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Bibliotecários, censura e os novos mediadores

Librarians, censorship and the new mediators

Resumos

Resumo: Tendo em vista a discussão histórica sobre bibliotecas e censura, este texto apresenta e explora, a partir da exposição e discussão de casos recentes, alguns aspectos que envolvem contemporaneamente a interdição de livros e informações e suas implicações para o exercício profissional do(a) bibliotecário(a). Dentre eles destacam-se: (1) as formas renovadas de censura na contemporaneidade; (2) a instrumentalização de obras literárias e informações na mobilização/polarização política organizada em torno das guerras culturais; (3) o papel dos novos mediadores dos fluxos informacionais na internet e o combate à desinformação; (4) os desafios éticos que os bibliotecários enfrentam em um cenário informacional complexo. A partir destes aspectos, intenta suscitar e discutir questões pertinentes à censura no tempo presente e suas implicações para a ação bibliotecária.

Palavras-chave:
bibliotecários; censura; mediadores


Abstract: Bearing in mind the historical discussion about the library and censorship, this text presents and explores, based on the exposition and discussion of recent cases, some aspects that contemporaneously involve the interdiction of books and information and their implications for the librarian professional exercise. Among them, the following stand out: (1) the renewed forms of censorship in contemporary times; (2) the instrumentalization of literary works and information in the political mobilization/polarization organized around the culture wars; (3) the role of the “new mediators” of information flows on the Internet; (4) the ethical challenges that librarians face in a complex informational scenario. From these aspects, it intends to raise and discuss issues relevant to censorship in the present time and its implications for librarian action.

Keywords:
librarians; censorship; mediators


1 Introdução

Se em 1987 o professor Waldomiro Vergueiro alertava, acertadamente, para a incipiente discussão existente no Brasil sobre bibliotecas e censura, o tempo tratou de demonstrar que este não foi um assunto negligenciado pelas bibliotecárias e bibliotecários do país. Seja como objeto de pesquisa ou questão de preocupação permanente de associações profissionais e do sistema Conselhos de Biblioteconomia, a censura, sua natureza e implicações são, há alguns anos, tema que mobiliza o interesse da Biblioteconomia.

Sabe-se que contextos marcadamente autoritários tornam ainda mais premente a discussão sobre a censura nas bibliotecas, assim como exigem ações concretas para seu enfrentamento por bibliotecários comprometidos com a missão do seu ofício. Isto é evidenciado não apenas em trabalhos sobre censura de livros em regimes ditatoriais (LIMA, 2016LIMA, Kelly Pereira. Onde estão os livros censurados: ainda os efeitos de 64 nas coleções de biblioteca. 2016. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.), mas nas recentes ocorrências relacionadas à interdição (e mesmo à destruição de obras), como visto no Brasil na tentativa de expurgo de parte do acervo da Fundação Palmares e na contundente reação dos órgãos de classe, profissionais e intelectuais do campo (PARECER, 2021PARECER técnico sobre o expurgo de livros da Fundação Cultural Palmares. [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (14 min). Publicado pelo canal GEIRD Bahia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M--de6pkYPA . Acesso em: 20 fev. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=M--de6pk...
).

A censura, em suas diversas formas de expressão, sempre foi uma questão histórica e epistemológica fundamental para os bibliotecários porque está contraposta a um princípio filosófico e ético-político basilar da sua profissão: o da liberdade intelectual e de acesso à informação produzida pela humanidade. Esse princípio se traduziu em direitos fundamentais reivindicados ao longo do tempo porque compreendidos como inerentes à possibilidade de uma ação ética, de uma vida digna, de realização das democracias, dos indivíduos e desenvolvimento das sociedades, o que tornou a função bibliotecária não apenas reconhecida, mas necessária.

Desde as críticas que destacaram a impossibilidade de neutralidade nas diferentes práticas, técnicas, teorias e instrumentos da Biblioteconomia, pode-se dizer que é, de certo modo, consensual entre os bibliotecários que nenhuma de suas ações está despida de uma dimensão política, assim como o entendimento de que nenhuma informação é imune às ideologias. Além disso, é amplamente reconhecido, especialmente no Brasil, que a atuação do profissional deve, conforme preconiza o Código de Ética, se pautar pela dignidade da pessoa humana e por uma sociedade e relações mais justas para todos.

O enfrentamento à censura pela ação bibliotecária tem ganhado novos contornos. A intensa mobilização de temas morais na esfera pública e sua reverberação no campo das artes, com consequente vigilância e controle de acervos, coloca os profissionais diante de renovados desafios práticos e éticos.

A informatização geral da sociedade também levou a questão da censura para um outro lugar. Se antes o poder de censurar obras e informações estava concentrado nas mãos de governantes e de técnicos, que determinavam qual livro poderia ou não ser publicado ou integrar o acervo de uma biblioteca, quem poderia ou não acessá-lo, agora ele é exercido globalmente, de forma eficiente e ubíqua, por corporações que monopolizam os fluxos da informação digital.

O fato de estas corporações serem, majoritariamente, as mesmas que monopolizam os fluxos do capital global e definirem hoje todos os termos dos regimes de informação hegemonicamente vigentes na internet (autoridades cognitivas, recursos, padrões técnicos, dentre outros), enquanto se apresentam como intermediárias neutras das trocas informacionais, complexifica ainda mais esse cenário. Sobretudo em um momento inédito do capitalismo em que a extração sistemática de um enorme volume de dados vindos dos usos da informação serve, ao cabo, para prever e modificar o comportamento dos indivíduos (ZUBOFF, 2021ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. São Paulo: Intrínseca, 2021.) e quando as democracias em diferentes regiões do mundo declinam juntamente com outros pilares que sustentaram o ideal Moderno, como a própria ideia de verdade.

Tudo isto trouxe mudanças no fazer bibliotecário e coloca hoje questões fundamentais para todos os profissionais da informação, que se veem diante de reconfiguradas formas de censura aos livros e à informação e de novos mediadores e mediações do conhecimento e dos registros informacionais.

Tendo em vista este contexto, este texto apresenta e explora, a partir da exposição e discussão de casos recentes que envolvem a censura, alguns aspectos que têm marcado e deslocado esta problemática no exercício profissional do(a) bibliotecário(a). Dentre eles destacam-se: (1) as formas renovadas de interdição aos livros e à informação na contemporaneidade; (2) a instrumentalização de obras de arte na mobilização política organizada em torno das guerras culturais; (3) o papel dos novos mediadores dos fluxos informacionais e a agenda de combate à desinformação; (4) os desafios éticos que os bibliotecários enfrentam em um cenário informacional complexo.

A partir destes aspectos, buscamos, mais que trazer respostas, suscitar questões e inquietações pertinentes ao debate do assunto pelo campo da Biblioteconomia e Ciência da Informação.

2 Os livros e a censura: expressões contemporâneas

A censura à produção intelectual humana registrada é tão antiga quanto a história do livro, das bibliotecas e da própria expressão do pensamento, como retrata Báez (2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. São Paulo: Ediouro, 2006. ). Dos eventos de destruição de obras desde as tábuas de argila na Suméria, passando por atos censórios emblemáticos como o Index Librorum Prohibitorum, a queima de livros durante a dinastia Qin chinesa, a incineração de manuscritos maias e astecas pela colonização europeia, até a queima de livros na Alemanha nazista, a censura editorial de Estado no regime civil-militar brasileiro, são diversas e conhecidas as formas pelas quais o controle e o cerceamento à informação, ao conhecimento e à livre expressão se manifestaram ao longo da História.

De acordo com a American Library Association (ALA), entre junho e setembro de 2021, seu Escritório de Liberdade Intelectual (Office of Intellectual Freedom, OIF) rastreou 155 incidentes relacionados à proibição, interdição e remoção de livros em bibliotecas em diferentes partes do mundo (ALA, 2021AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (ALA). ALA Statement on Book Censorship. ALA, Chicago, 29 nov. 2021. Available in: https://www.ala.org/advocacy/statement-regarding-censorship . Accessed on: 10 may 2022.
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).

Isto fez com que os Conselhos Executivo e de Administração de todas as oito divisões da Associação divulgassem uma declaração conjunta, em novembro de 2021, condenando veementemente os atos de censura e intimidação:

Estamos empenhados em defender os direitos constitucionais de todos os indivíduos, de todas as idades, de utilizar os recursos e serviços das bibliotecas. Defendemos a liberdade de expressão, a liberdade de publicar e a liberdade de ler, conforme prometido pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Opomo-nos à censura e a qualquer esforço para coagir crenças, suprimir opiniões ou punir aqueles cuja expressão não esteja de acordo com o que é considerado ortodoxo na história, política ou crença. A troca irrestrita de ideias é essencial para a preservação de uma sociedade livre e democrática (ALA, 2021AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (ALA). ALA Statement on Book Censorship. ALA, Chicago, 29 nov. 2021. Available in: https://www.ala.org/advocacy/statement-regarding-censorship . Accessed on: 10 may 2022.
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, online, tradução nossa).

A declaração enfatiza a função universal das bibliotecas como lugares de disponibilização da “mais ampla gama possível de pontos de vista, opiniões e ideias”, como modo de assegurar que cada leitor possa ler e considerar, livremente, “informações e ideias, independentemente do seu conteúdo ou do ponto de vista do autor” (ALA, 2021AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (ALA). ALA Statement on Book Censorship. ALA, Chicago, 29 nov. 2021. Available in: https://www.ala.org/advocacy/statement-regarding-censorship . Accessed on: 10 may 2022.
https://www.ala.org/advocacy/statement-r...
, online, tradução nossa). Ainda destaca a necessária experiência profissional dos bibliotecários para o trabalho em parceria com suas comunidades na curadoria de coleções que atendam às necessidades de informação de todas elas.

No início de 2022, a tentativa de censura do clássico quadrinho Maus, de Art Spiegelman, por parte do conselho escolar do Condado de McMinn, Estados Unidos, provocou espanto e indignação na comunidade bibliotecária. Acusado de conter conteúdo impróprio para crianças e adolescentes, como palavrões, representação de mortes e nudez (animal), o livro conta a história do pai do autor, Vladek Spiegelman, judeu polonês sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. A decisão do Conselho foi sustentada também na compreensão de que o livro representava de forma “bruta” o Holocausto, sobre o qual era necessário ensinar com “materiais apropriados”, o que não seria o caso da graphic novel, incluída no currículo de Artes em língua inglesa da oitava série (GUZMAN, 2022GUZMAN, Francisco. What we know about the removal of Holocaust book 'Maus' by a Tennessee school board. The Tennessean, Nashville, 27 jan. 2022. Available in: https://www.tennessean.com/story/news/2022/01/27/why-did-tennessee-school-board-remove-maus-art-spiegelman/9244295002/ . Accessed on: 2 apr. 2022.
https://www.tennessean.com/story/news/20...
, online).

Nas reações contrárias que se seguiram ao episódio, bibliotecários, pais, educadores, artistas etc. destacaram, dentre outras questões, como havia na censura o desejo implícito de que aos alunos fosse apresentada uma versão mais “branda” da Shoah e como até mesmo o fato de o autor do livro ser um ex-cartunista da revista Playboy ter sido usado para justificar a “impropriedade” do livro.

No Brasil, pudemos vivenciar nos últimos anos episódios semelhantes. Um deles foi a tentativa de censura, por parte do então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, a outro romance gráfico (Vingadores, de Allan Heinberg e Jim Cheng) na Bienal do Livro de 2019, por este trazer em sua capa a imagem de um beijo entre dois homens.

Antes disso, chamou a atenção, como lembrou o bibliotecário Chico de Paula (2019PAULA, Chico de. Censura: o fantasma que volta a assustar bibliotecas brasileiras. Biblioo, Rio de Janeiro, 5 abr. 2019. Disponível em: https://biblioo.info/censura-o-fantasma-que-volta-a-assustar-as-bibliotecas-brasileiras/ . Acesso em: 20 fev. 2022.
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), a censura promovida por cinco câmaras de vereadores de municípios do Rio Grande do Sul que determinaram, em 2017, a retirada do livro-catálogo Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira do acervo de algumas bibliotecas públicas, o que foi decorrente do intenso pânico moral promovido no Brasil em torno da exposição homônima, no mesmo ano.

Considerado instrumento de “doutrinação comunista” (BRAYNER, 2018BRAYNER, Cristian. A censura de livros no Brasil de 2018. Biblioo, Rio de Janeiro, 5 out. 2018. Disponível em: http://biblioo.info/censura-de-livros-no-brasil-2018/ . Acesso em: 2 mar. 2022.
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, online) por pais de alguns alunos do Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, Meninos Sem Pátria, de Luiz Puntel, também foi suspenso pela escola, em 2018. Sob o mesmo argumento houve, em 2021, tentativas de remoção de parte de um valioso acervo bibliográfico da Fundação Palmares, acusado pelo presidente do órgão de promover “ideologias de esquerda”, além de “sexualização de crianças” (FOLHA DE S. PAULO, 2021FOLHA DE S. PAULO. Fundação Palmares faz cruzada ideológica e deve excluir metade do seu acervo. Folha de S. Paulo, Belo Horizonte, 11 jun. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/fundacao-palmares-faz-cruzada-)ideologica-e-deve-excluir-metade-do-seu-acervo.shtml . Acesso em: 15 fev. 2023.
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, online).

No Canadá, outro conselho escolar protagonizou uma das ações mais extremas envolvendo a interdição de obras: a queima de livros, parte de um “ritual de purificação” do acervo das bibliotecas de uma rede de escolas de tradição franco-católica. O fato ocorreu na província de Ontário, em 2019, mas somente veio à tona em 2021, quando começou a circular um vídeo com imagens de parte de um evento em que quase cinco mil livros acabaram destruídos e os fatos foram noticiados pela Rádio Canadá.

Dentre os títulos interditados estavam obras de ficção, como Tintim na América, de Hergé, e Astérix e os Índios, de Albert Uderzo e René Goscinny, acusadas de promover estereótipos racistas dos povos indígenas, além de biografias e livros informativos que traziam “linguagem inaceitável”, “retrato negativo dos povos indígenas” e “representação aborígene ofensiva nos desenhos”.

Nem todos os livros foram queimados e tiveram “suas cinzas usadas como fertilizante para plantar uma árvore e, assim, passar de negativa para positiva” (GERBET, 2021GERBET, Thomas. Des écoles détruisent 5000 livres jugés néfastes aux Autochtones, dont Tintin et Astérix. Radio-Canada, Ottawa, 7 sept. 2021. Disponible en: Disponible en: https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1817537/livres-autochtones-bibliotheques-ecoles-tintin-asterix-ontario-canada . Accès à: 3 jan. 2022.
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, online, tradução nossa), como fora proposto. Diversas obras que continham representações “inapropriadas” das comunidades originárias, como Pocahontas e a outrora premiada biografia do explorador Étienne Brûlé, O Filho dos Hurons, de Jean-Claude Larocque e Denis Sauvé, ao passarem pelo crivo da Comissão foram sumariamente enviadas ao lixo reciclável.

Contando com a ajuda de autodenominados “guardiões do conhecimento aborígene” e tendo como objetivo promover uma “reconciliação com as Primeiras Nações e um gesto de abertura para com as outras comunidades presentes na escola e na sociedade” (GERBET, 2021GERBET, Thomas. Des écoles détruisent 5000 livres jugés néfastes aux Autochtones, dont Tintin et Astérix. Radio-Canada, Ottawa, 7 sept. 2021. Disponible en: Disponible en: https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1817537/livres-autochtones-bibliotheques-ecoles-tintin-asterix-ontario-canada . Accès à: 3 jan. 2022.
https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/181...
, online, tradução nossa), o evento foi justificado a partir da compreensão, justa, de que é preciso desconstruir a representação negativa forjada pelos colonizadores europeus sobre os povos autóctones e que incide sobre diversas formas de violências perpetradas contra estes. O método, no entanto, gerou uma reação negativa por parte de bibliotecários, antropólogos, escritores, ilustradores, dentre outros, que compreenderam o episódio como um caso explícito e preocupante de censura implicada com o apagamento da memória da produção intelectual humana e com a arbitragem ilegítima do que dela poderia ser acessado ou não.

De acordo com a responsável por organizar o ritual, Suzan Kies, consultora do referido Conselho Escolar e autodenominada “guardiã do conhecimento aborígene”, o expurgo, embora pareça chocante, se fez necessário porque os livros perpetuavam estereótipos prejudiciais e perigosos. Ela ressaltou, em entrevista à Rádio Canadá, que “em um mundo ideal, poderíamos tirar um tempo para explicar a situação a todas as crianças, com todos os livros, mas não vivemos nesse mundo" (GERBET, 2021GERBET, Thomas. Des écoles détruisent 5000 livres jugés néfastes aux Autochtones, dont Tintin et Astérix. Radio-Canada, Ottawa, 7 sept. 2021. Disponible en: Disponible en: https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1817537/livres-autochtones-bibliotheques-ecoles-tintin-asterix-ontario-canada . Accès à: 3 jan. 2022.
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, online, tradução nossa).

Censura de natureza semelhante aconteceu no mesmo ano na Espanha, como relata Garralón (2019GARRALÓN, Ana. Contra o politicamente correto. Revista Emília, São Paulo, 25 jun. 2019. Disponível em: https://emilia.org.br/contra-o-politicamente-correto-na-literatura-infantil/ . Acesso em: 10 jan. 2022.
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). Em Barcelona, a escola Tàber, ao convidar mães para uma revisão do catálogo de obras de sua biblioteca infantil, decidiu retirar 200 títulos considerados “tóxicos” por reproduzirem padrões sexistas, o que representou cerca de 30% do acervo. Uma das mães responsáveis pelo trabalho, em entrevista ao Jornal El País, afirmou que a situação mais comum encontrada nos livros expurgados foi a retratação da masculinidade associada a valores como coragem e competitividade e as situações de violência muitas vezes praticadas contra garotas. Segundo ela, “isso transmite uma mensagem de quem pode exercer violência e contra quem”, fato que se agrava na primeira infância, quando, na sua compreensão, “as crianças são esponjas e absorvem tudo ao seu redor”, naturalizando, assim, os padrões sexistas (VALLESPIN, 2019VALLESPIN, Ivanna. Vetada ‘La Caperucita Roja’ por sexista. El Pais, Barcelona, 11 abr. 2019. Disponible en: Disponible en: https://elpais.com/ccaa/2019/04/10/catalunya/1554930415_262671.html?fbclid=IwAR3bHn-n-jS9oPI3dHhLcsKN43p2WmE-e8JgzEl5X53_rTRLHlitwE4oBVo . Acceso en: 2 mar. 2022.
https://elpais.com/ccaa/2019/04/10/catal...
, online, tradução nossa).

3 Os livros e as guerras culturais no século XXI

Parte da disputa ideológica mais ampla que ganha novas nuances desde o final do século XX, as tentativas de censura aos livros em todo o mundo têm se concentrado, com diferentes expressões, nas temáticas sexual, de gênero e racial, como demonstram os relatórios e o ranking anual da ALA Top 10 Most Challenged Books (ALA, 2022AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (ALA). Top 10 most challenged books lists. ALA, Chicago, 2022. Available in: https://www.ala.org/advocacy/bbooks/frequentlychallengedbooks/top10 . Accessed on: 20 feb. 2022.
https://www.ala.org/advocacy/bbooks/freq...
).

Segundo a Associação, em 2020 e 2021, a maioria dos livros alvo de interdições em bibliotecas públicas, escolares e universitárias teve como ponto convergente temas relacionados à diversidade sexual e de gênero, como os livros Gender Queer: a memoir, de Maia Kobabe, George, de Alex Gino, e ao racismo, como Stamped (for kids): racism, antiracism, and you, de Ibram Kendi e Jason Reynolds e All American Boys, de Jason Reynolds e Brendan Kiely.

Temas também tidos como tabus para crianças e adolescentes ainda seguem figurando como centrais, a exemplo das tentativas de interdição de obras que contenham suicídio, drogas e violência, tais como o best-seller Thirteen Reasons Why, de Jay Asher, e O Olho Mais Azul, de Toni Morrison. Ocultismo e outros temas do universo ficcional que envolvem bruxaria, magia e misticismo se mantêm na mira da censura de instituições religiosas, como acontece, desde que foi lançado, com Harry Potter, de J.K. Rowling. A obra de Rowling também tem sido alvo de boicotes desde que a autora compartilhou uma postagem no Twitter sobre gênero e sexo compreendida como transfóbica e desde que ela, sob o pseudônimo de Robert Galbraith, publicou Troubled Blood, livro sobre um assassino em série que se veste de mulher para matar mulheres.

Reverberações dos atos censórios há muito têm sido sentidas também no campo na produção de livros, como aponta Garralón (2019GARRALÓN, Ana. Contra o politicamente correto. Revista Emília, São Paulo, 25 jun. 2019. Disponível em: https://emilia.org.br/contra-o-politicamente-correto-na-literatura-infantil/ . Acesso em: 10 jan. 2022.
https://emilia.org.br/contra-o-politicam...
), que pondera como as formas recentes de controle e vigilância estão reorientando o fazer de escritores, ilustradores e editores. Ela lembra que:

[...] se nos anos 70 se buscava romper tabus e acabar com as censuras, hoje se trabalha para criar novas censuras [...]. Cada etapa da criação tem uma espécie de inquisidor que diz o que não se pode fazer. Juízes, geralmente com pouco talento e muita boa intenção [...] que só aceitam livros como O avental do pai e outros cujas ‘intenções’ são muito claras desde o primeiro olhar (GARRALÓN, 2019GARRALÓN, Ana. Contra o politicamente correto. Revista Emília, São Paulo, 25 jun. 2019. Disponível em: https://emilia.org.br/contra-o-politicamente-correto-na-literatura-infantil/ . Acesso em: 10 jan. 2022.
https://emilia.org.br/contra-o-politicam...
, online).

A censura projetada contemporaneamente sobre os livros e os acervos das bibliotecas está associada fortemente a uma agenda moral que passa a reconfigurar a política.

As chamadas “pautas morais” vêm recebendo atenção em todo o mundo e por diferentes campos, já que elas têm orientado recorrentemente o debate público, a construção de políticas e atravessado, de maneira determinante, as instituições e os processos democráticos nos últimos tempos. Seus usos táticos produzem um cenário de intensa polarização entre forças políticas conservadoras e progressistas que protagonizam “guerras culturais” nas quais se engajam inúmeros atores (partidos políticos, movimentos sociais, imprensa, fundações internacionais, organizações não governamentais, intelectuais, artistas, usuários e mediadores das redes sociais da internet etc.).

Ativadas inicialmente por forças conservadores e incidindo comumente sobre temas ligados a questões como sexualidade, aborto, gênero, identidades étnicas, controle de armas, legalização das drogas, dentre outros, as guerras culturais se expandiram dos EUA a partir de 1980. Acionando uma dinâmica de oposição entre perspectivas e valores morais, pode-se dizer, de maneira geral, que estas guerras são interpretadas como aquelas em que:

[...] os conservadores se definiriam por um compromisso com uma autoridade moral externa definida e transcendente, e os progressistas, por uma autoridade moral caracterizada pelo espírito da era moderna, um espírito de racionalismo e subjetivismo (GALLEGO; ORTELLADO; MORETTO, 2017GALLEGO, Esther Solano; ORTELLADO, Pablo; MORETTO, Márcio. Guerras culturais e populismo antipetista nas manifestações por apoio à Operação Lava Jato e contra a Reforma de Previdência. Em Debate, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 35-45, ago. 2017., p. 37).

Embora sua utilização seja frequentemente um método estratégico de forças conservadoras, que ganharam novos delineamentos no mundo nos últimos anos, as guerras culturais são um foco recorrente de atuação de diversos movimentos sociais progressistas que orientam sua ação para o campo das identidades e da cultura.

O Brasil tem sido um caso emblemático do uso estratégico das pautas morais como modo de mobilizar capital político em uma espécie de “economia moral” (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, Letícia. Economia moral do aborto e a retórica da ‘defesa da vida’. In: NATIVIDADE, Cláudia; SILVA, Deserèe de Oliveira Carneiro; ARAUJO, Jeanyce Gabriela (org.). Olhares e fazeres das mulheres das Gerais: discussões sobre gênero, sexualidade e raça. Belo Horizonte: Conselho Regional de Psicologia, 2019. v. 2, p. 140-159. ) que passa a organizar a política, sobretudo pela mobilização dos valores morais, das emoções e dos afetos. Elas foram apontadas em algumas análises como determinantes do golpe de 2016 e do processo eleitoral de 2018 que resultou na eleição de Jair Bolsonaro, presidente que adotou o embate moral como método e estratégia de governo, marcado pela produção recorrente do caos (NOBRE, 2020NOBRE, Marcos. Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.).

Estas guerras ganharam uma espessura inédita nas plataformas das mídias sociais, para onde vão e de onde reverberam, com grande virulência, para diferentes campos, como o educacional, o comunicacional e o jurídico. Ao incidirem sobre os acervos e ações das bibliotecas, os bibliotecários se veem diante dos muitos desafios éticos concretos que atravessam a sua profissão.

Como garantir que a biblioteca seja espaço democrático, tendo no acervo vozes que não refletem a pluralidade do humano e do social? Como deve atuar o(a) bibliotecário(a) diante dos atos censórios impostos pela crença religiosa dos pais e por agentes que buscam instrumentalizar o livro e a leitura na disputa pelo poder?

Estas questões se amplificam em um cenário informacional e social extremamente complexo, onde outras problemáticas começam a perpassar as dinâmicas da mediação informacional.

4 Desafios da mediação da informação em um cenário informacional complexo

Brasil, 2021, contexto de pandemia. Vinda da própria editora responsável, praticamente passou despercebida a retirada de um número da Super Interessante do acervo digital da revista, disponível na internet. Embora não tenha acontecido no âmbito propriamente das bibliotecas, o fato está relacionado a elas e aos desafios que contextos sociais complexos colocam aos seus profissionais na mediação da informação.

Veiculada em fevereiro de 2001, conforme revela matéria de Maurício Stycer no UOL, a edição de número 161 trazia em sua capa a representação de um bebê vendado recebendo uma vacina em gotas na boca com o título "Vacinas: a cura ou a doença? e o subtítulo "A vacinação, ferramenta básica de saúde pública, enfrenta no mundo inteiro uma onda crescente de críticas e desconfianças. A questão: será que as vacinas fazem mais mal do que bem?".

A imagem do acervo digital da revista a seguir mostra o gap entre os meses de janeiro e março.

Figura 1 -
Print do acervo digital da Revista Super Interessante

Sob o argumento de que “nada se provou”, ou seja, de que os questionamentos trazidos sobre as vacinas se mostraram infundados, a Administração da Super Interessante justificou a atitude como modo de precaução e responsabilidade em um cenário de crescente desinformação no campo da saúde. Alexandre Versignassi, diretor da Revista, afirmou na reportagem de Stycer (2021STYCER, Mauricio. Superinteressante exclui do acervo capa que questionava eficácia de vacinas. Uol Notícias, São Paulo, 2 nov. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/mauricio-stycer/2021/11/02/superinteressante-exclui-do-acervo-capa-de-2001-que-questionava-as-vacinas.htm?s=08 . Acesso em: 1 mar. 2022.
https://noticias.uol.com.br/colunas/maur...
) que a direção considerou prudente excluir provisoriamente a edição do acervo porque “num período de pandemia e de vacinação, poderia ser um desserviço” [...]. Não é apagar a história. É uma questão de saúde pública [...] A gente tirou e num segundo momento vamos [sic] colocar de volta”1 1 Até o fechamento deste artigo, em abril de 2023, o número ainda não havia retornado ao acervo online da revista. (STYCER, 2021STYCER, Mauricio. Superinteressante exclui do acervo capa que questionava eficácia de vacinas. Uol Notícias, São Paulo, 2 nov. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/mauricio-stycer/2021/11/02/superinteressante-exclui-do-acervo-capa-de-2001-que-questionava-as-vacinas.htm?s=08 . Acesso em: 1 mar. 2022.
https://noticias.uol.com.br/colunas/maur...
, online).

No momento em que o país contabilizava milhares de mortes pela pandemia da Covid-19 e com uma campanha de vacinação em curso seria eticamente responsável uma biblioteca disponibilizar a seus usuários o número 161 da Revista Super Interessante, caso contasse com o exemplar em seu acervo? Ou seria falta ética não o disponibilizar?

Pensando neste mesmo contexto de emergência, em que há uma profusão de discursos que invalidam o campo científico, difundem-se informações falsas relacionadas à saúde pública e são necessárias decisões respaldadas pelo conhecimento científico e suas aplicações. Deveria o(a) bibliotecário(a) vetar notícias sobre escândalos da indústria farmacêutica no mundo2 2 Tais como o caso Bayer, dentre outros relatados pela jornalista Paula Schmitt (SCHMITT, 2021). para tranquilizar usuários mais receosos e desencorajar a desconfiança em novos produtos desenvolvidos e comercializados por ela? As obras que criticam a Ciência como um campo de relações objetivas em que atores disputam poder e que está historicamente associado à produção hegemônica do capitalismo deveriam ser evitadas, em nome do bem coletivo, para não nutrirem um sentimento anticientífico em um momento de excepcionalidade? O que dizer dos discursos que defendem ter sido a medicina baseada em evidências corrompida por interesses corporativos3 3 A exemplo do artigo opinativo The illusion of evidence based medicine publicado na The BMJ em março de 2022 (JUREIDINI; MCHENRY, 2022). ? Devem ser prontamente disponibilizados ou somente após passar pelo crivo de outros mediadores e mediações?

Todas estas questões, longe de serem triviais e óbvias, se tornam mais intricadas quando o bibliotecário é um dentre tantos mediadores nos regimes de informação hegemonicamente vigentes (em que há um simulacro de desintermediação) e quando, no complexo ambiente informacional digital, ele também é um ativo produtor e consumidor de conteúdos informacionais.

4. 1 Novos mediadores e mediações e o combate à desinformação

Dentre os diversos aspectos que modulam uma nova e complexa ecologia informacional desde o início do século XXI destaca-se a emergência de novos mediadores: plataformas digitais, influenciadores, checadores de notícias, “produtores de conteúdo”, que se interpõem aos fluxos informacionais, definindo-os e direcionando-os.

A presença destes novos mediadores está relacionada a um conjunto amplo de fatores decorrentes das transformações ocorridas no sistema capitalista desde 1970 que culminaram no modelo da globalização neoliberal, que encontrou na informação e suas tecnologias um fator fundamental não apenas de saída da crise, mas de avanço do capital sobre toda a vida.

Se até o final do século XX a produção e a circulação de informação se concentravam na imprensa e outros setores da indústria cultural, além da academia e do Estado, a partir do desenvolvimento da internet, das mídias digitais e das tecnologias móveis esse cenário se alterou. As novas tecnologias e serviços de transmissão de informação que passaram a ser empregados massivamente nas mais diversas atividades, concentradas nas mãos de grandes corporações, como as do Vale do Silício, permitiram que múltiplos agentes fossem incorporados ao ecossistema da comunicação.

Isto se consolidou quando a produção e a circulação de um quantitativo gigantesco de informação de usuários de todo o mundo e a extração de todos os rastros desses usos foram possíveis e necessárias para produzir lucro e poder a estas empresas, hoje convertidas nas maiores do mundo.

Instaurando uma forma de capitalismo de informação que procura prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado (ZUBOFF, 2021ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. São Paulo: Intrínseca, 2021.), as empresas de tecnologia da informação têm buscado estabelecer, hoje, todos os termos dos regimes informacionais hegemonicamente vigentes na internet, definindo quem são as autoridades cognitivas, “as regras e as autoridades informacionais, os meios e os recursos preferenciais de informação, os padrões de excelência e os modelos de sua organização, interação e distribuição” (GONZALEZ DE GOMEZ, 2012GONZALEZ DE GOMEZ, Maria Nélida. Regime de informação: construção de um conceito. Informação & Sociedade: estudos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 43-60, 2012. , p. 43).

Além de disponibilizarem determinados recursos técnicos, estimulando práticas informacionais particulares, e direcionarem os fluxos da informação a partir da programação algorítmica visando influenciar visões de mundo e a conduta dos usuários, as plataformas de mídias digitais têm sido responsáveis por redefinir as autoridades informacionais (o selo de checagem no Twitter é a evidência mais imediata disto). E, enquanto se colocam como intermediárias neutras, censuram conteúdo contrário aos seus interesses objetivos (convergentes com os do grande capital transnacional4 4 Em um sistema capitalista global organizado pela lógica dos grandes monopólios, é interessante notar como poucas corporações que pertencem aos mesmos investidores institucionais dominam praticamente a totalidade do mercado mundial. O exemplo mais emblemático disso é a BlackRock e a Vanguard Group, duas das maiores empresas de gerenciamento de ativos do mundo, que controlam juntas, por exemplo, mais de 90% das empresas de mídia em todo o Ocidente e possuem parte majoritária das ações das maiores corporações incluindo bancos, farmacêuticas, agroindústria, empresas de energia, alimentação, tecnologia da informação, dentre outras. e de certos Estados, sobretudo o norte-americano), excluindo e bloqueando contas, direcionando e definindo a divulgação das mensagens.

A imposição de limitação a canais com informações sob a perspectiva da Rússia, durante a operação militar na Ucrânia, a restrição de contas e o cerceamento a canais anti-imperialistas, além do banimento de vozes - outrora reconhecidas pelo campo científico - dissonantes dos consensos estabelecidos sobre a gestão da pandemia da Covid-19, são apenas alguns exemplos de como as plataformas, especialmente Twitter, Youtube e Facebook, atuam censurando conteúdo. E o fazem apoiadas discursivamente no que se tornou uma espécie de imperativo moral: o “combate à desinformação”.

Embora os primeiros anos de 2000 tenham sido marcados por um grande otimismo com relação aos usos e apropriações das emergentes tecnologias, que permitiriam aos “sujeitos comuns” se posicionarem nas “batalhas das ideias”, hoje, duas décadas depois, estes usos são vistos não apenas com menos euforia, mas com extremada preocupação.

Isso porque a produção intensa de informação significou também a produção intensa de desinformação, de circulação de conteúdos falsos e enganadores, muitas vezes intencional e potencialmente danosos, o que tem sido compreendido como uma ameaça concreta aos valores democráticos e aos direitos humanos. Desde então, “em uma virada discursiva radical, a qualidade da democracia passou a ser associada antes a uma questão de controle do que à autonomia dos agentes comunicativos” (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. , p. 133).

O tecnolibertarismo parece ter cedido de vez lugar à necessidade de “combater a desinformação” e o excesso de informação, fenômeno próprio ao ofício do(a) bibliotecário(a), passou a ser lido sob a metáfora de uma crise, uma doença que se espalha, uma infodemia, problema cujo enfrentamento exige, em compasso de urgência, contenção, legislação, fiscalização, adaptação e punição.

Neste cenário, os bibliotecários são convocados não apenas a promover o acesso democrático à informação de interesse e da necessidade dos sujeitos e a mediar a sua formação, mas, especialmente, a “lutar contra a desinformação”. Esta luta tem sido encampada por diferentes atores, dentre os quais grandes corporações, empresas de tecnologia, imprensa, judiciário, organizações não governamentais, fundações, universidades, em uma agenda que alcançou rapidamente uma grande amplitude.

Embora a intensidade do cenário de caos informacional faça com que as ações autonomeadas de “combate à desinformação” sejam, de maneira imediata, vistas como urgente tarefa ética, um olhar mais aproximado para a dinâmica de sua articulação global nos revela aspectos importantes para a necessária tomada de posição nesta luta pelos bibliotecários.

Ao identificar elementos constituintes de uma economia política do combate à desinformação que se desenha no tempo presente, Albuquerque (2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. , p. 126) adverte como esta agenda não está dissociada dos “modelos de gestão da produção e difusão de conhecimento legitimado associados ao projeto de globalização neoliberal”. Organizada por um conjunto de interesses políticos e econômicos com “agendas e lógicas de funcionamento diversos (e eventualmente contraditórios)”, essa pauta tem sido patrocinada por uma gama distinta de agentes institucionais que se inserem no “contexto de uma dinâmica neoliberal de controle da verdade na qual agentes privados e uma lógica fundamentalmente corporativa (e antipartidária) assumem um papel central” (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. , p. 127, grifo nosso).

Dentre as instituições que desempenham funções mediadoras “distintas e complementares” no sistema neoliberal de produção de verdade e, hoje, portanto, de “combate à desinformação”, estão, dentre outras (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. ): o Banco Mundial, as instituições de ranking global, as fundações, as instituições acadêmicas, o judiciário e as organizações jornalísticas5 5 Principal fonte de autoridade na área de desenvolvimento econômico, o Banco Mundial tem papel fundamental no sistema de produção da verdade neoliberal, editando os principais periódicos científicos da área e tendo seus técnicos legitimados como os maiores especialistas em Economia. Assume, assim, segundo o autor, um duplo papel: como agente responsável pela formulação de conceitos norteadores (tais como governance, rule of law etc.) e conhecimento e como promotor de políticas públicas nos mais variados campos da vida social, baseadas em medidas impositivas (tais como as do Consenso de Washington). As agências de ranking, por sua vez, oferecem modelos de sucesso e fracasso em termos globais, fornecendo parâmetros para tomadas de decisão por parte de governos, instituições financeiras e agentes privados. Já as fundações, indutoras históricas da produção de conhecimento científico “dentro de parâmetros politicamente aceitáveis pelo Banco Mundial”, atuam fortemente junto às instituições acadêmicas, que passaram por mudanças significativas desde a incorporação da lógica da globalização neoliberal, que reestruturou as práticas universitárias em torno do princípio da eficiência do mercado (capitalismo acadêmico) e acentuou a conformidade ideológica entre países do centro e da periferia capitalista. Além de contribuírem com o estabelecimento de uma “hierarquia objetiva” entre pesquisadores e centros de ensino e pesquisa que gera, como subproduto, uma dinâmica de dependência acadêmica, especialmente dos EUA, as fundações também são fonte de formulação de políticas públicas e de apoio a iniciativas sociais e de novos modelos de ação coletiva. Por fim, também tem papel importante neste sistema que hoje se organiza contra a desinformação, o poder Judiciário que “atribui um sentido de verdade jurídica aos princípios que regem a globalização neoliberal, tornando-se estratégico no favorecimento de interesses políticos e econômicos de determinados agentes e na punição daqueles que contrariam esses interesses” (ALBUQUERQUE, 2021, p. 131). . Estas últimas merecem a atenção especial por parte dos bibliotecários, uma vez que têm atuado na evocação da autoridade para chancelar, no sistema global da comunicação, a verdade, a qualidade da informação e a legitimidade ou não de sua circulação.

Articuladores históricos da hegemonia de classe, o jornalismo e a imprensa corporativa, que se viram ameaçados em autoridade e receita com o novo ecossistema da comunicação, têm se afirmado como porta-voz do sistema de verdade associado ao processo de globalização neoliberal, sobretudo através do combate às “fake news” e da checagem de notícias, como aponta Albuquerque (2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. ). Direcionando seu trabalho de checagem para as mensagens que circulam nos aplicativos como Whatsapp e Telegram, nas redes sociais e para declarações feitas por determinados atores públicos (e nunca ao conteúdo dos veículos da imprensa tradicional), as agências atuam no enquadramento noticioso, na produção de consensos e, sobretudo, na construção de um pensamento único que aciona uma lógica de cunho fundamentalmente tecnocrático (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. ).

A partir dos trabalhos de Uscinski e Butler (2013USCINSKI, Joseph E.; BUTLER, Ryden W. The epistemology of fact checking. Critical Review, Abingdon, n. 25, v. 2, p. 162-180, 2013. Available in: http://dx.doi.org/10.1080/08913811.2013.843872 . Accessed on. 2 mar. 2022.
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), Albuquerque (2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. ) aponta como os métodos usados na checagem da verdade e na seleção dos tópicos a serem checados são pouco transparentes, ainda que a própria existência da International Fact-Checking Network busque dar legitimidade ao processo, e como há um nítido viés neoliberal de atuação dessas agências, expresso no modo supostamente técnico e neutro de checagem de notícias.

Neste movimento, sustentado principalmente por um “pânico moral informativo” em torno das “fake news” (CARLSON, 2020CARLSON, Matt. Fake News as an informational moral panic: the symbolic deviance of social media during the 2016 presidential election. Information, Communication & Society, London, n. 23, v. 3, p. 374-388, 2020. Available in: https://doi.org/10.1080/1369118X.2018.1505934 . Accessed on: 2 aug. 2022.
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), as organizações jornalísticas tradicionais têm sido frequentemente consideradas os “baluartes da distribuição de informação confiável (das notícias de verdade, pautadas no compromisso com a verdade e com o rigor factual)” (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. , p. 131), ainda que seu papel de aparelho privado de hegemonia e sua vinculação aos grandes monopólios tenha sido desvelado por diversos estudos do campo da Comunicação e da Informação.

As agências também estabelecem parcerias com as plataformas de mídias sociais, como Facebook, checando os conteúdos publicados nas mesmas e reivindicam, ao lado de vários outros agentes, que estas assumam o “combate à desinformação”, excluindo, apagando e enfraquecendo mensagens e contas.

Quem checa os checadores? Quem efetivamente os financia? Estão os bibliotecários nas agências de checagem de notícias? Quais interesses comuns há entre esses agentes, grupos de mídia corporativa, forças políticas e econômicas?

A existência destes novos mediadores que operam, não sem resistência, ajustes necessários (cognitivos, materiais e simbólicos) ao prosseguimento do projeto neoliberal atravessa não apenas nosso exercício profissional enquanto bibliotecários, mas também como usuários de informação.

Isto faz com que o(a) bibliotecário(a), ainda que detenha como nenhum outro profissional o conhecimento das fontes de informação e as dinâmicas dos regimes de informação, também esteja inserido(a) nas bolhas definidas por programação algorítmica que buscam conformar visões e compreensões de mundo. Nesta dinâmica, também está sujeito a adotar práticas que promovam, ainda que indiretamente, a poluição do ambiente informacional, a legitimação e a visibilização de informações mobilizadas por afetos e inclinações subjetivas e a consolidação de um binarismo de pensamento que impede que os diferentes problemas e questões sejam compreendidos de modo complexo e que os debates públicos possam efetivamente florescer. Em que se deve pautar a ação bibliotecária no “combate à desinformação”, tendo em vista estes novos mediadores? Como construir uma posição ética e política neste amplo ecossistema de mediações?

Além de pensar nossa própria posição como mediadores e usuários de informação, o resgate da função histórica universal do fazer bibliotecário é, neste sentido, um ponto de partida necessário para refletirmos sobre os novos e permanentes desafios éticos expressos nos casos aqui apresentados.

5 Liberdade intelectual e de informação: compromisso histórico da Biblioteconomia

O enfrentamento às formas diversas de interdição à produção intelectual humana vindas de forças políticas, religiosas, econômicas, sociais e morais é um ponto pacífico entre bibliotecários e instituições de classe que resguardam o “cunho humanista” da profissão. Isto porque a censura, historicamente, sempre esteve em oposição à função precípua da Biblioteconomia de salvaguardar e dar acesso, de forma mais ampla possível, à produção intelectual humana, em sua historicidade, tensões e contradições, garantindo a livre circulação das ideias e a sua memória.

É neste sentido que a luta contra a censura e a defesa da liberdade de informação é constitutiva da institucionalização de uma Biblioteconomia crítica e progressista, como lembra Tanus (2021TANUS, Gabrielle Francinne Souza Carvalho. A institucionalização da Biblioteconomia crítica e progressista. Em Questão, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 432-457, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.19132/1808-5245281.432-457 . Acesso em: 1 jul. 2022.
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) em texto homônimo, que tem no horizonte a democracia, a emancipação e o desenvolvimento humanos. Se a constituição desta Biblioteconomia contou com o enfrentamento de forças majoritariamente religiosas e políticas que impediam o livre acesso à informação e a liberdade intelectual, hoje, como relatamos, há forças difusas e convergentes que miram, com diferentes intencionalidades, a disseminação de informações, os acervos das bibliotecas e o trabalho desenvolvido nelas.

Em meio às intensas guerras culturais que repercutem nos livros e na circulação da informação, o(a) bibliotecário(a) está sujeito a ver o seu trabalho acusado de reforçar estereótipos, como nos mencionados casos das escolas canadense e espanhola, de promover valores moralmente condenáveis por um determinado grupo, como no caso da censura projetada a obras relacionadas ao gênero e às sexualidades ou, ainda, de fomentar posições classificadas como “negacionistas”, como no caso da Revista Superinteressante e exemplos correlatos. Neste intrincado contexto, não é de se espantar que o profissional passe a realizar a mediação da informação e da leitura orientando-se pela autocensura e se sinta mais confortável em evitar temas tidos como difíceis e em reforçar os consensos estabelecidos pelos regimes de informação hegemonicamente vigentes, organizados por interesses monopolistas.

No campo da formação de leitores e na contramão do entendimento de que estes precisam ser protegidos ou de que a arte deva ter uma finalidade pedagógica, moral ou de transmissão de valores, a aposta na experiência estética proporcionada pelos livros e a compreensão de que a produção intelectual humana, assim como o próprio humano, é carregada de tensões, conflitos e ambiguidades, que não podem ser simplesmente suprimidos ou apagados, abre vias para o enfrentamento desta questão.

Um entendimento norteador da mediação, neste sentido, passa pelas muitas possibilidades abertas pela leitura de uma obra literária, que permitem o encontro com o outro, com aquilo que, enquanto humanidade, somos, fomos ou imaginamos. E que possibilitam, também, a reflexão e o diálogo crítico sobre todos os temas incontornáveis à dignidade humana, à vida coletiva e à produção da consciência de si.

Um traço importante do potencial que é a ação bibliotecária mediadora, distinta da ação dos demais “novo mediadores”, é que esta, ao invés de filtrar a realidade para seus usuários delimitando-a segundo interesses próprios ou de outrem, pode continuamente expandi-la. Ao proporcionar, no acompanhamento que exige o ato mediador, visões de mundos distintas e conflitantes, fontes, leituras, pontos de vista e informações díspares, contraditórias e complementares, não se coloca como um reforçador do consenso ou um mero transmissor de valores morais e de interpretações. Estimula, ao contrário, o confronto e o questionamento dos sentidos que se articulam pela linguagem, a fruição da beleza, o espanto diante da vida, instigando a tão necessária inquietação e indagação acerca do mundo. Atua, assim, criando condições para a dúvida sistemática, a disposição para o pensamento mediato e para o encontro crítico com interpretações e representações que não são apenas boas ou más, verdadeiras ou falsas, mas fruto de práticas e relações sociais circunscritas a contextos históricos e a partir das quais atribuímos e disputamos sentidos. Em sua mediação, é possível evidenciar que estes sentidos não estão descolados da produção e reprodução material e simbólica da vida e que as ideias, no curso da História, não são puramente excluídas, suprimidas ou apagadas, mas podem ser dialeticamente superadas.

Tendo isso em vista, a mediação que promove o(a) bibliotecário(a) não precisa se pautar pela tutela de usuários, que necessitam ser defendidos dos “conteúdos nocivos”, em uma espécie de retorno à teoria da agulha hipodérmica, mas pela compreensão de que estes, por meio da mediação, possam ter plenas condições de ampliar seu conhecimento e repertório sobre o mundo e sobre si a partir do encontro com formas, conteúdos, informações, significados e percepções distintas.

O fundamento da mediação da informação e da leitura estaria, assim, não em dirimir conflitos, mas especialmente em gerá-los, como defende Almeida Júnior (2015ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (org.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina: ABECIN, 2015. p. 9-32.). E isto somente pode ser feito a partir de um compromisso rigoroso pela defesa da circulação e do acesso à pluralidade de informações, fontes, vozes, opiniões e visões que são produzidas ao longo do tempo e do espaço e que circulam nos acervos físicos, digitais e nos canais da internet.

A reivindicação de um ambiente informacional em que são produzidos e circulam somente conteúdos “virtuosos” e verdades asseguradas por agentes específicos (públicos ou privados) é um ideal não apenas nocivo à livre circulação de ideias e informações, mas que abre espaço para a concretização da distópica ideia orwelliana de um “Ministério da Verdade”. A quem vamos confiar a responsabilidade e o poder de autorizar e chancelar a informação que pode ou não circular? O que aconteceria se passássemos a retirar de nossos acervos livros que expressam as relações desiguais de gênero, constitutivas da História das nossas sociedades? Interditaríamos, no mínimo, o acesso a elementos significativos de nossa trajetória histórica e de nossa memória coletiva. O que acontecerá quando mentiras ditas por um governante forem simplesmente excluídas, retiradas de circulação e não puderem mais ser acessadas em seus registros documentais primários por qualquer cidadão? Como produzir conhecimento e leituras sobre o nosso tempo, se os seus registros e vestígios materiais forem aniquilados e apagados?

Por fim, cabe destacar que a defesa intransigente da liberdade intelectual e de expressão como um direito com o qual se implica a Biblioteconomia nunca estimulou ou nutriu qualquer permissividade com a circulação de conteúdos criminosos (discursos de ódio, por exemplo), caluniosos e difamatórios, para os quais a responsabilização também figurou ao longo dos anos como um direito socialmente reivindicado, expresso em normas e leis adotadas em todo o mundo, cujo aprimoramento e efetividade são necessários. Cumpre lembrar que discursos de ódio não se enquadram (e devem ser precisamente distinguidos) no que comumente tem sido conceituado como “desinformação” (BRISOLA; BEZERRA, 2018BRISOLA, Anna; BEZERRA, Arthur Coelho. Desinformação e circulação de “fake news”: distinções, diagnóstico e reação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 19., 2018, Londrina. Anais [...]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2018. p. 3317-3330. ) e que o sistema internacional e vários Estados há anos buscam regulamentar o tema.

As questões que levantamos aqui, ainda que não possam ser respondidas de forma a encerrá-las, nos convidam a retomar a dimensão universal do fazer bibliotecário, qual seja, a de promover o acesso irrestrito aos registros informacionais, às narrativas e às ideias produzidos pela humanidade.

Neste sentido, mantém-se plenamente atual a defesa, feita há três décadas por Vergueiro (1987VERGUEIRO, Waldomiro. Censura e seleção de materiais em bibliotecas: o despreparo dos bibliotecários brasileiros. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 21-26, jan./jun. 1987. ), de que:

[...] contrapondo-se ao conceito de censura, deve-se colocar o de liberdade intelectual, podendo esta ser definida como o direito dos usuários de ter acesso a todos os aspectos de todas as informações, sem que este acesso seja restrito sob hipótese alguma (VERGUEIRO, 1987VERGUEIRO, Waldomiro. Censura e seleção de materiais em bibliotecas: o despreparo dos bibliotecários brasileiros. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 21-26, jan./jun. 1987. , p. 22).

Este direito é, antes, o fundamento orientador da missão bibliotecária efetivamente comprometida com a democracia, a emancipação humana e com a plena e continuada formação dos sujeitos.

6 (In)Conclusões

Dentre os muitos desafios enfrentados pelos bibliotecários diante do complexo cenário informacional do tempo presente está o necessário confronto com as formas de mediação que se apresentam, de forma explícita, velada ou positivada como censura.

Com a justificativa ora de proteger as crianças, ora a democracia ou mesmo a saúde pública, a censura ganha novos contornos que não se revelam aos profissionais da informação sem um escrutínio mais acurado dos modos pelos quais se organiza. Diante do fato de muitos dos problemas vividos hoje em nossas sociedades serem, em muitos sentidos, também problemas de natureza informacional, as práticas censórias podem, em alguma medida, parecer razoáveis e mesmo necessárias.

No entanto, toda forma de censura compromete o direito fundamental à livre expressão e à liberdade intelectual e contribui com o apagamento paulatino da nossa memória, tão importante na consolidação de regimes autoritários.

Muito diferente de cercear ou impedir que a diversidade do pensamento se expresse e, ao ser registrada, seja acessada por quem a demandar, as iniciativas de mediação da leitura e da informação aliadas ao desenvolvimento de competências em informação no campo da Biblioteconomia abrem perspectivas para que leitores e usuários de informação possam localizar, acessar, avaliar, interpretar e agir eticamente na relação com as informações, compreendendo, ao mesmo tempo, como se produzem, circulam e são controlados a verdade, o conhecimento e a expressão do pensamento.

Referências

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  • ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. São Paulo: Intrínseca, 2021.
  • 1
    Até o fechamento deste artigo, em abril de 2023, o número ainda não havia retornado ao acervo online da revista.
  • 2
    Tais como o caso Bayer, dentre outros relatados pela jornalista Paula Schmitt (SCHMITT, 2021SCHMITT, Paula. O remédio que prevenia as mortes por hemofilia: mas não do jeito que você pensa. Poder 360, Brasília, 14 out. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/o-remedio-que-prevenia-as-mortes-por-hemofilia-mas-nao-do-jeito-que-voce-pensa-escreve-paula-schmitt/ . Acesso em: 16 fev. 2023.
    https://www.poder360.com.br/opiniao/o-re...
    ).
  • 3
    A exemplo do artigo opinativo The illusion of evidence based medicine publicado na The BMJ em março de 2022 (JUREIDINI; MCHENRY, 2022JUREIDINI, Jon; MCHENRY, Leemon B. The illusion of evidence based medicine. BJM, London, n. 276, p. 1-2, 2022. Available in: https://doi.org/10.1136/bmj.o702 . Accessed on: 16 feb. 2023.
    https://doi.org/10.1136/bmj.o702...
    ).
  • 4
    Em um sistema capitalista global organizado pela lógica dos grandes monopólios, é interessante notar como poucas corporações que pertencem aos mesmos investidores institucionais dominam praticamente a totalidade do mercado mundial. O exemplo mais emblemático disso é a BlackRock e a Vanguard Group, duas das maiores empresas de gerenciamento de ativos do mundo, que controlam juntas, por exemplo, mais de 90% das empresas de mídia em todo o Ocidente e possuem parte majoritária das ações das maiores corporações incluindo bancos, farmacêuticas, agroindústria, empresas de energia, alimentação, tecnologia da informação, dentre outras.
  • 5
    Principal fonte de autoridade na área de desenvolvimento econômico, o Banco Mundial tem papel fundamental no sistema de produção da verdade neoliberal, editando os principais periódicos científicos da área e tendo seus técnicos legitimados como os maiores especialistas em Economia. Assume, assim, segundo o autor, um duplo papel: como agente responsável pela formulação de conceitos norteadores (tais como governance, rule of law etc.) e conhecimento e como promotor de políticas públicas nos mais variados campos da vida social, baseadas em medidas impositivas (tais como as do Consenso de Washington). As agências de ranking, por sua vez, oferecem modelos de sucesso e fracasso em termos globais, fornecendo parâmetros para tomadas de decisão por parte de governos, instituições financeiras e agentes privados. Já as fundações, indutoras históricas da produção de conhecimento científico “dentro de parâmetros politicamente aceitáveis pelo Banco Mundial”, atuam fortemente junto às instituições acadêmicas, que passaram por mudanças significativas desde a incorporação da lógica da globalização neoliberal, que reestruturou as práticas universitárias em torno do princípio da eficiência do mercado (capitalismo acadêmico) e acentuou a conformidade ideológica entre países do centro e da periferia capitalista. Além de contribuírem com o estabelecimento de uma “hierarquia objetiva” entre pesquisadores e centros de ensino e pesquisa que gera, como subproduto, uma dinâmica de dependência acadêmica, especialmente dos EUA, as fundações também são fonte de formulação de políticas públicas e de apoio a iniciativas sociais e de novos modelos de ação coletiva. Por fim, também tem papel importante neste sistema que hoje se organiza contra a desinformação, o poder Judiciário que “atribui um sentido de verdade jurídica aos princípios que regem a globalização neoliberal, tornando-se estratégico no favorecimento de interesses políticos e econômicos de determinados agentes e na punição daqueles que contrariam esses interesses” (ALBUQUERQUE, 2021ALBUQUERQUE, Afonso. As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa. Eptic, Aracaju, v. 23, n. 1, p. 124-141, jan./abr. 2021. , p. 131).
  • Declaração de autoria

    Concepção e elaboração do estudo: Ana Amélia Lage Martins. Coleta de dados: Ana Amélia Lage Martins e Jaqueline Santos Barradas. Análise e interpretação de dados: Ana Amélia Lage Martins e Jaqueline. Santos Barradas. Redação: Ana Amélia Lage Martins e Jaqueline Santos Barradas. Revisão crítica do manuscrito: Ana Amélia Lage Martins e Jaqueline Santos Barradas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2022
  • Aceito
    25 Fev 2023
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