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A escolha democrática em perspectiva comparada

Democratic choice in a comparative perspective

Resumos

Os resultados de surveys sobre atitudes políticas realizados no Brasil a partir de 1988 revelam que os níveis de adesão dos brasileiros à democracia são mais baixos do que os encontrados em outros países da América Latina e do Sudeste europeu que também passaram por experiências autoritárias. Sustenta-se, no entanto, que um consenso democrático "semi-majoritário" está se formando no Brasil, o que constitui uma base de atitudes políticas favorável à estabilização da democracia e a ulteriores avanços democratizantes.


The author argues that although the levels of support of democracy in Brazil are comparatively low according to surveys conducted since 1988, a "semi-majoritarian" democratic consensus is emerging, allowing for a basis of political attitudes favorable to the stabilization of democracy and to further democratic advances.


CIDADANIA

A escolha democrática em perspectiva comparada* * Este artigo é parte do livro Os brasileiros e a democracia, a ser publicado pela Editora Ática. A pesquisa em que o livro se baseia foi desenvolvida no âmbito do Convênio CEDEC/ Programa de Política Comparada da USP.

Democratic choice in a comparative perspective

José Alvaro Moisés

Professor do Departamento de Ciência Política e coordenador do Programa de Política Comparada da USP e conselheiro do CEDEC

RESUMO

Os resultados de surveys sobre atitudes políticas realizados no Brasil a partir de 1988 revelam que os níveis de adesão dos brasileiros à democracia são mais baixos do que os encontrados em outros países da América Latina e do Sudeste europeu que também passaram por experiências autoritárias. Sustenta-se, no entanto, que um consenso democrático "semi-majoritário" está se formando no Brasil, o que constitui uma base de atitudes políticas favorável à estabilização da democracia e a ulteriores avanços democratizantes.

ABSTRACT

The author argues that although the levels of support of democracy in Brazil are comparatively low according to surveys conducted since 1988, a "semi-majoritarian" democratic consensus is emerging, allowing for a basis of political attitudes favorable to the stabilization of democracy and to further democratic advances.

Aspecto central das relações entre regime político e opinião pública, o estudo comparado da evolução temporal de atitudes políticas numa mesma sociedade é fundamental para a análise dos processos de democratização. Mas ele torna-se incompleto se não incluir a dimensão que, referida a situações que envolvem características sociais e econômicas relativamente semelhantes, compara sociedades que viveram ou vivem experiências históricas comuns. Enquanto a comparação nacional no tempo refere-se à qualidade das mudanças que ocorreram ou estão ocorrendo no interior de uma dada sociedade, a comparação entre países de características socio-econômica similares, como se faz neste artigo, qualifica aquelas mudanças em face de tendência histórica comum.

Os processos de democratização do Cone Sul latino-americano e do Sudeste europeu, nos anos 80 e 90, constituem um exemplo importante disso. Com o objetivo de situar a experiência brasileira nesse marco comparativo mais abrangente foram examinados resultados de pesquisas realizadas em sete outros países, onde tanto a pergunta sobre a preferência pela democracia ou pela ditadura como outros indicadores políticos usados na pesquisa referente ao Brasil também foram incluídos nos questionários. A idéia era verificar, a partir do comportamento desses indicadores, o grau de legitimação democrática alcançado, após as transições, por países que enfrentam desafios econômicos e políticos de sentido comum.

Dois aspectos sobressaem, desde logo, dos resultados. Em primeiro lugar verifica-se que os níveis de adesão dos brasileiros à democracia são bem mais baixos do que aqueles encontrados entre os entrevistados de países de tradição democrática mais antiga e mais forte, como a Argentina, o Uruguai e o Chile, no continente latino-americano, e a Espanha (após meados dos anos 80) e a Grécia, no Sudeste Europeu (Quadro 1). Apesar disso os porcentuais mais elevados encontrados no Brasil (aqueles do início dos anos 90), mesmo se ligeiramente menores, são comparáveis aos encontrados no Chile entre meados e fins da década passada, isto é, antes de realizar-se o plebiscito que derrotou Pinochet em 1988 e antes de inaugurar-se o primeiro governo eleito democraticamente no ano seguinte; são comparáveis também ao porcentual encontrado em Portugal antes de aparecerem os primeiros sinais de recuperação econômica dos anos 90, em conseqüência do ingresso desse país na Comunidade Européia.


Em segundo lugar os dados chamam a atenção, de modo recorrente, para a importância da variável relativa à passagem do tempo nos processo de democratização — aspecto importante, aliás, no debate sobre o conceito de cultura política. Ou seja, o processo de sedimentação de convicções democráticas entre os públicos de massa, mesmo se acompanhado da instalação de instituições políticas correspondentes desde a primeira fase da democratização, dificilmente completa-se em curtos espaços de tempo. A influência da estrutura política sobre a cultura política não é automática, nem imediata; ela depende do intercâmbio que esses fatores promovem entre si ao longo do tempo. Assim, a seqüência temporal revela-se importante tanto para que as próprias instituições democráticas logrem se consolidar como para que os componentes democráticos da nova cultura política ganhem consistência entre os cidadãos. Isto é sugerido, independente de recuos circunstanciais dos índices, pelas democratizações relativamente bem sucedidas do Chile e da Espanha, onde os índices de legitimidade democrática só consolidaram patamar igual ou superior a 2/3 de apoio público depois que a democratização revelou-se um caminho sem volta, ou depois que os primeiros governos democráticos mostraram-se efetivamente comprometidos e capazes de assegurar a vigência das novas instituições. Com efeito, no caso da Espanha, a democracia ganhou mais confiança pública depois que o governo de Felipe Gonzalez mostrou-se capaz de garantir a sobrevivência do regime contra as ameaças de golpe do inicio dos anos 80; mas, em qualquer caso, seria difícil separar a força dos socialistas do PSOE para defenderem a democracia do apoio que receberam da opinião pública, através de sucessivas eleições democráticas. Do mesmo modo, a adesão normativa à democracia aumentou, no Chile, à medida em que o governo de Patrício Aylwin mostrou que a sua convivência com o general Pinochet no poder não afetaria a sobrevivência e o funcionamento das novas instituições democráticas; mas Aylwin dependeu do apoio decisivo da opinião pública democrática para consolidar-se e para dar garantias quanto às instituições políticas.

No caso do Brasil, as condições da democratização foram bem diferentes, como atestam as enormes ambigüidades que marcaram o governo de Sarney; mas, além disso, é preciso indagar se, no quadro de profundas desigualdades econômicas e sociais vigentes no país, afetando a estruturação dos próprios públicos de massa, a amplitude da legitimação democrática poderia ter sido tão vasta e tão pronta como nos outros países. Diante da relevância de fatores estruturais como a limitação da capacidade de cognição política de vastos segmentos do público de massas, as próprias mudanças da ordem política tiveram conseqüências mais limitadas: apenas os setores mais qualifica dos educacionalmente puderam acompanhar criticamente as transformações em curso, enquanto os mais pobres e os "desintegrados" socialmente tiveram dificuldades para distinguir de modo completo o significado das mudanças (Moisés, 1990; 1993). No entanto, na Argentina, Chile e Uruguai, para ficar apenas em países do continente latino-americano onde aquelas desigualdades são significativamente menores do que as existentes no Brasil, e, em conseqüência, onde a população como um todo tem mais acesso aos recursos educacionais (Quadro 2), as informações sobre o funcionamento das instituições políticas atingem camadas mais amplas do público e as possibilidades dos seus diferentes segmentos de tomarem posição diante das disputas políticas são maiores, a opção pelo regime democrático — depois da experiência autoritária — foi mais pronta e recebeu maior volume de apoio.


Apesar da sua intensidade, nem mesmo as pressões do vigoroso processo de urbanização verificado no Brasil nas últimas décadas foi suficiente para completar a secularização política iniciada pela modernização econômica: os enormes déficits educacionais, que no caso do nível superior apartam completamente o país da situação encontrada em países vizinhos como Argentina ou Uruguai, são responsáveis por diferenças muito importantes na formação das atitudes políticas. Observe-se, por exemplo, a discrepância das taxas de resposta de "indiferença" ou de "ignorância" entre o Brasil e países como Argentina ou o Uruguai: parte significativa do incremento da resposta "democrática" nesses países explica-se pela ocorrência de taxas bastante mais reduzidas para aquelas duas respostas. Mesmo no Chile, onde o perfil do ensino superior está mais próximo do vigente no Brasil do que na Argentina ou Uruguai, e onde a educação também revela-se determinante extremamente importante na escolha democrática, as taxas de resposta "Não sabe/não respondeu" são aproximadamente três vezes menores do que no Brasil; em todo caso, como se discute adiante, isso também sugere que, ao lado da educação, importantes fatores políticos influem na formação das opiniões políticas desse país. Em qualquer caso, essas informações reforçam a idéia de que a modernização das estruturas sociais e educacionais, ao colocar contingentes mais amplos da população em contato com a realidade política, amplia a base da democratização.

FRÁGIL ESCOLHA

A comparação com os países mencionados evidencia, claramente, a fragilidade relativa da escolha democrática no Brasil. Insuficiente, a curto prazo, para colocar em risco a continuidade do regime democrático no país, uma vez que inexistem — no momento — alternativas antidemocráticas capazes de disputar o apoio de elites e de não-elites1 1 Ao lado da dimensão atitudinal, objeto deste estudo, o comportamento concreto dos atores políticos é fator decisivo para evidenciar se a legitimação de um regime político, mesmo se limitada, está ocorrendo. O fato de não existir, no início dos anos 90, entre os diferentes segmentos que formam o espectro político brasileiro, iniciativas concretas de ação fora e/ou contra a ordem democrática é, em si, indicação de ausência do risco mencionado. Mas isso não quer dizer que, existindo atores políticos que defendam explicitamente a quebra dessa ordem, os públicos de massa que se definem como "autoritários" ou mesmo "indiferentes" não possam crescer. Duas condições são decisivas para isso: (a) a existência de uma alternativa viável à opção democrática; e (b) razões de ordem imediata, mais fortes que a manutenção do apoio à democracia, capazes de justificar a aceitação da alternativa antidemocrática; essas condições inexistem, no momento, no Brasil. , essa fragilidade pode, no entanto se agravar bastante, visto que os bloqueios à institucionalização política podem exponenciar, no Brasil, a erosão da legitimidade democrática recém-conquistada. Por essa razão torna-se necessário examinar de modo mais cuidadoso os motivos pelos quais a escolha democrática é mais frágil aqui do que em países que, aparentemente, viveram e livraram-se de experiências autoritárias mais ou menos na mesma época e em condições gerais semelhantes.

A primeira hipótese para explicar isso é o desempenho econômico extremamente frágil dos primeiros governos democráticos brasileiros. Alguns autores sugeriram que, em conseqüência da mobilização social provocada pela dinâmica da transição política, as frustrações populares com os efeitos perversos do crescimento econômico promovido pelo regime autoritário tenderam a transformar-se em expectativas positivas de que, terminado o ciclo autoritário, seguir-se-iam iniciativas capazes de melhorar as condições de vida da população e até de corrigir as distorções da distribuição de renda (Hirschman 1975; Muszinski & Mendes, 1990). No entanto, enquanto países como a Espanha e o Chile, por exemplo, iniciaram as suas experiências democráticas em condições socio-econômicas gerais bastante mais favoráveis, em decorrência da estabilização e do desenvolvimento verificados nas décadas anteriores (Bresser Pereira, Maravall & Prze-worski, 1993), no momento de passagem de um regime para outro o Brasil tinha parado de crescer, e enfrentava uma das crises mais sérias de sua história contemporânea; de natureza social e econômica, ao mesmo tempo, essa crise agravou-se ainda mais durante o primeiro governo civil presidido por Sarney. Na realidade, em conseqüência do fracasso de vários planos macro-econômicos que se destinavam a estabilizar a situação do país, a crise não parou de se agravar mesmo depois que o primeiro presidente eleito por voto direto, Collor de Mello, propôs-se a enfrentar o problema com um único e rápido ato de governo; o Plano Collor também fracassou rotundamente e a crise continuou agravando-se mesmo depois que, "impedido" em conseqüência de denúncias do seu envolvimento com práticas de corrupção, ele foi substituído pelo vice-presidente Itamar Franco, cujo primeiro ano de governo praticamente esgotou-se sem que a sociedade conhecesse iniciativa efetiva para controlar a inflação e retomar o desenvolvimento ecconômico. Tanta frustração com expectativas politicamente "inflacionadas" não poderiam, segundo alguns autores, conduzir senão à impaciência e à intolerância dos cidadãos diante da democracia, especialmente dos mais pobres, que, em tese, teriam depositado maiores esperanças na democratização (Muszinski & Mendes, 1990:79).

Parte importante da evidência empírica disponível sugere, no entanto, que nem de longe essa é a única ou a mais importante causa da relativa fragilidade da legitimidade democrática existente no país. Segundo pesquisas ralizadas em várias democracias consolidadas, as percepções negativas do público sobre a situação econômica tendem a traduzir-se na rejeição dos que são identificados como responsáveis pela situação, isto é, os governantes; por isso, as avaliações nagativas da economia tendem a refletir-se na evolução dos índices nagativos de apoio aos governos. No entanto, ao contrário do que se poderia esperar, os dados brasileiros (ver gráficos 1-4) mostram que momentos recentes de crescimento da adesão normativa à democracia (setembro de 1992 e março de 1993) coincidem com quedas drásticas dos índices de avaliação positiva ("ótimo/bom") do governo, sem que se possa dizer, ao contrário, que o crescimento da sua avaliação negativa ("ruim/ péssimo") tenha suscitado um incremento significativo da preferência antidemocrática; ao mesmo tempo, embora se toquem em setembro de 1992, em todas as outras pesquisas do período as curvas da avaliação intemediária ("regular") e da opção "Tanto faz uma democracia ou uma ditadura" correm quase paralelas, sem demonstrar interação. A evolução dessas curvas sugere, portanto, que esses indicadores comportam-se com independência no caso brasileiro2 2 A relação entre legitimidade e efetividade políticas tem sido amplamente discutida pela literatura de política comparada (Lipset, 1959; Linz, 1988; Maravall, 1993). Depois de largo período de tempo em que a primeira foi considerada como estritamente dependente da segunda, a tendência recente tem reconhecido — como mostra a evidência empírica do caso brasileiro — que existe uma considerável margem de autonomia entre essas duas dimensões. Maravall (1993:92) sugeriu, no entanto, que mesmo aceitando que essa autonomia existe, ela é mais limitada nos estágios iniciais da democratização, quando os problemas de eficácia e de efetividade políticas têm grande impacto na legitimação do novo regime. Os dados brasileiros não contrariam essa sugestão, mas indicam que a autonomia pode ser maior do que supõe esse autor.


Mas, além disso, considerando-se a situação econômica e social dos outros países com os quais o Brasil está sendo comparado na fase final da transição, mesmo admitindo que as circunstâncias não eram as mesmas em todos eles, Argentina, Uruguai e Portugal apresentavam um quadro que está longe de se assemelhar ao encontrado no Chile ou na Espanha no mesmo momento, e nem por isso os índices de legitimidade democrática demonstraram-se baixos naqueles países; a Argentina, aliás, viveu um cenário de hiperinflação durante quase todo mandato do presidente Raúl Alfonsín. Porém, como evidenciam os dados do quadro 3, relativos a outros estímulos destinados a verificarem a escolha democrática do público em alguns desses países, nem ali as difíceis condições econômicas provocaram a erosão da adesão à democracia (embora os indicies confirmem uma situação mais favorável no caso do Chile).3 3 Em realidade, os dados apresentados no quadro 3 relativizam, em parte, o diagnóstico de que a situação do Brasil é completamente diferente daquela encontrada nesses países: ela é semelhante, em alguns casos, pior em outros e até melhor em alguns aspectos; aliás, também em Portugal, no fim da década de 70, as pesquisas mostraram que, como no Brasil, nada menos que 1/3 do público continuava preferindo a opção antidemocrática (Maravall, 1993:91), mas isso não impediu que o regime se consolidasse. Na realidade, se o fenômeno de desempenho governamental fosse o fator mais decisivo para determinar o fenômeno de legitimação democrática, seria difícil explicar, nas condições de forte instabilidade econômica e de inflação vividas por vários desses países, porque os seus cidadãos se sentiram mais estimulados que os brasileiros a apoiarem a democracia. Isso indica que, sem menosprezar esse fator, é necessário buscar uma explicação mais complexa para o fenômeno.


A hipótese seguinte contempla, precisamente, uma explicação mais interessante, uma vez que combina a análise de duas dimensões distintas, a simbólica e a instrumental: partindo da premissa de que a experiência autoritária brasileira constituiu-se em um dos poucos casos de relativo êxito econômico na família dos autoritarismos latino-americanos — expresso na vigorosa modernização econômica e social impulsionada pelos governos militares — e, ademais, que ela teria envolvido formas de repressão bastante menos brutais do que as verificadas em países como Argentina, Chile e Uruguai, alguns autores sugeriram que a avaliação dos públicos brasileiros sobre o autoritarismo revelou-se menos crítica que a dos seus vizinhos, tendo originado, mais do que as bases da legitimação democrática, atitudes de apoio ou de indiferença diante do regime anterior. O "paradoxo do sucesso", como essa situação foi designada por 0'Donnel (1989), teria tornado menos traumática a experiência autoritária brasileira e, ao mesmo tempo, mais leve a sua memória, justificando uma atitude de maior complacência do público diante dos governos militares e em conseqüência, de menor interesse pela alternativa democrática. A explicação ajuda a entender, em alguma medida, o fato de ainda hoje existirem cerca de 1/3 de brasileiros que manifestam expectativa positiva quanto à "volta dos militares ao poder"; mas ela é insuficiente para desvendar as razões pelas quais, mesmo em meio à grave crise econômica e social experimentada pelo país, parcela substancial de entrevistados, que antes preferia a ditadura ou mantinha uma atitude de "indiferença" diante do regime político, agora prefira declarar-se democrata: claramente esses aspectos não se referem a um único e mesmo fenômeno, cada componente seu mostrando que se subordina a lógicas distintas. De fato, solicitados a avaliarem — na pesquisa de março de 1993 — as situações econômica e dos direitos humanos do novo regime democrático, em comparação com os últimos dez anos do regime autoritário, a maioria dos entrevistados mostrou que continua preferindo o regime democrático, independentemente da direção de suas avaliações: de fato, os que acham que a situação econômica do país piorou são 51%, mas a maioria deles (isto é, 67% desse total) definem-se como "democratas". Quanto à situação dos direitos humanos, 44% de brasileiros consideram que hoje ela é melhor do que a que tinha antes de mudar o regime político, enquanto 30% acham que a situação ficou igual, e apenas 26% acham que a situação piorou; mas, ao contrário do que a hipótese do "paradoxo do sucesso" faria supor, também os que acham que a situação "ficou igual ao que era antes" escolhem em primeiro lugar a alternativa democrática, para, em seguida, praticamente empatarem na preferência por uma atitude de "indiferença" ou de apoio ao regime autoritário. A tabela 1 também revela que existe diferença na intensidade da associação dos dois pares de variáveis, a associação mais forte sendo a do cruzamento da situação dos direitos humanos com a preferência por regime político, quando comparada com a da situação econômica com este ultimo: ou seja, vistas por esse ângulo, a variável simbólica mostra efeito mais intenso que a variável instrumental para determinar a democratização. Entretanto esses testes não são totalmente suficientes para permitir formular-se uma conclusão definitiva sobre a questão, mesmo se os dados sugerem, como visto antes, que a hipótese do "paradoxo do sucesso" precisa ser enriquecida pela inclusão de outros fatores, para tornar-se capaz de explicar o fenômeno da relativa fragilidade da escolha democrática no Brasil.

A terceira hipótese, correspondente a este estudo, constitui-se, precisamente, em uma tentativa de desvendar melhor a complexidade do fenômeno de legitimação política a partir da sua natureza multidimensional e da situação brasileira. Supondo que ele é determinado, em grande medida, pelos efeitos da exclusão social mas, ao mesmo tempo, por fatores essencialmente políticos, a alternativa evoca a natureza multidimesional do fenômeno, isto é, combina a interverniência de variáveis estruturais, instrumentais e simbólicas. Sem excluir a influência da performance econômica ou da avaliação dos governos, estima que a existência de tradição democrática mais arraigada em outros países separa o Brasil dos outros casos mencionados; ao mesmo tempo, considera que o desempenho claramente insuficiente das lideranças políticas brasileiras, no enfrenta-mento dos dilemas institucionais da democratização, influi decisivamente para que os níveis de adesão à democracia no Brasil sejam mais baixos; por isso, além de comparar o quadro econômico entre regimes, bem como a importância de fatores estruturais como a escolaridade, examina também a influência que tem a avaliação do Congresso Nacional, da situação dos direitos humanos e do interesse provocado pela política entre os entrevistados para a definição de sua preferência por regime político. A idéia é que essas variáveis de avaliação política do processo condicionam e completam o quadro de determinações das escolhas políticas.

Para verificar isso, foram realizados séries de testes estatísticos (de Qui Quadrado) visando definir, por um lado, a força da associação das variáveis independentes com a que expressa o comportamento dos entrevistados sobre os regimes democrático e ditatorial ou as posições de "indiferença" ou "ignorância" e, por outro, o efeito das interações das variáveis independentes sobre a dependente. Os resultados podem ser resumidos da seguinte maneira:

1. Em primeiro lugar, verifica-se que, polarizando-se as respostas dos entrevistados, isto é, considerando-se apenas os seus extremos ("pior" vs. "melhor", avaliação negativa" vs. "positiva", "baixa" vs. "alta" escolarização e assim por diante), quase todas as variáveis independentes — excessão feita à situação dos direitos humanos — afetam as categorias básicas "democracia", "ditadura" "tanto faz" e "não sabe" em um sentido decrescente, isto é, quanto piores ou mais negativas são as avaliações da economia, do Congresso Nacional, e menor o interesse por política ou mais baixa a escolarização, maior a porcentagem de entrevistados que escolhem as quatro categorias. Isso poderia provocar alguma confusão interpretativa, razão pela qual é necessário examinar as diferenças de porcentagens entre "pior" e "melhor", "baixa" e "alta" e assim por diante: observa-se, então, que as avaliações negativas da economia e do Congresso Nacional afetam mais intensamente a preferência dos entrevistados pela ditadura, enquanto os níveis mais baixos de escolarização e de interesse por política afetam — nessa ordem — particularmente as preferências por "não sabe", "tanto faz", "ditadura" e "democracia", ou seja, afetam muito mais qualquer outra alternativa do que a escolha democrática. Isso deve-se à grande porcentagem de brasileiros que, apesar de tudo, preferem a democracia; mas os dados também mostram que, com sentido crescente, a variável relativa à situação dos direitos humanos afeta exclusivamente a escolha democrática: quanto mais avalia-se que a situação melhorou, mais se prefere a democracia. Ou seja, a escolha democrática aparece determinada mais pelas variáveis políticas do que pelas instrumentais ou estruturais que, por sua vez, tendem a influenciar mais as outras categorias;

2. Em segundo lugar, examinando-se particularmente as interações das variáveis intrumentais e estruturais com os outros indicadores independentes sobre a variável dependente, observam-se algumas modificações importantes no padrão anterior: (a) o efeito da avaliação da economia, dependendo de sua combinação com as outras variáveis, afeta só a democracia e a ditadura ao combinar-se com a educação; afeta só a ditadura ao interagir com a avaliação do Congresso Nacional; só a opção "tanto faz" ao combinar-se com o interesse por política, mas afeta de modo crescente a preferência pela democracia, "tanto faz" e "não sabe" (nessa ordem) se a interação é com a avaliação do público sobre a situação dos direitos humanos; (b) o efeito da educação, quando essa variável é combinada com outras (exceção feita à avaliação do Congresso Nacional), exerce-se exclusivamente sobre as categorias que envolvem a escolha de algum valor político, isto é, democracia e ditadura, in-existindo para as preferência pela democracia, "tanto faz" e "não sabe" (nessa ordem) se a interação é com a avaliação do público sobre a situação dos direitos humanos; (c) o efeito da educação, quando essa variável é combinada com outras (exceção feita à avaliação do Congresso Nacional), exerce-se exclusivamente sobre as categorias que envolvem a escolha de algum valor político, isto é, democracia e ditadura, inexistindo para as preferências "tanto faz" e "não sabe"; o efeito é igual, isto é, tem a mesma força4 4 Medida pelo coeficiente Phi (uma medida da intensidade da associação entre duas variáveis nominais quando ambas forem dicotômicas). para a interação entre educação e a situação dos direitos humanos, mas é mais intenso para a preferência democrática quando a interação verificada é entre educação e interesse por política. Por outras palavras, interagindo com as outras variáveis, os fatores instrumentais e estruturais mostram que afetam, efetivamente, a escolha democrática e/ou a escolha autoritária, mas esse efeito depende de como se dá a combinação: quando ela é com as variáveis simbólicas, o efeito é maior sobre a escolha democrática;

3. Finalmente, os resultados revelam-se bastante diferenciados quando se observa, exclusivamente, o efeito da interação das variáveis de natureza política entre si: (a) no caso da variável relativa ao interesse por política, só a preferência pela democracia é afetada quando a interação é com a avaliação do Congresso Nacional, e pela democracia e por "não sabe" quando a interação é com a avaliação dos direitos humanos, sendo mais forte para a última categoria; por último, a interação entre a avaliação do Congresso Nacional e a situação dos direitos humanos afeta exclusivamente a preferência pela democracia.

Mesmo sem elucidar de modo definitivo as indagações que motivaram os testes, a interação entre essas variáveis sugere, no entanto, alguns padrões: a influência mais importante de todas as variáveis consideradas é, em primeiro lugar, sobre a preferência pelas categorias que envolvem valores políticos, isto é, a escolha da democracia ou da ditadura, e, em outros casos, mais sobre uma do que sobre outra categoria (somente a avaliação negativa da economia e da situação dos direitos humanos foge a esse padrão); mas, enquanto as interações que envolvem a avaliação da economia produzem efeitos abrangentes, afetando as preferências pela democracia ou ditadura e, também, "tanto faz" e "não sabe", dependendo de sua combinação, as interações entre educação e as outras variáveis ou entre as varáveis políticas entre si incidem, primordialmente, sobre as preferências pela democracia ou ditadura e, preferencialmente, pela primeira. Isso indica que a escolha democrática — ou a sua negação — não se determina unilateralmente nem pela avaliação econômica dos governos nem pela simples avaliação do passado autoritário; importantes, certamente, para gerar legitimidade democrática, essas variáveis potencializam o seu efeito na combinação com as variáveis simbólicas ou políticas; em última análise, como os dados mostraram em alguns casos, pode-se afirmar, até, que a escolha democrática no Brasil depende de que se realize a combinação verificada entre as variáveis estruturais e instrumentais com as variáveis políticas: sem essa combinação, essa escolha não ocorre.

Reconhecer a importância desses fatores políticos para a democratização brasileira — trata-se, na verdade, de fatores de "atraso" político relativo — implica reconhecer, ao mesmo tempo, a existência de desenvolvimento democrático mais acentuado em países como Argentina, Uruguai, Chile e Espanha. Isso se expressa, por exemplo, no fato de que, enquanto a sociedade brasileira ainda se esforça, na atualidade, para constituir e consolidar um sistema partidário, nesses países partidos criados no final do século passado ou nas primeiras décadas do atual jogaram papel decisivo na condução do processo de democratização. De fato, independente das transformações por que passaram ou estejam passando, coube aos partidos argentinos Justicialista e Radical, por exemplo, bloquearem as iniciativas dos militares, após a sua derrota na Guerra das Malvinas, para controlar o processo de transmissão do poder aos civis (Catterberg, 1989); no Brasil, pelo contrário, partidos cuja identidade estavam em questão na fase final da transição — o PDS e o PMDB — aceitaram que os militares bloqueassem a convocação de eleições diretas para a formação do primeiro governo democrático.5 5 O último presidente do ciclo militar brasileiro, general João Figueredo, declarou, em fevereiro de 1994, em entrevista à "Folha de S. Paulo", que o presidente Tancredo Neves, embora apoiasse publicamente a campanha das eleições diretas, em 1984, negociou com os dirigentes do antigo regime a manutenção das eleições indiretas na passagem do poder dos militares para os civis. Do mesmo modo, não apenas a derrota do regime militar chileno no plebiscito de 1988, mas, principalmente, os acordos que constituíram as sólidas bases de apoio político para que a "Concertación Democrática" chegasse ao poder e pudesse governar, malgrado a presença do "enclave" autoritário representado pela presença de Pinochet no governo, tudo isso dependeu, essencialmente, da iniciativa das lideranças dos partidos Socialista e Democrata Cristão durante a democratização (Garreton, 1992). Em contraste com a experiência desses países e também com os casos da Espanha e do Uruguai, no Brasil os partidos políticos começavam a reconstituir-se na passagem de um regime para outro, mas as próprias regras de organização e funcionamento dos partidos, negociadas e estabelecidas pelos políticos democratas, reforçaram os bloqueios do seu desenvolvimento (Lamounier e Meneguello, 1986); em vista disso, mais do que guiar-se por seus próprios objetivos, os partidos foram incapazes de definir um estratégia clara de democratização, agindo, na maior parte das vezes, de forma essencialmennte reativa diante das iniciativas dos dirigentes do Estado autoritário (Martins, 1989).

Além disso, os líderes políticos da transição brasileira foram extremamente incompetentes no enfrentamento de distorções que, ao longo do tempo, têm sido responsáveis pelo desprestígio da atividade política e, até, de instituições fundamentais como o Congresso Nacional e os partidos políticos. A própria Constituição de 1988 preservou, na reestruturação do sistema político brasileiro, formas deficitárias de representação política, reforçando padrões de relação entre os poderes que geram a paralisia administrativa do Executivo, mantendo autonomia excessiva dos políticos em face da sociedade, bem como garantias de sua impunidade diante de práticas de corrupção, de "favoritismo" e de privatismo. Os reflexos disso, mesmo se a tendência geral predominante é democrática, acabaram por refletir-se em níveis mais baixos de apoio às instituições democráticas fundamentais como os parlamentos e os partidos políticos no Brasil; isso não contraria tendências já notadas de crescimento de taxas de identificação ou preferência partidária, mas mostra que enquanto quase metade do eleitorado referiam-se aos partidos políticos, a outra metade ainda tem razões muito fortes para continuar distantes deles. A importância dessa "diferença específica" para a democratização transparece claramente da experiência chilena: embora, do mesmo modo que no Brasil, a educação seja fator determinante da escolha democrática pelo público de massas, nesse país, diferenciando também lá os seus estratos, a atitude favorável aos partidos políticos funciona como um fator de "equilíbrio" diante dos efeitos nagativos daquela variável, isto é, ajuda a robustecer os porcentuais da população que aderem à democracia mesmo entre os estratos com níveis de escolarização mais baixa (Baño, 1990).

PERSPECTIVAS

As pesquisas mostram que a escolha democrática cresceu, no Brasil, nos últimos anos. Mas os dados empíricos não esclarecem se a atitude de quase 2/3 dos cidadãos brasileiros que, por exemplo, optaram em 1993 pelos valores da democracia, é suficiente para resolver o problema da estabilidade do novo regime político. A questão assume toda a sua relevância quando os dados brasileiros são comparados com os de países latino-americanos e europeus que viveram (ou estão vivendo) processos semelhantes de democratização.

Embora importante na literatura de política comparada, não há acordo entre os autores (como, alias, no que toca à maior parte dos problemas empíricos de que as ciências sociais se ocupam) sobre o nível de apoio indispensável para que um regime político se estabilize. As posições variam entre, por um lado, os que se inclinam por um visão consensualista da democracia, isto é, que adotam a premissa de que para que ela se consolide e tenha continuidade no tempo é necessário que, praticamente, a unanimidade dos membros da comunidade política aceitem as suas regras fundamentais (Chalmers: 1966); e, por outro, os que preferem uma concepção conflitualista da democracia, ou seja, que presumem que, se é necessário que pelo menos a maioria dos membros de uma comunidade política esteja de acordo com suas regras de procedimento, isso não significa que todos devam fazê-lo: pode haver, sempre, uma minoria que, pelos mais diferentes motivos, gostaria de experimentar outras alternativas ou, mesmo, não participar do funcionamento da democracia (Bobbio: 1986).

Enquanto a primeira posição implica um pressuposto que pode, facilmente, virar-se contra o próprio princípio democrático, por representar a possibilidade de uma imposição da maioria sobre a minoria, a segunda acentua uma atitude de respeito essencial à diversidade e ao pluralismo, mesmo quanto à crítica dos méritos da democracia, sem que isso represente qualquer ameaça de sua destruição. Deixando-se de lado a primeira alternativa por causa da sua natureza claramente antidemocrática, a posição dos que advogam a necessidade de um consenso democrático majoritário para que a democracia exista, mesmo que não unânime, não é menos problemática. Como definir o nível de consenso "não-unânime" necessário à consolidação democrática?

Analisando a questão a partir da experiência chilena, Angel Flisfisch (1987) sugeriu, recentemente, que o problema consiste, em grande parte, em traduzir a questão teórica em termos práticos, isto é, em alguma fórmula capaz de operacionalizar o problema para fins de conhecimento. Em última análise, tratar-se-ia de escolher arbitrariamente uma equação matemática capaz de expressá-la em uma magnitude mensurável; aceitando-se, então, que a maioria que conforma o consenso democrático mínimo é necessariamente relativa, isto é, nunca é absoluta, nem implica sempre unanimidade, seria necessário adotar algum critério capaz de definir a magnitude dessa maioria relativa, isto é, o volume de apoio dos membros da comunidade política suficiente para estabilizar o regime democrático. É evidente que, em princípio, quanto mais apoio à democracia, mais possibilidade do regime legitimar-se, mas o problema é o limite aceitável para esse apoio.

Do ângulo da política comparada, no entanto, a questão não é tão simples, porque se refere a experiências históricas e culturais muito diferentes entre si, a controvérsia podendo sempre receber respostas distintas, e todas serem consideradas válidas. Por exemplo, para países de tradição democrática reconhecidamente forte — como os Estados Unidos ou a Inglaterra — a existência de taxas de 50% a 60% de adesão normativa do público de massas à democracia, após um período hipotético de experiência autoritária, poderia certamente ser vista como indicação de legitimidade precária ou de sua virtual inexistência; para outros países, no entanto, onde aquela tradição é sabidamente mais frágil ou onde nunca chegou a se consolidar inteiramente — Brasil, Rússia, África do Sul ou Iraque, para mencionar apenas alguns casos — tais índices poderiam bem ser interpretados como um sinal positivo, isto é, como indicação de que, pela primeira vez, começa a existir uma base real para que a legitimidade do regime possa estabelecer-se. Com qual critério ficar, então?

Apoiando-se nas elaborações de Michel Mann (1965) sobre a integração normativa dos públicos de massa na Inglaterra e nos Estados Unidos, Flisfísch tentou uma saída ao propor a adoção de um esquema de cinco níveis de dissenso e consenso democráticos — definidos pelas taxas de preferência dos indivíduos a respeito do regime político — para classificar os países em processos de democratização (ver Quadro 5). A idéia é que, mesmo aceitando-se que outros fatores também concorrem para consolidar a democracia, a existência de tendências atitudinais capazes de expressar dissenso ou consenso em torno da democracia revela o patamar até onde uma dada sociedade conseguiu avançar na legitimação do seu regime político. Em qualquer caso, como mesmo Flisfisch reconhece, a decisão sobre o volume de apoio a partir do qual se considera que um regime político está em vias de estabilizar-se é sempre arbitrária, isto é, depende de como cada analista considera o presente de uma dada sociedade em relação ao seu passado político; no caso do Chile, aliás, levando em conta a sua tradição democrática mais forte, em meados da década passada esse autor fez uma avaliação relativamente pessimista (Flisfisch, 1987).


Aceitando-se acriticamente a sugestão de Flisfisch, o Brasil seria classificado como vivendo uma situação de dissenso puro e simples ou, então, em uma situação que caminharia para o dissenso democrático; ou seja, embora conte com uma base em torno de 60% de apoio de massas para a sua estabilização — algo inédito em sua história republicana — a adesão dos brasileiros aos valores democráticos seria considerada insuficiente para produzir o fenômeno de estabilização da democracia. O problema, no entanto, é que o caso brasileiro exemplifica com clareza a relatividade do critério proposto, porque, ao examinar-se o contexto e as circunstâncias da sua democratização, outros fatores têm de ser levados em conta, tornando os resultados menos pessimistas.

Seja por causa dos efeitos das enormes desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira, seja por causa do caráter incompleto do seu processo de modernização ou seja ainda porque — considerada em sua autonomia específica — a ação das lideranças democráticas não teve sempre o sentido inovador esperado delas, deixando bastante incompleta a tarefa de institucionalização requerida pela mudança de regime — o fato é que as transformações políticas dos últimos dez anos não produziram taxas de aceitação democrática que cheguem a 2/3 do público de massas no Brasil; antes, bloquearam o desenvolvimento da nova cultura democrática, ao distinguir "integrados" e "desintegrados" em relação à vida pública. Com efeito, se a experiência negativa do autoritarismo redirecionou a preferência de elites e de "não-elites" em relação ao regime anterior, ao revelarem-se desiguais entre os diferentes grupos sociais, suscitando níveis diferenciados de interesse e de reação diante do novo regime, os efeitos desiguais da modernização combinaram-se com sobrevivências do autoritarismo, com a preservação de estilos políticos tradicionais e com os déficits de funcionamento das instituições de representação. A conseqüência disso é a continuidade de padrões de apatia política e de afastamento de amplos segmentos da população da vida política.

Mesmo assim, um consenso democrático "semi-majoritário" está-se formando progressivamente no Brasil. Ele é relativamente frágil, comparado com o existente em outros países de tradição democrática mais forte, mas a disposição atitudinal que mobiliza pode ajudar a quebrar-se o círculo vicioso de uma tradição política antidemocrática ou pouco-democrática. A questão, então, converte-se em saber que iniciativas ou que inovações podem e devem ser tomadas para que essa base atitudinal inicial possa se expandir e, por exemplo, compensar os efeitos negativos da tradição democrática mais fraca existente no Brasil em comparação com outros países. Mas a existência dessa base inicial é um fator positivo a ser levado em conta por quem quer que se interesse pela sorte da democracia no país.

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    Este artigo é parte do livro
    Os brasileiros e a democracia, a ser publicado pela Editora Ática. A pesquisa em que o livro se baseia foi desenvolvida no âmbito do Convênio CEDEC/ Programa de Política Comparada da USP.
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    Ao lado da dimensão atitudinal, objeto deste estudo, o comportamento concreto dos atores políticos
    é fator decisivo para evidenciar se a legitimação de um regime político, mesmo se limitada, está ocorrendo. O fato de não existir, no início dos anos 90, entre os diferentes segmentos que formam o espectro político brasileiro, iniciativas concretas de ação fora e/ou contra a ordem democrática é, em si, indicação de ausência do risco mencionado. Mas isso não quer dizer que, existindo atores políticos que defendam explicitamente a quebra dessa ordem, os públicos de massa que se definem como "autoritários" ou mesmo "indiferentes" não possam crescer. Duas condições são decisivas para isso: (a) a existência de uma alternativa viável à opção democrática; e (b) razões de ordem imediata, mais fortes que a manutenção do apoio à democracia, capazes de justificar a aceitação da alternativa antidemocrática; essas condições inexistem, no momento, no Brasil.
  • 2
    A relação entre legitimidade e efetividade políticas tem sido amplamente discutida pela literatura de política comparada (Lipset, 1959; Linz, 1988; Maravall, 1993). Depois de largo período de tempo em que a primeira foi considerada como estritamente dependente da segunda, a tendência recente tem reconhecido — como mostra a evidência empírica do caso brasileiro — que existe uma considerável margem de autonomia entre essas duas dimensões. Maravall (1993:92) sugeriu, no entanto, que mesmo aceitando que essa autonomia existe, ela é mais limitada nos estágios iniciais da democratização, quando os problemas de eficácia e de efetividade políticas têm grande impacto na legitimação do novo regime. Os dados brasileiros não contrariam essa sugestão, mas indicam que a autonomia pode ser maior do que supõe esse autor.
  • 3
    Em realidade, os dados apresentados no
    quadro 3 relativizam, em parte, o diagnóstico de que a situação do Brasil é completamente diferente daquela encontrada nesses países: ela é semelhante, em alguns casos, pior em outros e até melhor em alguns aspectos; aliás, também em Portugal, no fim da década de 70, as pesquisas mostraram que, como no Brasil, nada menos que 1/3 do público continuava preferindo a opção antidemocrática (Maravall, 1993:91), mas isso não impediu que o regime se consolidasse.
  • 4
    Medida pelo coeficiente Phi (uma medida da intensidade da associação entre duas variáveis nominais quando ambas forem dicotômicas).
  • 5
    O último presidente do ciclo militar brasileiro, general João Figueredo, declarou, em fevereiro de 1994, em entrevista à "Folha de S. Paulo", que o presidente Tancredo Neves, embora apoiasse publicamente a campanha das eleições diretas, em 1984, negociou com os dirigentes do antigo regime a manutenção das eleições indiretas na passagem do poder dos militares para os civis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1994
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