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O marxismo da "escolha racional": algumas questões de método e conteúdo

REFLEXÕES SOBRE O MARXISMO

ARTIGOS

O marxismo da "escolha racional": algumas questões de método e conteúdo* * Este é um capítulo do livro organizado por John Roemer, Analytical Marxism (Studies in Marxism and social theory), Cambridge University Press, 1986.

John E. Roemer** ** Tradução de Maria de Lourdes Nogueira Porto.

Professor de Economia da Universidade da Califórnia

I

Os comentários que se seguem referem-se a algumas questões de método e outras de pesquisa substantiva. Quanto ao método, acredito que a economia marxista tem muito a aprender . com a economia neoclássica. E quanto à agenda de pesquisas substantivas, penso que em muitos casos é o contrário que se verifica.

Não creio que haja uma forma específica de lógica ou de explicação marxista. Com muita freqüência o obscurantismo se protege atrás de uma yoga de termos especiais e de uma lógica privilegiada. A yoga do marxismo é a "dialética". A lógica dialética fundamenta-se em diversas proposições que podem ter algum interesse indutivo mas que estão longe de serem regras de inferência: as coisas transformam-se em seus opostos e a quantidade em qualidade. Na ciência social marxista a dialética é muitas vezes usada para justificar uma forma negligente de raciocínio teleológico. Os desenvolvimentos ocorrem porque devem ocorrer a fim de que a história alcance sua finalidade. As ações do Estado são, assim, explicadas pelas necessidades que os regimes existentes devem sustentar; o capitalismo fomenta o racismo e o sexismo no seio da classe operária porque estas ideologias debilitam o poder da classe operária e fortalecem o poder capitalista; os colégios educam mal as crianças da classe operária para manter o poder burguês. Estas conseqüências podem estar todas certas mas não podem ser demonstradas recorrendo-se aos "papéis históricos" que devem ter as entidades "Estado", "classe capitalista", "classe operária", "capital". Um marxista honesto, por exemplo, tem que se confrontar com o argumento ascético pelo qual a competência eliminará os diferenciais racistas de salário discriminatório pago pelos capitalistas maximizadores de benefícios no modelo competitivo, usual; se o divide-e-vencerás for realmente um fenômeno capitalista, o argumento a seu favor deve ser muito mais sutil1 1 Roemer, "Divide and conquer: microfoundations of the Marxian theory of discrimination", Bell Journal of Economics, 10, nº 2, outono de 1979, pp. 695-705, apresenta um modelo no qual a estratégia racional dos capitalistas individuais consiste em pagar salários discriminatórios a operários brancos e negros com o mesmo nível de experiência. . Não se pode explicar a existência de desemprego pela necessidade que tem o capital de manter uma dócil classe operária mediante um grande exército industrial de reserva, pois numa economia competitiva não há nenhum agente que cuide dos interesses do capital.

Ou seja, a análise marxista requer microfundamentos. Em linhas gerais as visões neoclássica e marxista da economia capitalista distinguem-se em que a primeira considera que a competência produz uma distribuição eficaz dos recursos, enquanto para o marxismo esta mesma mão invisível é uma mão vacilante. Crise, ineficácia generalizada, alienação, exploração e outros resultados semelhantes. O que os marxistas devem proporcionar são explicações de mecanismos, a nível micro, para os fenômenos que ocorrem, segundo eles, por razões teleológicas. Em certo sentido, o problema é paralelo ao que a economia burguesa enfrenta no momento de proporcionar microfundamentos à macroeconomia.

Há uma interpretação mais benigna (e suportável) da dialética. Jon Elster caracteriza a dialética como a conseqüência não intencionada da ação racional; mais especificamente, as distribuições subótimas resultantes da conduta individual otimizadora2 2 Elster, Making sense of Marx, Cambrigde University Press, 1985, cap. 1. . O exemplo padrão é o dilema do prisioneiro; os problemas da provisão de bens públicos e as situações caracterizadas por externalidades têm geralmente a propriedade de que nelas falha a mão invisível. Segundo Elster, Marx acreditava que a maioria dos processos dentro do capitalismo se caracterizava por este tipo de problema e que em conseqüência obtiveram o resultado "dialético" pelo qual os agentes otimizadores acabavam numa solução subótima. Um exemplo assinalado é a famosa teoria da taxa de lucro decrescente: a fim de elevar suas taxas de lucro individuais, os capitalistas introduzem inovações técnicas que provocam a redução no novo equilíbrio de todas as suas taxas de lucro. Embora o raciocínio específico de Marx seja teoricamente errôneo, exemplifica a dialética como desprovida da mão invisível.

Assim, tanto o raciocínio marxista como o neoclássico têm seus respectivos "Vícios com relação à teleologia. A economia neo-clássica padece de uma atitude panglossiana em relação às conseqüências da conduta não coordenada dos indivíduos. Embora não seja teleológico em relação às conseqüências da atividade do mercado e do comportamento individual, o marxismo afirma que a história, considerada globalmente, se dirige por si mesma a sociedades mais gloriosas, como o descreveu a teoria do materialismo histórico.

Ao se tentar proporcionar microfundamentos à conduta que os marxistas consideram característica do capitalismo, parece-me que os instrumentos par excellence são os modelos da escolha racional: a teoria do equilíbrio geral, a teoria dos jogos e o arsenal de técnicas de construção de modelos desenvolvidos pela economia neoclássica. Este método representa uma grande contribuição para a história intelectual do último século. Contra esta proposição pode-se levantar a acusação de que estes instrumentos se desenvolveram para fazer a apologia da nova ordem burguesa e para justificar o capitalismo e que por esta razão seu uso contamina necessariamente os resultados com uma sombra burguesa. Este é um argumento funcionalista, do tipo que criticavam. Se os marxistas desejam impugnar a imparcialidade intelectual dos modelos da escolha racional, devem mostrar com precisão onde se está fazendo o trabalho sujo. Que hipóteses deveriam ser mudadas? Em que sentido a caracterização da racionalidade é errônea? Existem críticas mordazes dos modelos da eleição racional. Mas elas não provêm predominantemente do setor marxista e sim dos psicólogos cognitivos que estão mostrando que há diversas formas pelas quais as pessoas não se comportam racionalmente3 3 Veja-se a coleção de artigos reimpressa em D. Kahneman e A. Tversky, Judgement under uncertainty: heuristics and biases, Cambridge University Press, 1982. . Quando a nova psicologia cognitiva estiver plenamente integrada na teoria econômica, emergirá uma nova microeconomia que poderá revelar-se muito diferente da economia neoclássica.

Ao explicar com os modelos da escolha racional os mecanismos subjacentes às suas afirmações, a economia marxista fez um grande progresso; afirmações que, do contrário, seriam aparentemente teleológicas. É possível proporcionar micro-fundamentos à formação de classes utilizando-se modelos de equilíbrio geral mais ou menos padrões e a classe pode se relacionar com a exploração de uma forma bastante clássica4 4 Encontra-se um resumo deste livro em Roemer, "New directions in the Marxian theory of exploitation and class", Politics and Society, 11, nº 3, 1982, pp. 253-287. Este artigo 6 reproduzido no livro organizado por John Roemer, citado. . É possível proporcionar mecanismos que explicam porque persistem os diferenciais racistas dos salários, quando livrar-se deles seria do interesse de qualquer capitalista individual ambicioso, contrariamente ao que pretenderia a Escola de Chicago do laíssez-faire. Quanto à explicação da persistência do desemprego nas economias capitalistas, existem vários modelos construídos a nível micro, embora os que fundamentalmente lhes dão crédito não sejam os pesquisadores que se autodenominam marxistas. O estudo da mudança técnica e do processo de trabalho foi fértil; e o enfoque que postula agentes individuais maximizadores de benefícios explicou uma grande quantidade de formas de mudanças técnicas e de controle do trabalho que anteriormente poderiam ter sido atribuídas à mão cega do capital5 5 Os livros de H. Braverman, Labor and monopoly capital, New York, Monthly Review Press, 1974, e R. Edwards, Contested terrain N. York,. Basic Books, 1979, são excelentes exemplos deste enfoque. .

Por este motivo acredito que o programa baseado na aplicação dos instrumentos neoclássicos ao estudo do que poderíamos chamar questões marxistas foi produtivo. É claro que ainda existem diferenças fundamentais no uso destes modelos. Destacaria, por exemplo, a de tomar como dados as preferências dos agentes. Por estar interessada principalmente na descrição positiva, a economia neoclássica postula normalmente (embora nem sempre) as preferências individuais como dadas. Este postulado, creio, é algo mais do que metodológico: é ideológico e deriva da frase "cogito ergo sum". O marxismo inverte o epigrama cartesiano e afirma que as preferências do sujeito são, em grande parte, uma conseqüência do condicionamento social. Esta consideração é importante se nos propomos a utilizar os modelos da escolha racional para descrever o bem-estar ou para emitir opiniões normativas sobre as conseqüências da atividade racional. Os modelos da escolha racional deveriam ser utilizados para se desenvolver uma teoria da formação endógena das preferências. É necessário uma psicologia materialista que nos permita derivar as preferências a partir das dotações de recursos e da história. Este é um exemplo de questão especificamente marxista que se resolverá eventualmente usando-se instrumentos padrões.

Ao adotar sua posição habitual de individualismo hegemênico (na qual o indivíduo se toma como dado), a economia neoclássica tende a confundir dois pares que deveriam estar bem diferenciados: 1) preferências versus escolha, e 2) escolha versus bem-estar. As pessoas nem sempre escolhem o que preferem - esta distinção que poderia parecer despropositada tornou-se obrigatória devido ao trabalho dos psicólogos6 6 Veja-se A. Tversky, "Choice versus preference: some psychological observations", Stanford University, mímeo,1980. ; e as pessoas nem sempre escolhem ou preferem o que leva ao seu bem-estar, pois suas preferências se formaram sob condições de oportunidade inadequadas, deformadas que foram, geralmente, pela sociedade capitalista. Conjuntamente, 1) e 2) implicam que a economia neo-clássica do bem-estar repousa sobre seus frágeis alicerces; que não podemos extrair conclusões sobre o bem-estar a partir da escolha individual. Disto não deriva que a teoria da escolha social, uma peça admirável da arquitetura da escolha racional, seja inútil: muito pelo contrário. É uma teoria de como os indivíduos podem ou não ser capazes de esboçar agregados consistentes e democráticos de suas escolhas, o que é um problema de engenharia social. Não é necessariamente, entretanto, uma teoria da impossibilidade de se alcançar um tipo ótimo de bem-estar num marco democrático. Como alternativa à economia do bem-estar que baseia suas débeis conclusões nas preferências dadas dos indivíduos, o marxismo propõe, como medida de bem-estar dos membros de uma sociedade, o que parece ser um conceito mais normativo de exploração.

Quanto aos conteúdos, o marxismo traz duas grandes contribuições: a teoria da relação entre direitos de propriedade, mudança técnica e luta de classes (uma teoria positiva) e a afirmação de que a alienação e a exploração padecidas sob o capitalismo são desnecessárias (uma afirmação positiva e normativa). A primeira destas contribuições está resumida nas diversas teses do materialismo histórico. A moderna reconstrução do materialismo histórico é urna teoria da determinação da mudança técnica e institucional7 7 Um resumo deste enfoque pode ser encontrado em G. Cohen, "Forças e relações de produção" em, J. Roemer, op. cit. . Há muitos vazios a se preencher e, para fazê-lo, recomendaria os modelos da escolha racional. Uma questão importante é a formação das preferências dos setores históricos - em particular as preferências que conduzem à ação coletiva (ação de classe), tão importante para a teoria. Necessita-se uma teoria da formação de ideologia8 8 D. North, Structure and change in economic history,. N. York, Norton, 1981, apresenta uma teoria da ideologia. J. Roemer, "Rationalizing revolutionary ideology", Econométrica, 53, pp. 85, 108, 1985, apresenta um modelo no qual a ideologia aparece como a estratégia racional de um jogo. A. Schotter, Free market economic: a critical appraisal, N. York, St. Martin's Press, 1984, mostra como a ideologia pode aparecer estrategicamente numa situação de jogo. . Talvez a ideologia seja uma instituição que recorte transações de diversos tipos; ou talvez tenhamos que conceber a ideologia como um conjunto de regras de satisfação que o agente adota para limitar o conjunto de suas próprias possibilidades. Outra questão consiste em decidir com precisão onde se deveria encaixar a luta de classes num modelo de equilíbrio geral: determina as preferências, os recursos, ou é uma técnica de barganha num modelo não-competitivo? Há outras, possibilidades. Se a pergunta provém do materialismo histórico, a solução deve ser convencional. Se a luta de classes é tão importante como dizem os marxistas, e como penso que é, deve haver uma maneira de introduzi-la num modelo econômico. Nestes momentos há uma teoria de formação de classes baseada em indivíduos que otimizam com preferências e recursos dados; o próximo passo a ser dado é o passo sociológico de se propor uma teoria que explique porque os membros de uma mesma classe superam o problema da ação coletiva da forma como às vezes o fazem, e que efeito pode ter então sua ação concentrada sobre o equilíbrio - funciona mudando os preços, as dotações de recursos, as preferências, ou as funções de produção?

II

Esboço nesta seção uma lista de tarefas que o marxismo da escolha racional pode empreender para responder às duas importantes questões a que me referi e que desafiam suas premissas metodológicas. No marxismo da escolha racional:

1. Onde há espaço para a luta de classes?

2. Onde há espaço para a formação social das idéias, para a formação social do indivíduo?

Estas questões surgem como um desafio, a partir do momento em que o modelo da escolha racional assume que a maximização de utilidades está sujeita à constrição. Para se compreender a luta de classes há imediatamente dois problemas. Primeiro, a luta de classes caracteriza-se por romper as constrições; segundo, a luta de classes, e a ação coletiva em geral, é normalmente considerada como irracional do ponto de vista do indivíduo. Pareceria assim que o paradigma da escolha racional não pode admitir a luta de classes. Acredito que este não é o caso; a economia neoclássica ignora a luta de classes porque enfatiza um conceito particular de solução - o equilíbrio competitivo. Quanto à segunda questão, parece claro que devemos primeiro definir o indivíduo, que suas preferências devem existir antes de começar a análise, para que possamos utilizar o método da escolha racional. Conseqüentemente, onde há espaço para a formação social do indivíduo? Para responder a estas questões, considere-se uma descrição bem geral do processo histórico,uma descrição materialista. Há duas categorias de interesse. é a descrição completa da tecnologia, das instituições e relações de propriedade no momento t , o conglomerado das forças produtivas e a estrutura econômica do marxismo clássico. A segunda categoria, Pé uma lista de todos os indivíduos e de suas preferências no momento t. Estes indivíduos, é claro, possuem coisas (que são descritas em Rt), mas é útil separar o elemento subjetivo que há em P do elemento objetivo que há em R. O progresso histórico é a conseqüência de dois processos chamados processo de solução e processo de formação de preferências. No momento t há uma constelação (Rv, Pt) que dá origem, mediante algum processo de solução, à produção e distribuição de bens, a inovações, à criação de novas instituições, etc. Tudo isso começa a existir no período de tempo que se segue, (t - 1). Temos assim um processo:

(Rv,Pt)→ RL+ l

A economia neoclássica estudou um caso especial deste processo de solução: a solução do equilíbrio competitivo, onde cada agente tem um poder insignificante, aceita todos os sinais do meio como não maleáveis por ele e maximiza sua, utilidade (dada em Pt), sujeito às constrições com as quais se defronta a partir de suas dotações de propriedade e das instituições existentes. Este processo dá origem a uma distribuição de equilíbrio descrita em RL+ 7. Mas há outros processos de solução que se podem descrever.

O segundo processo importante é o da formação social das preferências: em cada período de tempo - digamos - nascem membros de uma nova geração e suas preferências são formadas pelo estado do mundo em que nasceram. A geração nascida no momento t amadurece no momento (t + 1), momento em que a geração adota um comportamento econômico; sua formação social é conseqüência do meio Rvexistente em t, e das preferências de seus pais. Isto pode ser representado esquematicamente assim:

{Pv, Rt} → PL+ 1

Muito poucos esforços foram feitos para se entender o processo de preferências.

Assim, os indivíduos são formados pela sociedade e reagem racionalmente ao seu meio para produzir o meio do amanhã, que por sua vez produz indivíduos que pensam de maneira um pouco diferente dos anteriores e que reagem em seu meio para produzir um novo equilíbrio.

Esta é uma história materialista bem geral. É mais geral do que a materialista histórica clássica, que contém muitas afirmações que podem ser deduzidas ou não da descrição anterior - tais como: que as relações sociais de produção só perduram até o momento em que se convertem em obstáculos para o desenvolvimento das forças produtivas. Para analisar este problema teríamos que ir além da articulação de Rt. O modelo anterior inclui o materialismo histórico como um caso especial.

Este modelo também inclui o paradigma neoclássico como um caso especial. A economia neoclássica caracteriza-se, na linguagem deste modelo, por duas afirmações principais. Primeira, que o processo de solução estudado foi (até muito recentemente) o processo de equilíbrio competitivo; segunda, e mais importante, que não há processo de formação de preferências. P é assumido como constante ao longo do tempo; uma "natureza humana" constante. Em cada geração há uma certa distribuição das preferências que permanece essencialmente estável. O que muda são as contribuições com as quais os indivíduos se defrontam, e que produzem uma variação do comportamento: mas houve um antagonismo fundamental na economia neoclássica, ao pensar que P, ele próprio, fosse formado por R.

Se P se assume como constante, então P é considerado como primeiro motor da história. P põe em movimento a seqüência dos Rve disto decorre que nosso mundo atual R1984seja a conseqüência do exercício de uma natureza humana não maleável ao longo dos séculos. Algumas interpretações marxistas cometem o erro oposto de subestimar o papel de P. Assim -dizem alguns marxistas -, é mais correto descrever o processo de formação de preferências como

Rt Pt+ 1

As preferências desta geração em sua quase totalidade são um produto das suas condições materiais (ou, como escrevi acima, das condições materiais do ano anterior). Sendo assim, poder-se-ia eclipsar inteiramente o papel das preferências e descrever a história como uma seqüência R0→R1→R2... Em cada estágio há um micro-processo de formação de preferências; os sujeitos interagem com seu meio e produzem um meio novo. Mas podemos excluir do modelo os sujeitos e as preferências desde que estas sejam causadas pelo meio e nos conformemos com a evolução dos meios de produção, com preferências dos agentes que só representam um papel passivo. Este enfoque está associado à explicação das formas de evolução da propriedade é das forças produtivas, sem fazer referências à tomada individual de decisões. Talvez com uma boa compreensão do processo de formação das preferências poderíamos representar verdadeiramente a evolução de {Rt} desta maneira, sem referências a (Pt); mas deixaríamos de lado a explicação do por-quê a história ocorreu assim.

Há, portanto, duas posições hiperbólicas: a posição idealista que concebe a história como derivada de uma constante P e que considera o modo de produção R num tempo dado como conseqüência apenas da consciência dos sujeitos; e a posição materialista vulgar que acredita que o modo de produção evolui independentemente das consciências, já que as preferências Pt+ 1 encontram-se determinadas por Rtno estado anterior.

Onde se utilizará a metodologia da escolha racional para se compreender estes dois processos? Creio que em ambos. Como já disse, temos um exemplo importante de conceito de solução no processo de solução

(RVPt)Rt+ 1

dado pela teoria neoclássica do equilíbrio. Mas, dadas suas preferências Pvhá outras respostas racionais que os sujeitos poderiam dar frente ao meio, para não ceder diante dos preços e do meio. Poderiam tentar influir sobre seu meio, barganhar, poderiam não aceitar as condições do comércio como determinadas. Muitas vezes, de fato, o racional é não fazê-lo. O caso clássico é o do monopolista, que não toma o preço como determinado, mas que é consciente de que pode mudá-lo e obter maiores lucros. Isto dá origem a outro conceito de solução, a concorrência monopolista. Ou, então, se temos elementos monopolistas de ambos os lados do mercado, há monopólio bilateral ou barganha. Ora, a luta de classes pode ser concebida como um tipo de barganha. A luta de classes surge quando muitos agentes da classe operária - por exemplo - aprendem a se organizar e a atuar como unidade, de modo a poderem efetivamente levantar um monopólio bilateral contra o capital. A situação, evidentemente, pode ser mais complicada: pode haver todo tipo de facções, tornando-se então uma barganha de n agentes. O fundamental é que a luta de classes é um método de concluir a barganha e que a barganha é um conceito de solução tão bom quanto o do equilíbrio competitivo - em muitos casos, de fato, é muito mais apropriado e mais racional. Mas ainda há uma pergunta a ser feita: o que torna possível a formação de coalizões? Como podem os operários superar seu egoísmo individual, superar o problema do "caronismo", e participar da luta de classes? Considero, no entanto, que a resposta para este problema também se encontra na análise da escolha racional. Temos que compreender, no nível das preferências individuais, o que é que leva uma pessoa a compartilhar sua sorte com uma classe apesar dos possíveis custos e sanções, se quando ficar à margem não debilitaria a luta de classes e o ganho pessoal não seria menor. Temos, de fato, algumas respostas para este problema com base na teoria da escolha racional: como, por exemplo, que os indivíduos obtêm prazer na cooperação com outros aos quais consideram tão explorados quanto eles, e quando juntos podem vencer; e que, evidentemente, obteriam menos prazer "deixando que a história passasse longe". Da opressão comum nasce um vínculo que faz com que as pessoas queiram lutar quando acreditam que as outras também lutarão. A luta de classes pode emergir racionalmente como parte de um processo de solução. A economia neoclássica evitou o estudo da luta de classes, não pelo seu método da escolha racional, mas porque enfatiza o processo de equilíbrio competitivo que nem sempre é apropriado. Na última década, sem dúvida, houve uma explosão de interesse pela teoria dos jogos, onde se estuda detalhadamente os processos de solução por barganha. Tenho pouco a dizer sobre o segundo processo no esquema histórico, o processo de formação das preferências. Nele também serão utilizados modelos de escolha racional para se construir uma teoria da formação social do indivíduo. Parece que estudar o problema da formação de preferências requer postular algum aparato de meta-preferências: uma pessoa tem uma variedade de perfis de preferências cuja posse pode "escolher" e, dada a informação sobre seu meio, incluídas as constrições com que se defronta, "escolhe" uma concepção adequada de bem-estar. Haverá expectativas voltadas a uma pessoa pelo restante da sociedade, dado o lugar que ela ocupa em Rv,o que a levará a dispor suas opções de certas maneiras. Uma pessoa nascida na familia Rockfeller maximizará sua satisfação escolhendo, em geral, continuar como capitalista. É mais exato dizer que a cultura escolhe as preferências do indivíduo por ele. Mas a cultura pode ser entendida como ideologia e se houver fundamentos racionais para a ideologia (como mencionei anteriormente), podemos então considerar o processo de formação endógena das preferências como uma escolha racional. A formação social do indivíduo pode ser explicada exigindo-se ao mesmo tempo que a sociedade seja compreendida como a conseqüência da ação de muitos indivíduos.

III

Quanto ao que se poderia chamar a economia do bem-estar, o marxismo destaca a exploração, assim como a alienação. Recentemente trabalhou-se muito sobre a exploração e o conceito moderno mostra-se bem diferente do clássico: como por exemplo, o de que a exploração não deve ser definida mediante o conceito de valor-trabalho, um instrumento inadequado que não se sustenta frente aos padrões modernos de generalidade e rigor. A exploração deveria ser concebida mais como uma injustiça na distribuição inicial dos recursos9 9 Veja-se J. Roemer, "Should Marxists be interested in exploitation?" (org. ), Analytical Marxism Studies in Marxism and social theory, op. cit. . Para demonstrar a natureza desta injustiça deve-se recorrer à filosofia política: o que a economia marxista pode fazer é calcular em termos de variáveis econômicas as conseqüências, na atribuição de recursos, de uma má distribuição da propriedade (que poderia incluir vários tipos de propriedade, alienável ou inalienável). Creio que aqui há menos base para o acordo entre marxistas e não-marxistas do que na teoria do materialismo histórico, pois a base do desacordo não é uma questão de história positiva, mas uma questão filosófica que se refere ao que constitui uma sociedade desejável ou justa. O debate político sobre esta questão se dá de forma mais intensa entre marxistas e libertários sobre questões como a propriedade de si mesmo, a herança e vários tipos de direitos. Não está claro em que medida os marxistas analíticos diferem de filósofos como Ronald Dworking, John Rawls e Amartya Sen, cuja oposição ao utilitarismo e ao bem-estarismo pode ter mais vigor que a de alguns marxistas10 10 J.- Rawls, A theory of justice, Cambridge, Mass., Belknap, 1971, R Dworkin, "What is equality?", partes I e II, Philosophy and Public Affairs, 10, nº 3 e 4, verão e outono de 1981, e A. Sen, "Equality of what?", em S. Mc. Murrin (org.), Tanner lectures on human values, Cambridge University Press, 1980; todos apresentam teorias da justiça como igualdade, onde a utilidade não é o importante. O bem-estarismo, termo cunhado por Sen, é a posição segundo a qual o bem-estar social deveria ser medido por alguma função das utilidades dos membros da sociedade. . Menciono isto simplesmente para indicar que as linhas de demarcação entre o marxismo analítico contemporâneo e a filosofia política contemporânea de esquerda liberal são obscuras. Isto indica que há um núcleo comum a ser ainda elucidado.

A crença marxista - prefiro chamá-la assim a teorema -é de que importantes formas de exploração podem ser superadas mediante uma mudança nas relações de propriedade através do socialismo. A experiência do socialismo existente nos últimos sessenta anos obrigou os marxistas a se interessarem pela política e pelo mercado eleitoral sob o socialismo, muito mais do que se interessaram os marxistas da geração anterior. Em que medida podem se utilizar os mercados para se fazer funcionar um regime no qual a alienação e a exploração encontrem-se atenuadas? Oskar Lange - o marxista polaco que talvez tenha sido o primeiro economista do século XX a abraçar aproximadamente a combinação de metodologia neoclássica à agenda de pesquisa marxista que expus aqui — era otimista. A questão está totalmente aberta. Lange dizia que a economia marxista é a economia do capitalismo e a economia burguesa a economia do socialismo.

A concepção ética marxista do capitalismo não procede de modelos econômicos, mas da história. Nesta concepção todas as sociedades de classes caracterizam-se pela expropriação do excedente de uma ampla classe de produtores diretos por parte de uma pequena classe de proprietários. Segundo uma concepção burguesa da história, contrariamente, cada fator recebe sua recompensa adequada: Cada concepção representa, creio, um mundo possível e, conseqüentemente, acredito que se podem construir modelos consistentes para formalizar as intuições de cada concepção. Por esta razão, é inútil criticar a economia neoclássica por sua possível inconsistência (tema discutido na chamada controvérsia de Cambridge); a crítica deve ser mais fundamentalmente dirigida à concepção da história que a economia neoclássica reforça e configura em seus modelos. Mediante a construção de modelos axiomáticos, particularmente os modelos da escolha racional, que representam a concepção marxista da história, fazemos duas coisas: primeiro, aprendemos mais sobre os mecanismos que podem explicar a história, o que constitui o propósito de todo exercício de construção de modelos; e segundo, demonstramos que também é consistente e rigorosa a concepção marxista da história. Se for possível apresentar modelos consistentes para apreender duas concepções históricas do mundo diferentes, então escolheremos entre ambas a que descrever melhor a história real. Mas se a concepção histórica do mundo for estudada apenas com relação ao seu rigor e axiomaticidade, a disputa não acontece. Em suma, não creio que os modelos sejam a fonte da nossa ética; penso que nossa concepção da história pressupõe os modelos que construímos e que, se os modelos forem bons, esclarecerão a ética, cuja raiz se encontra na história real.

IV

Por este esboço posso distinguir o marxismo da escolha racional da economia neoclássica, pelo menos nos seguintes aspectos:

O marxismo sustenta:

1. um compromisso com a maleabilidade das preferências humanas, com a formação social do indivíduo;

2. que a teoria neoclássica da economia do bem-estar é fraca e falsa, devido à formação não-autônoma das preferências;

3. um compromisso baseado numa certa leitura da história com a importância da ação e do poder coletivos nos processos de solução, particularmente o poder de ciasse e a ação de classe mas, mais geralmente, o poder nacionalista e talvez o poder religioso. Na teoria do equilíbrio competitivo ninguém tem poder;

4. uma crença na injustiça do capitalismo e na sua transitoriedade; crença esta procedente de uma concepção do mundo baseada na evolução das formas de propriedade.

O que se perdeu com o marxismo da escolha racional foi principalmente a teleologia. Não se pode defender que só ocorrem aquelas coisas que são ótimas para a preservação do sistema capitalista; ou que, pelo contrário, o sistema se auto-destruirá. Talvez estes fatos ocorram, mas é preciso mostrar os mecanismos que os produzem ao nível da formação de preferências e os processos de solução. A herança do marxismo como idéia é um conjunto de potentes intuições descritivas. Estas descrições não devem ser assumidas como verdadeiras; devemos antes mostrar como dão lugar a teoremas em modelos cujos postulados são elementares e inquestionáveis.

  • * Este é um capítulo do livro organizado por John Roemer, Analytical Marxism (Studies in Marxism and social theory), Cambridge University Press, 1986.
  • 1 Roemer, "Divide and conquer: microfoundations of the Marxian theory of discrimination", Bell Journal of Economics, 10, nş 2, outono de 1979, pp. 695-705,
  • 2 Elster, Making sense of Marx, Cambrigde University Press, 1985, cap. 1.
  • 3 Veja-se a coleção de artigos reimpressa em D. Kahneman e A. Tversky, Judgement under uncertainty: heuristics and biases, Cambridge University Press, 1982.
  • 4 Encontra-se um resumo deste livro em Roemer, "New directions in the Marxian theory of exploitation and class", Politics and Society, 11, nş 3, 1982, pp. 253-287.
  • 5 Os livros de H. Braverman, Labor and monopoly capital, New York, Monthly Review Press, 1974,
  • e R. Edwards, Contested terrain N. York,. Basic Books, 1979,
  • 6 Veja-se A. Tversky, "Choice versus preference: some psychological observations", Stanford University, mímeo,1980.
  • 7 Um resumo deste enfoque pode ser encontrado em G. Cohen, "Forças e relações de produção" em,
  • 8 D. North, Structure and change in economic history,. N. York, Norton, 1981,
  • apresenta uma teoria da ideologia. J. Roemer, "Rationalizing revolutionary ideology", Econométrica, 53, pp. 85, 108, 1985,
  • apresenta um modelo no qual a ideologia aparece como a estratégia racional de um jogo. A. Schotter, Free market economic: a critical appraisal, N. York, St. Martin's Press, 1984,
  • 9 Veja-se J. Roemer, "Should Marxists be interested in exploitation?" (org.
  • 10 J.- Rawls, A theory of justice, Cambridge, Mass., Belknap, 1971,
  • R Dworkin, "What is equality?", partes I e II, Philosophy and Public Affairs, 10, nş 3 e 4, verão e outono de 1981,
  • e A. Sen, "Equality of what?", em S. Mc. Murrin (org.), Tanner lectures on human values, Cambridge University Press, 1980;
  • *
    Este é um capítulo do livro organizado por John Roemer, Analytical Marxism
    (Studies in Marxism and social theory), Cambridge University Press, 1986.
  • **
    Tradução de Maria de Lourdes Nogueira Porto.
  • 1
    Roemer, "Divide and conquer: microfoundations of the Marxian theory of discrimination",
    Bell Journal of Economics, 10, nº 2, outono de 1979, pp. 695-705, apresenta um modelo no qual a estratégia racional dos capitalistas individuais consiste em pagar salários discriminatórios a operários brancos e negros com o mesmo nível de experiência.
  • 2
    Elster,
    Making sense of Marx, Cambrigde University Press, 1985, cap. 1.
  • 3
    Veja-se a coleção de artigos reimpressa em D. Kahneman e A. Tversky,
    Judgement under uncertainty: heuristics and biases, Cambridge University Press, 1982.
  • 4
    Encontra-se um resumo deste livro em Roemer, "New directions in the Marxian theory of exploitation and class",
    Politics and Society, 11, nº 3, 1982, pp. 253-287. Este artigo 6 reproduzido no livro organizado por John Roemer, citado.
  • 5
    Os livros de H. Braverman,
    Labor and monopoly capital, New York, Monthly Review Press, 1974, e R. Edwards,
    Contested terrain N. York,. Basic Books, 1979, são excelentes exemplos deste enfoque.
  • 6
    Veja-se A. Tversky, "Choice versus preference: some psychological observations", Stanford University, mímeo,1980.
  • 7
    Um resumo deste enfoque pode ser encontrado em G. Cohen, "Forças e relações de produção" em, J. Roemer, op. cit.
  • 8
    D. North,
    Structure and change in economic history,. N. York, Norton, 1981, apresenta uma teoria da ideologia. J. Roemer, "Rationalizing revolutionary ideology",
    Econométrica, 53, pp. 85, 108, 1985, apresenta um modelo no qual a ideologia aparece como a estratégia racional de um jogo. A. Schotter,
    Free market economic: a critical appraisal, N. York, St. Martin's Press, 1984, mostra como a ideologia pode aparecer estrategicamente numa situação de jogo.
  • 9
    Veja-se J. Roemer, "Should Marxists be interested in exploitation?" (org. ),
    Analytical Marxism Studies in Marxism and social theory, op. cit.
  • 10
    J.- Rawls,
    A theory of justice, Cambridge, Mass., Belknap, 1971, R Dworkin, "What is equality?", partes I e II,
    Philosophy and Public Affairs, 10, nº 3 e 4, verão e outono de 1981, e A. Sen, "Equality of what?", em S. Mc. Murrin (org.),
    Tanner lectures on human values, Cambridge University Press, 1980; todos apresentam teorias da justiça como igualdade, onde a utilidade não é o importante. O bem-estarismo, termo cunhado por Sen, é a posição segundo a qual o bem-estar social deveria ser medido por alguma função das utilidades dos membros da sociedade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 1989
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