Acessibilidade / Reportar erro

OS EFEITOS POLÍTICOS E CLÍNICOS DA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL: UM ENSAIO PSICANALÍTICO

EFECTOS POLÍTICOS Y CLÍNICOS DE LA GUBERNAMENTALIDAD NEOLIBERAL: UN ENSAYO PSICOANALÍTICO

RESUMO.

Motivados pela proposição metodológica foucaultiana de uma ‘história do presente’ e suas contribuições, este trabalho visa problematizar a emergência dos saberes pragmáticos e tecnológicos empresariais como ferramentas da governamentalidade neoliberal na construção do Homo Oeconomicus enquanto ‘sujeito empresário de si’, assim como debater seus efeitos para o sujeito e para as subjetividades contemporâneas. Através de uma revisão bibliográfica narrativa, partimos de uma possível interlocução da discussão foucaultiana com a constatação lacaniana do funcionamento do discurso do capitalista e seus efeitos clínicos e políticos, que vão desde a adoção de uma pragmática do apoliticismo até o limite da dessubjetivação do sujeito. Ressaltamos que o discurso neoliberal promoveu uma desterritorialização dos ideais transcendentes modernos e ofereceu como espaço de reterritorialização o mercado enquanto grande Outro (A), onde o real da luta de classes é apagado em nome de um ideal em que o sujeito reclama seu direito a um gozo ilimitado. Nesse cenário, apostamos numa posição subversiva e avessa para o sujeito frente às estratégias do discurso capitalista, posição esta que pode atuar como um modelo de resistência ao pior.

Palavras-chave:
Neoliberalismo; sujeito; política

RESUMEN.

Motivado por la propuesta metodológica foucaultiana de una ‘historia del presente’ y sus contribuciones, este trabajo tiene como objetivo problematizar el surgimiento del conocimiento empresarial pragmático y tecnológico como herramientas de gubernamentalidad neoliberal en la construcción del Homo Oeconomicus como un ‘sujeto de autoemprendimiento’, así como para debatir su efectos para el sujeto y para las subjetividades contemporáneas. Mediante revisión bibliográfica, partimos de una posible interlocución de la discusión foucaultiana con la observación lacaniana del funcionamiento del discurso del capitalista y sus efectos clínicos y políticos, que van desde la adopción de un apolitismo pragmático hasta el límite de la desubjetivación del sujeto. Hacemos hincapié en que el discurso neoliberal promovió una desterritorialización de los ideales modernos trascendentes y ofreció al mercado como un gran Outro (A) como un espacio para la reterritorialización, donde el real de la lucha de clases se borra en nombre de un ideal en el que el sujeto reclama su derecho a un disfrute ilimitado En este escenario, apostamos por una posición subversiva y opuesta para el sujeto en relación con las estrategias del discurso capitalista, una posición que puede actuar como modelo de resistencia a lo peor.

Palabras clave:
Neoliberalismo; sujeto; política

ABSTRACT.

Moved by Foucault’s methodological proposition of a ‘history of the present’ and its contributions, this work aims to problematize the emergence of the entrepreneurial pragmatic and technological knowledges as the neoliberal governmentality’s tools in the construction of the Homo Oeconomicus as a ‘subject entrepreneur of himself’, as well as to debate its effects for the subject and the contemporary subjectivities. Through a bibliographic review, we start from a possible dialogue between the foucauldian discussion and the lacanian constatation of the operation of capitalism’s discourse and its clinical and political effects, that range from the adoption of apoliticism’s pragmatism to the limit of the subject’s desubjectivation. We emphasize that the neoliberal discourse promoted a deterritorialization of the modern transcendent ideals and offered, as a space for reterritorialization, the market as the big Other (A), where the Real of the class conflict is erased in the name of an ideal in which the subject claims its right to an unlimited jouissance. In this scenario, we trust in a subversive and averse position for the subject in front of the capitalist discourse’s strategies; such a position that can act as a model of resistance against the worse.

Keywords:
Neoliberalism; subject; politics

Introdução

O liberalismo não é o que aceita a liberdade. O liberalismo é o que se propõe a fabricá-la a cada instante (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 88).

Quais os efeitos que a instalação do discurso neoliberal no mundo contemporâneo produziu para o sujeito e para as subjetividades? Quais suas consequências políticas e clínicas? Ou ainda, como entender que um discurso aparentemente econômico-político possa produzir implicações de tal monta em espaços supostamente heterogêneos como a clínica e a política? E o que podemos fazer em ambas as esferas para resistir ou subverter tais efeitos?

Para entendermos a abrangência desta inserção do discurso neoliberal e sua variedade de consequências, precisaremos considerar algumas noções e definições que nos permitam uma abertura dos limiares discursivos estabelecidos. Poucos autores nos servem tanto para esta tarefa como Foucault, e, no caso específico, sua noção de ‘governamentalidade’ (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). A governamentalidade. In M. Foucault. Microfísica do poder. São Paulo, SP: Edições Graal., 2008Foucault, M. (2020). A história da sexualidade I - a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ: Graal.). Vamos propor e trabalhar considerando que o neoliberalismo não se resume a uma corrente ideológica ou mesmo a um discurso político e econômico. Acompanhamos Dardot e Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 07), quando o definem como não apenas uma ideologia, um tipo de política econômica, mas como “[...] um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”. E mais à frente acrescentam: “A racionalidade neoliberal tem como característica a generalização da concorrência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 17).

Acrescentamos a partir da leitura da ‘economia política do gozo’, estabelecida por Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), um importante aspecto nesta definição: é que além de um sistema normativo, ele é também uma composição discursiva que afeta a economia libidinal ou, se quiserem, a economia de gozo do sujeito (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Por ser um arranjo de discursos, ele é também um ‘aparelho de gozo’. Esta é a faceta que a psicanálise introduz: a intrusão do gozo na política (Lacan, 1992Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Seminário dos anos de 1969-70. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). De todo modo, essa designação conceitual é resultante da nova racionalidade neoliberal empenhada em ultrapassar a economia e alcançar a vida privada, como bem ilustra a frase emblemática de Margareth Tatcher: “[...] a economia é o método. O objetivo é mudar a alma” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 331).

Um ponto relevante dessa discussão é considerar a emergência de uma nova discursividade oriunda da fusão entre psicologia e economia (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .). Não à toa Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.) localizou o nascimento da biopolítica no contexto de ascensão do neoliberalismo estadunidense, mesmo berço das psicoterapias de caráter pragmatista e das psicologias da gestão. As psicologias surgidas neste contexto estavam a serviço da lógica empresarial, visando a produção e o apaziguamento das tensões entre empregados e patrões. As correntes psicológicas norte-americanas (comportamentalismo e humanismo), neste sentido, colaboram para o empreendimento social capitalista sem a pretensão de questionar e subverter seu funcionamento (Illouz, 2011Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

O século XX apresenta um gradual enlace entre os saberes psicológicos e econômicos, gerando nas décadas de 1960 e 1970 técnicas sugestivas como o coaching empresarial e a Programação Neurolinguística (PNL), respectivamente. O coach, figura clássica do mundo esportivo, foi apropriado para o interior das empresas e para a vida individual com o intuito de assegurar o desempenho para a produtividade. Por sua vez, a PNL surgiu como uma técnica que parte do princípio da equivalência entre a subjetividade e a programação computacional. Hoje, a ascensão dessas tecnologias do eu apresentam-se como produtos mercadológicos sedutores que capturam o sujeito com a promessa de êxito financeiro, ocultando, porém, suas falácias.

Estas discussões sobre a subjetivação e a ‘psicologia neoliberal’ dirigem nossas hipóteses e proposições, sobre a constituição de um campo convergente de saberes pragmáticos, tecnológicos e metodológicos, destinados à produção de um ‘Eu’ empresarial bem-sucedido: a literatura de autoajuda, os diversos coachings (pessoal, profissional, ontológico, neurocoaching), a ginástica cerebral e a PNL, a Análise Transacional (AT), o uso de drogas para o alto desempenho (Ritalina, Venvanse), dentre outros (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .; Illouz, 2011Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Na mesma linha, novas terapêuticas estão surgindo com a garantia de total eficácia: Neurofeedback, Mindfulness, sem falar no ressurgimento das práticas hipnóticas.

Compondo também esse campo, os grupos de ajuda mútua (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Devedores Anônimos, Comedores Compulsivos Anônimos, Neuróticos Anônimos, Fumantes Anônimos, Mulheres que Amam Demais) parecem surgir como reparadores do insucesso das experiências de excesso. Observem que os grupos anônimos se constituem em torno de um excesso (um a mais) - a definição categórica de gozo por Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) - cujo efeito é reafirmar uma posição adicta. Apesar da ênfase na espiritualidade e no anonimato como um ‘esvaziamento do eu’, predomina entre esses grupos a referência ao saber pragmático, caracterizado por um conjunto de técnicas de abstinência frente ao objeto.

É neste dispositivo que se fabrica um sujeito empresário de si mesmo a partir de saberes pragmáticos, tecnológicos, caracterizados pelo uso de um vocabulário próprio, amalgamando termos computacionais, neurológicos, empresariais e pragmatistas. Uma marca comum nesse emaranhado de práticas tecnológicas é a centralidade da perspectiva do sujeito como gestor de si a partir do recurso às técnicas sugestivas. A implicação disso é que subjacente às técnicas milagrosas e garantidoras da felicidade e do sucesso, há sempre gurus, autores best-sellers, empresas especializadas, cursos itinerantes, ou seja, um verdadeiro mercado de tecnologias que cada vez mais seduz seus consumidores.

A observação de Lebrun (2006Lebrun, J-P. (2006). Um mundo sem limites: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud) sobre a ascensão de nova linguagem tecnocientífica se concretiza cada vez mais. A procura por uma forma de comunicação textual pragmática e tecnológica está produzindo uma ‘novilíngua’ (já prevista na ficção futurista de Orwell (2009Orwell, G. (2009). 1984. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) restrita em sua tessitura escrita (como os caracteres limitados do twitter) e avessa à versatilidade poética. A novilíngua tecnocientífica indica um enfraquecimento do simbólico em favor do uso imaginário de palavras abreviadas e mecânicas no mundo virtual.

Portanto, a noção de ‘governamentalidade neoliberal’ e sua principal consequência, o que Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.) denominou de homo oeconomicus produzido pelo neoliberalismo estadunidense, serão as vias por onde buscaremos articular e problematizar tais efeitos nos campos da política e da clínica, a partir das obras da Dardot e Laval, mas também utilizando-nos de proposições oriundas da teoria e da clínica psicanalítica, especialmente a partir das obras de Lacan e Zizek.

O homo oeconomicus e a subjetivação neoliberal

Vamos partir de uma advertência de Foucault, que ao mesmo tempo já define alguns termos. Ele lembra que o neoliberalismo não deve ser considerado simplesmente uma ressurgência das velhas formas da economia liberal dos séculos XVIII e XIX. O que se apresenta agora é muito mais do que deixar o mercado livre, sendo o estado seu supervisor - característica do liberalismo moderno. Hoje é a própria ideia de mercado que deve servir de forma e modelo para o estado e para toda a sociedade (Foucault, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). A racionalidade sociopolítica e subjetivante da cultura passa a ter como referência o modelo da empresa e todos os seus (entediantes...) discursos da ‘gestão’.

Para justificar sua advertência, Foucault esclarece que o neoliberalismo americano fundou toda uma aplicação da análise econômica a uma série de objetos, campos, comportamentos e condutas, tais como a educação, o casamento, a criminalidade, etc., produzindo o que denomina de homo oeconomicus, modelo para o qual toda conduta racional decorreria de algo como uma análise econômica (Foucault, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Podemos observar este aspecto na forma como a lógica da gestão, do planejamento e do empreendedorismo, estão presentes não só nas políticas e funcionamento do estado, mas também no cotidiano discursivo das subjetividades. Nas palavras de Foucault: “O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. […] sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo sua fonte de renda” (Foucault, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 311). É possível perceber com esta noção que a perspectiva neoliberal se estabelece como uma racionalidade. A própria perspectiva de sociedade passa a ser de um conjunto de pequenas unidades empresariais, sem falar nas instituições-empresas. Há aqui uma homogeneização da lógica empresarial na vida social e individual.

A noção de ‘microempresa de si’ como um ideal social tem como função apaziguar as contradições do capitalismo centrado na lógica do consumo (Safatle, 2015Safatle, V. (2015). Empresários de si. Revista Carta Capital.). Nessa via, a função da doutrina neoliberal é de escamotear a estrutura do capitalismo ancorada na expropriação da mais-valia. O trabalhador agora nomeado como parceiro, ou colaborador, parece ser ludibriado por esta condição ilusória, já que este tem seu corpo e alma formatados pela racionalidade neoliberal.

Uma problemática que se constitui a partir de então é a preocupação com os investimentos na melhoria e no aperfeiçoamento do capital humano inato e adquirido. O investimento na criação dos filhos, por exemplo, deve partir do bom capital humano dos pais. Ao mesmo tempo, as políticas governamentais nas esferas educacionais, sociais e culturais se estruturam tendo como foco a qualidade de vida, o bem-estar, os quantitativos de natalidade e mortalidade (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.).

Não por acaso, essa mecânica se adapta tão bem à economia dos métodos e técnicas comportamentais, que subtraem uma significação das condutas, restringindo-se a uma análise propriamente normativa e econômica do comportamento (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.), com suas recompensas, reforços e punições. Como vimos, Foucault (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) situa a psicologia, especificamente as psicoterapias estadunidenses, como técnicas coerentes com o neoliberalismo ao utilizarem a lógica econômica no estudo do comportamento e na adaptação do sujeito a sua realidade.

Outra das principais características deste homo oeconomicus diz respeito ao fato que ele ultrapassa a moderna concepção de ‘sujeito do direito’, nascido na Revolução Francesa, e ainda regido por uma lógica coletiva dos direitos e deveres, muito própria de uma ‘razão prática’ kantiana. Seu funcionamento não se pauta mais nos grandes ideais modernos, nem tampouco se preocupa diretamente com o bem coletivo. Trata-se de um ‘sujeito do interesse’, que não obedece mais a mecânica do sujeito do direito pautada na renúncia e limitação desses interesses privados (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.). A ideia de uma totalidade política e coletiva se perde, fazendo-se crer que cada um se voltando para seus próprios interesses, no fim das contas a ‘mão invisível’ do mercado ata as duas pontas: os privados com os coletivos. Trata-se, portanto, de um sujeito supostamente autônomo, dirigido por seus interesses privados, cujo modelo do mercado contamina suas relações sociossimbólicas. A partir daqui, o direito privado deverá suplantar uma preocupação com o coletivo. Estamos aqui diante da gênese do sujeito do capitalismo...

Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In Conversações (p. 223-231). São Paulo, SP: Editora 34.), em seu já clássico texto Post-Scriptum sobre a sociedade do controle, já denunciava essa nova lógica pós-moderna, onde o modelo da empresa substituiu o modelo industrial-disciplinar. Se a sociedade disciplinar-industrial, descrita por Foucault (2014Foucault, M. (2014). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.), tinha como modelo institucional e de controle a indústria e a prisão, respectivamente, a nova sociedade do controle - que emerge a partir dos anos 70 - usa como modelo e controle a empresa e o shopping. Obviamente que não se trata de uma dissolução do poder, mas de mais uma estrategização de sua lógica. O controle é o efeito de uma homogeneização e instalação genealógica da disciplina e da biopolítica na cultura. Observem que todas as antigas instituições sociais hoje seguem o modelo da empresa: o estado, a escola, a religião, as relações sociais e sexuais, pautadas hoje em contratos judiciais e mercadológicos, entre outras.

É preciso considerar, portanto, a lógica estratégica, pastoral e governamental (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.) que essas tecnologias do poder tomam para que possam se tornar imanentes. Essas tecnologias estabelecem uma torção e já não se apresentam como ‘de fora’, mas em sua imanência na forma de uma ‘governamentalidade’. O que caracteriza essa governamentalidade é que seus mecanismos são ‘positivos’ - no sentido foucaultiano -, ou seja, eles produzem subjetividades, de maneira que não necessitam de uma imposição disciplinar, mas é o próprio sujeito que é convidado a exercer esse controle sobre si mesmo.

O evangelismo, por exemplo, não é outra coisa senão a instalação para a população de baixa renda desta lógica do empreendedorismo. Por mais que perpasse por todas as classes sociais e possamos observar movimentos politizados e politizantes no meio evangélico, sua lógica e sua grande difusão têm se centrado fundamentalmente na população de baixa renda. Questões eminentemente mundanas, para as quais não se aplicava a lógica do cristianismo - tais como problemas financeiros - são solucionados abertamente por uma ‘sessão’ evangélica para tal fim. Estamos diante do que Boltanski e Chiapello (2020Boltanski, L., & Chiapello, E. (2020). O novo espírito do capitalismo. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.) denominaram como o Novo espírito do capitalismo. Se a ética protestante serviu ao espírito do capitalismo com sua lógica da salvação e produção mundanas, como descreveu Weber (2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Martin Claret.), atualmente, de uma forma diferenciada por certo, o evangelismo catequiza as subjetividades pelo espírito neoliberal.

Trata-se, portanto, de uma tentativa de racionalizar o desejo, implicando o sujeito do desejo na atividade profissional constituindo um exército de ‘sujeitos empreendedores’ (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .), de maneira que se sintam responsáveis pela precariedade das condições sociais e subjetivantes produzidas pela lógica neoliberal. Vende-se uma proposta ascética e pragmática para o gerenciamento da alma. Como afirmam Dardot e Laval (2016, p. 344), “[...] não se trata de aplicar conhecimentos psicológicos ou problemáticas éticas ao mundo da empresa. Ao contrário, trata-se de construir, com o auxílio da psicologia e da ética, técnicas de governo de si que são parte interessada do governo da empresa”.

Poderíamos ilustrar esse efeito a partir da lógica da medicalização, da autodiagnose e da segregação que encontramos de maneira dominante nos dias atuais. São os próprios sujeitos que demandam a medicalização, ou mesmo se automedicam, ou ainda, se autodiagnosticam, fazendo uso desta lógica segregativa que fundou a psiquiatria. Os muros das instituições psiquiátricas disciplinares caíram, mas o poder psiquiátrico ampliou-se para todas as esferas da vida humana.

A pragmática do apoliticismo

Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.) situa a discussão sobre o trabalho como um momento decisivo. Diferente da teoria econômica clássica calcada na tríade renda, terra e trabalho, os arautos neoliberais da Escola de Chicago, a partir da teoria do capital humano, passaram a estudar o trabalho como uma prática que deve ser racionalizada e calculada. Uma mudança de paradigma introduzida seria a de medir o trabalhador não pela força de trabalho que ele oferta no mercado, mas pela sua ‘capital-competência’.

Nesta perspectiva, o sujeito seria seu próprio capital que consiste em “[...] tudo o que pode ser […] uma fonte de renda futura [...]”, ou ainda, “[...] o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 308). O efeito disso é a não diferenciação entre o sujeito e o seu capital. Temos assim uma relação indissociável entre trabalhador e a máquina, esta última sendo entendida não em sua conotação exterior e alienante, mas em sua acepção positiva, produtiva, no caso em questão, de fluxos de renda.

Outra exigência dirigida ao sujeito empresarial é a responsabilidade plena frente ao sucesso ou falência de sua ‘microempresa de si’. Diante da instabilidade e insegurança com o emprego, em nome da flexibilidade e da inovação, existe a sensação constante de risco, fato intrínseco à competitividade. A todo instante, conforme a lógica da ascese de desempenho, a competição se apresenta como a atitude do empresário de si. Assim, o laço com outro passa a ser norteado pela ‘perversão comum’ (Lebrun, 2008Lebrun, J-P. (2008). A perversão comum: viver juntos sem o outro. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.) sendo objetificado fazendo valer a transação em vez da relação.

Contudo, os efeitos dessa racionalidade neoliberal não incidem unicamente na subjetividade do trabalhador. Ela também traz consequências dramáticas para a sociedade e para a política como um todo. Refletindo a partir dessa perspectiva mais ampla devemos lembrar que foi nos anos 80 que tivemos o maior boom desse tipo de racionalidade, com a empresa sendo encarada como um vetor de todos os progressos sociais. Com efeito, o culto às empresas e ao empreendedor não foi uma consequência exclusiva de uma campanha recheada de lobbies doutrinários. Na verdade, trata-se de um culto que é celebrado todos os dias e em quase todos os países pelos economistas, jornalistas, especialistas em gestão e autoridades políticas. Portanto, estamos diante de um movimento mais amplo de ressignificação do campo público e privado. É nesse cenário que a ideia de estado de bem-estar social acaba caindo em descrédito, sendo interpretada como um peso e uma verdadeira fonte de ineficácia (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .).

Essa tentativa de deslegitimar o campo do estado de bem-estar social acabou dando origem a um conjunto específico de crenças e práticas que podemos denominar de gerencialismo. Tal gerencialismo procura apresentar-se como uma espécie de antídoto universal para todos os males da sociedade, que são reduzidos a questões puras de organização. Os meios empregados para sanar esse problema são todo um aparato técnico que tem como horizonte final o valor da eficiência e, logicamente, o agente encarregado de operacionalizar essas técnicas é a figura do administrador (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .).

No centro desse novo estilo de governança está a compreensão de que a gestão privada é mais eficaz que a administração pública. Tal gestão privada se destacaria por ser mais especializada, menos sujeita a regras estatutárias e mais flexível. Além disso, o elemento organizador dessa superioridade seria o efeito disciplinador existente no estímulo à concorrência, que funcionaria como um disparador fundamental para o bom desempenho (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .).

Percebe-se assim que historicamente esse gerencialismo se impôs como sendo ideologicamente neutro, arrogando para si a ideia de que as operações dele decorrentes seriam feitas na medida em que se tratariam de ações benéficas para todos. Logo, a partir de uma perspectiva técnica e tática houve a reinterpretação daquilo que seria uma gestão pública, que agora estaria fundamentalmente mediada por disciplinas e toda a racionalidade oriunda do setor privado. As consequências desse novo tipo de funcionamento da máquina estatal são a redução do orçamento, a supressão de agentes públicos ou mesmo o enfraquecimento dos sindicatos. Trata-se, portanto, de um projeto de transformação que engloba uma série de espaços (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .). Nesse cenário, o campo político é reduzido a um debate de conselho de administração que privilegia questões orçamentárias e financeiras. Esse polo econômico acaba então por orientar e regular todos os demais aspectos da vida social (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Ideias e letras.).

Sobre essa amplitude que a tecnologia e esse saber (S2) impõem ao ‘controle do real’ - aqui entendido no sentido lacaniano do termo - Badiou (2017Badiou, A. (2017). Em busca do real perdido. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.) sustenta a ideia de que hoje toda discussão que esteja referida ao real só se sustenta na medida em que se estabelece uma relação com a economia. Nesta perspectiva, é a economia que detém o saber sobre o real, é ela que pode dar as coordenadas para ler os seus mistérios. Essa crença na economia, contudo, parece operar sem nenhum tipo de dado empírico que a sustente, afinal, as recentes crises econômicas em escala global de nenhuma forma foram previstas pelos ditos economistas. Como, então, promovem a ideia de que tais profissionais estariam munidos de um saber mais acurado sobre os processos econômicos que atravessam as nossas relações públicas e privadas?

Ainda sobre as influências da racionalidade neoliberal no campo da política, Gaulejac (2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Ideias e letras.) argumenta que o que temos como resultado dessa relação é uma cisão entre a vida concreta da população e o vocabulário e técnicas que os políticos utilizam para dar conta dos problemas elementares dessa vida. Nesse sentido, um morador de uma comunidade carente pode falar de seu desespero e de suas condições a partir de uma perspectiva singular, ancorada em sua experiência, enquanto os políticos tendem a responder a esses apelos a partir de um nível abstrato que considere apenas cifras e indicadores.

São esses dois elementos que irão mediar a comunicação entre os cidadãos e as instituições que os representam, pois é através desses paradigmas que a racionalidade neoliberal irá buscar a sua legitimação. No entanto, há um problema aqui, pois nessas discussões não é debatido o sentido de tais indicadores ou mesmo aquilo que eles esquecem de medir. O número é visto pelo número, as cifras assumem uma legitimação autorreferente e o quantitativo entra em cena em detrimento dos aspectos qualitativos. Há, portanto, uma distância abissal entre os cidadãos e as instituições que os representam.

Esse fosso criado acaba promovendo um movimento de despolitização dos sujeitos, que pode ser melhor representado através daquilo que Zizek (2016Zizek, S. (2016). O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo, SP: Boitempo) denominou de ‘pós-política pós-moderna’, ou seja, uma forma de denegação do político que não se trata de um mero movimento de recalque dessa dimensão, mas de uma verdadeira foraclusão. Nesse cenário, o conflito entre visões distintas materializadas na luta entre partidos dá lugar à colaboração de tecnocratas esclarecidos e multiculturalistas liberais. É da relação entre esses dois agentes que encontramos hoje as soluções e os consensos estabelecidos para os problemas que afligem as nossas sociedades.

O dispositivo desempenho/gozo e a cisão do sistema normativo neoliberal

Podemos agora convergir para a problematização de como todos esses movimentos discursivos, históricos, políticos, subjetivantes e dessubjetivantes afetam o sujeito. Consideramos que esses efeitos políticos e clínicos se estabelecem por pelo menos duas vias que, obviamente, não são excludentes: através dos processos de subjetivação, pela via de uma ‘governamentalidade neoliberal’, o que implica outra relação com o ‘saber’ e pela via do corpo/gozo, alterando a ‘economia de gozo’ (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) do sujeito, determinando novas configurações das movimentações topológicas entre o real, o simbólico e o imaginário. Trata-se, portanto, de dois polos estruturais - o saber e o gozo - através dos quais o sujeito lida discursivamente com o corpo e com o outro no laço social.

No que tange ao campo do gozo, Dardot e Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .), dando continuidade à pesquisa foucaultiana, situam as técnicas de governo de si implicadas nessa produção do ‘sujeito neoliberal’, no âmbito do que nomeiam como ‘dispositivo de desempenho/gozo’, como um novo dispositivo no qual é exigido ao sujeito, não só produzir sempre mais, mas a gozar sempre mais. Trata-se de uma lógica discursiva, muito próxima do que Lacan denominou de discurso do capitalista, na qual se abdica de uma regulação sociossimbólica das pulsões, em prol da sua estimulação, deixando que suas bordas e limites sejam determinados pelas vontades particulares e individuais.

Nesta mesma perspectiva, Danziato (2010Danziato, L. (2010). O dispositivo do gozo na sociedade de controle. Psicologia & Sociedade, 22(3), 430-437.) também propôs que estamos vivenciando a superação, mesmo que não completamente, do dispositivo moderno por excelência, aquele descrito por Foucault (2020Foucault, M. (2020). A história da sexualidade I - a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) como o ‘dispositivo da sexualidade’, que constitui o sujeito moderno - sujeito do desejo, subjetivado pela sexualidade - por outro que se denomina de ‘dispositivo do gozo’. O que sustenta esta proposta é a principal tese de Lacan sobre o capitalismo, ou seja, a de que o capitalismo busca uma ‘recuperação do mais-de-gozar’, esse gozo homólogo à mais-valia, excedente das experiências do corpo, do qual nunca se goza, mas que pode entrar nos cálculos da economia de gozo do sujeito a partir da proposta enganosa de recuperação:

[...] o capitalismo contemporâneo transforma o que deveria ser uma impossibilidade e uma renúncia do gozo numa possível recuperação, pelas ofertas dos objetos concretos - imaginários na descrição de Lacan. Mais do que isso, ele dissolve o reinvestimento simbólico da mais-valia no laço social, que ainda restava nas origens do capitalismo. O que se observa agora é um reinvestimento na lógica abstrata do mercado financeiro, cujo fantasma opera com a função declarada da recuperação do mais-de-gozar (Danziato, 2010Danziato, L. (2010). O dispositivo do gozo na sociedade de controle. Psicologia & Sociedade, 22(3), 430-437., p. 434).

Assim, o principal aspecto deste novo dispositivo do gozo é seu efeito de dessubjetivação, como fruto das experiências de gozo, que por definição portam a condição de apagamento, de afânise do sujeito (Lacan, 2005Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Seminário dos anos de 1962-63. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), no momento pontual dessas experiências corpóreas.

Sofrer os efeitos de uma dessubjetivação não é o problema. Lacan desde o início de sua obra aponta uma divisão do sujeito que se manifesta no fantasma ($ <>a), exatamente entre o polo do sujeito e o do objeto, o que implica dizer que o processo de dessubjetivação e de gozo, faz parte do funcionamento comum da estrutura, já que subjetivação e dessubjetivação encarnam a bipolaridade própria deste matema. A estrutura de linguagem deveria permitir ao sujeito se ressubjetivar diante dos efeitos de real da experiência de gozo.

Observem que o que estamos denominando de ‘cisão’ é outra coisa: trata-se do fenômeno, observável na clínica e na cultura, onde o espaço de significação pós-moderno, não tem mais a competência simbólica de recompor o lugar e a função do sujeito, de permitir-lhe uma ressubjetivação. O sujeito, então, entra numa empreitada de gozo e não mais dele consegue se retirar. Funciona então tal como os toxicômanos, que por efeito dessa cisão entre o simbólico e o real não conseguem se retirar desta distopia de gozo na qual se meteram. Generalizando, poderíamos supor que, por conta de um colapso ou um estreitamento do campo simbólico na cultura, caraterística do que Badiou (2006Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris, FR: Seuil.) denomina de ‘mundo atonal’, não estamos conseguindo promover saídas utópicas ou não para o quadro político do qual padecemos.

Encontramos também em Agamben (2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.) uma concepção de ‘dispositivo’, especificamente os dispositivos contemporâneos, que são descritos a partir dos seus efeitos de ‘dessubjetivação’. Retomando o percurso da obra de Foucault, Agamben (2009) propõe uma nova leitura para o conceito, tentando assim elaborar uma perspectiva original que se harmonize com uma leitura mais contemporânea dos processos de subjetivação existentes em nossa época. Nessa nova leitura o dispositivo seria basicamente qualquer coisa que tenha a faculdade de capturar, controlar, modelar, determinar e assegurar os gestos, condutas, opiniões e os discursos dos seres viventes.

Assim, percebemos que os dispositivos agora contemplam não apenas as já consagradas instituições dos estudos foucaultianos, como as prisões, as fábricas e os manicômios, mas também podem englobar os objetos e fenômenos mais prosaicos ou complexos da nossa realidade cotidiana, como a caneta, a linguagem, a agricultura, o computador, os celulares e a televisão (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.).

Contudo, o que acontece é que em nossa época os dispositivos não agiriam criando processos de subjetivação. Assim, a leitura clássica foucaultiana das tecnologias disciplinares e seus dispositivos parece aqui não dar conta da especificidade de nossa época. É bem verdade que todo processo de subjetivação implica um processo de dessubjetivação, mas a grande questão é que hoje os dispositivos impõem um regime em que os processos de subjetivação e os processos de dessubjetivação tornaram-se reciprocamente indiferentes, não dando lugar à posterior recomposição de um novo sujeito, como no clássico dispositivo confessional. As subjetivações e dessubjetivações parecem tornar-se mutuamente opacas, indiferentes a uma posição ativa de recomposição, o que desemboca em sujeitos formados por uma espécie de imagem espectral, com a redução do sujeito à mera dimensão funcional da sua própria existência, perdido em uma massa amorfa (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.).

Assim, a ‘biopolítica apoliticista’ designa hoje, portanto, um contexto discursivo no qual os dispositivos não geram mais sujeitos, mas apenas trabalham a partir de uma lógica de administração e regulação da vida nua dos indivíduos. Em uma sociedade desse tipo é fácil perceber um fenômeno de eclipse da política, pois os atores sociais não podem mais assumir uma posição ativa em processos de amplas transformações, posto que seu engajamento está bloqueado. O governo aqui quer apenas a sua própria reprodução (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.).

A articulação entre gozo e desempenho determina uma lógica discursiva profundamente individualizada, psicologizada e apolítica, que produz o definhamento dos quadros institucionais e das estruturas simbólicas subjetivantes. Encampa a ideologia da escolha, do direito ao gozo, de viver como bem se entende à mercê das vontades pessoais. Por outro lado, responsabiliza o sujeito pelos efeitos nefastos da competitividade neoliberal, fazendo-os considerar tais efeitos como fracassos pessoais. Não é preciso ir muito longe para deduzir daí algumas consequências clínicas importantes, tais como a corrosão do caráter, dos laços dos valores e referências; as psicopatologias do trabalho, as depressões, os suicídios; os vícios diversos - sugeridos pela lógica do desempenho - a estigmatização e segregação dos fracassados, velhos, imigrantes, entre outros (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo .).

Trata-se de toda empreitada tecnológica que promete melhor qualidade de vida, o aumento da produtividade, da autoestima, da criatividade, da inteligência emocional, e se apresenta para o sujeito como um ganho de capital na constância do ‘investimento em si’, de alguém que ‘trabalha para si’. Não passam, contudo, de práticas ilusórias, já que a produtividade individual está a serviço do capital. O que estes autores denunciam é que o efeito maior desta alienação do sujeito ao Outro empresarial, seria esta crença na posição do colaborador que trabalha para si mesmo. As novas psicopatologias serão, portanto, o avesso dos ideais de desempenho e de funcionalidade.

Eis a dupla face da governamentalidade neoliberal: o rosto triunfante do sucesso sem pudor; e o “[...] rosto deprimido do deletério fracasso” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 373). Essa dupla vertente, vamos considerar como uma cisão neste sistema normativo neoliberal, uma ‘cisão bipolar’, muito clara na lógica dos discursos, que se apresenta no antagonismo entre por um lado, uma coação incessante desse imperativo do desempenho e da eficácia e, por outro, paradoxalmente, um convite ao gozo, à apatia, à dessubjetivação e à destruição.

Não poderíamos considerar esses efeitos também como consequências do que Lacan (1978Lacan, J. (1978). Du discours psychanalytique: discours de Jacques Lacan à l'Université de Milan le 12 mai 1972. In Lacan in Italia 1953-1978 (p. 32-55). Milan, IT: La Salamandra.) denominou do discurso do capitalista? Uma de suas características é dissolver as impossibilidades dos discursos. Os quatro outros discursos denominados por ele de ‘radicais’, portam esse nome porque estariam submetidos a duas impossibilidades do real próprias da estrutura de linguagem: a impotência e a impossibilidade, entendidas aqui no seu sentido lógico. Ora, são essas impossibilidades que enodam os discursos ao real e ao laço social. Sem elas o sujeito flana sem gravidade numa gama gozosa de pseudolaços. Sem elas o real fica sem amarração e sem possibilidade de uma borda, dissolvendo-se os limites.

Dentro dessa mesma lógica, cabe aqui também aplicar a proposição deleuziana de que o capitalismo efetua uma ‘desterritorialização’ (Deleuze & Guattari, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010) O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia (Luiz B. L. Orlandi, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.) na cultura, subtraindo sua ‘eficácia simbólica’ e promovendo uma ‘reterritorialização’, muito embora o que ele ofereça não equivalha em sua pertinência simbólica ao que havia desterritorializado. Explicando: o capitalismo moderno desterritorializou o mundo soberano tradicional - o grande Outro (A) patriarcal - e ofereceu uma reterritorialização pela via do capitalismo industrial, mas que mantinha ainda grandes ideais simbólicos gestados na revolução francesa - igualdade, liberdade e fraternidade. Hegel e Kant foram os operadores dessa passagem. Esses ideais, contudo, conservavam ainda um traço tradicional, já que foram produzidos na genealogia do cristianismo.

Considerações finais

Consideramos, portanto, que com a denominada pós-modernidade e o ‘capitalismo financeiro’, com o neoliberalismo e os efeitos dessas novas tecnologias, estamos vivenciando uma segunda desterritorialização, desta feita dos próprios ideais ‘transcendentais’ modernos. O que se oferece como espaço de reterritorialização é exatamente o mercado como grande Outro (A) com seu discurso neoliberal e universitário - no sentido lacaniano do discurso universitário.

Quer dizer: a reterritorialização pela via do mercado e do discurso neoliberal é uma falcatrua, que precisa ser denunciada. Essa farsa discursiva não permite considerar na ordem dos discursos, o real da luta de classes. Por isso mesmo não conseguimos mais criar uma nova utopia política, nem mesmo grandes ideais simbólicos. Vivemos os tempos das distopias científico-tecnológicas e seu gozo obsceno. A vida flutua, o corpo perde sua gravidade. O efeito disso só poderia ser o retorno de uma violência crua e sistêmica.

Há, portanto, mais do que uma contradição na governamentalidade capitalista-neoliberal, por isso mesmo denominamos de uma cisão, pois se por um lado, estamos diante de um poder que produz subjetividades neoliberais empreendedoras, por outro, esse mesmo poder, ou pelo menos seus efeitos e ‘não ditos’, produzem uma massa de seres que vivem no limite da linguagem e que bem poderiam se adequar ao que Agamben (2008Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Home Sacer III). São Paulo, SP: Boitempo.) nomeou de ‘muçulmanos’: seres que padecem de um ‘colapso da linguagem’. Muitas vezes nações inteiras que colapsam por não poder fazer parte desse processo radical de globalização.

É também por conta desta falência do sujeito do desejo que a psicanálise nesse contexto neoliberal de mercantilização do saber é taxada como velha, atrasada ou dispendiosa quando não capitalizada pela literatura motivacional e também pelas empresas hábeis vendedoras de cursos e títulos. Entretanto, o discurso do analista é uma das vias de contraposição ao imperativo de gozo neoliberal ao apostar no sujeito e em sua singularidade ética e estética. É preciosa a afirmação de Melman (2009Melman, C. (2009). A psicanálise ainda é subversiva? De Lacan a Freud: o sujeito e à formação do analista. Revista Topos, XII(12), 259-282.) de que a maior subversão da psicanálise consiste, neste contexto de extrema capitalização, recusar um lugar de poder de mestria.

Assistimos diariamente a avassaladora presença da racionalidade neoliberal no campo político governamental como a salvação das intercorrentes crises do capital. Interessante notar que enquanto a imagem da política partidária é da sujeira e da corrupção, as empresas se apresentam como limpas, ecológicas e sustentáveis. Em conluio, vemos o conservadorismo brasileiro invocar as caducas ilusões de um militarismo salvacionista e do ascendente evangelismo segregacionista. Testemunhamos assim a efetivação de um projeto neoliberal que se vale na descrença do estado, da política partidária e do voto democrático.

Referências

  • Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios Chapecó, SC: Argos.
  • Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Home Sacer III) São Paulo, SP: Boitempo.
  • Badiou, A. (2017). Em busca do real perdido Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.
  • Badiou, A. (2006). Logiques des mondes Paris, FR: Seuil.
  • Boltanski, L., & Chiapello, E. (2020). O novo espírito do capitalismo São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.
  • Danziato, L. (2010). O dispositivo do gozo na sociedade de controle. Psicologia & Sociedade, 22(3), 430-437.
  • Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal São Paulo, SP: Boitempo .
  • Deleuze, G. (1992). Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In Conversações (p. 223-231). São Paulo, SP: Editora 34.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (2010) O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia (Luiz B. L. Orlandi, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.
  • Foucault, M. (2007). A governamentalidade. In M. Foucault. Microfísica do poder São Paulo, SP: Edições Graal.
  • Foucault, M. (2020). A história da sexualidade I - a vontade de saber Rio de Janeiro, RJ: Graal.
  • Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979) São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2014). Vigiar e punir: nascimento da prisão Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
  • Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social Aparecida, SP: Ideias e letras.
  • Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1978). Du discours psychanalytique: discours de Jacques Lacan à l'Université de Milan le 12 mai 1972. In Lacan in Italia 1953-1978 (p. 32-55). Milan, IT: La Salamandra.
  • Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia Seminário dos anos de 1962-63 Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Seminário dos anos de 1968-69 Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Seminário dos anos de 1969-70 Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lebrun, J-P. (2006). Um mundo sem limites: ensaio para uma clínica psicanalítica do social Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud
  • Lebrun, J-P. (2008). A perversão comum: viver juntos sem o outro Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.
  • Melman, C. (2009). A psicanálise ainda é subversiva? De Lacan a Freud: o sujeito e à formação do analista. Revista Topos, XII(12), 259-282.
  • Orwell, G. (2009). 1984 São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Safatle, V. (2015). Empresários de si. Revista Carta Capital
  • Weber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Martin Claret.
  • Zizek, S. (2016). O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política São Paulo, SP: Boitempo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2020
  • Aceito
    11 Nov 2021
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br