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Sob o signo de Zarathustra* * Publicado no jornal Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, terça-feira, 22 de Janeiro de 1935, p. 3.

Resumo

Partindo da compreensão de que são os filósofos e artistas aqueles capazes de "suscitar no espírito do homem perspectivas novas", o autor explora os temas principais da filosofia nietzschiana para mostrar a sua vigência em todas as manifestações da contemporaneidade. Pensador que teria denunciado a "infecção do mundo moderno", cuja "unidade interior é fundada na psicologia", Nietzsche explorou em profundidade o papel dos instintos, desenvolvendo uma forma de conhecimento capaz de explicar certos fatos psicológicos que constituem a filosofia e a arte. As ideias do autor do Zaratustra , assim, seriam fundamentais para entender, por exemplo, a obra de Ronald de Carvalho ‒ escritor brasileiro que, recuperando-se de um grave acidente, faleceria poucos dias depois da publicação do presente artigo.

Palavras-chave
Nietzsche; filosofia; psicologia; literatura; Ronald de Carvalho

Abstract

Based on the assumption that the very philosophers and artists will be the ones capable of "raise new perspectives in the spirit of man", the author explore the main themes of Nietzschean philosophy to show their validity in all the manifestations in contemporary times. As a thinker that would have reported the "infections of the modern world", whose "interior unity is founded in psychology", Nietzsche explored in depth the role of instincts, developing a form of knowing capable to explain some psychological facts that constitute both the philosophy and the art. Thus, the ideas of the author of Zarathustra would be crucial to understand, for example, the work of Ronald de Carvalho - a Brazilian writer that, in recovering from a serious accident, would pass away some days after the publication of the present article.

Keywords
Nietzsche; philosophy; psychology; literature; Ronald de Carvalho

Suscitar no espírito dos homens perspectivas novas, não é o papel do filósofo e do artista? Os valores novos do pensamento vieram de um Nietzsche, de um Bergson, de um Freud, para só falar dos maiores. A infecção do mundo moderno foi denunciada por Nietzsche, discípulo de Schopenhauer, o filósofo da vontade, e precursor do valor vital da "vontade de poder". As tentativas e experiências, de que falava Nietzsche, em "Aurora", ia permitir-lhe explorar o passado humano, a consciência individual e os cumes solitários do pensamento abstrato, ia filosofar "com o martelo".

O problema do conhecimento, a certeza errônea do pensamento, o relativismo das sensações, a certeza da experiência humana, a realidade do mundo subjetivo, são as principais investigações do grande destruidor de ilusões. Nada de fixo, de estável, de certo no pensamento deste alucinado: os problemas se lhe impõem com uma rapidez e intensidade emocional tão grande que ele não tem tempo e paciência para achar uma solução imediata.

A natureza impulsiva, explosiva da concepção, faz de Nietzsche um mestre do aforismo. "Le serpent périt, s'il ne peut muer; de même les esprits que l'on empêche de varier dans leurs opinions cessent d'être esprit".

É uma maneira pitoresca de repetir o "Panta Rei" do velho Heráclito.

Os grandes temas sinfônicos de Nietzsche, a vontade de poder, o super-homem (Carlyle já tinha criado o simbolismo dos heróis), o imoralismo, o anti-cristianismo, o anti-democratismo tinham aparecido nos seus cadernos de notas. A filosofia antissocrática da "alegria de viver" já se esboçava nos primeiros trabalhos e nas longas meditações solitárias do autor da "Origem da tragédia". Psicólogo, a sua unidade interior é fundada na psicologia - Nietzsche pressentiu o problema da vida múltipla com as suas contradições necessárias.

O relativismo filosófico contemporâneo, a essência do impressionismo literário, a variedade de perspectivas sobre a verdade e a ação, a consciência psicológica na sua forma subconsciente, o simbolismo de nossos atos, a impulsão afetiva, o conhecimento interior do homem, a base física e instintiva da vida, o sopro de Eros, a visão da "volta eterna", a desarmonia do mundo, a ironia da dúvida, a essência musical do pensamento, a mobilidade do "eu", a natureza fecunda da luta, a beleza da vida, no seu aspecto de combate e jogo, a consciência moral e filosófica da nossa época refletem-se na obra literária de Nietzsche.

Zaratustra, no alto da montanha, tinha se curado do mal romântico. Pressentia daí "a eterna alegria do vir-a-ser". O sentido trágico do destino, a força catastrófica do instinto de decadência que dorme no coração do homem, ia ter um consolo desesperado na concepção da "volta eterna". Fechava-se para se reabrir o circuito da ilusão... De pé, diante do abismo, um homem contempla a natureza indiferente, e para lá do bem e do mal, pressente a "transformação de todos os valores".

Mesmo só, o indivíduo não pode viver sem lei. A consciência íntima do eu, o reflexo mais pessoal do ser, pensa a todo o momento restabelecer o equilíbrio, atingir a serenidade perfeita da forma. "J' aime, J' aime!... Et qui donc peut aimer autre chose que Soi-même?" (P. Valéry - Fragments du Narcisse).

Desenvolver a natureza na direção de seus instintos não é nisto que consiste o equilíbrio moral? Ou pôr a vida de acordo com os sentimentos? A cultura inconsciente do eu prevalece em todos os sentidos. Na verdade, há uma volúpia em servir o ideal moral. Sublimação do instinto? Só a psicologia instintiva pode explicar certos fatos psicológicos de narcisismo, auto-erotismo, misticismo na filosofia e na arte.

A interiorização imaginativa, a possessividade amorosa, a aspiração de um ideal pessoal, são na realidade formas disfarçadas do narcisismo do eu. Procuraria o instinto infundir no irreal e no físico puro, como pensam os imaginativos, ou assegurar o indivíduo na plenitude das impressões recebidas do real, no amor efetivo, prático dos seres e da natureza, na alegria vulgar, mas verdadeira, da existência? Mas há no fundo de todos nós um ser infantil e primitivo, supersticioso e místico, para o qual o mundo real é um mundo de desejos em via de realização. A tendência ao equilíbrio é uma das tendências do instinto humano. A arte que nasce da vida instintiva profunda é sempre perfeita e serena. Representa uma suprema economia vital. Aí se reflete a harmonia e a unidade do espírito.

O individualismo, o auto-erotismo, diga-se mesmo o narcisismo, o equilíbrio da razão: a beleza essencial da obra literária de Ronald de Carvalho resultam de uma perfeita consciência literária.

De "Luz gloriosa" ao "Espelho de Ariel", sejam poemas ou variações psicológicas, os ritmos e as formas se equilibram de uma maneira singular. Obra de análise e meditação, do instinto original ao ritmo cósmico, encerra na sua simplicidade uma lição de beleza.

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    Publicado no jornal Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, terça-feira, 22 de Janeiro de 1935, p. 3.
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    Carlos da Veiga Lima (1899-?). Médico e escritor. Autor de Cidade harmoniosa: contos (1920) e Maria Eleonora (1932).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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