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URSS 70 anos depois da revolução

POLÊMICA

URSS 70 anos depois da revolução

Adriano Guerra

Ex-correspondente do jornal L'Unita em Moscou e diretor da Centro de Estudos de Política Internacional do Partido Comunista Italiano (PCI)

Dando sequência à polêmica iniciada no número anterior

sobre a União Soviética, retomamos o tema com artigos de

Adriano Guerra e Ernest Mandei que nos apresentam

perspectivas analíticas diferentes, dando assim

continuidade à busca de Lua Nova em proporcionar um

debate pluralista.

Kruschev e Gorbatchev

Quando solicitados - pela presumida repetição dos fenômenos históricos - a comparar experiências, homens e épocas diversos, o risco mais grave que corremos é o de colocar de lado as diferenças, senão o de relegá-las ao esquecimento; enfatiza-se, em geral, as semelhanças. Reitero a presença deste risco quando comparamos - e isto, atualmente, tem acontecido com frequência - Kruschev e Gorbatchev.

Não faríamos mal, portanto, se começássemos dizendo que, acima de tudo, a atual União Soviética não é a mesma de 1956 (da qual já nos separam mais de trinta anos), nem tampouco a mesma de 1964. De igual forma, devemos levar em conta as diferenças de formação política e cultural; além de estilos e de atitudes, entre Kruschev e Gorbatchev. De um lado, a rudeza camponesa do primeiro, aquela figura forte que parecia sair de uma ilustração da velha Rússia, aquele incrível chapéu, o uso e abuso dos provérbios, os gestos grosseirões; uma personagem cuja vida e ascensão transcorreram sob a direção de Stalin - com tudo o que isto significou -, uma trajetória que ainda se viu atravessada pela guerra. De outro lado, inversamente, uma experiência iniciada nos bancos escolares, exatamente nos anos da desestalinização; por isso mesmo, outras leituras, outras relações, outros ambientes - nos quais se formou um dirigente que aprendeu a utilizar-se, além dos instrumentos tradicionais de poder, da televisão e das entrevistas à imprensa, de uma forma bastante significativa.

Há, entretanto, um dado que permite unificar os dois nomes e as duas experiências, comum tanto a Kruschev como a Gorbatchev: a consciência da realidade - e, ao mesmo tempo, da natureza - da crise da União Soviética, ou melhor, da crise do socialismo soviético e da necessidade de enfrentar esta crise através de uma nova orientação, de uma virada política. Justamente porque a palavra crise subentende muitos significados, talvez seja bom esclarecer que não estamos nos referindo a fenômenos conjunturais e, portanto, passageiros (a curva que sobe para depois cair, antes de subir de novo), mas de alguma coisa bastante mais complexa, que diz respeito ao próprio destino do modelo soviético, do socialismo soviético - tal como ele veio se formando desde os anos 20 e 30.

De resto, não foi por acaso que falei de crises, e de crises com a mesma natureza, em anos e épocas diferentes (1956/64 e 1981/87). Talvez seja útil, para esclarecer melhor a questão, tentar individualizar mais concretamente os elementos constitutivos deste "socialismo soviético"- que se formou nos anos precedentes à II Guerra Mundial e que enfrenta hoje uma crise que põe em discussão alguns de seus aspectos fundamentais. Para contribuir à formação do socialismo soviético há, antes de mais nada, um certo modo de conceber o acúmulo socialista, ou antes, uma certa forma de enfrentar o problema da superação do subdesenvolvimento, fazendo recair sobre o campo, sobre a agricultura, os custos da industrialização. E estabelecendo ainda, no interior da primazia da indústria sobre a agricultura, a primazia da indústria pesada sobre a indústria leve.

Um segundo elemento característico do socialismo soviético é o papel atribuído ao Estado. O Estado proprietário, portanto, o Estado patrão, a estatização como sinônimo de coletivização. A direção estatal burocrática, da economia e da sociedade.

Daí provém o terceiro elemento constitutivo do socialismo soviético: o partido-Estado, um partido único que coincide com a gestão, com o governo.

Da definição do papel do Estado e do partido-Estado deriva um outro elemento importante e específico do socialismo soviético: trata-se de um particular pacto social e uma certa forma de obter o consenso por instrumentos totalmente particulares a esta sociedade: a garantia no emprego e um salário mínimo estabelecido em fábricas, e escritórios, lugares onde - não se esqueçam - não havia relógio de ponto porque o custo do trabalho não era tido como elemento significativo da política econômica. conseqüentemente nada de "ritmos estressantes", nem de "disciplina férrea"; um sistema de preços políticos - para a moradia (mesmo que em co-habitação), para os produtos essenciais, para o estudo; um certo uso de ideologia, da "doutrina do socialismo", como instrumento de massificação. E havia justapostos as estruturas de repressão, previdências administrativas, regime policialesco, processos, Gulag. Não me estendo mais porque são coisas sabidas.

O que freqüentemente não é considerado, porém, é a forma como se cruzam e se combinam as estruturas de consenso e as de repressão.

Ora, quando falava das crises do socialismo soviético, estava a tratar do sistema gerado a partir destes elementos que acabei de indicar. O fato é que tornou-se impossível garantir o ulterior desenvolvimento econômico, social, civil e cultural do país mantendo aquele mecanismo a que nos referimos, e é desta consideração que devemos partir.

Por esse motivo, não estou de acordo com os que sustentam que, com Brejnev, teria havido simplesmente uma redução significativa dos índices da economia soviética, redução esta visível e grave, mas natural. Mesmo se se limita este discurso apenas ao quadro econômico, esta análise é insuficiente - ocorreu um processo mais amplo e mais difícil. Entre 1975 e 1979 ( o ano mais duro da crise), vislumbrou-se o risco de crescimento zero, com a queda de todos os índices da agricultura e da indústria da URSS - fenômeno concomitante a todos os países do socialismo soviético. Tornou-se evidente, então, que o padrão de desenvolvimento alcançado não era mais governável com os métodos e as políticas que haviam servido para atingi-lo; a crise não "estourou"repentinamente, mas amadureceu no bojo de uma progressiva ampliação do contraste entre desenvolvimento e exigências do desenvolvimento, de um lado, e métodos e políticas da direção central, de outro.

Para entender as sucessivas manifestações de crise, é preciso recuar no tempo. Para um primeiro e signficativo ponto de partida do discurso sobre a natureza da crise - que Kruschev ontem e Gorbatchev hoje encontraram - deve-se voltar aos dias imediatamente seguintes à morte de Stalin - quando o grupo dirigente soviético se encontrou, subitamente, às voltas com as contas de uma herança extremamente pesada e, sob certo aspectos, até mesmo desconhecida.

Não falarei aqui, centralmente, dos aspectos mais dramáticos - e também mais conhecidos - da herança de Stalin, mas daqueles aspectos que permaneciam nas sombras, relativos ao sistema político.

A gravidade do problema estava no fato de que era impossível substituir Stalin por um outro dirigente e, assim, utilizar para a sucessão o sistema de direção que até então havia funcionado, apenas alterando o vértice da pirâmide. Não existiam, por outro lado, outras estruturas de direção. O que fazer, então? Mesmo se encontrando diante de problemas que exigiam soluções urgentes - muitas vezes, problemas os mais dramáticos -, a primeira e mais grave questão que os herdeiros de Stalin tiveram que enfrentar foi, de fato, a questão do sistema político.

Naquelas primeiras reuniões de março-abril de 1953, foram lançadas algumas reformas, certamente improvisadas, que não devem ser ignoradas exatamente pelo que nos dizem, ou podem nos dizer, sobre a natureza do socialismo soviético. Em primeiro lugar, decidiu-se liquidar com as estruturas de direção pessoal, desativando a secretaria particular de Stalin - um organismo não previsto em qualquer estatuto ou regimento, mas que possuía mais importância que o politburo e que o governo.

Mas o que colocar no lugar de Stalin e de sua secretaria? Nasceu então, ou renasceu, a fórmula da "direção colegiada", com algumas características totalmente especiais, como o aumento do papel do chefe do governo - portanto, do governo - em relação ao partido e ao seu secretário-geral. Naquele primeiro período da "era pós-Stalin", o dirigente soviético mais poderoso, o "número um", era Malenkov, presidente do Conselho de Ministros. Kruschev, que era então apenas secretário do partido, não era considerado tão importante.

Um outro procedimento reformador dizia respeito ao problema - delicadíssimo e fundamental - da direção e do controle das estruturas de repressão (polícia política, sistema dos Gulags), que tinham, com Stalin, conquistado um poder e uma autonomia enormes, mesmo em relação ao Partido que havia passado de controlador dos aparatos de repressão a controlado. Assim, decidiu-se unificar a direção da polícia (de todas as polícias) e do Ministério do Interior, colocando Beria à testa deste último - com o resultado que depois se verá.

Estes são, em síntese, os conteúdos da primeira reforma tentada para modificar o sistema político herdado de Stalin. Mas, naquelas primeiras reuniões, decidiu-se também providenciar reformas de vasto porte no campo da política econômica, as esquecidas reformas de Malenkov. Este, falando como chefe do governo na primeira sessão do Soviete Supremo que se deu depois da morte de Stalin, propôs golpear a fundo um dos elementos constitutivos do socialismo soviético, qual seja, a relação entre indústria e agricultura (e entre indústria pesada e indústria leve) - que, com Stalin, estava na base da política econômica da URSS.

Conhece-se qual foi o destino dessas primeiras reformas. Foram rapidamente postas de lado e os documentos que temos à disposição para determinar as causas de sua falência, ou seja, as atas de acusação contra Beria e a autocrítica de Malenkov, não nos dão certamente respostas satisfatórias sobre as razões de por que se voltou, tão rapidamente, à situação anterior. Estes documentos, entretanto, nos ajudam a entender que as questões levantadas - a da modificação do sistema político e a da modificação da relação entre "setor a"e "setor b"- eram e são, de fato, as questões centrais.

Sabe-se como caminharam as coisas. Kruschev veio ao centro do palco não como um reformador, mas como um restaurador. Ele, de fato, bateu-se então, por um lado, para modificar e mesmo inverter a relação partido-governo a favor do primeiro, atribuindo novamente ao partido o papel de guia, para repor, por outro lado, o princípio da "primazia da indústria pesada". Agindo assim - destronando Malenkov depois de haver contribuído para bloquear e derrotar, em circunstâncias dramáticas, a conspiração de Beria -, Kruschev se viu com um poder imenso nas mãos. Não havia mais direção colegiada, porém era ainda impossível, impensável, restaurar o modelo de direção pessoal de Stalin. A contradição que veio à luz em 1953 tinha então se tornado mais evidente. O Kruschev renovador nasce aqui, e nasce no momento em que, como secretário do PCUS, decide utilizar-se do poder que tinha em mãos para, do modo mais clamoroso, colocar Stalin sob acusação, com o "relatório secreto".

A demolição do mito de Stalin, completada então por Kruschev, foi um acontecimento de porte histórico que introduziu mudanças de grande relevância, tanto na União Soviética como no interior do que então se chamava de movimento comunista internacional. No entanto, já nas semanas e meses que se sucederam ao XX Congresso, apareceram de forma evidente e dramática, se recordamos os acontecimentos na Hungria, os limites e as contradições do caminho escolhido para sair do stalinismo. Mesmo porque, se o problema era modificar nitidamente elementos fundamentais do sistema, não se podia chegar a resultados significativos limitando-se à crítica a Stalin (ou melhor, o Stalin das repressões e do culto) e a augurar uma impossível "volta a Lenin"e à "democracia socialista"de Lenin.

De fato, o mecanismo do stalinismo - a primazia da indústria pesada, o partido-Estado, o velho pacto social - arranhado mas não eliminado pelas críticas a Stalin permaneceu de pé, bloqueando e progressivamente reduzindo a quase nada a linha do XX Congresso. Enquanto isso, a situação se agravava. O impulso do XX Congresso, o novo ar que se respirava, liberado do medo, tornavam, inversamente, sempre mais grave a contradição entre o crescimento ocorrido em todos os campos (com necessidades de liberdade e autonomia vinculadas a este crescimento), numa sociedade que exigia estruturas de sociedade civil, e a permanência das estruturas do monolitismo. Coube ainda a Kruschev enfrentar também esta contradição, seja relançando a questão de Stalin (como foi feito no XXII Congresso), seja tentando desenvolver tentativas de reforma verdadeiras e apropriadas.

Efetivamente, o Kruschev que mais se pode aproximar de Gorbatchev é exatamente esse último, e é bom dele se lembrar também para entender melhor sobre que bases e através de que linha problemática de uma reforma que ataque o mecanismo das decisões - isto é, o sistema político - tem estado continuamente presente, desde 1953, nos acontecimentos soviéticos.

As reformas propostas por Kruschev tiveram como objetivo, no plano econômico, a redução do poder das burocracias centrais. Houve assim uma drástica redução do número e do papel dos ministérios e, sobretudo, a decisão de dar vida aos sovnarcozes - os organismos territoriais relativamente autônomos, a meio caminho entre a produção, o ministério e o mercado -, de forma a determinar uma nova dialética entre centro e periferia e uma reforma do mecanismo de direção burocrática centralizada.

No plano político, a reforma de Kruschev se concretizou com a instauração do princípio da rotatividade dos quadros e da fixação de limites irrevogáveis à reeleição dos dirigentes e, sobretudo, com uma reforma profunda e real do partido. Assim, as organizações ligadas à agricultura foram separadas das vinculadas à indústria - e isto ocorreu em todos os níveis, de alto a baixo, e sobretudo no nível mais alto. O significado da reforma foi então, em geral, subvalorizado, mesmo porque o próprio Kruschev não fez muito para esclarecer as razões que o haviam levado a opções tão drásticas - e que pareceram então bastante estranhas e até incompreensíveis. Não obstante, evidentemente, no momento em que se faziam opções deste tipo, reconhecia-se de fato, ainda que implicitamente, que o monolitismo - pelo qual se entendia sociedade-partido-Estado como um to-o único -, se algum dia havia existido, não existia mais. Ou seja, havia pluralismo de interesses e era necessário que estes interesses diversos emergissem e que a dialética interna do Estado soviético viesse à luz.

Kruschev buscou localizar os elementos da dialética na agricultura e na indústria. Era, e hoje o sabemos melhor, uma visão simplista da realidade. A decisão de dividir o partido em dois e de realizar a unidade através do permanente confronto entre duas estruturas separadas, no entanto, indicava claramente - na medida em que não se podia e não se queria pôr em discussão o princípio do partido único, nem tampouco o do partido-Estado - que estava no partido, no sistema político, evidentemente, o problema a ser enfrentado.

Para provar e para afirmar que havia uma relativa consciência da necessidade de promover reformas significativas nesse campo, há também as novidades contidas, além de no Estatuto, no Programa do PCUS aprovado no XXII Congresso. No momento em que, por exemplo, se afirmava que da ditadura do proletariado se podia e se devia passar à "ditadura de todo o povo", abria-se um discurso que não podia deixar de considerar também as estruturas de participação. Não foi por acaso que estabeleceu-se, então, uma comissão que deveria preparar o projeto de uma nova Constituição. As reformas de Kruschev tiveram, como se sabe, breve duração. Os primeiros passos para trás ocorreram já no último período da sua gestão. Com grande pressa, no curso das primeiras duas sessões do Comitê Central realizadas após o afastamento de Kruschev, procurou-se fazer com que tudo voltasse ao que era.

No entanto, os próprios sucessores de Kruschev, no momento mesmo em que liquidavam os sovnarcozes e restabeleciam a unidade da organização do partido, detinham nas mãos instrumentos de direção totalmente inadequados. Desta forma, também eles tiveram que tentar a via das reformas: assim se passou entre 1965 e 1968 e se tratou de tentativas que, também desta vez, não diziam respeito sobretudo à economia.

Quanto ao sistema político, este foi, de fato, reconstruído pela direção colegiada, modificando de novo a relação partido-Soviete Supremo-governo, de forma a reduzir o papel do secretário do partido. Falava-se então da troika Brejnev-Kossyguin-Podgorny e se prepararam novas leis ( sobre o funcionamento dos Ministérios, sobre os poderes do Soviete Supremo e dos sovietes locais, sobre a propriedade colcosiana, sobre a reforma do código penal, sobre a família, etc) que eram apresentadas como momentos de um processo de desenvolvimento e de aperfeiçoamento da democracia socialista.

Ainda mais significativa foi a reforma econômica, aquela ocorrida em 1965. Sobre esta reforma não me estenderei, porque outros já a analisaram, ainda que para recordar como a "fase reformadora"de Brejnev também acabou rápido e mal. Assim, quanto à reforma política, não apenas se conseguiu, sob a liderança de Brejnev, liquidar novamente a direção colegiada, como até dar vida a um pequeno, caricatural, culto à personalidade. A nova Constiuição foi penosamente apresentada à opinião pública, mas depois que tinha perdido pelo caminho toda característica de renovação. O processo de "aperfeiçoamento da democracia socialista"se traduziu, por sua vez, na formação de uma nova fase de política repressiva, em particular contra o fenômeno da dissidência, surgido então como demonstração da existência de vozes novas e diferentes no interior de uma sociedade que se pretendia enquadrar na moldura de uma unidade monolítica.

Com relação à economia, em 1968 o processo reformador estancou - no momento em que se decidia a intervenção na Tchecoslováquia e em que, na União Soviética, as forças postas em movimento - por uma reforma baseada no cálculo econômico, no lucro administrativo, na redução dos índices centrais e no estabelecimento de um novo regime de autonomia das empresas - punham em discussão, no seu conjunto, o mecanismo das decisões e a organização dos interesses na sociedade.

Pensemos nos sindicatos: se se estimula a idéia de autonomia das empresas, nasce uma lógica que deve levar à contratação de uma relação de trabalho, ou seja, ao reconhecimento da autonomia dos trabalhadores em relação à gestão, ao Estado. E o que se disse sobre os sindicatos vale também para outras organizações. Foi, assim, no momento em que nascia a exigência de uma reforma política que a reforma econômica estancou: é significativo que, ao mesmo tempo que era primeiro criticada e depois atacada a reforma promovida por Ota Sick, na Tchecoslováquia, eram condenadas, na União Soviética, as idéias dos Nencimov, dos Birman, dos Liberman. A intervenção militar que pôs fim, em Praga, àquela que pode ser considerada a mais avançada tentativa de reformar o socialismo soviético, golpeou também os renovadores e os reformadores da URSS. Algo parecido ocorrera em 1956 com a intervenção na Hungria.

E levando isso em conta, e o que ocorreu a partir de 1975 - com a estagnação e a involução, que torna-se possível perceber, para voltar à relação Kruschev-Gorbatchev, um ponto significativo que os diferencia. Digo em poucas palavras: Gorbatchev deve acertar as contas, tal como Kruschev, com o que ficou de pé das estruturas do monolitismo e do stalinismo, mas diferentemente de Kruschev - mesmo com a falência de todas as tentativas até aqui procuradas, tanto por Kruschev como por seus sucessores - , terá que dar uma solução à crise com políticas de reforma. E isto, acrescento, num momento em que a contradição entre a sociedade e o poder tornou-se ainda maior e mais perigosa, como se viu na Polónia em 1970 e em 1980. Evidentemente, na base da crise polonesa havia razões e motivos especificamente poloneses e seria errado não levar isto em conta. No entanto, se relermos hoje os 21 pontos do acordo de Gdansk, comparando-os com o que atualmente diz Gorbatchev ou com o que se pode ler na imprensa soviética, é impossível não chegar à conclusão de que nos encontrávamos então - e nos encontramos - frente a manifestações da mais generalizada crise do socialismo de tipo soviético.

Assim se chegou a Gorbatchev e às novidades de seu discurso nascem exatamente da acentuação da gravidade da crise. Gorbatchev afirma que "assim não se pode avançar", que medidas de caráter radical, revolucionárias, são indispensáveis, sob pena de inexorável declínio. E que se trata de ir, com a reforma, muito além da economia. É claro que, até este momento,.ainda estamos, evidentemente, na fase das declarações de intenção, ou melhor, na fase de embate político, de idéias. Deve-se também dizer que o êxito deste embate não está, em absoluto, decidido. O que está colocado em jogo é portanto, de grande, de decisiva importância.

Limitar-me-ei a lembrar aqui alguns pontos do programa de Gorbatchev, começando com aqueles que pressupõem a redução, através da autogestão, do poder do Estado na economia e na sociedade, nas formas que caracterizaram até aqui o socialismo soviético. As propostas de eleger diretamente pelo voto dos trabalhadores os diretores administrativos e de atribuir tarefas novas aos coletivos operários vão nesta direção, assim como aquelas dirigidas a legalizar o trabalho privado, ainda que dentro de limites bastante restritos, e a permitir a constituição de empresas mistas abertas aos capitais estrangeiros. Com relação ao sistema político, contudo, a ênfase é posta não apenas sobre a recuperação de formas institucionais ou associativas existentes (dos sovietes às uniões profissionais, aos sindicatos) que perderam seu papel original, mas também sobre a necessidade - como falou explicitamente Gorbatchev - de criar formas novas, autônomas (pensa-se nos vários grupos para a defesa do ambiente, mas também nos de tradições mais nacionalistas, surgidos aqui e acolá, no que foi dito relativamente aos espaços que se propõem abrir aos "sem-partido"), decorre inevitavelmente o problema de uma mudança na própria colocação do partido na sociedade. Mas como fazer conviver no sistema de partido único a representação dos interesses e das idéias diferentes? Kruschev tinha tentado enfrentar o problema, como vimos, dividindo o partido em dois.

Gorbatchev parece pensar em alguma coisa menos complicada, mas mais radical. Os interesses diversos e as idéias diferentes da sociedade deveriam manifestar-se livremente através de estruturas associativas particulares e pré-políticas, tendo sempre como interlocutor político o partido (que teria assim o papel, não mais de guia da unidade monolítica, mas da dialética sociedade-Estado).

O debate sobre esses assuntos, no entanto, está apenas em seu inicio. A novidade está na forma nova com a qual se fala de democracia. "Temos tanta necessidade de democracia como de ar", diz Gorbatchev. Aqui estão também as diferenças com Khurschev: pela primeira vez, se fala de democracia sem adjetivos. Não se diz mais, como acontecia na época de Brejnev, que é necessário "reforçar", "melhorar", a "democracia socialista". Estamos frente a um discurso que, a meu ver, pode também abrir caminho para uma leitura diferente da relação entre fevereiro e outubro de 1917, daquela indicada por Strada. Compare-se o que Gorbatchev diz sobre a democracia com o Lenin de 1919, na polêmica contra Martov, Kautsky, etc. Mas o verdadeiro problema é: Gorvatchev tem consciência de que aqui é que está a grande questão? E ainda: é realístico pensar que se possa unir de uma nova forma, pondo fim a uma cisão que tanto tem pesado, a revolução de Outubro com aquela de Fevereiro?

Além de todos os esquematismos, o que é certo é que a "questão do socialismo"é hoje - e de resto não somente na URSS - a da recuperação plena das formas da democracia. E é sobre estes temas que há hoje, na União Soviética, novidades interessantes.

Outras novidades dizem respeito à política exterior: as diferenças entre Kruschev e Gorbatchev são, também aqui, notáveis. Kruschev era a favor da distensão, mas era também o homem do desafio, do "muro"de Berlim e dos mísseis em Cuba. Era, assim, portador de uma concepção da política de segurança ainda pré-nuclear, para a qual o problema era o de deixar intangíveis as fronteiras da URSS, melhorando em benefício próprio o equilíbrio de forças. Para Kruschev, deste modo, a guerra não era inevitável; era, porém sempre possível e percorrível. Em caso de guerra, e de guerra atômica, não a humanidade, mas o capitalismo é que sairia destruído.

Gorbatchev parte de uma idéia de segurança completamente nova. Na ânsia de buscar com tanta insistência um acordo com os Estado Unidos, a retirada do Afeganistão e um acerto com a Europa, está a idéia de que a segurança da URSS não pode mais ser garantida pela política de "fronteiras seguras", e tanto mais seguras se deslocadas em comparação com as do Estado. A segurança da União Soviética é a segurança da outra parte. Decerto, construir uma política sobre esta concepção de segurança não é fácil. Devem ser mudadas muitas coisas, na URSS e também na "outra parte".

São evidentes, portanto, as relações que unem e condicionam os projetos de reforma tanto na esfera da política externa como na da política interna. Daí a pergunta que todos fazem: obterão sucesso desta vez, com Gorbatchev, os fautores da reforma do socialismo soviético?

Creio que os otimistas exagerados esquecem com frequência algumas coisas que devem ser levadas na devida conta: a gravidade da crise que Gorbatchev enfrenta tanto na URSS quanto - e seguramente sobretudo - nos países do leste europeu; os limites político-culturais dos renovadores e do próprio Gorbatchev (seu projeto está adequado à sua análise sobre a situação? Tem consciência de todas as implicações decorrentes de um discurso sobre a democracia sem adjetivos?); e, por fim, a força real das oposições. Gostaria de dizer alguma coisa sobre este último ponto, porque às vezes se fala da luta entre reformistas e conservadores na URSS como se pertencesse não ao campo da política, mas da moral. Ou como se se tratasse, para os renovadores, de simplesmente libertar a sociedade de velhas idéias, hábitos e formas de pensar. É lógico que há também esta esfera de luta. Não é preciso esquecer, contudo, que contra a linha de reformas está, antes de tudo, a força dos interesses que são defendidos. O próprio sistema de privilégios é um sistema articulado, que vai da burocracia do Estado até a fábrica, até o último colcós. Não se trata, portanto, de lutar contra um punhado de corruptores, mas de acertar as contas com estratos sociais que têm - ou pensam ter - algo a perder com uma modificação do pacto social, ou seja, com uma política que, ao menos em sua fase inicial, prevê aumentos principalmente da produtividade, do ritmo e da disciplina de trabalho, e nem tanto dos salários e do consumo. Os reformadores devem, em suma, acertar as contas com o caráter conservador da sociedade soviética.

Dito isso, chamo a atenção de que os pessimistas, entretanto, esquecem com frequência que a iniciativa de Gorbatchev está agora reunindo forças importantes: intelectuais, mas também - e sobretudo - técnicos, operários especializados, especialistas que querem manifestar-se que são contra o igualitarismo e a burocracia. A prova do fato de que um diálogo novo está em curso entre poder e sociedade está também no dado de que um diálogo certamente difícil, mas real, foi aberto, entre algumas forças dissidentes, dentro - pensa-se em Sakharov - e também fora da URSS, e o poder soviético. São também provas de que a nova linha está em curso nas leis que são apresentadas (na imprensa, nas empresas, etc), muitas vezes como resultados de compromissos, mas que revelam que uma batalha incerta e difícil, mas importante, está sendo travada.

Resta dizer que se trata de uma batalha importante não só para os soviéticos, mas também para nós. Penso, assim, naquilo que foi dito por Giovanni Palmieri, sobre as razões que nos levam a olhar com interesse o que está se passando na URSS. Nos anos de Brejnev, com a intervenção no Afeganistão, com a colocação dos mísseis SS 20, etc, a política soviética certamente contribuiu para tornar mais grave a situação internacional. Por isto mesmo, é bom que as forças democráticas do Ocidente olhem para o que está ocorrendo agora em Moscou como uma batalha que, se internamente é pelo progresso, no plano internacional pode contribuir para dar origem a um sistema de relações adequado às situações e aos perigos atuais. É preciso, tanto no Ocidente como no Oriente, não apenas sair da lógica da guerra fria, mas construir um sistema de segurança apto a salvaguardar a paz na era nuclear.

tradução: Breno Altman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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