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Adaptação cultural e análise da consistência interna do instrumento MISSCARE para uso no Brasil1 1 Artigo extraído da Dissertação de Mestrado "Adaptação cultural e validação inicial do instrumento MISSCARE para o Brasil: contribuição para o mapeamento de riscos para a segurança do paciente hospitalizado" apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Resumos

OBJETIVO:

Este estudo metodológico teve como objetivos realizar a adaptação cultural do instrumento MISSCARE para o Brasil e analisar a consistência interna da versão adaptada.

MÉTODO:

O instrumento possui 41 itens apresentados em duas partes. A parte A contém 24 itens referentes aos elementos dos cuidados de enfermagem omitidos e a parte B, 17 itens relacionados às razões para a não prestação dos cuidados. A pesquisa, aprovada pelo comitê de ética, foi realizada em duas fases. A primeira consistiu no processo de adaptação cultural, que verificou a validade de face e de conteúdo, realizada por um comitê de cinco juízes conforme os passos preconizados pela literatura. A segunda visou analisar a consistência interna do instrumento com 60 profissionais da equipe de enfermagem de um hospital público de ensino universitário.

RESULTADO:

O instrumento demonstrou validade de face e conteúdo na opinião dos especialistas. Os valores do coeficiente alfa de Cronbach, obtidos para as partes A e B do instrumento, foram acima de 0,70, sendo considerados adequados.

CONCLUSÃO:

A versão adaptada do MISSCARE mostrou consistência interna satisfatória para a amostra estudada.

Cuidados de Enfermagem; Estudos de Validação; Segurança do Paciente


OBJECTIVE:

The aims of this methodological research were to culturally adapt the MISSCARE Survey instrument to Brazil and analyze the internal consistency of the adapted version.

METHOD:

The instrument consists of 41 items, presented in two parts. Part A contains 24 items listing elements of missed nursing care. Part B is comprised of 17 items, related to the reasons for not delivering care. The research received ethics committee approval and was undertaken in two phases. The first was the cultural adaptation process, in which a committee of five experts verified the face and content validity, in compliance with the steps recommended in the literature. The second was aimed at analyzing the internal consistency of the instrument, involving 60 nursing team professionals at a public teaching hospital.

RESULTS:

According to the experts, the instrument demonstrated face and content validity. Cronbach's alpha coefficients for parts A and B surpassed 0.70 and were considered appropriate.

CONCLUSION:

The adapted version of the MISSCARE Survey demonstrated satisfactory face validity and internal consistency for the study sample.

Nursing Care; Validation Studies; Patient Safety


OBJETIVOS:

Los objetivos de este estudio metodológico fueron efectuar la adaptación cultural del instrumento MISSCARE para Brasil y analizar la consistencia interna de la versión adaptada.

MÉTODO:

El instrumento contiene 41 ítem, presentados en dos partes. La parte A contiene 24 ítem, referentes a los elementos de los cuidados de enfermería omitidos, y la parte B 17 ítem, relacionados a los motivos para no prestar los cuidados. La investigación, con aprobación del comité de ética, fue efectuada en dos fases. La primera fue el proceso de adaptación cultural, que verificó la validez aparente y de contenido, llevado a cabo por un comité de cinco jueces según los pasos recomendados por la literatura. El objetivo de la segunda fue analizar la consistencia interna del instrumento con 60 profesionales del equipo de enfermería de un hospital público de enseñanza universitaria.

RESULTADO:

El instrumento demostró validez aparente y de contenido según los especialistas. Los valores del coeficiente alfa de Cronbach, calculados para las partes A y B del instrumento, fueron superiores a 0.70, siendo considerados adecuados.

CONCLUSIÓN:

La versión adaptada del MISSCARE mostró consistencia interna satisfactoria para la muestra estudiada.

Atención de Enfermería; Estudios de Validación; Seguridad del Paciente


Introdução

Cuidado inseguro em saúde é a maior causa de morbidade e mortalidade em todo o mundo. Estimativas oriundas de nações desenvolvidas sugerem que eventos adversos relacionados à terapia medicamentosa podem contribuir com 140 mil mortes anualmente e que cerca de 5% a 10% dos pacientes admitidos em hospitais adquirem uma infecção. Nos Estados Unidos, pesquisadores relataram uma prevalência de 10% de úlceras por pressão em hospitais de cuidados agudos, sendo causa de morte de mais de 100 mil pessoas entre 1990 e 2001(11. World Health Organization/World Alliance for Patient Safety. Summary of the evidence on patient safety: implications for research. The Research Priority Setting Working Group of the World Alliance for Patient Safety. Geneva: World Health Organization; 2008.).

No Brasil, em um estudo recente, os erros cometidos pela equipe de enfermagem durante a assistência a pacientes em pós-operatório imediato foram analisados em 10 hospitais. Os erros foram classificados em termos de aspectos organizacionais, psicossociais/equipamentos e de gravidade e apresentaram-se em quatro níveis básicos: sensório-motor, procedimentos ou rotinas de serviço, abstração ou conhecimento e controle de supervisão. Envolveram situações, como falta de cuidado com drenagens e infusões durante o transporte de pacientes, não observação das condições clínicas do paciente, falta de conhecimento sobre manobras de ressuscitação em parada cardiorrespiratória, falta de laringoscópio na sala cirúrgica onde o paciente apresentou edema de glote(22. Chianca TCM. Nursing faults in the recovery period of surgical patients. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2006;14(6):879-86.).

Outro estudo, realizado em três hospitais brasileiros, investigou a frequência de erros no preparo e administração de medicações endovenosas. A partir da observação direta de auxiliares e técnicos de enfermagem, verificou-se que, na fase de preparo, a omissão de doses foi o erro mais frequente em dois hospitais, enquanto doses erradas foram preparadas nos três hospitais. Na fase de administração, as taxas mais elevadas de erros nos três hospitais relacionaram-se às doses erradas. As taxas de erros variaram entre 2.9 e 11%(33. Anselmi ML, Peduzzi M, Santos CB. Errors in the administration of intravenous medication in Brazilian hospitals. J Clin Nurs. 2007;16(10):1839-47.). Os autores discutiram a influência das condições de trabalho nesses hospitais na ocorrência dos erros. Enfatizaram que o número insuficiente de pessoal de enfermagem em hospitais brasileiros frequentemente resulta em longas horas de trabalho e consequente aumento na carga de trabalho e insatisfação da equipe.

Garantir a segurança do paciente e os resultados de qualidade dos cuidados de enfermagem é um desafio significativo para enfermeiros, visto tanto como uma questão individual como institucional(44. Caliri MHL. A utilização da pesquisa na prática clínica de enfermagem. Limites e possibilidades [tese de livre-docência]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2002. 143 p. ). Em 1863, Florence Nightingale já indicava que a segurança do paciente é elemento integrante da profissão de enfermagem. No entanto, os profissionais falham e erros são esperados nas organizações. Torna-se necessário aprender com os erros, e essa aprendizagem é uma das metas dos programas de segurança do paciente(55. Cassiani SHB. A segurança do paciente e o paradoxo no uso de medicamentos. Rev Bras Enferm. 2005;58(1):95-9.).

No contexto internacional, sabe-se que a prática de enfermagem em hospitais é afetada por vários elementos ligados aos erros na assistência, tais como a gravidade e a complexidade das doenças dos pacientes internados, o curto período de internação, o número de atividades delegadas pelos enfermeiros aos técnicos e auxiliares de enfermagem, o declínio do número de pessoal de enfermagem e a sobrecarga de atividades, a elevada rotatividade de pessoal e as longas horas de trabalho. Acrescenta-se a isso o aumento da tecnologia e a necessidade de novos conhecimentos. Como os enfermeiros precisam lidar com todos os fatores nesse contexto e tomar decisões adequadas para garantir uma melhor assistência e vigilância aos pacientes, também necessitam prevenir os erros e garantir a qualidade do cuidado. Se os níveis de pessoal forem inadequados, essas responsabilidades podem ser comprometidas(66. Kalisch BJ. Missed nursing care: a qualitative study. J Nurs Care Qual. 2006;21(4):306-13.,77. Kalisch BJ, Landstrom GJ, Hinshaw AS. Missed nursing care: a concept analysis. J Adv Nurs. 2009;65(7):1509-17.).

Estudo realizado em 168 hospitais americanos analisou os efeitos de ambientes favoráveis à prática de enfermagem nos resultados assistenciais, considerando os níveis educacionais do pessoal de enfermagem. Os pesquisadores encontraram que altas porcentagens de enfermeiros atuando em ambientes hospitalares desfavoráveis reportaram níveis mais elevados de burnout e insatisfação com o trabalho. O ambiente do cuidado teve efeito significativo nas intenções de deixar o trabalho. Os autores afirmam ainda que, mesmo após controlar os efeitos ambientais relacionados ao cuidado, a probabilidade de altos índices de burnout e de insatisfação aumentam com a adição de um paciente por enfermeiro na carga de trabalho média desses hospitais. As chances de óbitos de pacientes, em hospitais com média de oito pacientes por enfermeiro, é 1,26 vezes maior do que em hospitais onde a proporção equivale a quatro pacientes por enfermeiro. E, por fim, relatam que o aumento de 10% na proporção de enfermeiros(as) com bacharelado foi associado à diminuição de 4% no risco de morte(88. Aiken LH, Clarke SP, Sloane DM, Lake ET, Cheney T. Effects of hospital care environment on patient mortality and nurse outcomes. J Nurs Adm. 2008;38(5):223-9.).

Cuidados de enfermagem exigem um processo de pensamento complexo, incluindo fazer inferências e sintetizar informações. O ambiente ao redor dos enfermeiros tem sido descrito como rápido e imprevisível, propiciando interrupções e acarretando erros na assistência de enfermagem. Ao longo de seus plantões, enfermeiros mudam constantemente de uma atividade para outra e gerenciam informações de variadas fontes, muitas vezes trabalham em duas ou mais tarefas simultaneamente, sendo frequentemente interrompidos durante suas atividades(99. Kalisch BJ, Aebersold M. Interruptions and multitasking in nursing care. Joint Comm J Qual Patient Saf. 2010;36(3):126-32.).

Diante de múltiplas demandas e recursos insuficientes, esses profissionais sentem-se impossibilitados de cumprir todos os cuidados de enfermagem requeridos e podem escolher não completá-los em muitas situações. Nessas circunstâncias, os profissionais podem abreviar o cuidado, atrasá-lo ou simplesmente omiti-lo(77. Kalisch BJ, Landstrom GJ, Hinshaw AS. Missed nursing care: a concept analysis. J Adv Nurs. 2009;65(7):1509-17.).

O fenômeno da omissão ou da falta de prestação de cuidados de enfermagem é definido como qualquer aspecto do cuidado, requerido pelo paciente, que é omitido (em parte ou por completo) ou atrasado(77. Kalisch BJ, Landstrom GJ, Hinshaw AS. Missed nursing care: a concept analysis. J Adv Nurs. 2009;65(7):1509-17.). Isso foi identificado primeiramente em um estudo qualitativo, nos EUA, por meio de 25 grupos focais, conduzidos com enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem de dois grandes hospitais. Nesse estudo, nove elementos de cuidados básicos de enfermagem foram regularmente omitidos (deambulação, mudança de decúbito, alimentações, educação do paciente, preparo para a alta, apoio emocional, higiene, documentação de ingestão/eliminação e vigilância) e, ainda, sete temas relativos às razões apresentadas pelos profissionais para a não prestação desses cuidados (poucos funcionários, tempo escasso para a intervenção de enfermagem, utilização precária dos recursos, falta de trabalho em equipe, delegação ineficaz por parte dos enfermeiros aos técnicos e auxiliares de enfermagem, hábito e negação)(66. Kalisch BJ. Missed nursing care: a qualitative study. J Nurs Care Qual. 2006;21(4):306-13.-77. Kalisch BJ, Landstrom GJ, Hinshaw AS. Missed nursing care: a concept analysis. J Adv Nurs. 2009;65(7):1509-17.). Com base nesses estudos, os autores desenvolveram e testaram o instrumento MISSCARE.

A importância de um instrumento específico para avaliar o fenômeno da omissão dos cuidados de enfermagem reside no fato de que esse tipo de instrumento identifica atos de omissão que podem resultar em consequências negativas para a assistência ao paciente e permite ainda verificar as condições em que os cuidados não são fornecidos aos pacientes(1010. Kalisch BJ, Williams RA. Development and psychometric testing of a tool to measure missed nursing care. J Nurs Adm. 2009;39(5):211-9.).

No Brasil não foram identificados estudos sobre essa temática com o enfoque dado pelos autores do instrumento MISSCARE. Alguns elementos dos cuidados básicos de enfermagem apresentados pelos pesquisadores também foram identificados em pesquisas nacionais relacionadas a indicadores de qualidade da assistência, tais como taxas de infecção durante a hospitalização, readmissões, erros na administração de medicamentos, ocorrência de úlceras por pressão e não utilização de medidas preventivas(1111. Rotta CSG. Utilização de indicadores de desempenho hospitalar como instrumento gerencial [tese de doutorado]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; 2004.142 p.,1212. Gabriel CS, Melo MRAC, Rocha FLR, Bernardes A, Miguelaci T, Silva MLP. Utilização de indicadores de desempenho em serviço de enfermagem de hospital público. Rev. Latino-Am. Enfermagem [periódico na Internet] . set-out. 2011 [acesso em: 8 out 2012]; 19(5): [09 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v19n5/pt_24.pdf
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/...
).

Considerando que a omissão de cuidados é um fenômeno universal e generalizável em múltiplas situações clínicas, podendo acarretar ameaças à segurança do paciente, sua ocorrência precisa ser estudada de forma sistemática em diversos contextos culturais(77. Kalisch BJ, Landstrom GJ, Hinshaw AS. Missed nursing care: a concept analysis. J Adv Nurs. 2009;65(7):1509-17.), e ser abertamente reconhecida, visando o enfrentamento do problema em uma cultura de não punição. Este estudo teve o objetivo de realizar a adaptação cultural do instrumento MISSCARE para uso no Brasil e testar a consistência interna de sua versão adaptada.

Método

Trata-se de um estudo metodológico, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP), sob no 1318/2011. A autorização para o processo de adaptação cultural do instrumento MISSCARE foi obtida junto à autora principal do instrumento.

O instrumento MISSCARE é composto por 41 itens e dividido em duas partes. A parte A contém 24 itens referentes aos elementos dos cuidados de enfermagem omitidos, com respostas variando de sempre omitido (1) a nunca omitido (5). A parte B contém 17 itens referentes às razões para a não prestação dos cuidados, com respostas variando de razão significante (1) a não é uma razão para a omissão dos cuidados (4). A parte inicial inclui questões que abordam as características sócio-demográficas dos participantes, as condições e a satisfação com o trabalho. Para a obtenção do escore final do instrumento, as respostas foram recodificadas, com maiores valores indicando maior omissão de cuidado na escala total. Os autores da versão original conduziram os testes de validade de constructo, consistência interna e estabilidade (teste-reteste) em duas amostras de profissionais (com 459 sujeitos na primeira etapa e 639, na segunda). Os resultados dos testes mostraram que a versão do MISSCARE é válida e confiável(1010. Kalisch BJ, Williams RA. Development and psychometric testing of a tool to measure missed nursing care. J Nurs Adm. 2009;39(5):211-9.).

Procedimentos para adaptação cultural

O processo de adaptação cultural do instrumento MISSCARE utilizado neste estudo seguiu as recomendações da literatura(1313. Guillemin F, Bombardier C, Beaton DE. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol. 1993;46(12):1412-32.

14. Echevarria-Guanilo ME, Rossi LA, Dantas RAS, Santos CB. Cross-cultural adaptation of the Burns Specific Pain Anxiety Scale - BSPAS to be used with Brazilian burned patients. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2006, 14(4):526-33.
-1515. Ferrer M, Alonso J, Prieto L, Plaza V, Monsó E, Marrades R, et al. Validity and reliability of the St George´s Respiratory Questionnaire after adaptation to a different language and culture: the Spanish example. Eur Respir J. 1996;9(6):1160-6.). Para obter a primeira versão consensual em português, foram realizadas duas traduções do MISSCARE do inglês para o português, por duas tradutoras, de forma independente. Ambas conheciam previamente os objetivos do estudo e apresentavam o domínio da língua inglesa e portuguesa, sendo uma enfermeira pós-doutorada e com experiência em docência universitária. A outra, formada em Língua Estrangeira, apresenta experiência como tradutora técnica na área da saúde. As pesquisadoras (orientanda e orientadora) avaliaram e compararam as traduções, obtendo a primeira versão consensual em português.

Um comitê de cinco enfermeiras, com experiência clínica e fluência em língua inglesa, foram convidadas como especialistas para avaliar sua validade de face e de conteúdo, visando analisar a manutenção das equivalências cultural, conceitual, semântica e idiomática entre a primeira versão consensual em português e a versão original do MISSCARE. Todas as enfermeiras apresentavam o nível mestrado ou doutorado. Três delas trabalhavam na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP; uma, como docente e duas, como assistentes de ensino e pesquisa. As outras duas atuavam em um hospital universitário, sendo candidatas ao doutorado. Cada indivíduo recebeu um convite para participar do Comitê e da reunião, bem como o termo de consentimento livre e esclarecido. Durante esse encontro, o comitê discutiu as equivalências. O nível de concordância mínima entre os membros do comitê para as duas versões foi de 80%. As sugestões para mudanças, aceitas pelo comitê de forma consensual, foram documentadas, o que resultou na segunda versão consensual em português.

A retro tradução desta versão consensual foi realizada por uma tradutora formada nos Estados Unidos, fluente em língua inglesa e portuguesa, que não conhecia os objetivos do estudo nem a versão original do instrumento. Esta versão retro traduzida foi então submetida à apreciação da autora principal do instrumento e aprovada após pequena revisão, sendo concluída a terceira versão consensual em português.

A análise semântica foi desempenhada por três profissionais da equipe de enfermagem atuantes em um hospital universitário. O grupo avaliou o instrumento quanto a mudanças na redação e na apresentação que contribuíssem para melhor entendimento do público alvo da pesquisa. A partir daí, obteve-se a quarta versão consensual em português, utilizada na fase seguinte, o pré-teste.

O pré-teste foi realizado mediante a aplicação do instrumento a 60 profissionais da equipe de enfermagem (14 enfermeiros, 38 auxiliares e oito técnicos de enfermagem) de um hospital universitário de Ribeirão Preto, entre 21 e 28 de outubro de 2011.

Os participantes, selecionados por sorteio a partir da lista de profissionais atuantes na instituição no período de estudo, foram convidados a participar, esclarecidos sobre o propósito da pesquisa e, após concordarem, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisadora coletou os dados por meio de contatos individuais, realizados no próprio hospital em horário sugerido pela Diretora da Divisão de Enfermagem de forma a não interferir nas atividades laborais do funcionário. A duração média da aplicação do MISSCARE foi de vinte minutos.

O coeficiente alfa de Cronbach foi utilizado para análise da confiabilidade (consistência interna) do instrumento adaptado. Seus valores variam de zero a um. Quanto mais alto o valor, maior a consistência interna da medida. Baixa consistência interna significa que os itens medem diferentes atributos ou as respostas dos participantes são inconsistentes. Valores acima de 0,70 são considerados aceitáveis para a confiabilidade(1616. Portney LG, Watkins MP. Foundations of clinical research - applications to practice.3th. ed. New Jersey: Prentice Hall; 2009. 892 p.,1717. Keszei AP, Novak M, Streiner DL. Introduction to health measurement scales. J Psychosomatic Res. 2010;68(4):319-23.).

Resultados

A análise das equivalências conceitual, semântica, idiomática, experiencial e operacional, realizada pelo Comitê de Juízes, objetivou a aplicabilidade prática dos termos usados no instrumento MISSCARE. Todos os itens foram avaliados em conjunto pelos membros do comitê. Após as sugestões dos especialistas, algumas mudanças foram feitas na redação, ou seja, alguns termos foram alterados, excluídos ou substituídos. A caracterização demográfica da amostra estudada, as condições e satisfação com o trabalho, segundo as informações contidas no instrumento MISSCARE, são descritas a seguir.

Dentre os 60 participantes do pré-teste, 42 (70%) responderam ao instrumento MISSCARE sem omitir quaisquer itens. Quarenta e cinco (75%) eram do sexo feminino. Quanto à função no trabalho, 38 (63,3%) eram auxiliares de enfermagem, 14 (23,3%) enfermeiros e oito (13,3%) técnicos de enfermagem.

A população do estudo apresentava o ensino médio (60%) e mais de 10 anos de experiência no cargo/função (61,7%). A idade média dos profissionais era 40,4 anos. Poucos respondentes relataram rodízio de turnos. A maioria trabalhava em turnos de 12 horas; 40,5 horas/semana em média.

Observou-se que 91,7% dos profissionais passavam a maior parte do tempo do trabalho no setor em que estavam alocados. A maioria trabalhava mais que 12 horas extras (58,3%) por semana e não faltaram ao trabalho (66,7%) durante os três meses anteriores à coleta de dados.

A maioria do pessoal não tinha planos de deixar o cargo ou função atual no próximo ano (83,3%). Quanto ao número de funcionários presentes no local de trabalho, 19 (31,7%) profissionais consideravam que era o adequado em 75% do tempo. Entretanto, 11 (18,3%) consideravam que o número nunca era adequado.

Constatou-se que a maioria dos participantes estava satisfeita ou muito satisfeita, tanto com o seu cargo/função atual (68,3%), como com a profissão (73,4%). Em contraposição, considerando o trabalho em equipe, somente 29 (48,3%) participantes estavam muito satisfeitos ou satisfeitos e 14 (23,4%) reportaram algum grau de insatisfação.

A Tabela 1 mostra as porcentagens da omissão dos cuidados de enfermagem para a parte A do MISSCARE, com respostas variando de sempre omitido (1) a nunca omitido (5). As respostas foram agrupadas de acordo com o estudo original(10) e instruções da autora principal do MISSCARE.

Tabela 1
Distribuição das frequências e das médias das respostas, considerando a omissão dos cuidados de enfermagem nos 24 itens do instrumento, de acordo com o agrupamento das opções ocasionalmente, frequentemente e sempre. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2011

Mudar o decúbito do paciente a cada duas horas, assistência às necessidades higiênicas dentro de cinco minutos da solicitação, participação em discussão da equipe interdisciplinar sobre a assistência ao paciente e deambulação três vezes por dia ou conforme prescrito foram os quatro cuidados de enfermagem mais omitidos, enquanto o controle da glicemia capilar conforme prescrito, cuidados com punção venosa de acordo com as normas da instituição, banho/higiene e higienização das mãos foram os elementos menos omitidos.

A Tabela 2 mostra as porcentagens de respostas considerando as razões para a omissão dos cuidados de enfermagem para a parte B do MISSCARE, com respostas variando de razão significante (1) a não é uma razão para a omissão dos cuidados (4). As respostas foram agrupadas de acordo com as instruções da autora do instrumento original.

Tabela 2
Distribuição das frequências de respostas, considerando as razões para a omissão do cuidado nos 17 itens do instrumento, de acordo com o agrupamento das opções significante e moderada. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2011

O número inadequado de pessoal (Média=3,1; DP=1,1) foi a razão mais citada pelos profissionais para essa omissão dos cuidados, seguida de os membros da equipe não ajudam ou apoiam uns aos outros (Média=2,6; DP=1,1) e aumento inesperado no volume e/ou na gravidade dos pacientes da unidade (Média=2.6; DP=1.2).

Considerando a consistência interna, os valores do coeficiente alfa de Cronbach para as partes A e B do instrumento foram 0,964 e 0,924, respectivamente. Com relação aos resultados da parte B, os seguintes valores de alfa foram obtidos: 0,906 para comunicação, 0,797 para recursos materiais e 0,785 para recursos laborais.

Discussão

O processo adotado para a adaptação cultural da versão em Português do instrumento MISSCARE foi conduzido de acordo com a literatura científica. O presente estudo apresentou as validades de face e de conteúdo, assim como a consistência interna da versão adaptada. Estudos adicionais serão conduzidos para avaliação das propriedades psicométricas com o objetivo de tornar seu uso possível no Brasil.

Considerando-se as características sócio-demográficas dos profissionais, identificou-se maior número de indivíduos do sexo feminino, auxiliares de enfermagem, com ensino médio, idade média de 40,4 anos e trabalhando em turnos de 12 horas. Esses dados representam a realidade dos hospitais no Brasil, onde a maior parte dos profissionais de enfermagem é do sexo feminino, na categoria auxiliar de enfermagem. Em 2010, a força de trabalho da enfermagem no Brasil era composta por 18,64% de enfermeiros, 43,16% de técnicos e 38,19% de auxiliares(1818. Luz S. Enfermagem: Quantos Somos X Onde Estamos [internet] 2010 [acesso 15 ago 2012] Disponível em http://www.portaldaenfermagem.com.br/destaque_read.asp?id=1279
Disponível em http://www.portaldaenferma...
). Comparando-se com os resultados obtidos nos Estados Unidos(1010. Kalisch BJ, Williams RA. Development and psychometric testing of a tool to measure missed nursing care. J Nurs Adm. 2009;39(5):211-9.), os autores do instrumento original encontraram que a maioria dos participantes também era do sexo feminino (92,16%), trabalhava em período integral, com uma média de 10 anos de experiência na enfermagem e predomínio do nível bacharelado.

Quanto ao predomínio dos plantões de 12 horas, esses são geralmente associados ao duplo vínculo empregatício, uma importante peculiaridade do trabalho da enfermagem na situação estudada.

Estudos sugerem que a probabilidade de se cometer um erro é três vezes maior quando enfermeiros trabalham em turnos de 12 horas ou mais. Há uma tendência para o aumento dos riscos quando enfermeiros trabalham longas horas de plantão enquanto que trabalhar mais que 40 horas por semana potencializa significativamente a chance de erros(1919. Rogers AE, Hwang WT, Scott LD, Aiken LH, Dinges DF. The working hours of hospital staff nurses and patient safety. Health Aff. 2004;23(4):202-12.).

Considerando a satisfação do profissional, a maioria dos participantes apresentou-se satisfeita com o cargo e profissão, fato que não ocorreu com o desempenho do trabalho em equipe. Esses resultados são dignos de nota, uma vez que, de acordo com a literatura, níveis mais elevados de trabalho em equipe e percepções de adequação da equipe levam a maior satisfação com o cargo/função atual e também com a profissão(2020. Kalisch BJ, Lee H, Rochman M. Nursing staff teamwork and job satisfaction. J Nurs Manag. 2010;18:938-47.).

Em outro estudo, que verificou a relação entre omissão do cuidado de enfermagem e satisfação, notou-se que quanto maior a percepção de omissão, mais elevada era a insatisfação com o trabalho. O pessoal de enfermagem que relatou reduzida omissão obteve maior satisfação com seu trabalho e ocupação. Enfatizou-se, neste estudo, que enfermeiros estão completamente cientes da omissão do cuidado e que, quando há efeitos negativos, sua satisfação diminui(2121. Kalisch BJ, Tschannen D. Does missed nursing care predict job satisfaction? J Healthc Manag. 2011;56(2):117-33.).

A confiabilidade da versão brasileira do instrumento MISSCARE, verificada pela consistência interna de seus itens, obtida pelo coeficiente alfa de Cronbach, mostrou que os resultados obtidos para as partes A e B foram satisfatórios com valores acima de 0,70. Para os três fatores da parte B do instrumento, os valores dos alfas foram semelhantes aos valores obtidos pela versão original, sendo que o fator comunicação apresentou o maior valor, seguido de recursos materiais e recursos laborais. Com relação à confiabilidade, os valores do coeficiente alfa de Cronbach para as partes A e B do instrumento foram 0,964 e 0,924, respectivamente. Considerando os fatores da parte B, encontrou-se 0,906 para comunicação, 0,797 para recursos materiais e 0,785 para recursos laborais. O instrumento, portanto, apresentou uma boa consistência interna, com valores acima de 0,70, considerados aceitáveis para a confiabilidade.

Este estudo apresentou resultados da validação de face e conteúdo da versão adaptada do instrumento MISSCARE, bem como a avaliação inicial de sua consistência interna. Estudos adicionais serão realizados para avaliação de outros aspectos relacionados às propriedades psicométricas deste instrumento.

Conclusão

O presente artigo aborda o processo de adaptação cultural e a análise da consistência interna do MISSCARE para o Brasil. O instrumento demonstrou validade de conteúdo na opinião de especialistas, tornando a adaptação adequada para o contexto brasileiro. Contudo, os métodos utilizados neste estudo não permitem a identificação da omissão de elementos do cuidado, nem as razões apresentadas pelos profissionais, o que só será possível no final do processo de validação. Novos testes serão necessários para avaliação de outras propriedades psicométricas, incluindo a investigação da confiabilidade por meio do teste-reteste.

O uso do instrumento em organizações hospitalares poderá fornecer informações críticas sobre o que realmente está acontecendo (ou não) na prestação do cuidado de enfermagem e fornecer meios para melhorar a assistência, usando informações para guiar as mudanças necessárias. O instrumento tem o poder de identificar barreiras ou áreas problemáticas que necessitam ser corrigidas.

A disponibilidade desta ferramenta também permitirá aos pesquisadores o estudo do impacto da omissão dos cuidados de enfermagem nos resultados assistenciais, tais como as quedas, úlceras por pressão e infecção hospitalar, assim como variáveis organizacionais, exemplificadas pelos índices de absenteísmo, turnover e trabalho em equipe. O instrumento poderá auxiliar a obtenção de novos conhecimentos na área de segurança do paciente e ações visando práticas não punitivas que encorajem a notificação dos erros de omissão e a análise consistente de suas causas, com vistas à melhoria da assistência, da segurança dos pacientes e da satisfação profissional.

A adaptação e a validação de um instrumento confirmam-se em um processo de múltiplas etapas, necessitando resultados satisfatórios para a sua disponibilização e aplicação de forma confiável. Ao final do processo de validação, teremos um instrumento que permitirá pesquisas para investigar a relação entre as diferentes variáveis medidas no MISSCARE e os índices dos indicadores de desempenho de enfermagem.

Agradecimentos

À Dra Miyeko Hayashida por sua colaboração no desenvolvimento desta pesquisa.

  • 1
    Artigo extraído da Dissertação de Mestrado "Adaptação cultural e validação inicial do instrumento MISSCARE para o Brasil: contribuição para o mapeamento de riscos para a segurança do paciente hospitalizado" apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2013

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2012
  • Aceito
    11 Jan 2013
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