁴⁵⁾, partindo-se do pressuposto que estes emergem do fazer etnográfico no campo.

Destaca-se que é permitido usar palavras, expressões, conceitos e imagens nativas⁽⁴⁵⁾; entretanto, pesquisadores etnográficos precisam se concentrar em dados contextuais observados no campo tanto quanto eles se concentram nos componentes textuais que emergem das entrevistas⁽⁵¹⁾ para que se possam apresentar explicações sobre o modo como os fenômenos, ações e interações ocorrem em determinado cenário cultural⁽⁵⁰⁾.

Para além da “descrição grosseira” que envolve o fazer etnográfico no campo, deve existir um esforço intelectual dos pesquisadores para que considerem os significados simbólicos e percebam, interpretem e deem sentido aos eventos, ações e comportamentos culturais por meio de ideias, conceitos ou pressupostos teóricos^(46,52,57). Trata-se de um olhar etnográfico orientado e sensibilizado teoricamente; caso contrário, os pesquisadores podem ser tendenciosos, limitando as análises a suas experiências e relacionamentos com o campo, além de suas crenças e valores pessoais^(9,52,57).

No contexto do cuidado de enfermagem obstétrico, a utilização de referenciais teóricos e metodológicos baseados na antropologia cultural, ao fundamentar e embasar os dados empíricos, possibilita: conhecer a inserção sociocultural, a influência das crenças, costumes e valores sobre os comportamentos relacionados à saúde; desvelar vivências, experiências e significados atribuídos pelas gestantes, parturientes e puérperas; descrever o processo de trabalho dos profissionais^(7,68).

Ainda, possibilita desvelar os sistemas de cuidados profissionais e/ou populares pelo ponto de vista dos indivíduos que vivenciam os fenômenos⁽³⁾. Quando se acessa os sentimentos e as experiências que emergem do contexto cultural do gestar e partejar, pode-se compreender os fenômenos relacionados aos cuidados obstétricos em sua complexidade, a partir das perspectivas etic (profissionais) e emic (mulheres)^(54,66).

Considerando o vasto campo de conhecimento da pesquisa em enfermagem, esta revisão apresenta como limitação concentrar-se na área da enfermagem obstétrica, bem como ter sido conduzida em quatro bases de dados e uma biblioteca virtual. No entanto, a decisão dos pesquisadores de optar por não incluir um recorte temporal representa uma potencialidade do estudo, na medida em que fornece uma visão abrangente da utilização de abordagens etnográficas na pesquisa em enfermagem ao longo do tempo. Além disso, discussões dessa ordem contribuem para expansão teórico-metodológica da enfermagem, por apresentarem características, questões e processos inerentes ao fazer etnográfico que podem auxiliar pesquisadores na aplicabilidade desse método, no planejamento, na operacionalização e na condução de investigações futuras.

CONCLUSÃO

Esta revisão permitiu demonstrar os aspectos teóricos, metodológicos e analíticos do uso da etnografia em estudos envolvendo enfermagem obstétrica. Em seus aspectos metodológicos, as pesquisas conduzidas nessa área do conhecimento situam-se no entorno das microetnografias. Os referenciais metodológicos empregados (etnografia, etnoenfermagem e etnografia institucional) foram úteis para analisar a complexidade dos eventos e fenômenos que envolvem o cuidado de enfermagem obstétrico com foco nas perspectivas etic (profissionais) e emic (mulheres), em meio à diversidade de cenários (sobretudo institucionais) e informantes (principalmente mulheres e profissionais de enfermagem). Ainda, evidenciou-se predomínio na utilização de referenciais teóricos da enfermagem (Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural), bem como teorias emprestadas de outras áreas do conhecimento com maior concentração na antropologia.

A etnografia desponta como um método relevante para pesquisa em enfermagem obstétrica, na medida em que permite uma compreensão aprofundada dos processos de gestar, parir e nascer, bem como da assistência ofertada pelos profissionais de enfermagem nesses eventos, contribuindo para materializar uma antropologia do cuidado de enfermagem e potencializando a construção e a consolidação da enfermagem enquanto arte, ciência e disciplina.

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  Extraído da dissertação: “Cuidado de enfermagem obstétrico transcultural: práticas profissionais e experiências maternas no parto institucionalizado”, Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Universidade Regional do Cariri, 2017.

Apoio financeiro:Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico ( FUNCAP) . Concessão de bolsas de mestrado.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  30 Mar 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Recebido
  01 Ago 2018
• Aceito
  23 Abr 2019