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A educação e a alteridade da democracia

RESUMO:

A ideia de uma educação democrática no contexto inglês perdeu terreno considerável desde a década de 1960. Argumento aqui que o domínio exercido por compreensões neoliberais de educação, sobre a direita e boa parte da esquerda social-democrata, é tamanho que é necessário um novo pensamento. Inicio considerando a perspectiva de que nos tornamos tão pós-democráticos que as pessoas não desejam mais ser livres. É nesse contexto que podemos falar sobre a alteridade da democracia. Exploro diferentes ideias sobre como poderíamos buscar interligar a educação com as ideias de commons,1 1 Nota da tradutora (N. T.):Na história do Reino Unido,The commons se refere às pessoas que não tinham títulos do clero ou da nobreza e, por extensão, diz-se hoje das pessoas das camadas populares em contraste com a elite que dirige a sociedade. O termo commons também designa os recursos culturais e naturais aos quais todos os membros da sociedade devem ter acesso, tais como o ar, a água e terra habitável associando a ideia de educação a noções mais participativas de cidadania. Todas essas ideias precisam ser revitalizadas no contexto de um Estado que controla cada vez mais as escolas a partir do centro e da racionalidade dominante do mercado.

Palavras chave:
Educação; Liberdade; Democracia

ABSTRACT:

The idea of a democratic education in the English context has lost a considerable amount of ground since the 1960s. Here I argue that such is the dominance of neoliberal understandings of education over the Right and much of the social democratic Left that new thinking is required. I begin by considering the view that we have now become so post-democratic that people no longer wish to be free. It is in this context that we may talk about the alterity of democracy. I explore different ideas about how we might seek to link education to ideas of the commons, thereby connecting the idea of education to more participatory notions of citizenship. All of these ideas need to be revived in the context of a state that increasingly controls schools from the center and the dominant rationality of the market.

KEYWORDS:
Education; Freedom; Democracy

RÉSUMÉ

L’idée d’une éducation démocratique a perdu du terrain dans le contexte anglais a partir des années soixante. Mon argument est que la domination exercée par les vues néolibérales de l’éducation sur la droite tout autant que sur une bonne partie de la gauche social-démocrate est si grande qu’une nouveau entendement se fait nécessaire. Tout d’abord, j´examine l´approche que considere que nous sommes devenus tellement post-démocratiques que les personnes ne désirent plus être libres. C’est dans ce contexte qu’on peut parler de l’altérité de la démocratie. J’explore différentes idées sur la manière par laquelle nous pourrions chercher à relier l’éducation aux idées de commons,2 2 Note de la réviseure (N.R): dans l’histoire, The commons se réfère aux personnes qui n’avaient pas les titres du clergé ou de la la noblesse et, par extension, on utilise ce terme aujourd’hui pour les personnes des couches populaires en contraste avec l’ élite qui dirige la société. Le terme désigne aussi les sessourses culturelles et naturelles auxquelles tous les membres de la société doivent avoir accès, comme l’air, l’eau et les terres habitables en associant l’idée d’éducation à des notions plus participatives de la citoyenneté. Toutes ces idées doivent être revitalisées dans le contexte de l’État qui contrôle chaque fois plus les écoles à partir du centre et de la rationalité dominante du marché.

Mots-clés:
Éducation; Liberté; Démocratie

RESUMEN

La idea de una educación democrática en el contexto inglés perdió un terreno considerable desde la década de 1960. Argumento aquí que, ante el grande dominio ejercido por comprensiones neoliberales de educación, sobre la derecha y buena parte de la izquierda socialdemócrata, es necesario un nuevo pensamiento. Inicialmente considero la perspectiva de que hemos llegado a ser tan postdemocráticos que las personas ya no desean más ser libres. En ese contexto podemos hablar de la alteridad de la democracia. Exploro diferentes ideas sobre cómo podríamos buscar interconectar la educación con la idea de commons,3 3 En la historia del Reino Unido, el término commons (comunes) se usaba para nombrar a las clases plebeyas que no tenían relación ni con la nobleza ni con el clero, y hoy se usa para referirse a la gente común, las capas populares, en contrate con la elite que dirige la sociedad. También commons designa aquellos bienes de dominio público, patrimonio común de todos los miembros de la sociedad, como el aire, el agua, la tierra habitable. asociando la idea de educación a nociones más participativas de ciudadanía. Todas estas ideas precisan ser revitalizadas en el contexto de un Estado que controla cada vez más las escuelas desde el centro y la racionalidad dominante del mercado.

Palabras Clave:
Educación; Libertad; Democracia

A crise financeira mundial de 2008 pouco alterou o curso destrutivo do neoliberalismo em todo o planeta. Na verdade, a eleição de Donald Trump em 2016 deu indícios de que o mundo poderia estar entrando em uma nova fase de dominação corporativa e de populismo de direita. O otimismo democrático da década radical de 1960 há muito tempo perdeu sua força e é compreensível que se pense que o momento atual é mais governado pelo desespero do que pela esperança. No entanto, na esteira da crise financeira, o surgimento do Occupy movement4 4 N. T.: O Occupy é um movimento sociopolítico que combate a desigualdade social e econômica e a falta de “democracia real”. Objetiva promover novas formas de democracia e a justiça social e econômica. indicou que muitos cidadãos ainda não desistiram de procurar alternativas em um mundo dominado pelo capitalismo, desigualdade, degradação ambiental, guerra e ataque aos direitos humanos. Antes disso, após as manifestações globais em 2003 contra a guerra no Iraque, Hardt e Negri (2004 HARDT, M.; NEGRI, A. Multitude. New York: The Penguin, 2004.) sugeriram que o mundo se defrontava com a necessidade de escolher entre violência do Estado e democracia. Ao falar em democracia, eles estavam se referindo não a um retorno aos debates entre formas representativas ou mais diretas de democracia, mas sim a “novas estruturas institucionais democráticas baseadas nas condições existentes” (HARDT; NEGRI, 2004 HARDT, M.; NEGRI, A. Multitude. New York: The Penguin, 2004., p. 354). Nesse ponto, eles insistem que os radicais, em vez de simplesmente organizar a resistência e protestar, precisam se engajar no “realismo político” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 356). Apesar das críticas muitas vezes justificadas de Hardt e Negri, esses argumentos têm sido frequentemente negligenciados. As possibilidades de alternativas estão menos inseridas numa concepção essencialista da natureza humana, mas mais porque muitos de nós já estamos “inseridos nas relações afetivas, colaborativas e comunicativas da construção social” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 350). O neoliberalismo, em uma compreensão mais popular, baseia-se em metáforas do senso comum de que somos criaturas egoístas e competitivas em busca de poder e dominação. Mas existem outras realidades, e não é preciso aprofundar-se muito para percebê-las. É claro que, como Berardi (2017BERARDI, F. B. The age of impotence and the horizon of possibility. London: Verso , 2017.) argumenta, Hardt e Negri superestimam muitíssimo as novas formas de solidariedade produzidas pela internet. O capitalismo em rede produz tanto a cooperação quanto a conectividade, juntamente com a fragmentação, a precariedade e a ansiedade. Contudo, o livro Empire continua significativo ao nos pedir que voltemos a pensar sobre a democracia. O que se faz necessário não é tanto um plano ou modelo produzido pela elite intelectual, mas sim uma atitude experimental em relação à democracia e à construção de diversas alternativas democráticas. Em vez de nos abrigarmos em argumentos estéreis que preservem nossa pureza radical, podemos compreender Hardt e Negri como autores que tentam reacender um debate mais radical sobre o sentido de democracia no século XXI. Aqui desejo pensar principalmente sobre essas questões em relação à educação, democracia e escolas para os jovens. Isso segue uma longa tradição de debate e discussão que procura repensar questões de pedagogia em relação à democracia, com contribuições que vão de John Dewey até Paulo Freire e de Martin Buber até Hannah Arendt (STEVENSON, 2011 STEVENSON, N. Education and cultural citizenship. London: Sage , 2011.).

Como Raymond Williams (1962 WILLIAMS, R. The long revolution. London: Pelican , 1962 , p. 10, tradução livre) argumentou no início da década de 1960, “é evidente que a revolução democrática está apenas no início”. Com isso, ele quis dizer que, embora assegurar os direitos ao voto e a formas universais de educação fossem importantes no contexto de uma sociedade democrática, não deveríamos supor que tínhamos chegado ao fim desse processo. Tais argumentos se reacenderam mais recentemente devido a uma onda de protestos contra a austeridade, inspirando uma série de movimentos sociais e partidos políticos alternativos. Muitos dos protestos trouxeram de volta a pergunta sobre se o capitalismo poderá, em algum momento, ser compatível com a democracia. Embora o liberalismo tenha trazido alguns direitos e liberdades, a sociedade continua a ser construída com base na regra do capital. Essa ideia era frequentemente defendida por escritores da Nova Esquerda, como Williams, mas marginalizada entre as preocupações social-democratas ou liberais. Tendo em vista o consenso político em torno do resgate dos bancos e a imposição de austeridade ao estado social e às comunidades mais pobres e vulneráveis, o Estado serve aos interesses de quem? Quão sustentável é uma sociedade construída com base no domínio do consumismo, dinheiro e lucro? A não ser que seja seriamente desafiada pelos movimentos sociais, a ideologia do livre mercado e o domínio dos 1% mais ricos no globo levará a um planeta cada vez mais inseguro e perigoso para muitos dos cidadãos mais pobres do mundo (KLEIN, 2014 KLEIN, N. This changes every thing. London: Allen Lane, 2014.).

Tais questões normalmente não se limitam ao âmbito acadêmico e estão sendo também discutidas em fóruns públicos mais abrangentes. Contudo, se a esquerda democrática não está mais buscando derrubar violentamente o capitalismo, que formas de influência produzem mais controle popular atualmente? Muitos partidários da Nova Esquerda nos anos 1960 pressupuseram que, embora a classe dominante tivesse interesse em conter a democracia, provavelmente haveria resistência a tais processos devido à nossa natureza humana em comum. Williams (1962 WILLIAMS, R. The long revolution. London: Pelican , 1962 ) pressupõe que, se os humanos são seres racionais e comunicativos “por natureza”, eles darão apoio permanente às ideias democráticas mesmo que a organização da sociedade conspirasse contra tal possibilidade. No entanto, depois da virada pós-moderna na teoria política, tal visão foi questionada. Richard Rorty (1989 RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.) procurou romper com a ideia de que a democracia pode se basear no pensamento metafísico. Isso converte a ideia de democracia menos em algo impulsionado pelo segredo de nossa natureza inata e mais em uma “conquista poética” (RORTY, 1989 RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989., p. 77). Nessa mesma linha de pensamento, Cornelius Castoriadis (1997aCASTORIADIS, C. The crisis in Western societies. In: CURTIS, D. A. (ed). The Castoriadis Reader. Oxford: Blackwell, 1997a. p. 253-266., 1997b) reconhece que a democracia é uma criação histórico-social sem a qual a sociedade também poderia ter se desenvolvido. De fato, ele vai além e argumenta que, se parte do projeto de democracia era uma tentativa de assumir o controle da sociedade e suas instituições, então a motivação para tal projeto parece estar em declínio, a longo prazo no Ocidente. Os partidos políticos tornaram-se máquinas de vencer eleições, os sindicatos são organizações hierárquicas e burocráticas, e outros grupos se converteram em organizações de lobby. Em instituições educacionais, os jovens enfrentam ou a marginalização ou o que Castoriadis (1987a, p. 260) descreve como “a estrada real da privatização”.5 5 N. T.: Em inglês, royal road of privatisation, ou seja, real refere-se aqui à realeza. Com isso, a educação tem menos a ver com aprendizagem e troca crítica e mais a ver com ganhar um passaporte para adentrar o mercado de trabalho. De maneira provocativa, Castoriadis (1997a, p. 263) questiona se os cidadãos modernos ainda desejam de fato viver em uma democracia significativa. Se a privatização política tem dado cada vez mais o controle de nossa sociedade às elites eleitas e à regra de capital, até que ponto as pessoas ainda desejam ser livres? Para Castoriadis, o projeto de liberdade e controle democrático não é garantido nem pela história nem pela natureza, mas, ao contrário, deve ser criado socialmente; ele deve ser construído sobre um elemento de recusa, através do qual resistimos às tentativas da sociedade mais ampla de normalizar nossas identidades. Se a luta pela liberdade não está assegurada por nossa natureza, então ela exige que haja uma quantidade considerável de esforço pessoal e coletivo, mesmo sem a certeza de sucesso. A recusa em ser um “objeto passivo” é essencial para a luta por uma democracia significativa que é construída com base na autonomia e em formas mais críticas de pensamento (CASTORIADIS, 1997bCASTORIADIS, C. The only way to find out if you can swim is to get in the water. In: CURTIS, D. A. (Ed.). The Castoriadis reader. Oxford: Blackwell , 1997b. p. 1-34., p. 30).

Para Castoriadis (1997bCASTORIADIS, C. The only way to find out if you can swim is to get in the water. In: CURTIS, D. A. (Ed.). The Castoriadis reader. Oxford: Blackwell , 1997b. p. 1-34.) e Williams (1962 WILLIAMS, R. The long revolution. London: Pelican , 1962 , 1989), o projeto de uma sociedade genuinamente mais autônoma e democrática está ligado ao princípio de autogestão. Sem o desenvolvimento de formas mais intensas de participação numa série de instituições, os arranjos democráticos existentes seriam descritos como burgueses. Uma sociedade mais autogerida necessitaria decentralizar radicalmente o poder e ser muito mais exigente em nível pessoal do que as relações hierárquicas existentes incutidas pelo capitalismo e pelo Estado. O projeto que visa a formas mais radicais de democracia exigiria imensamente das capacidades imaginativas e criativas da sociedade. A descentralização da democracia também pode ser associada ao projeto de criar uma sociedade mais ecológica. Nesse modelo, as comunidades locais e as cidades estão mais aptas a tomar decisões próprias, sintonizando-se com a paisagem local e buscando soluções sustentáveis. A ideia de uma democracia ecológica baseada em formas de controle locais tem uma trajetória diferente daquela de uma sociedade dominada pelas necessidades do capital ou por um estado centralizado. Essas ideias se ligam não apenas com as Raymond Williams e Cornelius Castoriadis, mas também com as de Murray Bookchin. Bookchin argumentou que a revitalização da democracia dependia de uma transformação nos municípios, por meio da participação nas eleições para as câmaras municipais e da criação de assembleias de cidadãos (BIEHL, 2015BIEHL, J. Ecology or catastrophe: the life of Murray Bookchin. Oxford: Oxford University Press, 2015.). Para Michael Peters (2017 PETERS, M. Ecopolitical philosophy, education and grassroots democracy: the “return” of Murray Bookchin (and John Dewey?). Geopolitics, History and International Relations, v. 9, n. 2, p. 7-14, 2017.), Bookchin apresenta um forte vínculo com as ideias de John Dewey, em termos de uma rejeição às formas relativamente empobrecidas de democracia que se enraízam em sociedades orientadas para o mercado. Para Dewey (1977), as escolas eram importantes não simplesmente como locais de aprendizagem e experimentação, mas como locais onde a democracia poderia ser praticada diretamente. Em outras palavras, para ser significativa, a democracia não se reduz ao ato de votar; constitui também um modo de vida. O crucial aqui não são os procedimentos, mas a prática da investigação, da discussão e do julgamento em locais que têm uma conexão direta com a vida do cidadão.

O neoliberalismo é hostil às formas mais profundas de democracia. Como Henry Giroux (2004GIROUX, H. A. The terror of neoliberalism: authoritarianism and the eclipse of democracy. Boulder: Paradigm, 2004., p. 106) afirma, o neoliberalismo age como uma forma de pedagogia que procura “produzir indivíduos competitivos e interessados em si mesmos, que competem por seus próprios ganhos materiais e ideológicos”, e simultaneamente busca fechar espaços públicos alternativos (especialmente na educação e nos meios de comunicação), onde sua lógica poderia começar a ser questionada. Nesse contexto, o domínio neoliberal converte formas mais significativas de democracia em uma forma de alteridade ou Outro. Nesse ponto, desejo argumentar que a marginalização das compreensões democráticas tem implicações para a organização das escolas como locais que poderiam criar modos de vida alternativos (FIELDING; MOSS, 2011FIELDING, M.; MOSS, P. Radical education and the common school. London: Routledge, 2011.). De fato, embora todos os governos procurem conter a ideia de democracia dentro de formas limitadas de expressão institucional, existem possibilidades permanentes de formas mais significativas de expressão (RANCIÈRE, 2006 RANCIÈRE, J. Hatred of democracy. London: Verso , 2006.). Além disso, os argumentos radicais não me convencem de que não é possível modificar as escolas públicas e torná-las mais democráticas. Por exemplo, Robert Howarth (2017 HOWARTH, R. Thoughts on radical informal learning spaces. In: HAWORTH, P.; ELMORE, J. M. (Ed.). Out of the Ruins. Oakland: PM , 2017. p. 1-15., p. 5) argumenta com razão que a educação estatal nunca foi especialmente aberta à exploração de modos alternativos de aprendizagem e pedagogia imaginativa. Isso é especialmente evidente nos Estados Unidos e no Reino Unido, em termos do ataque neoliberal à autonomia dos professores, de testes padronizados, de tabelas de punições, além da classificação reforçada e do aumento crescente no monitoramento dos jovens. Uma abordagem a essas questões pode obviamente ser a de desenvolver locais alternativos de pedagogia fora das instituições convencionais. Eles podem oferecer pedagogias menos formalizadas e mais experimentais que permitam modos de aprendizagem menos instrumentais. No entanto, minha preocupação é que levar esses argumentos ao limite significa abandonarmos a necessidade de pensar alternativas às instituições públicas. Exercitar uma reflexão mais experimental sobre a democracia não significa apenas explorar espaços alternativos; envolve também a construção de programas públicos que visem a reformar os modos existentes de pedagogia. No entanto, antes de examinar algumas dessas questões, quero considerar mais detalhadamente o argumento de que nos tornamos uma sociedade pós- -democrática e que isso reprime sentimentos mais autônomos.

CIDADÃOS EM UMA PÓS-DEMOCRACIA

A ideia de que estamos vivendo atualmente em uma sociedade pós-democrática é bastante corrente entre críticos da área. Embora o argumento tenha adquirido diferentes formatos, os críticos que o apoiam costumam apontar para a conexão entre as elites políticas e o poder do capital, o poder dos negócios para manipular o conjunto dos cidadãos através da mídia, a ampliação do consumismo e o declínio da participação em partidos políticos e movimentos sociais mais amplos (CROUCH, 2004CROUCH, C. Post-democracy. Cambridge: Polity, 2004.; SENNETT, 2006 SENNETT, R. The culture of the new capitalism. New Haven and London: Yale University Press, 2006.). O fim da social-democracia, junto com o declínio dos sindicatos e do movimento trabalhista e a ascensão do neoliberalismo têm progressivamente extinguido formas mais significativas de envolvimento democrático. Wendy Brown (2011BROWN, W. We are all democrats now… In: AGAMBEN, G. et al. (Ed.) Democracy in what state? New York: Columbia Press, 2011.) argumenta que o paradoxo que envolve o termo democracia é que ele nunca foi tão popular e, ao mesmo tempo, tão desprovido de conteúdo. Nos dias atuais, o estado se alia, sem remorso, ao projeto do capital, esvaziando qualquer significado mais profundo de democracia, com as eleições sendo reduzidas a espetáculos televisivos, tudo está sujeito à racionalidade do mercado e os processos de securitização incidem sobre os movimentos democráticos de base. Em outras palavras, quando os movimentos democráticos emergem, eles são marginalizados e sujeitos à vigilância estatal e aos interesses da segurança nacional. A democracia tem sido sempre um projeto inacabado e até certo ponto inatingível. Assim como aponta Brown, sempre houve um longo histórico de exclusões baseadas em raça, classe social, gênero e outras características sociais. Além disso, há também um longo histórico de sociedades democráticas que produzem Outros externos. Essa função é desempenhada atualmente pelo Islã radical, substituindo o papel que o comunismo teve durante a Guerra Fria. No entanto, isso simplesmente aponta para a ideia de que a democracia é sempre um projeto incompleto e em andamento. Da mesma forma, Angela Davis (2012DAVIS, A. Y. The meaning of freedom. San Francisco: City Light Books, 2012., p. 149) fala sobre a luta pela democracia que descartou os Outros internos e externos e se baseou, em vez disso, em um sentido compartilhado de dignidade humana. Isso não significa que tudo possa ser democratizado, pois esse projeto inevitavelmente se depara com limites. Contudo, não é o limite externo da democracia que nos preocupa, mas o fato de que o sonho de formas mais populares de poder está sendo extinto. A esse respeito, Wendy Brown (2011, p. 54) afirma que

[...] a presunção da democracia como um bem repousa na presunção de que os seres humanos querem ser autolegisladores e de que o governo pelo povo [demos] restringe os perigos de um poder político concentrado que não presta explicações.

No entanto, Wendy Brown se preocupa com o fato de que os cidadãos modernos preferem ter vidas mais conformistas e orientadas para o consumo do que as responsabilidades e incertezas que estão associadas à liberdade. Aqui podemos argumentar, de maneira pessimista, que as novas ondas de protesto contra a austeridade do neoliberalismo não mudaram a vida da maior parte das pessoas, já que a grande maioria tem demonstrado pouca propensão para se envolver. Do mesmo modo, Murray Bookchin (2015BOOKCHIN, M. The next revolution. London: Verso , 2015., p. 167) afirma que o capitalismo se tornou o estado “natural” das coisas e que os ricos atualmente são mais admirados do que desprezados. O capitalismo, juntamente com um ethos empresarial normativo e a ideia de competição são prevalentes na vida cotidiana, enquanto que a pobreza é “varrida para debaixo do tapete” ou vista como um fracasso pessoal. Obviamente, o outro lado desses argumentos é o de que, sem reinvestimentos substanciais na ideia de democracia, os cidadãos provavelmente não serão capazes de levar vidas críticas e dignas. Se, por um lado, a análise de Wendy Brown é muito sombria e talvez ecoe alguns dos pontos de vista do início da escola de Frankfurt, por outro, ela apresenta um conjunto de argumentos desafiadores. Cabe aos movimentos democráticos transformarem em alternativas populares a natureza disfuncional do neoliberalismo, construída sobre a destruição da natureza, o aumento dos níveis de desigualdade, a conversão da lógica do capitalismo e o controle hierárquico de cima. Voltando às ideias de Raymond Williams (1980 WILLIAMS, R. Culture and materialism. London: Verso , 1980 , p. 254, tradução livre), temos que reconhecer que a classe dominante tem, na maioria das vezes, “feito o seu principal trabalho de implantação de um profundo consentimento ao capitalismo”, e que isso também tem causado um custo enorme em termos de guerras, danos ambientais e dominação de classes (e de outras formas), que o sistema requer para reproduzir a si próprio. Com isso, os intelectuais críticos continuam a ter a responsabilidade de sugerir alternativas para o presente. Pierre Bourdieu (2003BOURDIEU, P. Firing back. London: Verso , 2003., p. 21) afirma que o neoliberalismo continua a dominar o espaço público e o senso comum da sociedade, com a ajuda de grupos de reflexão [think tanks] simpatizantes. Ele argumenta que forças mais críticas precisam submeter essas ideias a formas severas de crítica, além de ajudar a construir “utopias realistas”. Isso requer uma forma de crítica que trate do modo como a direita política continua a dominar o discurso em torno da política pública e que, ao mesmo tempo, sugira alternativas mais democráticas.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS NEOLIBERAIS E AS ESCOLAS

Embora eu não deseje ser demasiadamente otimista a respeito da emergência de vozes e preocupações mais democráticas, há uma contínua necessidade de construir alternativas em face do domínio da direita política. Desde a década de 1980, com os governos Thatcher e Reagan, a direita política manteve com desprezo as escolas não seletivas e públicas,6 6 N. T.: Em inglês, comprehensive and public schools. desejando retornar a um sistema abertamente mais hierárquico. Isso significou que a direita teve que concordar relutantemente, por algum tempo, com os ideais inclusivos ou mais liberais em relação à escola pública. Durante o período do New Labour,7 7 N. T.: O termo New Labour foi cunhado por Tony Blair, que levou o Partido Trabalhista para o centro da política do país, para distinguir suas políticas pró-mercado daquelas mais socialistas que o partido tinha defendido anteriormente. no Reino Unido, houve uma tentativa renovada de confrontar os chamados fracassos do que ficou conhecido como escolas não seletivas “bog standard”.8 8 N. T.: Bog standard, literalmente padrão de pântano, lama ou latrina, é gíria britânica pejorativa para algo totalmente básico, comum, nada excepcional, ou seja, medíocre O New Labour havia sido eleito com a plataforma daquilo que o Primeiro Ministro Tony Blair tinha chamado de “educação, educação, educação”. Dentro da nova agenda política, a classe social já não poderia ser vista como uma “desculpa” para o fracasso, já que o Estado buscava mudar tal agenda para as escolas. O principal intelectual nesse assunto é E. D. Hirsch (2009 HIRSCH, E. D. The Making of Americans: Democracy and Our Schools, Yale University Press, 2009 ), que nos EUA tem sido um crítico da chamada “aprendizagem centrada na criança”, e que vincula uma preocupação com padrões educacionais e formas nacionais de identificação. Pode-se considerar que essas ideias tiveram um impacto global (OLSEN, 2004 OLSEN, M. et al. Education Policy: Globalisation, citizenship and democracy. London: Sage, 2004.; WARD; EDEN, 2009 WARD, S.; EDEN, C. Issues in Education Policy. London: Sage , 2009 ). De fato, a social-democracia, que historicamente teve uma orientação diferente quanto a ideias referentes à educação, falhou com frequência durante a década de 1990 em confrontar adequadamente a política neoliberal nessa área (GIDDENS, 2003GIDDENS, A. Neoprogressivism: a new agenda for social democracy. In: GIDDENS, A. (Ed.) The progressive manifesto. Cambridge: Polity , 2003. p. 1-34.; HALL, 2003 HALL, S. New labour’s double-shuffle. Soundings, n. 24, p.10-24, 2003.; TOMLINSON, 2005TOMLINSON, S. Education in a post-welfare society. Maidenhead: Open University, 2005 ). R. H. Tawney (1965 TAWNEY, R. H. The radical tradition. London: Penguin Books, 1965., p. 159, tradução livre), nos anos 1960, identificou o poder econômico do capital como “uma ameaça para a democracia e a liberdade”. Uma vida cívica e uma vida civilizada compartilhadas dependiam “não da quantidade de posses, mas da qualidade de vida” (TAWNEY, 1965 TAWNEY, R. H. The radical tradition. London: Penguin Books, 1965., p. 159, tradução livre). A longa luta do movimento trabalhista por recursos comuns compartilhados e de qualidade foi compreendida como portadora de implicações para a saúde, educação e outros aspectos do estado social. Como argumenta Henry Giroux (2000GIROUX, H. A. Stealing innocence. New York: St Martin’s, 2000., p. 113), a direita política ao redor do mundo conseguiu mudar a agenda de “investimentos sociais para a contenção social”, e ao mesmo tempo anular qualquer preocupação com questões de classe, gênero, raça ou necessidades especiais. Para a direita política (e alguns de seus aliados social-democratas), o Estado de bem-estar social, por perpetuar uma cultura de fracasso, conteve grupos relativamente desfavorecidos, enquanto a nova ênfase na elevação dos padrões habilita tais grupos a competir em uma sociedade meritocrática. Trata-se de uma visão da educação que é inteiramente compatível com o mundo neoliberal dominado pelo 1% global. Franco Berardi (2012BERARDI, F. The uprising: on poetry and finance. Cambridge: MIP Press, 2012.) argumenta que o domínio do capitalismo digital não liberta a população do controle do Estado, mas, ao contrário, reduz a sua vida social ao que pode ser mensurado. Para Berardi (2012), nós estamos no fim da era burguesa (na qual podemos supor a separação entre cultura e economia), e o sistema financeiro tem cada vez mais reorganizado a vida cotidiana. A obsessão por padrões, tabelas de classificação, resultados, a humilhação de professores e alunos que não conseguem atender a esses padrões, criam um novo Outro baseado no fracasso. Se a preocupação com os efeitos de classe, gênero, raça e necessidades especiais está quase inteiramente ausente da agenda da direita, também o está a preocupação com ser rotulado como um fracasso e o que isso significa em termos de uma tentativa democrática de construir uma sociedade que respeita a dignidade de todos. A era do fundamentalismo de mercado chegou a uma sociedade em que se presume que muitos cidadãos são descartáveis. Como afirma Giroux (2011, p. 100, tradução livre), sem a segurança do Estado social, muitos cidadãos marginalizados ficam sujeitos ao “destino da escola-prisão”.9 9 N. R. Giroux usa a expressão “school-to-prison pipeline”, para se referir aos estudantes negros ou muçulmanos vistos como ameaças, em escolas com uma intervenção policial frequente. Uma agenda mais progressista levaria à contratação de mais professores e equipes de apoio especificamente para atender os pobres e marginalizados, e, ao mesmo tempo, reduziria drasticamente a desigualdade de classes e enfatizaria valores democráticos. O que falta hoje no debate sobre políticas e escolas é uma visão mais abrangente para as escolas democráticas do futuro. Em outras palavras, como veremos, muitos adeptos da chamada esquerda “progressista” têm adotado uma posição mais conservadora.

CONSERVADORISMO ABRANGENTE E DEMOCRACIA

Algumas pessoas da esquerda social-democrata começaram a criticar as falhas do capitalismo e seus efeitos sobre a educação e a democracia. Em relação a isso, Melissa Benn (2011BENN, M. School wars: the battle for Britain’s education. London: Verso, 2011.) identifica um movimento de pinça que negou às escolas recursos adequados,10 10 N. T.: A expressão movimento de pinça refere-se a uma estratégia militar de dividir as forças em duas partes, cada uma das quais ataca um dos flancos do inimigo. ao mesmo tempo em que uma bateria de mensurações consideraram que elas estavam falhando. O que está sob ataque aqui é a ideia de escola como um local que reúne uma variedade de jovens com diferentes habilidades e de classes sociais distintas. Em vez disso, o que surgiu foram escolas mais seletivas que são orientadas para melhorar a mobilidade social e difundir o ethos da concorrência e empreendimento. Como aponta Benn, o afastamento de um ethos mais igualitário, que tem reduzido o status e a autonomia dos professores, demonstra um projeto profundamente político. No entanto, precisamos ter clareza de que a educação escolar com financiamento público teve vários críticos. Isso não significa argumentar que a educação escolar financiada com recursos públicos não deve ser considerada um avanço em comparação ao modelo de classes abertamente estratificado que ela substituiu. Contudo, o que falta nesse argumento é a série de críticos que explicitamente buscaram explorar os efeitos nocivos que as instituições organizadas e controladas pelo Estado podem ter sobre a liberdade intelectual. Colin Ward (1973 WARD, C.; FYSON, A. Streetwork: the exploding school. London: Routledge and Kegan Paul , 1973 ) pergunta quão bem as liberdades democráticas são atendidas pelas escolas que estão integradas numa sociedade hierárquica baseada em classes. Se a tarefa é produzir uma sociedade baseada em liberdade e responsabilidade, então talvez a educação fosse melhor organizada fora de estruturas piramidais como a do Estado. O argumento aqui é pensar novas associações, dependentes menos de formas de organização de cima para baixo e mais de afiliações mais voluntárias, construídas com base na ideia de auxílio mútuo. Provavelmente foi Ivan Illich (1973/2002) quem chegou mais perto dessa visão, pela sua crítica à natureza institucionalizada da escola. Para Illich (1973/2002), a popularidade institucional da escola acompanhou a modernidade capitalista e foi construída sobre um mito de desenvolvimento: de que essa escola ofereceria chances iguais para todos os seus cidadãos progredirem e de que, através da sua capacidade de propagar críticas e aprendizados, seria conciliável com os valores liberais. Illich argumenta que, mesmo que essas visões estejam disseminadas, são na realidade enganosas − já que as crianças mais pobres são incentivadas a entrar em uma competição que elas não conseguem ganhar − e também que as instituições hierárquicas antidemocráticas baseadas na autoridade do magistério e do Estado ditam o que é importante em termos de conhecimento. Tentando entender de maneira mais crítica a razão pela qual muitos estudantes resistem à mensagem da escola, Illich (1973/2002, p. 46-47) revisa a teoria de alienação de Karl Marx. Ao se negar a criatividade das crianças e proibir que elas sejam produtoras de conhecimento, as crianças aprendem seus lugares na sociedade. De fato, isso prepara muito bem as crianças para a vida dentro de indústrias e corporações modernas, uma vez que, na escola, elas aprendem como seguir regras propostas por uma autoridade superior. Da mesma forma, James C. Scott (2012 SCOTT, J. C. Two cheers for anarchism. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2012.) defende que o sistema escolar estatal é projetado para produzir cidadãos que não questionam, que são patriotas e trabalhadores obedientes no mercado de trabalho. É por isso que a direita política, quando confrontada com as falhas da escola, procura reafirmar ainda mais a lógica institucional em vez de desmontar o sistema. Isso tem implicações mais profundas para a democracia, já que as características autoritárias de tal instituição não tendem a produzir cidadãos com mentalidades genuinamente independentes. Illich (1973/2002, p. 19) busca abordar essas questões através da promoção de redes educacionais onde todos pudéssemos escolher aprender o que quiséssemos. Em outros momentos, Illich (1973/2009) argumenta que a sociedade futura deveria se libertar das convenções de manipulação (da qual a escola faz parte) e objetivar um mundo mais convivial onde vivêssemos em escala menor, em comunidades face a face que prescindam progressivamente da burocracia e centralização que acompanham o capitalismo. Illich imagina uma sociedade futura onde não sejam mais necessárias as rotinas institucionais da escola construídas sobre os sentimentos de inferioridade daqueles que estão destinados a fracassar. As ideias de Illich têm sido importantes para inspirar um movimento de educação escolar em casa para aqueles que não desejam que seus filhos encarem as características institucionais da escolarização. Além de não se tratar de uma solução para todos, pois certamente parece privilegiar os pais que possuem capital educacional e cultural, tempo e capacidade de educar seus próprios filhos, tal movimento também desestimula a ideia de que podemos fazer das escolas lugares mais democráticos.

Alguns dos trabalhos posteriores de Illich (1988 ILLICH, I.; SANDERS, B. The alphabetization of the popular mind. London: Pelican, 1988.), juntamente com seu colaborador Barry Sanders, argumentam que o aprendizado e o letramento estão ameaçados tanto pelas escolas quanto pela computação moderna e os meios de comunicação de massa. O crescimento econômico da sociedade testemunhou a erosão da linguagem e o surgimento da novilíngua Orwelliana. A degradação da linguagem em sociedade levou Barry Sanders (1995) a afirmar que uma compreensão do letramento além das “habilidades básicas” continua a depender de experiências de nos contarem histórias. Nossa conexão com as formas complexas de investimento linguístico está ameaçada pelos meios de comunicação de massa, pois esta é, em sua maioria, não-dialógica. A interação face a face permite que as crianças façam perguntas e tenham uma experiência rica com a complexidade da linguagem. Sanders (1995, p. 46) se preocupa com o fato de que as crianças que têm acesso apenas às narrativas televisionadas “só conseguem recontar clichés”. Embora esse argumento esteja muito próximo da tese desacreditada de uma cultura de massa desconsiderar as complexidades de alguma cultura popular, Sanders tem razão em relação à interligação entre a tradição de contação de histórias e o letramento. Uma vez que a comunicação eletrônica tem enclausurado cada vez mais os bens comuns da linguagem, Sanders (1995, p. 127) teme que o que esteja ocorrendo não seja tanto desescolarização, mas sim deseducação. Nessa medida, a direita política está correta ao dizer que os baixos níveis de letramento são não apenas prejudiciais para a sociedade, mas também profundamente problemáticos para qualquer sociedade que deseja ser chamada de democrática. No entanto, diferentemente da maior parte da direita política, Sanders (1995) argumenta que o letramento não pode ser visto como algo que pode simplesmente ser solucionado pela escola, isoladamente do resto da sociedade. O que é necessário é menos a abolição da escola, como crê Illich, e mais a sua reforma social. Sanders (1995, p. 243, tradução livre) defende que a “alfabetização tem de ser fundamentada em um currículo de música, dança, jogos e brincadeiras, juntamente com improviso e recitação.” Aqui, a ênfase dada à linguagem e ao letramento está em desacordo com os requisitos mais funcionais desejados pelo mercado ou por um sistema de avaliações. Uma sociedade mais democrática onde os cidadãos se tornam leitores habilidosos do mundo tem menos probabilidade de aceitar algo com base em valores superficiais e requer formas de letramento que vão além do que um sistema de ensino orientado para o sucesso de poucos provavelmente produzirá.

De forma similar, Richard Hoggart (2001 HOGGART, R. Between two worlds. London: Aurum Press, 2001.) argumenta a favor das escolas como instituições com financiamento público onde os cidadãos podem aprender formas complexas de letramento. Hoggart foi um crítico importante da agenda instrumental da aprendizagem. A ênfase no letramento básico não contribuiu muito para estimular compreensões mais amplas e complexas, já que essas foram frequentemente negligenciadas por um sistema econômico movido pelo lucro. Para Hoggart (2001, p. 196, tradução livre), as sociedades orientadas para o lucro “necessitam de uma maioria letrada apenas o suficiente para ser fisgada e arrastada por todas as formas de persuasão como peixes nas redes da pesca industrial moderna”. Em última instância, tais argumentos são representativos de uma racionalidade de mercado que pretende somente vender comercialismo barato às massas e, assim, descartar questões de qualidade e valor. Não surpreende que esse tipo de liberalismo tenha, em sua base, o anti-intelectualismo e que possa diminuir a valorização de formas mais complexas de cultura. Tal visão, amplamente correta, traz implicações para a aprendizagem em um contexto democrático. Entretanto, Hoggart quer argumentar que são os profissionais da cultura e o Estado que devem julgam o que é melhor. Como vimos anteriormente, tal visão se encontra refletida em muitas perspectivas da direita política e pode facilmente ser convertida em uma postura de desdém em relação a formas mais populares de cultura, com as quais muitos jovens estão profundamente envolvidos, tais como páginas alternativas da web e fanzines. Esses modos alternativos de produção cultural podem, claro, não passar no teste de qualidade e, ainda assim, apresentar novas oportunidades de aprendizado e letramento. No lugar do Estado configurar-se como uma autoridade cultural, reproduzindo muitas das hierarquias que imprimem uma cultura de conformidade, estaríamos melhores situados ao explorar a possibilidade de escolas construídas de maneira menos hierárquica, com base na abertura e no diálogo. Não se trata do mundo relativista tão temido por Hoggart e pela direita política, mas sim de instituições que foram radicalmente democratizadas, com um efeito inevitável sobre os tipos de cultura que estão associados a essas instituições. Um ambiente escolar mais democratizado teria que se tornar mais aberto a formas mais variadas de expressão cultural.

Marshall Berman (2017BERMAN, M. Modernism in the streets. London: Verso , 2017.) apresenta uma importante contranarrativa para aqueles que querem simplesmente lamentar o colapso dos padrões das nossas escolas e a submersão dos jovens na cultura de massa. Berman traz uma correção para as ondas anteriores de teoria crítica e estruturalismo, as quais presumiram demasiadamente rápido que os cidadãos podem simplesmente ser encurralados em estruturas opressivas. Em vez disso, Berman (2017) argumenta que a análise humanista contemporânea precisa seguir Marx e explorar cuidadosamente alguns dos aspectos mais contraditórios ou dialéticos da vida cotidiana. Se, com a modernidade, surgiu um sistema econômico opressivo e explorador, também houve um forte imperativo, muitas vezes explorado por movimentos artísticos, para o autodesenvolvimento e expressão. Nesse ponto, Berman (2017, p. 33) defende um “marxismo com alma”. Com isso, ele quer dizer que, apesar do contínuo domínio do valor de troca sobre outros valores, uma maior criatividade cultural é mais facilmente vinculada à necessidade de autenticidade e autoexpressão. O potencial não realizado de criatividade e autoexpressão deve poder encontrar apoio no sistema educacional. Do mesmo modo, para Raymond Williams (1980 WILLIAMS, R. Culture and materialism. London: Verso , 1980 ), uma das principais razões para continuar a se referir a Marx foi a necessidade de explorar a contradição entre as demandas do sistema econômico e a capacidade de as pessoas serem criativas e se expressarem. Uma sociedade mais democrática envolveria “o ‘restabelecimento’ geral das capacidades humanas especificamente alienadas”, juntamente com o desenvolvimento de novos modos de expressão e experiência (WILLIAMS, 1980 WILLIAMS, R. Culture and materialism. London: Verso , 1980 , p. 62, tradução livre). O sistema escolar que promove um conjunto excessivamente estreito de capacidades com base em critérios instrumentais não permite a expressão ou o desenvolvimento da criatividade popular. Além disso, o problema da escola como um sistema é que muitos jovens ficam marcados por um sentimento de fracasso e humilhação. Se grande parte da escrita radical do passado foi inspirada pela necessidade de abolir a escola, essa não parece mais ser uma opção. Em vez disso, é necessário um esforço maior para examinar as experiências daqueles que são considerados incapazes de competir. O status quo neoliberal procura normalizar continuamente as instituições dominantes, apesar das evidências consideráveis de custo humano. Os movimentos sociais, os sindicatos, os pais e os alunos precisam romper o sistema partindo de baixo para cima e, ao mesmo tempo, discutir alternativas. Quero explorar aqui a ideia de que as escolas democráticas com escala humana e autogeridas talvez sejam atualmente a melhor maneira de examinar as interconexões entre educação e democracia.

EDUCAÇÃO ESCOLAR PARA OS COMUNS DEMOCRÁTICOS 11 11 N. T.: No original em inglês, este subtítulo - A school for the democratic commons - oferece uma ambiguidade proposital, pois pode tanto significar uma escola para formar cidadãos democráticos quanto uma escola para os bens comuns democráticos. Sendo assim, optou-se por manter tal ambiguidade na tradução em português

Embora viver em democracia exija que seus cidadãos demonstrem certo nível de letramento e competência linguística, isso não é tudo. O ataque ao chamado “ensino progressista” foi liderado por argumentos de que as escolas simplesmente promoviam o analfabetismo e ambientes de aprendizagem de baixa qualidade. A ascensão da economia baseada em serviços acarretou tipos de trabalhos cada vez mais vinculados a competências linguísticas, mas que, ao mesmo tempo, exigem mão de obra mais flexível e padrões de trabalho mais inseguros. Como Hardt e Negri (2000 HARDT, M.; NEGRI, A. Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000., p. 295) argumentam, a linha de montagem foi substituída pela rede de computadores, colocando uma ênfase renovada em letramento básico de informática e habilidades mais simbólicas. Muitos adeptos da direita política, e muitas vezes com o apoio de sociais-democratas, criticam os professores por não transmitirem as habilidades básicas necessárias para ser cidadão e para alcançar formas significativas de emprego. O problema é que tal ideia considera o conhecimento como algo que é transmitido e ela não é capaz de compreender que as escolas são lugares hierárquicos que poderiam se tornar mais, e não menos, democráticos. O controle mais rígido sobre o currículo, a avaliação e o conteúdo do que acontece dentro das escolas tem potencialmente tornado as escolas mais, e não menos, hierárquicas. Francis e Mills (2012FRANCIS, B.; MILLS, M. Schools as damaging organisations: instigating a dialogue concerning alternative models of schooling. Pedagogy, Culture and Society, v. 20, n. 2, p. 251-271, 2012.) apontam especialmente que a natureza hierárquica das escolas significa não apenas que elas são antidemocráticas, mas também que são lugares potencialmente nocivos. Tais características podem ser identificadas tanto na culpa atribuída aos professores e alunos pelos resultados insatisfatórios em avaliações, quanto na criação explícita de ambientes autoritários que, sem dúvida, fazem o bullying se tornar mais, e não menos, frequente.

Se não podemos demonstrar que preferimos instituições democráticas, uma vez que elas estão em sintonia com a nossa verdadeira natureza, podemos ao menos afirmar que elas têm o potencial de permitirem a expressão de diferentes capacidades humanas que, por sua vez, são anuladas em ambientes neoliberais mais severos. Os sentimentos democráticos e humanistas permanecem vinculados à história do pensamento europeu. Contudo, o problema é que muitas das preocupações humanistas foram corrompidas por relações sociais hierárquicas e o reconhecimento dos direitos não foi possível sem o seu reconhecimento pelo poder do Estado. A tarefa continua sendo como democratizar as instituições coercitivas e, ao mesmo tempo, buscar um mundo sem hierarquias nocivas (HARVEY, 2014 HARVEY, D. Seventeen contradictions and the end of capitalism. London: Profile Books, 2014 ). Como aponta Castoriadis (1991CASTORIADIS, C. Philosophy, politics, autonomy: essays in political philosophy. Oxford: Oxford University Press , 1991.), o fato de não haver fundamentos absolutos para algo não significa que não estejamos vinculados a tradições particulares de pensamento e das práticas humanas. No interior desse embate, está em curso um conflito entre autoridade e liberdade, ou entre heteronomia e autonomia. Em última análise, nesse contexto, nossa liberdade depende de normas compartilhadas, tais como a da liberdade de expressão, questionamento e pensamento autônomo. Dito de outra maneira, o espaço democrático não é definido simplesmente por certas leis; ao contrário, depende de uma educação democrática através da qual as normas públicas são defendidas. A educação democrática dos cidadãos envolve “tornar-se consciente de que a polis também é a própria pessoa, e de que o destino da polis depende também da mente, do comportamento e das decisões de cada um; em outras palavras, é a participação na vida política” (CASTORIADIS, 1991CASTORIADIS, C. Philosophy, politics, autonomy: essays in political philosophy. Oxford: Oxford University Press , 1991., p. 113, tradução livre). Em termos de organização institucional, as escolas não podem se dar ao luxo de serem “neutras” em relação a ideias e arranjos democráticos.

Na realidade, para as escolas se tornarem mais democráticas, inevitavelmente elas deveriam se tornar locais de mais argumentação e potencialmente mais desordenados, e menos locais de conformidade institucional. Isso seria uma mudança radical na direção da política educacional, o que parece improvável sob o atual conjunto de relações institucionais. Como Beane e Apple (1999BEANE, J. A.; APPLE, M. W. The case for democratic schools. In: APPLE, M. W.; BEANE, J. A. (Ed.). Democratic schools. Maidenhead: Open University Press, 1999.) argumentam, uma educação democrática demandaria, em primeiro lugar, estruturas democráticas que permitissem uma participação estudantil significativa na vida da escola e, em segundo lugar, um currículo orientado para experiências mais democráticas. A ideia de participação na administração de uma escola frequentemente recebe apoio hipócrita, de pouca autenticidade. Em última análise, uma escola genuinamente democrática precisaria desenvolver um ethos − diferente da corrida atual por notas altas e status − que busca mudar o direcionamento da escola para o bem comum, o que vai além das ideias egoístas de interesse próprio promovidas pelo neoliberalismo. Uma escola democrática necessitaria ver as diferenças como um recurso que lhe dá a obrigação de promover um ambiente comum onde todos pudessem florescer. Isso significaria escolas que deram passos positivos para enfrentar as exclusões baseadas em deficiência, raça, gênero, sexualidade e outras características sociais e culturais. Além disso, em termos de currículo, o problema com a aprendizagem baseada em disciplinas é que tende a silenciar os jovens. Nesse contexto, é necessário movimentar-se para permitir que os estudantes conheçam um currículo mais amplo e que não deprecie as artes e as ciências humanas e pensado cuidadosamente para que a criatividade dos alunos possa ser desenvolvida. Atualmente, a maior parte da vida da escola é de zonas mortas, sem vida, onde o conhecimento é simplesmente transferido dos professores para os alunos (GRAEBER, 2012GRAEBER, D. Dead zones of the imagination: on violence, bureaucracy, and interpretive labor HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 2, n. 2, p. 105-28, 2012.). O que bell hooks (1994) descreve como formas mais engajadas de pedagogia depende menos da violência estrutural dos arranjos hierárquicos e provas padronizadas, e mais dos alunos serem capazes de ver a ligação entre ideias e o mundo em torno deles, da capacidade de compartilhar experiências pessoais, enquanto se defrontam com pontos de vista genuinamente pluralistas, reconhecendo que pode não haver uma “resposta exata”. Uma educação mais convivial, baseada menos em hierarquia e disciplina, também precisa pensar cuidadosamente sobre o que conta como conhecimento. Jeff Adams (2013ADAMS, J. The artful dodger: creative resistance to neoliberalism in education, the review of education. Pedagogy and Cultural Studies, n. 35, p. 242-255, 2013.) identifica habilmente as maneiras como as escolas muitas vezes suspeitam de formas mais criativas de aprendizagem, pois estas são percebidas como possíveis interferências na habilidade de cumprir as metas necessárias para assegurar a sobrevivência da escola. O ataque sistemático à criatividade inevitavelmente terá um impacto sobre os tipos de cultura de aprendizagem que atuam no interior da escola.

Todas essas ideias são coerentes com as histórias da pedagogia crítica. No entanto, o que muitas vezes falta nessa tradição é um esforço mais consonante para explorar o real ambiente físico da escola. Colin Ward (1995 WARD, C. Talking schools. London: Freedom , 1995 ) argumenta que grande parte da filosofia crítica sobre a educação escolar subestima radicalmente o ambiente real da escola. As crianças muitas vezes vivenciam as escolas como uma prisão, uma vez que elas estão isoladas do resto da comunidade. Nesse ponto, poderíamos imaginar escolas que compartilham instalações com o resto da comunidade (como bibliotecas e ginásios) e que, ao mesmo tempo, certificam-se de que a escola não cresça demasiadamente. Acima de um determinado tamanho, as escolas perdem a qualidade de suas interações face a face e se tornam enormes organizações burocráticas cheias de regras impessoais e de relações humanas tensas. Essas são questões importantes, já que a escola de tamanho humano e democrática precisaria ser uma escola descentralizada, tomando o maior número possível de decisões em nível local, em vez de ser governada e controlada de cima. Isso inevitavelmente demandaria uma relação diferente com o Estado e obviamente uma espécie de revolução cultural em termos de como coletivamente imaginamos o que entendemos por educação e o papel desempenhado pelas escolas nesse processo. No entanto, tão importante quanto a ideia de que as crianças, professores e outros podem influenciar o ambiente local é a ideia de que ele não seja concebido como estático e imutável. Colin Ward e Anthony Fyson (1973) escreveram, na década de 1970, um livreto destinado aos professores de escolas secundárias. Nesse texto, eles argumentam que os jovens devem ser encorajados a investigar sua própria localidade. Ao estudar as lutas locais e as tentativas de transformar a localidade olhando para os projetos habitacionais, empreendimentos urbanos e outras características, os alunos adquirem um sentido da maleabilidade do espaço. A esse respeito, Ward e Fyson argumentam explicitamente que uma educação democrática deve procurar comunicar a possibilidade de a cidade ser transformada a partir de baixo, por movimentos populares. Da mesma forma, David Harvey (2012 HARVEY, D. Rebel cities. London: Verso , 2012. , p. 4) argumenta que a participação democrática no contexto urbano é fundamentalmente “o direito de mudar e reinventar a cidade”. A questão principal é se esse é um direito exercido apenas pelo capital e pelo Estado, e até que ponto há espaço para as intervenções dos cidadãos. Murray Bookchin (2015BOOKCHIN, M. The next revolution. London: Verso , 2015., p. 100, tradução livre) enfatiza que o projeto de expandir a experiência de liberdade num sentido significativo é uma “tentativa de expandir a liberdade local”. Se a escola democrática for reimaginada como parte da vida da cidade, isso deve ajudar a reduzir a distância entre os ideais da democracia e a importância de ser praticada dentro de locais específicos.

As ideias de uma sociedade democrática e mais humanizada permanecem ligadas. Nos anos 1960, Erich Fromm (1968FROMM, E. The revolution of hope: toward a humanised technology. New York: Harper Colophon Books, 1968.) se preocupava com o fato de que, conforme a sociedade se tornava mais autoritária, muitos de seus habitantes se tornavam mais robóticos em termos de suas vidas internas e externas. O problema com uma sociedade que tenha convertido a educação em uma mercadoria praticada por instituições que são controladas de cima é que ela anula nossa capacidade de sermos nós mesmos em nossas vidas extremamente controladas e entediantes. Nós também aprendemos a ter medo de nossa própria criatividade conforme nos esforçamos para passar em provas padronizadas e sem sentido. A esperança de Fromm era que instituições mais radicalmente descentralizadas dessem às pessoas um senso forte de controle e autenticidade e lhes permitissem ter vidas de significado mais profundo, com sentimentos mais intensos de estarem vivas. No entanto, como a sociedade perdeu a fé em sua capacidade de democratizar suas instituições, as pessoas têm tentado encontrar sentido em outros lugares, fora de seus locais de trabalho e da esfera pública. Junto com o neoliberalismo, desenvolveu-se um sentimento fortemente anti-humanista, em que se vê as pessoas como intrinsicamente egoístas e despreocupadas com o destino das outras. Murray Bookchin (1995BOOKCHIN, M. Re-enchanting humanity. New York: Casell, 1995.) defende que, se desejamos viver em um mundo mais democrático, necessitamos simultaneamente reencantar nossas visões sobre a humanidade. Um humanismo esclarecido sustentaria a perspectiva de que poderíamos realmente nos tornar seres mais cooperativos, imaginativos e humanos do que atualmente nos sentimos capazes de nos tornar. Isso não significa argumentar que os seres humanos não são capazes de serem cruéis e bárbaros, mas sim que, se desejamos ver um futuro diferente para a humanidade, precisamos nos concentrar no estado atual de nossas instituições e em sua capacidade de promover condições para modos mais democráticos de vida. Esses argumentos se tornam ainda mais urgentes em contextos tecnológicos modernos, nos quais o capitalismo literalmente procura reduzir as pessoas a pedaços calculáveis de tempo que muitas vezes podem ser comprados on-line através de um computador. Para desafiar essa lógica, é necessário que as pessoas possam ver a si mesmas como cidadãos democráticos que podem experienciar suas próprias vidas conectadas com os outros.

O que está sendo sugerido aqui é que devemos reimaginar a educação como parte dos bens comuns democráticos e baseados na cidade. Se os padrões autoritários de aprendizagem, sob o liberalismo, procuram impor um controle de cima para baixo, enquanto incentivam os estudantes a se verem como consumidores, potencialmente em ascensão, de conhecimento, então o que falta nesse padrão é que muitos abandonam a escola tendo fracassado. Na verdade, talvez não seja surpreendente que contextos institucionais que favorecem a conformidade, a uniformidade, a padronização e a hierarquia sejam também espaços promissores para gerar pessoas com disposição para serem autoritárias (ELMORE, 2017ELMORE, J. Miseducation and the authoritarian mind. In: HAWORTH, P.; ELMORE, J. M. (Ed.). Out of the ruins. Oakland: PM, 2017. p. 16-34.). Nesses contextos, não se promove bem o desenvolvimento de uma mente mais democrática, necessariamente receosa de simplesmente impor opiniões absolutistas sobre os outros. Uma educação democrática necessariamente encorajará a exploração da verdade, da ambiguidade e da criatividade, ao mesmo tempo em que será cética em relação aos ambientes que são governados pelo medo e pelas formas de controle verticalizadas. Uma escola para os bens democráticos [A school for the democratic commons] dependeria de um sistema de autogestão mais participativo e descentralizado. Uma escola para os comuns [A school for the commons] precisaria ser pequena o suficiente para criar o ambiente necessário para as relações humanas baseadas no cuidado e na habilidade de responder às diferenças. Como argumenta Rebecca Martusewicz (2005 MARTUSEWICZ, R. Eros in the commons: education for eco-ethical consciousness in a poetics of place. Ethics, Place and Environment, v. 8, n. 3, p. 331-348, 2005., p. 334, tradução livre), o modo dominante de ser e estar no contexto capitalista e consumista depende do “feitiço de negação, desconexão e hiper-separação”. Da mesma forma, Raymond Williams (1989 WILLIAMS, R. Resources of Hope. London: Verso , 1989., p. 117) apontou persistentemente que o desejo de ver os outros e a paisagem natural como recursos a serem explorados funciona como uma forma de “imperialismo”. Em outras palavras, o capitalismo naturaliza uma sociedade mais ampla baseada na regra da propriedade privada e da hierarquia, enquanto põe em risco sensibilidades mais complexas, democráticas e com mais vínculos. Isso inevitavelmente significa que, uma vez que o controle direto do Estado sobre a educação tenha sido substancialmente flexibilizado, as escolas tornar-se-iam livres para fazer experiências com pedagogias mais democráticas e baseadas em seus locais (WILLIAMS, 1989 WILLIAMS, R. Resources of Hope. London: Verso , 1989., p. 242). Em um contexto mais global, é o capitalismo, muito mais do que os cidadãos, que não tem vínculo nenhum com o sentido de lugar. Uma pedagogia democrática deveria não apenas permitir a expressão de uma gama mais ampla de disciplinas, tornada possível por meio de um currículo menos centralizado, mas também ser capaz de explorar mais cuidadosamente uma complexa política de lugar em relação às questões de cultura e natureza. Se a necessidade de uma educação democrática não pode mais ser justificada por questões da natureza humana, é provável que tal necessidade tenha um papel crucial a desempenhar para ajudar a desenvolver os cidadãos diversos e argumentativos do futuro, que sentem uma forte ligação com os bens ecológicos comuns [ecological commons]. Por fim, resta saber se o projeto de repensar questões de democracia está sendo iniciado pelos movimentos sociais. Isso não precisa levar a um ataque completo às práticas comuns da democracia liberal, mas, ao contrário, deve reconhecer a importância das liberdades conquistadas historicamente. Se os ativistas contra a guerra, a austeridade, as destruições ecológicas, a favor dos direitos das mulheres e dos homossexuais estão fazendo perguntas sobre democracia e espaço público, isso também precisa estar vinculado às ideias associadas à educação escolar e ao desenho de nossas instituições. Conforme Colin Ward (1973 WARD, C.; FYSON, A. Streetwork: the exploding school. London: Routledge and Kegan Paul , 1973 ) reconheceu há muito tempo, todos os seres humanos desejam certo controle sobre seu meio, e fazer isso significa estabelecer uma forma de dignidade humana. No entanto, muitas vezes, isso é contraposto por autoritários de diferentes tipos que gostam de imaginar as instituições comportando-se como máquinas. É dever daqueles que acreditam em formas mais significativas de democracia não só interromper esse processo, mas também empenhar- se em estabelecer o direito a uma educação humana para todas as nossas crianças.

Notas

  • 1
    Nota da tradutora (N. T.):Na história do Reino Unido,The commons se refere às pessoas que não tinham títulos do clero ou da nobreza e, por extensão, diz-se hoje das pessoas das camadas populares em contraste com a elite que dirige a sociedade. O termo commons também designa os recursos culturais e naturais aos quais todos os membros da sociedade devem ter acesso, tais como o ar, a água e terra habitável
  • 4
    N. T.: O Occupy é um movimento sociopolítico que combate a desigualdade social e econômica e a falta de “democracia real”. Objetiva promover novas formas de democracia e a justiça social e econômica.
  • 5
    N. T.: Em inglês, royal road of privatisation, ou seja, real refere-se aqui à realeza.
  • 6
    N. T.: Em inglês, comprehensive and public schools.
  • 7
    N. T.: O termo New Labour foi cunhado por Tony Blair, que levou o Partido Trabalhista para o centro da política do país, para distinguir suas políticas pró-mercado daquelas mais socialistas que o partido tinha defendido anteriormente.
  • 8
    N. T.: Bog standard, literalmente padrão de pântano, lama ou latrina, é gíria britânica pejorativa para algo totalmente básico, comum, nada excepcional, ou seja, medíocre
  • 9
    N. R. Giroux usa a expressão “school-to-prison pipeline”, para se referir aos estudantes negros ou muçulmanos vistos como ameaças, em escolas com uma intervenção policial frequente.
  • 10
    N. T.: A expressão movimento de pinça refere-se a uma estratégia militar de dividir as forças em duas partes, cada uma das quais ataca um dos flancos do inimigo.
  • 11
    N. T.: No original em inglês, este subtítulo - A school for the democratic commons - oferece uma ambiguidade proposital, pois pode tanto significar uma escola para formar cidadãos democráticos quanto uma escola para os bens comuns democráticos. Sendo assim, optou-se por manter tal ambiguidade na tradução em português
  • REVISÃO TÉCNICA: Moysés Kuhlmann Júnior

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2017
  • Aceito
    23 Nov 2017
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