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Práticas de letramento acadêmico na construção do pertencimento de alunos de iniciação científica a comunidades de prática: uma análise a partir de relatórios de pesquisa

Academic literacy practices in building scientific initiation students belonging in communities of practice: an analysis from research reports

RESUMO

Objetivamos, neste artigo, analisar, através de práticas letradas acadêmicas, a construção do pertencimento de alunos de iniciação científica a comunidades de prática, considerando os três elementos que as caracterizam: domínio de conhecimento, empreendimento conjunto da comunidade e repertório compartilhado nas práticas. Como material de análise, definimos seções de metodologia de relatórios de pesquisa de iniciação científica produzidos por alunos de graduação de duas áreas de conhecimento: Sociologia e Psicologia. Tais dados são analisados comparativamente, mediante abordagem qualitativo-interpretativista, a partir dos subsídios teóricos dos Estudos de Letramento, da abordagem dos Letramentos Acadêmicos e de trabalhos que refletem sobre a noção de comunidade de prática. As seções de metodologia dos relatórios demonstram que os alunos, na maioria das vezes, adotam concepções epistemológicas, interagem com pessoas e grupos e empregam recursos e artefatos mais característicos e legitimados no seu campo de saber, embora tenhamos percebido também algumas dificuldades em relação a convenções acadêmicas. Vemos, portanto, um processo complexo e não linear de construção da identidade do aluno como pesquisador em formação e de integração no fazer de comunidades.

Palavras-chave:
iniciação científica; letramento acadêmico; comunidade de prática; relatório de pesquisa; metodologia

ABSTRACT

In this paper, we aim to analyze, through academic literacy practices, the building scientific initiation students belonging in communities of practice, considering the three elements that characterize them: domain of knowledge, joint enterprise and shared repertoire in practices. As material for analysis, we have defined sections of methodology for scientific initiation research reports produced by undergraduate students from two areas of knowledge: Sociology and Psychology. Such data are analyzed comparatively, through a qualitative-interpretative approach, based on the theoretical subsidies of Literacy Studies, the approach of Academic Literacies and works that reflect on the notion of community of practice. The sections of methodology of the research reports demonstrate that students, most of the time, adopt epistemological conceptions, interact with people and groups and employ more characteristic and legitimate resources and artifacts in their field of knowledge, although we have also noticed some difficulties in relation to academic conventions. We see, therefore, a complex and non-linear process of building the student’s identity as a researcher in training and integrating in the practice of communities.

Keywords:
scientific initiation; academic literacy; community of practice; research report; methodology

1. Introdução

No Brasil, as primeiras práticas com características do que posteriormente seria denominado de iniciação científica surgiram na década de 1930, com a fundação de universidades com ideal de pesquisa (Massi & Queiroz, 2015Massi, L., & Queiroz, S. L. (Orgs.). (2015). Iniciação científica: aspectos históricos, organizacionais e formativos da atividade no ensino superior brasileiro. Editora UNESP Digital. http://editoraunesp.com.br/catalogo?criterio=Inicia%C3%A7%C3%A3o+cient%C3%ADfica%3A+aspectos+hist%C3%B3ricos%2C+organizacionais+e+formativos+da+atividade+no+ensino+superior+brasileiro
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). Porém, foi a partir da criação, em 1951, do que hoje é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que a iniciação científica no ensino superior passou a ser financiada, evoluindo para uma política de educação pela pesquisa. Hoje, ela pode ser concebida, segundo Massi (2008Massi, L. (2008). Contribuições da iniciação científica na apropriação da linguagem científica por alunos de graduação em química [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/75/75132/tde-18042008-112848/pt-br.php
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), como a elaboração e o desenvolvimento de um projeto de pesquisa por aluno(s) sob orientação de docente(s), visando à introdução de iniciantes no fazer científico de determinada comunidade disciplinar, almejando fazê-los participar dela, mesmo que perifericamente. Trata-se, pois, da inserção progressiva do aluno universitário no fazer científico, através da interação com outros parceiros e de sua participação nos locais institucionais de produção do conhecimento (especialmente as instituições de ensino superior).

Diante dos recursos humanos e financeiros depreendidos no desenvolvimento dessa política de educação científica e em suas ações formativas, é necessário esboçarmos diagnósticos de como se concebem e implantam tais políticas, no sentido de otimizar seus efeitos positivos e/ou de efetuar mudanças de curso neles. Alguns estudos apresentam-na como um processo formativo e meio fecundo de aprendizagem, em diferentes dimensões (acadêmica, profissional e pessoal), possibilitando: domínio de conhecimentos teórico-práticos e metodológicos, de procedimentos e fases de uma pesquisa científica e capacidade de questionamento (Calazans, 2002Calazans, J. (Org.). (2002). Iniciação científica: construindo o pensamento crítico (2nd ed.). São Paulo: Cortez.; Demo, 2004_____. (2004). Iniciação científica - razões formativas. In R. Moraes, & V. M. do R. Lima (Orgs.). Pesquisa em sala de aula: tendências para a educação em novos tempos (2nd ed., pp. 103-126). EDIPUCRS. http://books.google.com.br/books?id=4Av-b11jCqUC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
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); apropriação de gêneros e da linguagem acadêmica (Demo, 2004_____. (2004). Iniciação científica - razões formativas. In R. Moraes, & V. M. do R. Lima (Orgs.). Pesquisa em sala de aula: tendências para a educação em novos tempos (2nd ed., pp. 103-126). EDIPUCRS. http://books.google.com.br/books?id=4Av-b11jCqUC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
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; Dias & Pereira, 2015Dias, A. P., & Pereira, R. C. M. (2015). As contribuições do PIBIC para a formação de professores/pesquisadores: uma análise dos artigos de iniciação científica. In R. C. M. Pereira, B. P. Medrado, & C. L. Reichmann (Orgs.). Letramentos e práticas formativas: pesquisas tecidas nas entrelinhas do ISD (pp. 95-121). João Pessoa, PB: Editora da UFPB.); e até mesmo interesse dos alunos pela pós-graduação (Cabrero, 2007Cabrero, R. de C. (2007). Formação de pesquisadores na UFSCar e na área de educação especial: impactos do programa de iniciação científica do CNPq [Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. Repositório Institucional da UFSCar. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/2830/TeseRCC.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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).

Em nosso trabalho, versamos sobre a apropriação de conhecimentos de metodologia, relacionados, evidentemente, a outros aspectos que permeiam o fazer científico, devido ao fato de que, segundo Demo (1995Demo, P. (1995). Metodologia científica em Ciências Sociais (3rd ed.). São Paulo: Atlas.), esta instrumentação metodológica constitui uma das principais qualidades requeridas ao pesquisador: domínio de técnicas e procedimentos, processo de obtenção e tratamento dos dados, capacidade de análise, relacionando teoria e prática. Destacamos, porém, o papel preponderante da linguagem escrita nesse processo, a partir do pressuposto de que tal apropriação e instrumentação acontecem nas e pelas práticas linguageiras. Nesse sentido, objetivamos analisar a construção do pertencimento de alunos de iniciação científica no fazer científico de determinadas comunidades de prática, através de práticas letradas acadêmicas, especificamente na elaboração da seção metodológica de relatórios de iniciação científica de alunos de graduação.

Para tanto, fundamentamo-nos nos Estudos de Letramento, na perspectiva de Street (1984Street, B. V. (1984). Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press.) e desenvolvimentos posteriores; na abordagem dos Letramentos Acadêmicos, a partir do trabalho seminal de Lea e Street (1998Lea, M. R., & Street, B. V. (1998). Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in higher education, 23(2), 157-152. https://doi.org/10.1080/03075079812331380364
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); assim como em estudos na área de Educação, sobre a noção de comunidade de prática, conforme Wenger (1998Wenger, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.) e Wenger, McDermott e Snyder (2002Wenger, E., Mcdermott, R., & Snyder, W. M. (2002). Cultivation communities of practice: a guide to managing knowledge. Harvard: Harvard Business School Press.). Na constituição de nosso corpus, delimitamos duas áreas do conhecimento, Sociologia e Psicologia, a fim de levar em conta peculiaridades e implicações formativas das práticas situadas de letramento que podem ter lugar em diferentes comunidades de prática. As análises são feitas comparativamente, mediante abordagem qualitativo-interpretativista, no sentido de evidenciar como alunos de diferentes campos da ciência se integram no fazer de suas respectivas comunidades e como interagem com (e apreendem) conhecimentos das práticas letradas no que se referem ao tópico/assunto num domínio de conhecimento, ao empreendimento conjunto da comunidade e ao repertório compartilhado nas práticas.

2. Uma compreensão situada das práticas letradas acadêmicas

Nossa abordagem teórica se insere numa perspectiva sociocultural da escrita, no âmbito dos (Novos) Estudos de Letramento (Barton et al., 2000Barton. D., Hamilton, M., & Ivanič, R. (Eds.). (2000). Situated literacies: reading and writing in context. England, UK: Routledge .; Barton & Hamilton, 1998Barton, D., & Hamilton, M. (1998). Local literacies: reading and writing in one community. England, UK: Routledge.; Gee, 2008Gee, J. P. (2008). Social linguistics and literacies: ideology in discourses (3rd ed.). England, UK: Routledge.; Ivanič, 1998Ivanič, R. (1998). Writing and identity: the discoursal construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins B. V.; Street, 1984Street, B. V. (1984). Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press., 2000_____. (2000). Literacy events and literacy practices: theory and practice in the New Literacy Studies. In M. Martin-Jones, & K. Jones (Orgs.). Multilingual literacies: reading and writing different worlds (pp. 17-29). Amsterdã: John Benjamins Publishing Company.), que concebem o letramento como prática social, investigando usos, funções e significados da escrita para indivíduos e grupos sociais. Como destacam Barton e Hamilton (1998Barton, D., & Hamilton, M. (1998). Local literacies: reading and writing in one community. England, UK: Routledge.), o letramento, como prática humana, é essencialmente social, um fenômeno que acontece e é observável nas interações entre as pessoas em diferentes ambientes e instituições sociais.

Para dar conta do estudo do letramento inserido na vida social, Street (1984Street, B. V. (1984). Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press.) propõe um modelo que ele denomina de ideológico, por tratar a escrita e seus usos associados a relações de poder, valores e crenças de determinados grupos. Assim, o modelo ideológico defende que o letramento não possui benefícios nem consequências intrínsecas a si mesmo e, por isso, autônomos do contexto histórico e social; pelo contrário, seus significados dependem dos participantes e das instituições em que as atividades de leitura e de escrita acontecem.

Postula-se, desse modo, que o letramento é situado em diferentes contextos sociais. Segundo Gee (2008Gee, J. P. (2008). Social linguistics and literacies: ideology in discourses (3rd ed.). England, UK: Routledge.), as práticas de escrita ocorrem em contextos, gêneros e de acordo com propósitos específicos. Como consequência, devemos falar de vários letramentos, associados a diferentes contextos de uso da leitura e da escrita numa mesma cultura e em culturas diversas.

Esses letramentos podem ser compreendidos como práticas que derivam de eventos mediados por textos escritos. Numa dimensão mais visível e observável, os eventos de letramento englobam a situação concreta de interação, os participantes, o material escrito e as interações verbais em torno desse material escrito (Heath, 1982Heath, S. B. (1982). What no badtime story means: narrative skills at home and school. Language in society, 11, 49-76.; Marinho, 2010Marinho, M. (2010). Letramento: a criação de um neologismo e a construção de um conceito. In M. Marinho, & G. T. Carvalho (Orgs.). Cultura escrita e letramento (pp. 68-100). Editora UFMG.). Numa dimensão mais abstrata, as práticas de letramento dão conta dos eventos moldados e (re)configurados por valores, crenças, ideologias, modelos sociais, identidades e atitudes, ou seja, por significados que os participantes constroem, a partir do contexto cultural e institucional em que estão situadas a leitura e a escrita (Hamilton, 2000Hamilton, M. (2000). Expanding the new literacy studies: using photographs to explore literacy as social practice. In D. Barton, M. Hamilton, & R. Ivanič. (Eds.). Situated literacies: reading and writing in context (pp. 15-32). England, UK: Routledge.; Street, 2000_____. (2000). Literacy events and literacy practices: theory and practice in the New Literacy Studies. In M. Martin-Jones, & K. Jones (Orgs.). Multilingual literacies: reading and writing different worlds (pp. 17-29). Amsterdã: John Benjamins Publishing Company.).

Essa diversificação de eventos e práticas, que dá origem a diferentes formas de uso da escrita (letramentos), obedece a certas regularidades e configurações, definidoras de normas, valores e papéis sociais dos participantes. Uma dessas formas é o que se tem chamado de letramento(s) acadêmico(s). Essa expressão é comumente utilizada na literatura especializada em três sentidos: (1) como capacidade individual de ler e produzir textos e participar da cultura acadêmica; (2) como uma forma de letramento, que congrega um vasto conjunto de eventos e práticas que têm lugar num domínio específico, o acadêmico; (3) como abordagem teórico-metodológica e campo de investigação da escrita acadêmica (Lea & Street, 1998Lea, M. R., & Street, B. V. (1998). Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in higher education, 23(2), 157-152. https://doi.org/10.1080/03075079812331380364
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, 2000_____. (Eds.). 2000. Student writing in higher education: new contexts. Milton Keynes, UK / Philadelphia, USA: Open University Press / Society for Research into Higher Education., 2014_____. (2014). O modelo de “letramentos acadêmicos”: teoria e aplicações. Revista Filologia e Linguística Portuguesa, 16(2), 477-493. https://www.revistas.usp.br/flp/article/view/79407/95916
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; Lea, 2005Lea, M. R. ‘Communities of practice’ in higher education. In D. Barton, & K. Tusting (Eds.). Beyond communities of practice: language, power and social context (pp. 180-197). Cambridge: Cambridge University Press.), quando geralmente é grafada com letras iniciais maiúsculas. No nosso trabalho, utilizamos o termo principalmente nas duas últimas acepções.

A abordagem dos Letramentos Acadêmicos assim caracteriza as práticas letradas acadêmicas:

Aprender no ensino superior envolve a adaptação a novas formas de conhecimento: novas formas de compreensão, interpretação e organização do conhecimento. Práticas de letramento acadêmico - leitura e escrita dentro de disciplinas - constituem processos centrais através dos quais os alunos aprendem novos assuntos e desenvolvem seus conhecimentos sobre novas áreas de estudo. Uma abordagem prática para o letramento leva em conta o componente cultural e contextual das práticas de escrita e leitura, e isso, por sua vez, tem implicações importantes para a compreensão da aprendizagem dos alunos3 3 No original: “Learning in higher education involves adapting to new ways of knowing: new ways of understanding, interpreting and organizing knowledge. Academic literacy practices - reading and writing within disciplines - constitute central processes through which students learn new subjects and develop their knowledge about new areas of study. A practices approach to literacy takes account of the cultural and contextual component of writing and reading practices, and this in turn has important implications for an understanding of student learning” (Lea & Street, 1998, parágrafo 2). (tradução nossa). (Lea & Street, 1998Lea, M. R., & Street, B. V. (1998). Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in higher education, 23(2), 157-152. https://doi.org/10.1080/03075079812331380364
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, parágrafo 2)

Depreendemos que as especificidades do letramento acadêmico não residem apenas na natureza dos conteúdos que são ensinados em uma área do conhecimento, mas também na forma de produzi-los, organizá-los e divulgá-los, o que se faz por meio da linguagem e especialmente pela escrita, que detém grande prestígio nesse ambiente. A compreensão da escrita inclusa em um contexto social e histórico traz implicações teórico-metodológicas importantes, haja vista a necessidade de englobar elementos (para) além do texto, ou inferíveis a partir dele - autoridade, identidades, relações institucionais -, combinando-os. Assim, a integração de pessoas nesse domínio demanda a apreensão e a mobilização de conhecimentos das suas práticas e do seu funcionamento, assim como dos seus gêneros, modos de agir e conceitos.

Além disso, chama a atenção para a variedade de letramentos acadêmicos, mediante as variações epistemológicas entre as disciplinas. Segundo Lea e Street (1998Lea, M. R., & Street, B. V. (1998). Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in higher education, 23(2), 157-152. https://doi.org/10.1080/03075079812331380364
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), os processos de escrita são considerados mediante o que constitui o conhecimento válido e as convenções para um contexto específico (disciplinas e áreas do conhecimento do domínio acadêmico) e as relações de poder e identidades que se constroem nesses contextos. Ivanič (1998Ivanič, R. (1998). Writing and identity: the discoursal construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins B. V.) enfatiza as variações entre as disciplinas, quanto a formas de produzir conhecimento, objetos de estudo, valores, crenças, práticas, gêneros de texto, relação entre teoria e prática. Todos esses aspectos têm implicações sobre a identidade dos escritores e deixam marcas na escrita, a partir das quais podem ser inferidos.

Podemos considerar esses contextos disciplinares na perspectiva de redes ou grupos de trabalho - ou comunidades de prática. Para Barton e Hamilton (1998Barton, D., & Hamilton, M. (1998). Local literacies: reading and writing in one community. England, UK: Routledge.) e Gee (2008Gee, J. P. (2008). Social linguistics and literacies: ideology in discourses (3rd ed.). England, UK: Routledge.), nas práticas letradas, as pessoas estão envolvidas em diferentes grupos e redes sociais, nos quais, conforme certas posições sociais e contextos, lidam com linguagens e convenções específicas, do que decorrem diferentes identidades. Na acepção de Wenger et al. (2002Wenger, E., Mcdermott, R., & Snyder, W. M. (2002). Cultivation communities of practice: a guide to managing knowledge. Harvard: Harvard Business School Press., p. 4, tradução nossa), “comunidades de prática são grupos de pessoas que compartilham uma preocupação, um conjunto de problemas, ou uma paixão por um tópico, e que aprofundam seu conhecimento e experiência nessa área interagindo de forma contínua ...”4 4 No original: “communities of practice are groups of people who share a concern, a set of problems, or a passion about a topic, and who deep their knowledge and expertise in this area by interacting on an ongoing basis ...” (Wenger et al., 2002, p. 4). . Segundo Wenger (1998Wenger, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.), no fazer dessas comunidades, as pessoas negociam significados sobre o mundo mediante processos de participação e reificação: respectivamente, envolvimento em ações e interações de uma comunidade e construção de significados sobre essas experiências; e produção de artefatos e objetos que dão forma e “congelam” as práticas (abstrações, ferramentas, símbolos, textos, conceitos etc.).

Apesar da variedade de comunidades de prática, elas se estruturam na combinação de três elementos fundamentais, conforme Wenger et al. (2002Wenger, E., Mcdermott, R., & Snyder, W. M. (2002). Cultivation communities of practice: a guide to managing knowledge. Harvard: Harvard Business School Press.) e Wenger (1998Wenger, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.): engajamento mútuo num domínio de conhecimento (terreno comum de assuntos, tópicos e propósitos) que compõe a identidade do campo no qual as pessoas interagem; empreendimento conjunto das pessoas envolvidas nesse domínio, que compreende as relações interpessoais (interação e comprometimento mútuo) que culminam no senso de pertencimento e nas formas de aprendizado conjunto sobre a prática; e repertório compartilhado, que consiste no estabelecimento de um conhecimento comum e de uma gama de recursos a ser assumido pelos membros, com vistas ao trabalho conjunto.

Reivindica-se, a partir disso, uma concepção situada de aprendizagem, como condição para (e consequência do) pertencimento a essas comunidades. Desse modo, a aprendizagem é uma questão de envolvimento, interação, negociação e desenvolvimento de um repertório compartilhado. Como corolário, o pertencimento a uma comunidade define-se como o processo de (e o resultado da) participação em práticas, construção de significados e formação de identidade, esta entendida, na perspectiva de Wenger (1998Wenger, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.), como relação mútua entre o individual e o social, mediante as experiências, as posições e as trajetórias de ingresso, evolução e permanência dos membros nas comunidades. Nessa perspectiva, a construção dos conhecimentos e, em última instância, da própria identidade é sociocultural, discursiva e interacional, ou seja, mediada pela linguagem, como afirma Ivanič (1998Ivanič, R. (1998). Writing and identity: the discoursal construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins B. V.). Assim, adquirir certos usos da escrita significa tornar-se certo tipo de pessoa.

Portanto, defende-se uma concepção de escrita como prática social, com foco nas relações de poder, na identidade e no agenciamento através da linguagem (Lea & Street, 2014_____. (2014). O modelo de “letramentos acadêmicos”: teoria e aplicações. Revista Filologia e Linguística Portuguesa, 16(2), 477-493. https://www.revistas.usp.br/flp/article/view/79407/95916
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). Nesse caso, é preciso considerar a materialidade que é o texto, como mediador e balizador do evento de letramento, mas também as configurações das práticas letradas histórica e culturalmente construídas nas interações, que definem as normas institucionais, os participantes e seus papéis e, por conseguinte, atuam na definição da forma e da função que assume(m) o(s) texto(s) nessas práticas.

3. Procedimentos de obtenção e análise dos dados

O corpus de nossa pesquisa constitui-se de seis relatórios de pesquisa: três da área de Sociologia (que codificamos como R1-S, R2-S e R3-S) e três da área de Psicologia (que codificamos como R4-P, R5-P e R6-P). Eles foram elaborados como resultado de participação de alunos de graduação em projetos de iniciação científica financiados pelo CNPq, em uma universidade pública federal. Todos os projetos contaram com a participação de um docente como orientador e de um aluno como bolsista.

O estudo de duas áreas das ciências humanas deve-se ao fato de abordarem, de modo abrangente, o ser humano, de uma perspectiva social ou cognitiva/comportamental, mas o fazerem, como disciplinas diferentes, a partir de tradições próprias, que se manifestam não apenas nos objetos de estudo, mas também no processo de construção do conhecimento e na configuração dos textos. Assim, a escolha dessas duas áreas pode mostrar o caráter situado das práticas letradas acadêmicas e das aprendizagens dos iniciantes, sendo os relatórios de pesquisa os artefatos materiais que representam a reificação desse processo de participação no fazer das respectivas comunidades.

O gênero relatório de pesquisa pode ser conceituado, de uma perspectiva normativa, como “documento que descreve formalmente o progresso ou resultado de pesquisa científica e/ou técnica” (Associação Brasileira de Normas Técnicas [ABNT], 2015_____. (2015). NBR 10719: informação e documentação - relatório técnico e/ou científico - apresentação (4th ed.). ABNT., p. 3). Podemos também caracterizá-lo, parafraseando Fairchild (2010Fairchild, T. (2010). O professor no espelho: refletindo sobre a leitura de um relatório de estágio na graduação em Letras. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, 10(1), 271-288. https://doi.org/10.1590/S1984-63982010000100014
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), como documento que relata experiências realizadas na execução de um projeto de pesquisa, com função informativa; que organiza e sistematiza o conhecimento produzido naquele período, com função formativa; e que serve como uma prestação de contas, para provar que o projeto foi executado satisfatoriamente, com função argumentativa.

Destacamos, dessas funções, especialmente a formativa, visto que nos pode fornecer indícios sobre a vivência e o processo de construção do pertencimento dos alunos a uma comunidade de prática no domínio acadêmico: seu fazer, seus usos da escrita, suas tradições. Como os textos não existem isolados das práticas, elas relacionam, por meio de recursos representacionais da linguagem, as atividades de leitura e, em nosso caso, de escrita com as estruturas sociais em que elas estão inseridas e que elas ajudam a formar (Lillis & Scott, 2007Lillis, T., & Scott, M. (2015). Defining academic literacies research: issues of epistemology, ideology and strategy. Journal of Applied Linguistics and Professional Practice, 4(1), 5-32. https://doi.org/10.1558/japl.v4i1.5
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). Assim, o estudo dos relatórios traz evidências desse processo de participação, de construção de aprendizagens e do grau de pertencimento que os alunos adquirem em relação à comunidade científica na qual se inserem seus projetos de pesquisa.

Escolhemos abordar a metodologia dos relatórios em sua seção específica, antes de tudo, pela “... importância do cuidado metodológico na formação científica e acadêmica em geral ...” (Demo, 2002_____. (2002). Cuidado metodológico: signo crucial da qualidade. Sociedade e Estado, 17(2), 349-373. https://doi.org/10.1590/S0102-69922002000200007
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, p. 350), independentemente do paradigma epistemológico que se siga. Nesse sentido, a seção metodológica caracteriza-se por determinar mais claramente a identidade da pesquisa: ela define as formas de proceder dos pesquisadores, de modo que conecta os alunos com as maneiras de construir conhecimento em uma determinada área. Por conseguinte, contribui para a constituição da identidade do pesquisador e sua relação com o fazer científico de sua comunidade de prática.

Nossa análise das seções de metodologia dos relatórios de pesquisa de Sociologia e Psicologia é feita comparativamente e segue abordagem qualitativo-interpretativista, a partir dos três elementos que caracterizam as comunidades de prática: domínio de conhecimento, empreendimento conjunto e repertório compartilhado. Com isso, temos uma representação de como os alunos de iniciação científica, a partir da escrita, interagem com o fazer e as convenções de determinada disciplina e constroem seu pertencimento a ela.

4. Análise das seções de metodologia dos relatórios de iniciação científica

Em relação ao domínio de conhecimento, as seções metodológicas dos relatórios de ambas as áreas abordam os mais variados assuntos, como: sujeitos da pesquisa, universo de estudo, procedimento(s) de coleta e de análise dos dados. Entretanto, a depender da área e do objeto de pesquisa, há diferenças entre os procedimentos que são realizados, além de maior enfoque de um ou outro elemento em detrimento dos demais.

No quadro a seguir, temos uma representação dos assuntos e de sua organização (planificação) nas seções metodológicas. Ressaltamos que essa organização remete mais ao conceito de planificação do conteúdo temático de um texto (ou plano geral) de Bronckart (1999Bronckart, J-P. (1999). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC.), na perspectiva de um resumo da estruturação desse conteúdo, do que ao conceito de movimentos retóricos (moves) de Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.)5 5 Movimento retórico (move) é “... uma unidade discursiva ou retórica que desempenha uma função comunicativa coerente em um discurso escrito ou falado ...” (Swales, 2004, p. 228, tradução nossa). [No original: “a discoursal or rhetorical unit that performs a coherent communicative function in a written or spoken discourse.”]. Trata-se de um conceito criado e aplicado por Swales (1990) em seu modelo de análise de gêneros (Create a Research Space) para descrever o padrão retórico de gêneros, com base na distribuição de informações recorrentes no texto. - embora alguns elementos possam ser parecidos ou até coincidentes -, já que não analisamos os elementos linguístico-discursivos que caracterizam tais movimentos.

Quadro 1
Organização do conteúdo temático das seções de metodologia da área de Sociologia

Nessa área, ganha destaque a apresentação tanto dos procedimentos de obtenção dos dados quanto das etapas de desenvolvimento da pesquisa. Os pesquisadores sentem a necessidade de apresentar não só como o objeto foi delineado, mas também o percurso de construção do conhecimento científico, o que pode designar a necessidade que eles têm de evidenciar como interagiram com seu objeto de estudo e as ações sociais que investigam.

Somente um relatório (R3-S) apresenta as categorias e os procedimentos de análise. A presença desses elementos em apenas um deles pode remeter, como relata Martins (2004Martins, H. H. T. de S. (2004). Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e Pesquisa, 30(2), 289-300. https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000200007
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), a uma dificuldade que pesquisadores iniciantes da área demonstram de lidar com os dados coletados, visto que “... a variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva ...” (Martins, 2004Martins, H. H. T. de S. (2004). Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e Pesquisa, 30(2), 289-300. https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000200007
https://doi.org/10.1590/S1517-9702200400...
, p. 242). A diversidade de métodos e técnicas culmina numa variedade de dados que demanda do pesquisador uma configuração peculiar, complexa e, portanto, menos propensa a modelos preestabelecidos, o que pode dificultar o delineamento e a explicitação de procedimentos analíticos mais do que o processo de coleta em si.

Vejamos dois excertos que ilustram a configuração do plano geral das seções metodológicas desses relatórios:

Excerto 16 6 As transcrições feitas dos relatórios são completamente fiéis aos originais. : R2-S

Diante do objeto exposto, a pesquisa se insere na metodologia qualitativa que, de acordo com Geertz (1989) não é uma descrição pura e simples daquilo estudado, mas sim emprega-se atos, fatos, falas e interpretações para formar um modelo lógico que seja compreensível dessa realidade, visto que, tais fenômenos são históricos e por isso mutáveis - ou interpretados de outra maneira a depender de quem olha. Possui como eixo temático, nesse contexto, a investigação de novas modalidades de adoecimento e práticas profissionais no Estado da Paraíba.

Brandão (2007) afirma que a pesquisa antropológica e o trabalho de campo diz respeito a uma vivência e, assim, se estabelece uma relação produtora de conhecimento a partir de uma relação subjetiva e interpessoal entre os atores do campo da pesquisa e o pesquisador. A este respeito, segundo Deslandes (2009), a pesquisa qualitativa “trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. ”(p.21). Justifico minha escolha pelo método qualitativo considerando justamente esse elemento subjetivo que tal método permite transformar em ciência, ajudando a compreender a realidade da genética como especialidade da medicina no Estado da Paraíba.

Excerto 2: R1-S

A pesquisa, portanto, seguiu as seguintes etapas:

  1. Levantamento bibliográfico;

  2. Contato e pesquisa de campo nos dois tribunais do júri do Fórum Criminal de João Pessoa, no período de vigência do projeto.

  3. Entrevistas semiestruturadas com os membros dos conselhos de sentença, a partir da abordagem dos temas propostos neste projeto;

A metodologia da pesquisa foi sendo adequada de acordo com as necessidades e dificuldades apresentadas no campo, como será revelado a seguir.

No primeiro excerto, o autor apresenta e justifica a escolha pela abordagem qualitativa, em função do tipo de pesquisa (de campo) e do que constitui o processo de construção do conhecimento na área. É interessante notarmos o caráter argumentativo do fragmento selecionado, o que se repete nos outros dois relatórios quando da apresentação de métodos de pesquisa. A partir da percepção do autor de que não há métodos nem procedimentos padronizados e rígidos para a investigação de fenômenos sociais, todos aqueles escolhidos são justificados com base na literatura especializada. Essa atitude tem implicações na forma como o autor se relaciona com esse processo, assumindo uma posição mais subjetiva e deixando-a linguisticamente evidente na marcação da primeira pessoa do singular. Entretanto, o fato de não associar tais justificativas ao objeto de estudo e aos dados torna-as mais teóricas do que empíricas. No segundo excerto, o autor enumera cronologicamente as etapas da realização da pesquisa, não circunscritas apenas aos procedimentos metodológicos em si, estes pouco explicitados, pois o texto que se sucede ao excerto já é de análise dos dados. Esse fenômeno, a nosso ver, parece justificar-se mais pelo propósito comunicativo do gênero em questão (de relatar o desenvolvimento de uma pesquisa de iniciação científica) do que pelas características da seção de metodologia.

Na área de Psicologia, os assuntos e sua planificação nas seções de metodologia dos relatórios têm uma configuração diferente:

Quadro 2
Organização do conteúdo temático das seções de metodologia da área de Psicologia

Observamos maior proximidade entre os relatórios 5 e 6, pois possuem um delineamento de pesquisa bastante parecido, além de pertencerem ao campo da Psicologia Clínica. Devido à relação histórica dessa área com as ciências médicas e destas com as ciências naturais e seus paradigmas (Biasoli-Alves, 1998Biasoli-Alves, Z. M. M. (1998). A pesquisa psicológica: análise de métodos e estratégias na construção de um conhecimento que se pretende científico. In G. Romanelli, & Z. M. M. Biasoli-Alves (Orgs.). Diálogos metodológicos sobre prática de pesquisa (pp. 135-157). Ribeirão Preto, SP: Legis Summa.; Turato, 2005Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública, 39(3), 507-514. https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000300025
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200500...
), tais relatórios assumem uma configuração mais quantitativa, com critérios precisos de definição de amostragem, determinação de variáveis e mensuração estatística, refletindo-se, inclusive, numa organização bastante parecida desses assuntos na seção. Já o relatório 4, da Psicologia Educacional, possui mais proximidade, quanto aos assuntos e à sua organização na metodologia, com a Sociologia, evidenciando uma natureza interdisciplinar da área. Esse panorama demonstra o quanto a disciplina, mas também o objeto de estudo, determinam paradigmas e padrões metodológicos e a planificação do conteúdo temático da metodologia. Observemos dois excertos que exemplificam essas diferenças:

Excerto 3: R5-P

Os dados obtidos foram analisados no Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22. Realizaram-se estatísticas descritivas de frequência, porcentagem, média e desvio-padrão das características clínicas e sociodemográficas dos grupos (idosos com e sem queixas subjetivas de memória).

Utilizaram-se também como técnicas inferenciais, o teste t de Student, Qui-quadrado de Pearson e Teste Kolmogorov-Smirnov para identificar a normalidade dos dados; Correlação de Pearson entre o escore obtido na QMPR, geral ou para os índices específicos de QMS retrospectiva/prospectiva, e os escores obtidos no QRC [escore total e escore de cada fator (atividade intelectual, física e social); Três análises de regressão múltipla hierárquica para conhecer os fatores preditores das queixas de memória, geral e específicas (prospectivas versus retrospectivas) avaliadas pela QMPR. Na equação de regressão serão utilizados como preditores os dados sociodemográficos, fatores biológicos (fatores de risco vascular) e psicológicos (sintomatologia ansiosa depressiva) e as medidas da RC; Em todos os testes estatísticos, o nível de significância admitido será de p < 0,05

Excerto 4: R4-P

3.1. Delineamento do Estudo

Foi realizada uma pesquisa documental fundamentada em uma abordagem qualitativo-descritiva. Os procedimentos adotados incluem o levantamento da literatura produzida na área da Psicologia Escolar e Educacional sobre a formação e atuação do psicólogo no campo educacional, em concordância com as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia. Foi realizado ainda o levantamento e análise de documentos oficiais dos cursos de Psicologia pesquisados.

3.2. Instrumentos:

Foram utilizados como material para análise apenas um dos Projetos Políticos Pedagógicos, já que no caso das outras IES este material não foi disponibilizado. Além do uso das ementas e referencial teórico das disciplinas referentes à formação no âmbito da Psicologia Escolar, disponibilizados tanto pelas instituições como também encontrados nos sites oficiais de cada IES.

No Excerto 3, a apresentação do método de abordagem tem caráter muito mais descritivo do que argumentativo. Trata-se, como vemos, da replicação de modelos (instrumentos e procedimentos) que já estão estabelecidos e padronizados para o estudo de dados semelhantes e, por isso, não carecem de justificativas. É interessante notarmos ainda o quanto são detalhadamente descritos elementos como variáveis e características da amostragem. No Excerto 4, o autor apresenta tanto aspectos da metodologia da pesquisa, justificando escolhas e fazendo ressalvas, quanto das etapas de desenvolvimento do projeto, fazendo menção ao levantamento bibliográfico, dois expedientes bastante comuns também nos relatórios de Sociologia.

Essas diferenças no plano da escrita relacionam-se com peculiaridades tanto ontológicas quanto epistemológicas das áreas e das pesquisas, evidenciando o caráter complexo e situado das práticas letradas acadêmicas. Nos relatórios de Psicologia, em sua maioria, percebemos que o pesquisador visa ao controle e à apreensão direta da realidade, alcançável via controle rígido de variáveis e mensuração matemática; já nos relatórios de Sociologia, prevalece uma visão de complexidade da realidade, a ser interpretada sob ângulos plurais. Essas diferentes perspectivas, tal como se apresentam nas ações, nas normas e nos textos que as materializam conforme as tradições das respectivas comunidades, constroem paulatinamente a visão do estudante sobre o conhecimento e as formas de produzi-lo.

O fazer científico pode ser considerado também como um empreendimento conjunto numa comunidade, objetivando à construção do conhecimento e, dadas as características da iniciação científica, também à formação do aluno como pesquisador iniciante. Esse processo pode ser visualizado nas interações com outros sujeitos, grupos e instituições, a partir dos quais podemos inferir a participação e o pertencimento em atividades da comunidade.

Vejamos como essas interações são representadas em seções de metodologia de relatórios de Sociologia:

Excerto 5: R3-S

... A medida que as tabelas de análise eram organizadas, foram realizadas reuniões coletivas, com a presença dos pesquisadores e da orientadora. Nessas reuniões discutimos questões acercas dos dados levantados, como a interpretação dos sentidos das temáticas identificadas nas letras das canções. Identificamos que na década de 1980 algumas temáticas, como a malandragem, o carnaval, o futebol e o morro, passaram a se fazer menos presente nas canções de Jorge Ben Jor e outras passaram a aparecer, essas falam de questões em que estão envolvidas o homem moderno de forma geral.

Excerto 6: R2-S

Muitas vezes, pelo do fato de eu ser e aparentar bastante jovem, mulher e aluna (aprendiz), muitas vezes meus interlocutores - os profissionais que atuam na genética - não me consideravam “aptas” para o desenvolver da pesquisa perguntando, em alguns casos, se teria algum professor envolvido no projeto. Felizmente, decorrente da relação de confiança inicialmente feita entre a orientadora e os interlocutores, pude refletir acerca da autoridade científica. No sentido de que neste sentido quais atores possui o reconhecimento de produzir conhecimento científico? Seja ele na área das ciências médicas ou humanas.

..........................................................................................................................

... em diálogo com orientadora, percebemos que seria interessante participar dos eventos os quais profissionais atuantes na genética médica apresentam para a comunidade médica resultados, dilemas, inovações em pesquisa e na prática médica. Nesse sentido, participei do XXVIII Congresso Brasileiro de Genética Médica que aconteceu entre os dias 15 e 18 de julho de 2016 em Belém/PA junto com a orientadora do projeto, onde tive a oportunidade de participar como congressista e apresentação de pôster ...

No Excerto 5, o autor faz menção a reuniões entre os membros da pesquisa, destacando a figura do orientador como mediador e agente formativo nas práticas letradas que guiam o processo de análise dos dados (elaboração de tabelas e discussão das temáticas das canções estudadas) e de construção do conhecimento científico pelos alunos, no sentido de acompanhar as atividades e as aprendizagens deles. No Excerto 6, observamos o relato de atividades e interações com a orientadora e os sujeitos pesquisados, evidenciando relações de poder, tensões, papéis sociais e identidades que permeiam o fazer científico. A pesquisadora iniciante, num primeiro momento, reflete, de forma até bastante pessoal, sobre sua posição social no contexto das interações e do fazer científico em que se insere, avaliando que não é vista como uma figura legitimada pelos colaboradores da pesquisa, carecendo, assim, da autoridade da orientadora. Em outro momento, a autora relata a decisão conjunta com a orientadora de participar de evento científico, com a apresentação de trabalho na forma de pôster para socializar os resultados da pesquisa, num contexto de participação na comunidade científica que se mostra mais legitimado, porque referendado por pares quando da aprovação do trabalho.

As seções de metodologia dos relatórios de Psicologia também relatam interações nessa mesma perspectiva. Vejamos:

Excerto 7: R5-P

Por se tratar de uma pesquisa envolvendo seres humanos, o presente projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos do Centro de Ciências da Saúde/CCS-UFPB, de acordo com o que normatiza a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde com número de processo CAAE: XXXXXXXX.X.XXXX.XXXX.

A participação nessa pesquisa foi de caráter voluntário. Os sujeitos foram informados de que a desistência em participar não acarretará nenhum tipo de prejuízo, tendo também a liberdade de retirarem seu consentimento a qualquer momento no transcorrer da pesquisa, sem o risco de sofrer qualquer dano ou constrangimento. Serão assegurados a não identificação dos participantes e o sigilo das informações.

Excerto 8: R6-P

Participaram do estudo 57 voluntários de ambos os sexos, sendo 28 pacientes diagnosticados com esquizofrenia de acordo com a Classificação Internacional de Doenças - CID10 (Grupo de Estudo - GE) e 29 voluntários saudáveis (Grupo Controle - GC), os dados sociodemográficos são apresentados na Tab. 1. Para avaliar o provável efeito da medicação, foram criados três subgrupos de acordo com a intervenção medicamentosa realizada no último ano de tratamento: esquizofrênicos usuários de antipsicóticos típicos (GEt), antipsicóticos atípicos (GEa) e antipsicóticos mistos (GEm). Todos os pacientes esquizofrênicos realizam tratamento no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPs) Caminhar, localizado na cidade de João Pessoa, Bancários.

No Excerto 7, o autor faz referência, primeiramente, a um comitê de ética em pesquisa ao qual o projeto foi submetido e aprovado. Trata-se de um procedimento regulamentado por lei e exigido pela comunidade científica e instituições de pesquisa, demandando, da parte dos pesquisadores, uma série de ações, dentre elas a produção de artefatos textuais, além do próprio projeto, que medeiam essa interação, como termos de consentimento/assentimento, carta de anuência etc. Esses elementos balizam as interações que são estabelecidas com os colaboradores no processo de constituição da amostragem e de obtenção dos dados. No Excerto 8, o autor descreve o perfil dos colaboradores da pesquisa, assim como procedimentos de definição de variáveis. Nesse caso, destaca-se o contato com a instituição à qual pertencem os participantes do estudo, mostrando-nos que, para além de pessoas e grupos intrínsecos à própria instituição que fomenta e gerencia a pesquisa, os pesquisadores iniciantes podem estabelecer relações com organizações externas ao ambiente acadêmico, a fim de construir e aplicar conhecimento científico na realidade social, tendo em vista a relação entre teoria e prática.

Nesse ponto, os relatórios de ambas as áreas têm mais semelhanças entre si. A primeira é o destaque para o compromisso da ciência de produzir conhecimento sobre fenômenos do mundo social ou natural, do que resulta a necessidade de estabelecer contato com pessoas, grupos e instituições que lhes forneçam dados para tal. As diferenças, nesse caso, estão na maior percepção, por parte dos pesquisadores de Sociologia, das relações que envolvem as interações com esses sujeitos/grupos e, principalmente, no fato de considerá-las como aspecto importante no fazer científico. A segunda semelhança aponta para uma propriedade essencial da ciência, a discutibilidade em sua dimensão política (Demo, 2002_____. (2002). Cuidado metodológico: signo crucial da qualidade. Sociedade e Estado, 17(2), 349-373. https://doi.org/10.1590/S0102-69922002000200007
https://doi.org/10.1590/S0102-6992200200...
), mediante a relação crítica e autocrítica com a (sua) comunidade científica. Nesse caso, a participação dos iniciantes em ações e rotinas estabelecidas nas comunidades de prática no desenvolvimento do projeto, conforme descritas na seção de metodologia, permite aos pesquisadores iniciantes refletirem e atuarem sobre uma perspectiva social da ciência, como um fazer e uma construção coletiva.

A análise da seção de metodologia dos relatórios nos possibilita visualizar ainda a apropriação de um repertório compartilhado, relacionado principalmente a conceitos e recursos linguístico-discursivos afins a cada uma das áreas. Observemos, primeiramente, exemplos desse repertório na área de Sociologia:

Excerto 9: R2-S

Como o trabalho de “campo antropológico consiste em estabelecer relações com pessoas” (URIARTE, 2014, p.5), a segunda etapa é destinada a realização de entrevistas semiestruturadas com profissionais, professores, pesquisadores e gestores de saúde ...

Neste estudo, a entrevista semiestruturada possibilitou uma maior abrangência acerca dos temas a serem explorados no roteiro, pois, de acordo com Brandão (2007), “A pessoa que fala, fala para uma outra pessoa. Uma relação entre pessoas que tem uma dimensão social, e uma dimensão afetiva se estabelece. ” (p.1). Isto é, para compreender como adoecimento genético promove práticas de pesquisa e cuidado em saúde - considerando dilemas e desafios - é necessário que se estabeleça uma relação de confiança entre os sujeitos envolvidos além do consentimento participativo por parte dos entrevistados.

Além disso, a fala dos entrevistados - em conjunto com a bibliografia - foram os principais mecanismos de coleta de dados para o entendimento das práticas profissionais e novas modalidades de adoecimento no Estado. Diante disso todas as entrevistas foram feitas com profissionais que atuam na genética médica, sob autorização do entrevistado e após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, incluindo seu registro em áudio via gravador pessoal - sendo esse transcrito posteriormente de forma integral.

Excerto 10: R3-S

Em um terceiro momento, como reflexo das temáticas destacadas nas canções analisadas, foram pensadas categorias de análise. Algumas categorias elaboradas na etapa dois desta pesquisa foram utilizadas na etapa atual de forma integral ou reelaboradas. Uma outra parte foi elaborada usando como parâmetro os temas mais correntes nas composições de Jorge Ben Jor na década de 1980, temos como exemplo o misticismo, religiosidade, africanidade e experiência negra. Posteriormente foram organizadas tabelas (ver anexo II) onde foram distribuídas todas as categorias, com espaço para o agrupamento das canções frente às suas respectivas categorias e para a realização de observações acerca do processo de análise. Posteriormente foi feita a convergência entre cações e correspondentes categorias. As canções foram enumeradas com a identificação do disco em que aparecem pela primeira vez. Por fim foi composto um quadro com a síntese de informações da produção musical analisada (ver anexo III). E um quatro com a síntese da análise e categorização das canções, essa nos ajuda a ter um apanhado geral do trabalho de inferência realizado ao longo da etapa três da pesquisa.

No Excerto 9, o autor apresenta os procedimentos metodológicos, fazendo uso de diferentes recursos que demonstram a elaboração de um repertório compartilhado: emprego de conceitos de metodologia científica para nomear as técnicas e instrumentos de pesquisa (pesquisa de campo, entrevista semiestruturada), que são justificados com base em outros textos, na forma de citações diretas que procuram seguir o padrão da Associação Brasileira de Normas Técnicas (2002Associação Brasileira de Normas Técnicas (2002). NBR 10520: informação e documentação - citações em documentos - elaboração. ABNT.); e menção à utilização de artefatos textuais, como termo de consentimento livre e esclarecido. No Excerto 10, o autor apresenta suas categorias de análise e ainda lança mão de conceitos de metodologia científica para descrever o procedimento de categorização dos dados. Nesse processo, levanta temáticas que guiarão a interpretação das canções, construindo conceitos a partir da relação entre a teoria e o material de análise.

Na área de Psicologia, verificamos um expediente parecido:

Excerto 11: R6-P

O CCT é um teste computadorizado com a finalidade de descrever e avaliar a capacidade de discriminação de cores nos três eixos: protan, deutan e tritan. Produzido pela Cambridge Research System, este é um teste que apresenta um estímulo de natureza pseudoisocromático (ausência de borda), similar ao Ishihara Test for Color Blindness, em forma de “C”, conforme observado na Fig. 1, compreendendo 1,25º de ângulo visual, com diâmetro dos discos presentes nos estímulos variando entre 5.7 a 22.8 arcmin, e luminância variando entre 7 e 15 cd/m², randomicamente. Os limites normais para cada eixo são: protan (100), deutan (100) e tritan (150); (Regan et. al., 1994).

Excerto 12: R4-P

No que se refere à ênfase na Psicologia Escolar, a análise deste documento foi organizado em três eixos de análise, quais sejam: ênfase de formação; disciplinas referentes à área escolar e suas respectivas ementas; referenciais teóricos. Esses eixos de análise foram estruturados com base no trabalho de Gomes (2014). Neste estudo, buscou-se conhecer os Projetos Políticos Pedagógicos dos cursos de Psicologia de sete Instituições de Ensino Superior Federais do Nordeste, a partir das novas formulações e recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia 2004. Estritamente, a partir da análise das disciplinas, ementas e referenciais bibliográficos específicos na ênfase em Psicologia Escolar Educacional.

No Excerto 11, o autor faz a descrição de um recurso tecnológico (um teste computadorizado), com menção a conceitos que designam padrões e configurações específicos dele, recorrendo-se, inclusive, a uma citação indireta de um artefato textual que funciona como um argumento de autoridade para fundamentação da afirmação. No Excerto 12, o autor faz menção a categorias de análise baseadas na literatura especializada no tema, a partir de estudo que é apenas evocado. Há ainda referência a outros artefatos textuais (documentos, diretrizes, projetos pedagógicos), que denotam conhecimento de textos que circulam no campo de pesquisa.

Em ambas as áreas, percebemos a busca pela utilização de um léxico especializado que remete a conceitos de metodologia científica específicos aos tipos de pesquisa e, principalmente, relativos ao campo da ciência e ao objeto de estudo. Trata-se, segundo Vilchez (2015Vílchez, F. P. (2015). Análise do léxico acadêmico universitário em contexto normativo desde uma perspectiva terminológica. Revista da Anpoll, 1(39), 102-114, 31 dez. 2015. ANPOLL. http://dx.doi.org/10.18309/anp.v1i39.910
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), de um conhecimento especializado representativo em uma determinada comunidade, cujos membros compartilham, nas palavras de Braz e Silva (2019Braz, M. I., & Silva, S. C. da. (2019). O conceito de comunidade discursiva e as convergências com a Terminologia. Tradterm, 34, 81-105. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v34i0p81-105
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, p. 89), “... pontos de vista e vocabulário técnico, além de conceitos e métodos de comunicação, que são instrumentos de poder entre os membros experientes e condição necessária ao aprendizado para os que pretendem fazer parte da comunidade ...”. Quanto às formas de menção à voz da ciência nas seções de metodologia, observamos, em Sociologia, emprego majoritário de citações indiretas, mas também presença de citações diretas, recurso empregado, segundo Hyland (1999Hyland, K. (1999). Academic attribution: citation and the construction of disciplinary knowledge. Applied Linguistics, 20(3), 341-367. https://doi.org/10.1093/applin/20.3.341
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), nas ciências humanas, notadamente na própria Sociologia; já em Psicologia, o uso exclusivo das citações indiretas, fenômeno também identificado por Hyland (1999Hyland, K. (1999). Academic attribution: citation and the construction of disciplinary knowledge. Applied Linguistics, 20(3), 341-367. https://doi.org/10.1093/applin/20.3.341
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) na análise de textos acadêmicos (artigos científicos) das ciências naturais. Esse léxico especializado e as citações evidenciam apropriação de conteúdos e familiaridade com formas de produzir e reportar conhecimento a partir da tradição e de convenções das práticas letradas acadêmicas da área, projetando uma imagem de autoridade do escritor, a fim de marcar pertencimento à comunidade e ao seu fazer.

Como podemos perceber, a inserção de pesquisadores iniciantes em comunidades de prática se dá nas e pelas práticas letradas, através da interação com pessoas, grupos, instituições, textos e outros artefatos, normas, concepções e conceitos que atuam no fazer científico e no processo formativo na iniciação científica de alunos em distintas áreas do conhecimento. É nesse processo complexo que se constrói o pertencimento dos alunos à comunidade: legitimado, porém periférico (Lave & Wenger, 2008Lave, J., & Wenger, E. (2008). Situated learning: legitimate peripheral participation (18th ed). Cambridge: Cambridge University Press.). Por um lado, é legitimado, pelo lugar social que ocupam como estudantes de graduação institucionalmente filiados a um projeto de pesquisa, pela interação com grupos e pessoas com os quais negociam significados sobre suas práticas, pela reflexão sobre assuntos e manejo de um repertório legitimado na área do conhecimento. Por outro, é ainda bastante periférico, haja vista o papel de alunos, como graduandos e pesquisadores iniciantes, processo no qual são orientados e supervisionados por um parceiro mais experiente.

5. Conclusão

Neste artigo, objetivamos analisar, mediante práticas letradas acadêmicas, a construção do pertencimento de alunos de graduação participantes de projetos de iniciação científica a comunidades de prática. Para tanto, recorremos a seções de metodologia de relatórios de pesquisa de duas disciplinas: Sociologia e Psicologia. A análise das seções de metodologia evidencia-nos, de início, o caráter situado das práticas letradas e do fazer científico em diferentes comunidades, corroborando a ideia de uma construção cultural e histórica das formas de letramento. De acordo com Ivanič (1998Ivanič, R. (1998). Writing and identity: the discoursal construction of identity in academic writing. Amsterdam: John Benjamins B. V.), há variações entre as disciplinas, quanto a maneiras de produzir conhecimento, objetos de estudo, valores, crenças, práticas, gêneros de texto, dados, relação entre teoria e prática. Além disso, cada atividade ou subárea também pode ter suas especificidades, a depender do objeto de estudo e da filiação dos pesquisadores.

Esse pressuposto, como pudemos exemplificar nas análises, tem implicações diretas e decisivas sobre a identidade dos pesquisadores em formação. Na iniciação científica, eles têm a possibilidade de interagir com tópicos/assuntos, sujeitos/grupos e recursos/artefatos, a partir dos quais constroem seus conhecimentos, num percurso de aprendizagem que se mostra não linear, uma vez que está permeado de dificuldades e conflitos - ora aproximação, ora distanciamento de algumas convenções acadêmicas de metodologia científica, sejam elas mais específicas da área ou mais gerais. Disso resulta um processo de inserção dos alunos no fazer das comunidades como um pertencimento que se apresenta, ao mesmo tempo, como legitimado e periférico.

Portanto, os conhecimentos de metodologia científica, tanto no contexto da iniciação científica, aqui estudado, quanto, por extensão, na perspectiva do currículo obrigatório dos cursos de graduação, devem ser tematizados no âmbito da própria área do conhecimento e para além de uma disciplina específica (de metodologia científica, por exemplo), haja vista sua condição de elemento central no fazer científico e na formação do pesquisador iniciante. Isso revela a necessidade de se desenvolverem programas, práticas ou projetos de letramento acadêmico que levem em conta conhecimentos mais específicos (como características do campo de estudo e suas formas de fazer ciência) conjuntamente a outros mais gerais, que garantam uma compreensão holística do que é a ciência, seu fazer e suas implicações sociais.

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  • Wenger, E., Mcdermott, R., & Snyder, W. M. (2002). Cultivation communities of practice: a guide to managing knowledge. Harvard: Harvard Business School Press.
  • 3
    No original: “Learning in higher education involves adapting to new ways of knowing: new ways of understanding, interpreting and organizing knowledge. Academic literacy practices - reading and writing within disciplines - constitute central processes through which students learn new subjects and develop their knowledge about new areas of study. A practices approach to literacy takes account of the cultural and contextual component of writing and reading practices, and this in turn has important implications for an understanding of student learning” (Lea & Street, 1998Lea, M. R., & Street, B. V. (1998). Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in higher education, 23(2), 157-152. https://doi.org/10.1080/03075079812331380364
    https://doi.org/10.1080/0307507981233138...
    , parágrafo 2).
  • 4
    No original: “communities of practice are groups of people who share a concern, a set of problems, or a passion about a topic, and who deep their knowledge and expertise in this area by interacting on an ongoing basis ...” (Wenger et al., 2002Wenger, E., Mcdermott, R., & Snyder, W. M. (2002). Cultivation communities of practice: a guide to managing knowledge. Harvard: Harvard Business School Press., p. 4).
  • 5
    Movimento retórico (move) é “... uma unidade discursiva ou retórica que desempenha uma função comunicativa coerente em um discurso escrito ou falado ...” (Swales, 2004_____. (2004). Research genres: explorations and applications. Cambridge: Cambridge University Press., p. 228, tradução nossa). [No original: “a discoursal or rhetorical unit that performs a coherent communicative function in a written or spoken discourse.”]. Trata-se de um conceito criado e aplicado por Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.) em seu modelo de análise de gêneros (Create a Research Space) para descrever o padrão retórico de gêneros, com base na distribuição de informações recorrentes no texto.
  • 6
    As transcrições feitas dos relatórios são completamente fiéis aos originais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2021
  • Aceito
    30 Ago 2021
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