Acessibilidade / Reportar erro

Do uno ao múltiplo: as didáticas de Comenius e de Montaigne e a diversidade e suas contribuições para a contemporaneidade 1 1 Editor responsável: Pedro Angelo Pagni. <https://orcid.org/0000-0001-7505-4896> 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) <revisao@tikinet.com.br> 3 3 Apoio: Este texto é resultado de pesquisa financiada pela CAPES.

Resumo

Na profusão textual derivada da prensa de Gutenberg, Comenius e Montaigne elaboram reflexões pedagógicas que, de forma mais ou menos evidente, debruçam-se sobre a diversidade de opiniões e de interpretações e propõem como lidar com ela. O primeiro busca neutralizá-la afirmando a palavra divina como única e, portanto, critério para a definição do que é pertinente no interior das escolas; o segundo aposta na "frequentação do mundo" e na potência que essa variedade tem de dar contornos mais modestos e responsáveis àquilo que se sabe. Neste artigo, pretende-se apresentar esses dois encaminhamentos com vistas a refletir sobre como podem contribuir para pensar a sala de aula contemporânea também atravessada por múltiplos discursos, verdadeiros ou não, oriundos das tecnologias digitais.

Palavras-chave
Montaigne; Comenius; Didática; Diversidade de Interpretações

Abstract

During the textual profusion derived from Gutenberg’s press, Comenius and Montaigne elaborated pedagogical reflections that, more or less evidently, take the diversity of opinions and interpretations as an object and propose different ways to deal with it. The former tries to neutralize it by reinforcing the divine word as the only one and, hence, the reference to define what is important inside schools, whereas the latter proposes “experiencing the world” and the power of this variety to provide more modest and responsible outlines to what is known. This study aims to describe these viewpoints to reflect on how they may contribute to discuss contemporary classroom, which is also crossed by multiple discourses (whether true or not) originated from digital technologies.

Keywords
Montaigne; Comenius; Didactics; Diversity of interpretations

Introdução

O sujeito do Renascimento é um sujeito que experiencia a fluidez das relações sociais (Heller, 1982Heller, A. (1982). O homem do Renascimento. Presença., p. 11).

O sujeito contemporâneo é um sujeito que liquefaz padrões de dependência e interação (Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Zahar.).

O sujeito do Renascimento é um sujeito para quem o "infinito (infinidade do espaço, do tempo, do conhecimento) transforma-se não apenas num objeto de especulação, mas também numa experiência imediata" (Heller, 1982Heller, A. (1982). O homem do Renascimento. Presença., p. 14); trata-se de um sujeito que vê seu mundo se encher de "novas informações e experiências abstratas" (Postman, 1999Postman, N. (1999). O desaparecimento da infância. (Suzana Menescal de Alencar Carvalho, José Laurentino de Melo, trad.). Graphia., p. 50).

O sujeito contemporâneo vê-se em meio a um "dilúvio de informações" (Han, 2014Han, B.-C. (2014). En el enjambre. Herder., p. 52).

O sujeito do Renascimento é ameaçado por uma tecnologia que "coloca em circulação os erros e os absurdos, permite aos que querem arruinar a reputação de um autor usurpar-lhe a identidade, distribuindo tolices em seu nome, confunde os pensamentos com a superabundância dos textos” e que, mais do que isso, "longe de garantir o progresso do saber", "aumenta a ignorância" (Chartier, 2009Chartier, R. (2009). As práticas da escrita. In História da vida privada, v. 3: da Renascença ao Século das Luzes. Companhia das Letras., p. 127).

O sujeito contemporâneo, "com o formidável inchaço da esfera informacional", não é mais ameaçado pela "falta, pela censura, pela limitação", mas sim "pela superinformação, pela overdose pelo caos que acompanha a própria abundância" (Lipovetsky e Serroy, 2011Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2011). A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. (Maria Lúcia Machado, trad.). Companhia das Letras., p. 80). Ademais, dado o inchaço, vê atrofiada sua capacidade de pensar (Han, 2014Han, B.-C. (2014). En el enjambre. Herder., p. 52).

O sujeito do Renascimento não é o sujeito contemporâneo: no entanto, talvez não seja despropositado supor que o que o afetava remete em alguma medida ao que nos afeta também na contemporaneidade. E é por isso que, neste artigo, pretende-se recorrer a dois autores do Renascimento, Michel de Montaigne e Jan Amos Comenius, para esboçar caminhos e respostas para o que nos toca no presente, sobretudo o que nos toca a respeito das práticas didáticas em um cenário de profusão de textos e, consequentemente, de opiniões e de interpretações.

Montaigne, com a publicação de seus "Ensaios" em 1580, e Comenius, cuja "Didática Magna" é lançada em sua forma definitiva em 1657, escrevem por volta de cem anos depois da invenção da prensa de tipos móveis de Gutenberg (Chartier, 1999Chartier, R. (1999). A aventura do livro. Editora UNESP.) no final do século XV: é essa tecnologia a responsável pelo aparecimento de um cenário que nos parece remeter a algumas das características sociais oriundas da internet na contemporaneidade. A prensa, como pontuam Chartier (2009)Chartier, R. (2009). As práticas da escrita. In História da vida privada, v. 3: da Renascença ao Século das Luzes. Companhia das Letras. e Postman (1993)Postman, N. (1993). Technopoly: the surrender of the culture to the technology. Vintage Books., coloca em circulação uma quantidade de textos até então inédita e, com ela, povoa-se o mundo europeu com ideias e com visões de mundo ora mais ora menos afeitas às palavras de ordem. O sagrado e o oficial — que o eram talvez mais por inexistência de contraste do que por absoluta sacralidade ou oficialidade —, ainda que não percam seu poder, já não podem falar sozinhos: "na luta entre a unidade e a diversidade de crenças religiosas, a imprensa favoreceu a última", constata Postman (1993, p. 15)Postman, N. (1993). Technopoly: the surrender of the culture to the technology. Vintage Books..

A prensa de tipos móveis não é a internet. Mas, ao mesmo tempo, é difícil não notar o quanto algumas análises contemporâneas criticam nesta aquilo que também se observara naquela. Han (2014)Han, B.-C. (2014). En el enjambre. Herder., por exemplo, afirma que as mídias digitais promovem uma "desmediatização": em lugar da apuração da notícia feita pelo jornalismo profissional, da curadoria da literatura ou da música feita por agentes culturais, da política feita por representantes eleitos, as ferramentas virtuais da atualidade favoreceriam, na argumentação do autor, um contato direto com os objetos de ação — é o próprio usuário que, potencialmente, transforma em notícia aquilo que vivencia, que usa seus gostos pessoais para definir o que é boa arte ou não, e que participa diretamente, por meio de enquetes, de publicações e de reações a postagens, do fazer político. Tal qual, como aponta Postman (1993, p. 15)Postman, N. (1993). Technopoly: the surrender of the culture to the technology. Vintage Books., a imprensa utilizada por Lutero coloca "a palavra de Deus em cada mesa de cozinha" e "faz de cada cristão seu próprio teólogo", a desmediatização contemporânea torna direta, e por isso múltipla, a relação com o real.

Nem Montaigne nem Comenius, por óbvio, já que escreveram nos séculos XVI e XVII respectivamente, pensaram sobre a internet. Todavia, tanto no texto "Da educação das crianças" de Montaigne (2002)Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., quanto na "Didática Magna" de Comenius (2011)Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., a diversidade de opiniões e de leituras de mundo é colocada em cena. Cada um deles, no entanto, aborda-a de uma maneira. Para Comenius, como se evidencia sobretudo no vigésimo-quinto capítulo de sua obra, é necessário afirmar a verdade inequívoca da palavra divina e, em torno dela — e apenas dela — organizar o que cabe ou não à educação. É uma didática de um livro único, de uma palavra única, a qual delimita bem o que é e o que não é verdade e serve de crivo, portanto, para definir o que se deve ministrar no interior das salas de aula que ele pretende, com suas propostas, organizar. Montaigne, por outro lado, defende que nada se deve alojar no entendimento apenas pela autoridade ou pelo costume: tudo deve ser posto à prova, e o educando, afirma o filósofo, decidirá caso possa; caso o contrário, permanecerá em dúvida, já que, para Montaigne (2002, p. 226)Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., "de seguros e convictos, há apenas os loucos". O filósofo francês, diferentemente de Comenius, aposta numa educação que lança o educando à diversidade das opiniões, ao "comércio dos homens": é apenas aí, atritando os próprios saberes com os dos outros, que pode ter uma noção mais justa sobre si e sobre o que sabe.

Em "Por que ler os clássicos?", Italo Calvino (1993)Calvino, I. (1993). Por que ler os clássicos? (Nilson Moulin, trad.). Companhia das Letras. afirma que é um clássico aquele livro que nunca termina de dizer o que tem a dizer porque sempre o interrogamos de um presente que é nosso, e não o de sua escrita. É essa vontade de escutar com os ouvidos de hoje, de ler com os olhos de hoje aquilo que Comenius e Montaigne redigiram há alguns séculos que embala este artigo. Crê-se aqui que, frente ao impasse de uma sala de aula em que circulam saberes socialmente cada vez menos consensuais, pode ser uma saída produtiva observar como autores que também trataram do "excesso" e do "diverso" nos fazeres pedagógicos refletiram sobre tal situação. Suas respostas, parece, são diametralmente opostas e, por isso mesmo, o contraste é rico em possibilidades.

Desta maneira, neste artigo, que aprofunda uma discussão levantada em pesquisa de doutorado (Coppi, 2021Coppi, L. A. C. (2021). Uma pedagogia menor: reflexões sobre o acaso, a incerteza e o gesto de desmobilizar em Educação. [Tese de doutorado em Cultura, Filosofia e História da Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo] Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. doi:10.11606/T.48.2021.tde-28062021-193534
https://doi.org/10.11606/T.48.2021.tde-2...
), pretende-se apresentar as respostas encontradas por esses autores à seguinte questão: o que fazer diante do excesso de interpretações e de convicções em uma sala de aula? Para tanto, num primeiro momento, será apresentada uma leitura detalhada do capítulo XXV da "Didática Magna", de Comenius, a qual evidenciará, já no século XVII, uma postura que responde à nossa questão a partir da definição do que é verdadeiro e do que é, por conseguinte, falso e, portanto, incabível dentro da escola. Na sequência, e, por isso, já numa perspectiva contrastiva com os encaminhamentos de Comenius, será trabalhada a maneira como Michel de Montaigne, a seu turno, lida, em suas proposições pedagógicas, com a variedade de opiniões — aqui, ainda que o foco da análise seja o ensaio "Da educação das crianças", serão mobilizadas algumas noções presentes em outros dos artigos do filósofo, nomeadamente, em "Do pedantismo", que dá origem ao ensaio sobre a educação infantil, e em "Apologia de Raymond Sebond", por fornecer um material rico para compreender o que o autor pensa das pretensões da razão humana. A oposição entre as duas visões parece residir, já aqui, na relação que os autores estabelecem com uma pretensa verdade absoluta: enquanto Comenius a afirma, Montaigne parece não ser capaz de cravar o que é ela. E esta segunda postura, parece, traz uma potência pedagógica rara. Alinhando-se estrategicamente com essas concepções de Montaigne, então, o final do artigo esboçará alguns encaminhamentos possíveis decorrentes de uma não negação da variedade, mas de sua afirmação crítica e responsável.

Comenius: a Bíblia contra a Biblioteca

O vigésimo-quinto capítulo da "Didática Magna" de Comenius intitula-se "Se quisermos reformar as escolas segundo os princípios do verdadeiro cristianismo, ou retiramos das escolas os livros de autores pagãos, ou os usamos com cautela maior do que a atual". Há, já aqui, alguns pontos a serem observados. Em primeiro lugar, uma aposta no que seria o "verdadeiro" cristianismo, o qual, por oposição, sugere a existência de falsas fés. Em segundo lugar, chama também a atenção que a existência do que é verdadeiro implica mecanismos de seleção, de definição do que cabe ou não dentro das escolas. Com esses limites bem estabelecidos, seria simples identificar, por um lado, o tipo de livro que pode ser trabalhado em aula e como esse trabalho deve ser feito; por outro lado, o que teria seu acesso categoricamente negado. Antes de um mergulho mais aprofundado neste capítulo, no entanto, convém entender um pouco melhor do contexto da obra que o comporta.

Já no prefácio do livro, Comenius afirma que seu intuito é o de "ensinar tudo a todos" (2011, p. 11), e que sua didática mostra a arte universal, "o modo certo e excelente", para atingir esse fim. Para tanto, continua o autor, "os princípios de tudo o que se aconselha são extraídos da própria natureza das coisas" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 11), e ele finaliza suas reflexões iniciais fazendo uso de um Salmo, o LXVII, cap. 1, versículo 2, em que se encontra um apelo para que Deus nos possa dar a conhecer "na terra o Seu caminho" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 12). A maneira como Comenius apresenta seu projeto estabelece uma pretensão à objetividade que decorre da afirmação do que é o verdadeiro. Aqui, neste artigo, não nos interessará discutir o que ocupa esse posto, mas sim refletir sobre o que decorre do estabelecimento de algo, o que quer que seja, como regra objetiva e inequívoca a respeito do que é a realidade e de como ela funciona. Em Comenius, é a palavra divina que ocupa esse lugar: é ela que delimita qual é a natureza das coisas e, portanto, segui-la é estar de acordo com essa própria natureza.

Estando, então, identificada qual é essa verdade, o autor pode se dedicar a elaborar os métodos para que se concebam as escolas como "oficinas da humanidade" que "transformam os homens em homens de verdade" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 96), e a primeira das características desses homens de verdade é serem criaturas racionais. Ora, também porque já está identificada qual é a verdade, qual é a natureza das coisas, não é difícil especificar o que é a racionalidade que caracteriza os sujeitos oriundos da escola. Escreve Comenius (2011, p. 53-4)Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes. que "ser criatura racional significa ser capaz de indagar, de dar nome às coisas e de classificá-las; isto é, conhecer, poder designar e entender todas as coisas do mundo" — se a natureza, se a realidade, já estão definidas como aquilo que provém da vontade divina, conhecer só pode mesmo ser, afinal, identificar. E a palavra divina é inequívoca, é una: por isso que, mais adiante, quando define os princípios que devem orientar o fazer educacional, Comenius (2011, p. 162)Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes. afirma que "a natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas" e, sendo a educação um espelhamento "da natureza das coisas", "é pouco prudente apresentar aos jovens, desde o início, controvérsias sobre algum assunto, ou seja, pôr em dúvida coisas que ainda precisam ser aprendidas" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 163). É preciso manter a juventude "distante dos livros ruins, errados, confusos, bem como das más amizades" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 163), afirma ainda.

É no interior deste cenário que se chega ao capítulo XXV. Aqui, de maneira mais detida, Comenius explica por que se deve restringir o conteúdo escolar a praticamente apenas a Bíblia e se proporá a rebater as críticas ou ressalvas que se poderiam opor a uma tal proposta. Neste artigo, é importante não perder de vista, interessa menos a Bíblia como sinônimo da Verdade, e mais como uma Verdade que se tem por inquestionável: é isso que possibilita operar numa lógica de seleção e de classificação do que entra ou não na escola.

Mas mantenhamos o foco no capítulo.

Comenius o inicia defendendo que para que haja escolas verdadeiramente cristãs, que não professem Cristo apenas no nome enquanto se comprazem com autores como Terêncio, Plauto e Cícero, é necessário "afastar dela toda a turba de doutores pagãos" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 289). "A verdadeira Igreja e os verdadeiros fiéis", continua mais à frente, "nunca procuraram outro ensinamento fora da palavra divina, da qual hauriram em abundância uma sabedoria verdadeira e celeste" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 292): nesse sentido, se é na palavra divina que repousa a verdadeira sabedoria, tudo aquilo que não lhe for correspondente é, necessariamente, não-sabedoria, mentira, ou, nas palavras do próprio autor, "ocasiões para tentações e erros". A verdade, aqui, é reflexo de Deus: é única, é inquestionável. Escreve Comenius (2011, p. 165) a esse respeito que:

A boca de Deus é a única fonte de onde brotam os arroios da verdadeira sabedoria; o rosto de Deus é o único archote que irradia a verdadeira luz; e a palavra de Deus é a única raiz da qual brotam as sementes da verdadeira inteligência. Portanto, bem-aventurados aqueles que contemplam o rosto de Deus, que estão sempre atentos às palavras que seus lábios proferem, que recebem no coração as suas palavras! Porque este é o único, verdadeiro e infalível caminho da sabedoria verdadeira e eterna; fora dele não há outro.

De maneira bastante explícita, esse trecho evidencia que as reflexões pedagógicas elaboradas por Comenius têm como solo a crença em uma verdade que não se pretende interpretação, possibilidade. Ao contrário, ela se deseja única e absoluta. Essa característica implica também que aquilo que não lhe é convergente passa, automaticamente, a fazer parte do campo da mentira, da ilusão. Essa divisão, no entanto, não parece óbvia para os contemporâneos de Comenius, já que ele se indigna com a inserção nas escolas de obras distintas daquela que traz a palavra de Deus. A propósito disso, ele afirma o seguinte:

[...] assim que grande número de gentios nela [na Igreja] começou a ingressar, arrefecendo-lhe o ardor primitivo e diminuindo o cuidado em distinguir o puro do impuro, então começaram a ser lidos, no início privadamente e depois em público, os livros dos gentios, e vemos a mistura, a confusão e a desordem de doutrinas que daí derivaram. Perdeu-se a chave da ciência por culpa daqueles mesmos que se gabavam de ser seus únicos depositários: por isso, em lugar dos artigos de fé, surgiu uma infinidade de opiniões não verdadeiras: daí os dissídios e litígios, cujo fim ainda não se vislumbra; por isso arrefeceu a caridade e extinguiu-se a piedade, e assim, sob o nome de cristianismo, ressurgiu e ainda reina o paganismo.

(Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 293)

Comenius não tergiversa ao apontar o que coloca em risco a palavra divina: a diversidade de autores e de obras a circularem onde antes essa palavra circulava sozinha. Decorre daí "a mistura, a confusão e a desordem", "os dissídios e os litígios", do que se infere — aliás, como o próprio autor já nos alertara — que a contradição e a controvérsia não têm a ver com aquilo que remete a Deus e, portanto, com aquilo que se deve aprender na Escola. Escola e Igreja, nesse contexto, não estão distantes uma da outra, muito pelo contrário. E, "se quisermos realmente purgar a Igreja de todas essas inquinições", continua Comenius (2011, p. 294)Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., "não nos resta caminho mais seguro que abandonar todas as dissertações sedutoras dos homens e voltarmo-nos para as únicas e puras fontes de Israel".

A postura pedagógica depreendida aqui é uma postura que, frente à diversidade de interpretações, de opiniões e de visões de mundo, separa o que é verdadeiro e o que é falso. Para tanto, é necessário, antes de mais nada, estabelecer o que é a verdade: em Comenius, ela atende pelo nome de Deus; noutros contextos, talvez atendesse pelo nome de alguma ideologia política qualquer, pelo nome de Ciência, pelo nome dos "costumes" — importa, aqui, menos o nome e mais um certo modo de crê-la única. A partir dessa seleção, condena-se o que se opõe a ela: Comenius, nesse sentido, tomando como exemplo os efésios, é bastante categórico ao afirmar que "tão logo foram atingidos pela resplandecente luz da sabedoria divina, queimaram todos os livros estranhos e portanto inúteis para eles como cristãos" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 298). Sem essas ameaças, ordena-se a atividade pedagógica e pode-se realizá-la sob uma atmosfera de tranquilidade, o que se evidencia numa analogia construída pelo autor: "assim como se pode dormir com segurança sobre trevos, pois dizem que nessa erva as serpentes não se escondem, também é preciso habituar-se aos livros em que não é preciso temer nenhum veneno" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 304).

Frente a um cenário de incertezas e de riscos — afinal, as mentes e os corações dos jovens poderiam ser seduzidos por ideias perigosas —, a solução didática encontrada por Comenius é neutralizar "a mistura, a confusão e a desordem". Para tanto, fecha as portas de sua escola a tudo o que não for espelho de sua Verdade e ali, dentro de um ambiente "purificado" e sob controle, pode, efetivamente, ensinar.

Mas talvez não seja essa a única reação possível diante da profusão textual.

Montaigne: o grande livro do mundo

O vigésimo-sexto ensaio de Montaigne (2002)Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes. é o "Da educação das crianças". O texto é escrito entre o final de 1579 e o início de 1580, e se dirige à condessa de Gurson, que, à época, estava grávida de seu primeiro filho. Conta o filósofo que, depois de ter lido o ensaio "Do pedantismo", o qual aparece logo antes deste sobre a educação, um amigo lhe sugerira que se aprofundasse no tema e que tecesse algumas reflexões mais propriamente pedagógicas. Aproveitando, portanto, o iminente nascimento do filho da condessa, Montaigne põe-se a escrever. O tema, no entanto, não lhe é totalmente confortável, o que o leva a afirmar, logo nos primeiros parágrafos, que suas concepções e julgamentos "só avançam às apalpadelas, cambaleando, tropeçando e pisando em falso" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 218). Por conta disso, não deixa dúvidas quanto àquilo a que se propõe: "não digo sobre os outros a não ser para dizer mais sobre mim mesmo" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 221) e, portanto, "aqui estão também meus sentimentos e minhas opiniões; apresento-os como algo em que acredito e não como algo em que se deva acreditar" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 221), escreve o autor antes de também oferecer uma breve noção sobre si mesmo: "viso aqui apenas a revelar a mim mesmo, que porventura amanhã serei outro, se uma nova aprendizagem mudar-me" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 221-2).

Essa ancoragem de suas reflexões em si mesmo é uma prática constante ao longo dos ensaios. Escreve Agnes Heller (1982, p. 198)Heller, A. (1982). O homem do Renascimento. Presença., por exemplo, que, em Montaigne, "o exterior é filtrado através do interior, mas o conteúdo das ideias é o exterior interiorizado". Na mesma linha, Moura (2014, p. 1178)Moura, R. S. (2014). Finitude, “frequentação do mundo” e formação humana em Michel de Montaigne. Educação & Realidade, 39(4), 1169-1184. http://educa.fcc.org.br/pdf/rer/‌v39n04/v39n04a12.pdf
http://educa.fcc.org.br/pdf/rer/‌v39n04/...
afirma que o estilo de escrita de Montaigne é marcado por aquilo que "na hermenêutica, chamamos de situação, na qual o lugar de onde se fala marca sobremaneira o que se diz e não se tem a intenção de ocultamento desse lugar". Isso nos coloca, desde o início do texto, frente a uma postura distinta daquela adotada por Comenius: enquanto este autor imbuía-se de uma tarefa grandiosa, Montaigne parece ter objetivos mais modestos, mais aterrados em si mesmo. E uma possível explicação para essa diferença reside na maneira como esses autores compreendem a Verdade e Deus. Enquanto Comenius toma um como sinônimo da outra e transforma essa relação em parâmetro para suas considerações pedagógicas, Montaigne, não obstante também cristão, não se convence da capacidade humana de alcançar a verdade divina. Em sua "Apologia a Raymond Sebond", escreve que "os cristãos estão errados em querer apoiar com razões humanas suas crenças" (Montaigne, 2006Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II. Martins Fontes., p. 163), que é presunção e vaidade acreditarmo-nos capazes de tomar aquilo que entendemos como reflexo do que entende Deus — "a peste do homem", afirma, "é a suposição de que sabe" (Montaigne, 2006Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II. Martins Fontes., p. 233). E Montaigne é provocador a respeito dessa presunção:

Acaso não é um empreendimento risível [...] ir forjando-lhes [as coisas humanas e naturais] um corpo e emprestando-lhes uma forma falsa, de nossa invenção? É o que se vê quanto ao movimento dos planetas, pois, como nosso espírito não o pode entender, nem imaginar sua condução natural, emprestamos a eles, do que é nosso, recursos materiais, pesados, corporais [...]

Tudo isso são devaneios e loucuras fanáticas. Por que algum dia não apraz à natureza abrir-nos seu seio e mostrar-nos diretamente os meios e a condução de seus movimentos, e neles educar nossos olhos! Ó Deus! que abusos, que enganos descobriríamos em nossa pobre ciência [...]

(Montaigne, 2006Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II. Martins Fontes., p. 304-5)

Ceticamente, Montaigne desconfia das obras do intelecto humano e de sua capacidade de, a partir de si, dizer o que é a realidade, o que é a Verdade. Para o autor, "a filosofia nos apresenta não que é ou o que ela acredita, mas o que inventa com maior verossimilhança e fineza" (Montaigne, 2006Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II. Martins Fontes., p. 306) e, um pouco mais adiante, escreve ainda que "as inquirições e contemplações filosóficas apenas servem de alimento para nossa curiosidade" (Montaigne, 2006Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II. Martins Fontes., p. 435). Aqui, além da já mencionada diferença entre aquilo que acreditam ser a capacidade da razão, há um outro ponto importante a se destacar que distingue as maneiras como Comenius e Montaigne organizam seus pressupostos filosóficos: para Comenius, conhecer tem a ver com identificar, classificar e designar; Montaigne, por outro lado, coloca as criações do intelecto como invenções que alimentam. Ora, quanto mais variada uma dieta, mais forte torna-se o corpo; quanto mais variadas as ideias com que se entra em contato, mais vasta é a mente. Essa espécie de metáfora “digestiva” acerca do conhecer dará o tom dos encaminhamentos pedagógicos elaborados por Montaigne em seu ensaio específico sobre o tema. Agora, ao que parece, podemos voltar a ele.

Em “Da educação das crianças”, Montaigne tem em vista a educação de um jovem nobre, e não a formulação de parâmetros para o desenvolvimento das escolas em geral. A despeito disso, interessa-nos observar a maneira como ele organiza suas considerações sobretudo em relação à diversidade de opiniões e modos de ver. O autor, vale a pena destacar, critica as instituições escolares de sua época porque, segundo ele, “tentam em uma mesma lição e com idêntica medida de conduta reger muitos espíritos de tão diversas medidas e formas” (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 225): a lição única, pautada num desprezo pela variedade dos educandos e do próprio saber, são-lhe indigestas.

Montaigne, então, começa suas orientações por um abandono às crenças que arrogam a si, por autoridade, o posto de verdades inequívocas. A educação proposta pelo filósofo é uma educação que põe a "inteligência em movimento". Que "tudo faça passar pelo crivo e nada se aloje em sua cabeça pela simples autoridade e confiança" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 226), instrui ele a propósito de como se devem apresentar os saberes ao educando, e, logo depois, é categórico: "que lhe proponham essa diversidade de opiniões; ele escolherá se puder; se não, permanecerá em dúvida. Seguros e convictos há apenas os loucos" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 226). Para estar em movimento, a inteligência não deve estar saturada com uma única verdade — a saturação interdita os deslocamentos. A diversidade das visões de mundo, então, em Montaigne, não é algo a ser suprimido ou neutralizado, é a própria condição para que suas aspirações pedagógicas possam ser reivindicadas.

Para tanto, Montaigne não economiza no que pode servir como objeto para essa diversificação de vozes: "tudo o que se apresenta a nossos olhos serve de livro eficiente" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 228), afirma ele, antes de elencar a "malícia de um pajem, a tolice de um criado, uma conversa à mesa" como ocasiões em que essa variedade se pode manifestar e produzir aprendizagem. Na sequência, ele lista também a importância do "comércio dos homens", ou seja, "a visita a países estrangeiros", e não só a visita aos povos que nos são contemporâneos: "nessa frequentação dos homens", escreve um pouco mais adiante, "pretendo incluir também, e principalmente, os que vivem na memória dos livros" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 233). A diversidade a que se deve expor o educando, para Montaigne, não é, portanto, restrita às experiências ordinárias da vida. Ela envolve também uma experimentação dos grandes clássicos. O que lhe importa, no entanto, não é a aquisição ostentatória, pedante, desses saberes; não é que o aluno saiba identificar as coisas, e repetir trabalhando "apenas para encher a memória" e deixando "o entendimento e a consciência vazios", como chega a afirmar em "Do pedantismo" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 203). O que lhe interessa é que tais saberes atuem na formação de um sujeito, na ampliação de suas possibilidades e numa conscientização mais justa a respeito de si próprio. Que funcionem, escreve ele, "para atritar e polir nosso cérebro contra o de outros" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 229).

Diferentemente, portanto, do que sugeria Comenius, a variedade é a palavra de ordem das estratégias didáticas propostas por Montaigne. A segurança de quem pode educar como quem se deita sobre os trevos desaparece: o mundo é vasto e nem sempre rima, nem sempre traz soluções apaziguadoras, e educar é pôr à prova. A lição primeira e fundamental que se tira daí nos é fornecida pelo próprio Montaigne (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 235):

Da frequentação do mundo tira-se uma admirável clareza para o julgamento dos homens. Estamos todos trancados e encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento do nosso nariz. [...] Mas quem se representa, como em um quadro, essa grande imagem de nossa mãe natureza em sua total majestade; quem lê̂ em seu semblante uma tão geral e constante variedade; quem se observa dentro dela, e não a si, mas a todo um reino, como um risco de um buril muito fino, apenas esse avalia as coisas em sua justa dimensão.

Este grande mundo, que alguns ainda multiplicam como espécies sob um gênero, é o espelho em que devemos olhar para nos conhecermos da perspectiva certa. [...] Tantos sentimentos, facções, julgamentos, opiniões, leis e costumes nos ensinam a julgar com exatidão os nossos próprios, e ensinam nosso julgamento a reconhecer sua própria imperfeição e fraqueza natural – o que não é uma aprendizagem leviana. [...]

O livro do mundo, para Montaigne, é biblioteca, não é Bíblia. O ensinamento importante que deriva daí é o reconhecimento de que nossos julgamentos são imperfeitos e incapazes de dar conta do todo, de uma verdade pretensamente absoluta. É essa a primeira lição que se tira da frequentação do mundo. Independentemente do que sejam os costumes e as crenças do outro, elas informam, antes de tudo, que aquilo que, por hábito, tem-se como inequívoco, não o é: se bem aprendida, essa lição, como coloca o autor, não é leviana; ela ensina que não somos senhores da verdade e que, portanto, não basta insistir em mostrá-la, em evidenciá-la a quem nela não acredita. E isso não significa que não exista o real, que não exista a verdade: significa que o que está em jogo são interpretações e é importante rastrearmos como surgem as nossas próprias.

Aqui, portanto, a variedade das opiniões é fundamento. E uma educação que se proponha a se alicerçar sobre ele tem ciência de que não funciona proteger-se daquilo que se contrapõe a suas verdades fundamentais. Deve pôr-se em risco. Mas o que isso significa?

A didática em meio à profusão

Depois de elogiar as vantagens da "frequentação do mundo", Montaigne faz um alerta. Escreve ele que, observando-a, presenciou muitas vezes o mesmo vício: "em vez de tomar conhecimento dos outros, esforçamo-nos apenas em dar-nos a conhecer" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 230), o que, segundo o autor, soma-se a "uma inconveniência grosseira" de nos opormos a "tudo o que não é de nosso agrado" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 231). Tais características, ainda que elencadas a partir do cenário que o filósofo observava no século XVI, não soam tão estranhas a uma contemporaneidade acostumada a fazer do "eu" um espetáculo (Sibila, 2016Sibila, P. (2016). O show do eu. Contraponto.), a limitar-se ao funcionamento de algoritmos que nutrem os sujeitos de si mesmos, desacostumando-os a lidar com a diferença (Pariser, 2012Pariser, E. (2012). O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Zahar.), e alimentando um crescente narcisismo (Lipovetsky, 2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Manole.; Han, 2017Han, B.-C. (2017). Agonia de Eros. Vozes.). A esse propósito, aliás, é instigante a diferenciação que Han (2017, p. 9-10)Han, B.-C. (2017). Agonia de Eros. Vozes. estabelece entre o sujeito narcísico e o sujeito do amor próprio. Para este autor, enquanto o segundo estabelece com clareza aquilo que é ele mesmo e aquilo que é o outro e opta pelo que caracteriza a si mesmo, o sujeito narcísico é alguém que, incapaz de estabelecer esses limites, encerra-se ensimesmado por hábito, por conveniência, e não por uma escolha decorrente da experimentação da alteridade, do confronto com ela. Para o amor próprio, então, faz-se necessário esse encontro com o outro, ou, nos termos de Montaigne (2002, p. 230)Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., "o comércio dos homens".

É nesse sentido que o ensaísta francês recomenda "o silêncio e a modéstia", como qualidades "muito convenientes para a conversação" (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 230). Essa postura permite ao sujeito colocar-se em meio à alteridade, em meio ao que foge a seu controle, e a experienciar as coisas do mundo, os saberes, as ideias, os afetos, não como quem busca algo já conhecido, como quem quer reafirmar o que já definiu. Pelo contrário, trata-se de uma postura que, conforme escreve Jorge Larrosa (2014, p. 25)Larrosa, J. (2014). Escritos sobre experiência. Autêntica., assemelha-se a "um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo"; o sujeito da experiência, continua o professor espanhol, "se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade" (Larrosa, 2014Larrosa, J. (2014). Escritos sobre experiência. Autêntica., p. 25). Estando disposto a não tomar como inequívoco seu próprio saber, o educando, conforme o pensa Montaigne (2002, p. 231)Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., saberá "render-se e entregar as armas à verdade, tão logo a divise, quer nasça nas mãos de seu adversário, quer nasça em si mesmo por alguma reconsideração". Saberá, além disso:

[...] compreender que admitir o erro que descobriu em seu próprio raciocínio, ainda que seja percebido apenas por ele, é um ato de discernimento e de sinceridade, que são as principais qualidades que ele procura; que obstinar-se e contestar são características comuns, que se manifestam nas almas mais baixas; que reconsiderar e corrigir-se, abandonar no ímpeto do ardor uma opinião errônea são características raras, fortes e filosóficas.

(Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 231)

É importante não perder de vista, ao ler essas considerações, que, para Montaigne, a verdade que se divisa e o "erro" que se reconhece não são inequívocos, absolutos: são construções. O que está em jogo é ser capaz de observar como nossos raciocínios levam a um ou a outro lugar e como se constroem. E, nessa observação, reside talvez a diferença maior dos fundamentos de um fazer educacional como aquele pensado por Comenius e desse proposto por Montaigne: enquanto o primeiro toma uma interpretação de mundo como verdade definitiva e acabada, o segundo a tem como construção.

Uma didática comeniana, então, pode se preocupar em formar "homens de verdade" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 98): o homem, afinal, é "uma criatura feita à imagem de seu criador e para seu deleite" (Comenius, 2011Comenius. (2011). Didática Magna. (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes., p. 53). Para tanto, basta que se saiba o que é ou o que quer esse Deus — ou o que é e o que quer a Verdade — e buscar a identificação com ele. Educar, nesse sentido, é fazer-se à imagem de algo que já não se põe em dúvida. Num caminho parecido, Lipovetsky e Serroy (2011, p. 81)Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2011). A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. (Maria Lúcia Machado, trad.). Companhia das Letras. sugerem a necessidade de se definirem os métodos de orientação em meio à "superfartura indiferenciada", e a bússola para essa orientação não questiona o polo ao qual seu magnetismo a faz apontar.

Já a hipótese montaigniana, por sua vez, não se pode fiar num polo fixo para se organizar. Montaigne, em sua própria escrita, reconhece estar sempre às apalpadelas e poder falar apenas daquilo que, no dado momento em que se expressa, é: no instante seguinte, lembra-nos o autor, poderá ser outro caso uma nova aprendizagem o mudar (Montaigne, 2002Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I. Martins Fontes., p. 222). É essa percepção de que suas certezas são contingentes que o impede de prescrever uma verdade pretensamente definitiva, imutável. Por conta disso também talvez não nos possa oferecer, como o faz Comenius, uma "Didática" pronta e acabada. Há, no entanto, alguns pontos que parecem dar o tom do que poderia ser um processo de ensino pensado a partir das reflexões do filósofo francês:

  1. em primeiro lugar, Montaigne nos ensina que o silêncio e a modéstia são qualidades importantes para nos lançarmos no "comércio dos homens". Como desenvolver tais características, porém, em um mundo que parece estimular o contrário? Talvez, apoiando-nos nas ideias do próprio pensador, pudéssemos sugerir que uma coisa não vem sem a outra: é preciso colocar as próprias certezas em jogo, no mundo, para que elas ganhem contornos mais modestos, para que se possam ver com mais justeza. Como docentes, podemos propor atividades, seja contando às alunas e aos alunos as histórias de onde vêm os saberes que apresentamos; seja trazendo formas diferentes de pensamento, por exemplo, que proporcionem um tal cenário; seja ouvindo aquilo que os próprios estudantes trazem do que ouvem em casa, do que leem na internet. O estranhamento do que é familiar a partir da familiarização com o que é estranho, tal qual propõe a Antropologia (Velho, 1978Velho, G. (1978). Observando o familiar. In E. D. O. Nunes, A aventura sociológica. Jorge Zahar.), parece, nesse sentido, fundamental para fazeres educacionais que, em meio à diversidade de ideias e de opiniões, não busquem uma neutralidade que talvez não seja inexistente, mas que, cada vez mais, é indiferente.

  2. Em segundo lugar, parece fazer parte de uma didática montaigniana, um deslocamento das questões: em vez do "o que é?", o "como veio a ser?", o "por que é assim e não de outra forma?". Quando o ensaísta nos ensina a rendermos armas à verdade, ele escreve sobre voltarmo-nos às estruturas de nossos raciocínios, sobre averiguá-las, questioná-las. Esse movimento implica a reconstrução daquilo que se sabe e, por isso, possibilita a constante revisão do que se pensa, dos fundamentos em que nos apoiamos, dos processos que nos conduzem a um ou a outro resultado, a uma ou a outra crença. A tendência, nessa dinâmica, é uma relação mais íntima com o conhecimento enquanto construção e não como objeto pronto e acabado a ser tomado e possuído. O saber, tal qual o alimento, para recuperar a metáfora de que se vale Montaigne, forma aquilo que o sujeito é, dá-lhe energia e corpo; o saber é mais o que o sujeito é do que o que o sujeito tem.

Isso, que não se configura como um programa pedagógico ou como uma teoria didática, pode servir para caracterizar a disposição para se lidar com a profusão de interpretações em sala de aula de uma maneira a não depender da definição do que é a verdade absoluta. E isso não porque ela não exista, mas sim porque não é mais a questão: diante da variedade multiplicada incessantemente pelo crescente número das telas, talvez ela, a verdade que se quer absoluta, perca seu chão. Em vez de afirmá-la a tudo custo, Montaigne nos ensina uma outra estratégia: vincularmo-nos por inteiro com aquilo sobre que falamos em nossas salas de aula a ponto de podermos justificar ponto por ponto daquilo que fazemos. Philippe Meirieu (2010)Meirieu, P. (2010). Frankenstein, educador. LAertes. associa uma tal postura com o próprio ato de ensinar. Segundo ele: "ensinar é, sempre, expor de modo ordenado aquilo que se descobre mais ou menos de modo aleatório" (Meirieu, 2010Meirieu, P. (2010). Frankenstein, educador. LAertes., p. 76); nessas reconstruções, continua, "reconstituo uma racionalidade combinando os encontros múltiplos, inscrevendo-os neles investigações feitas precisamente para essa ocasião, conectando tudo isso com exemplos e experiências que tomo de minha própria história" (Meirieu, 2010Meirieu, P. (2010). Frankenstein, educador. LAertes., p. 76).

O risco de caminhar sobre tão pouco sólido solo é grande. Tudo muda a cada nova aprendizagem e, em meio à diversidade, é-nos importante termos claros quais os caminhos que nos levaram a um ou a outro lugar. Aprender, todavia, a caminhar com os passos leves que isso demanda, fazendo coro com Montaigne, não é, definitivamente, uma "aprendizagem leviana".

Considerações finais

Ao longo deste artigo buscou-se apresentar duas concepções didáticas assumidas frente à variedade de ideias e de opiniões produzida pela inserção e difusão social de tecnologias que multiplicaram o número de textos em circulação: a prensa de tipos móveis de Gutenberg e a Internet. A primeira dessas concepções didáticas analisadas foi a desenvolvida por Comenius, em 1657, em sua "Didática Magna", com ênfase especial no capítulo XXV desta obra. Comenius, partindo de uma crença na inquestionabilidade do que tinha por verdade, a palavra divina, utiliza-a como critério para definir o que é e o que não é cabível na educação de "homens de verdade". Nesse sentido, o ato de definir de maneira irrevogável o que é a verdade implica uma atitude docente que identifica o que é e o que não é um saber escolar; que seleciona o que entra ou não na escola; e, por fim, que entende a formação como o cumprimento daquilo que já se definiu a partir dessa verdade.

Por outro lado, apresentamos também a didática decorrente da aposta de Michel de Montaigne. Em seus ensaios, o autor desconfia da capacidade da razão humana de definir o que é a verdade de Deus. Sendo assim, não pode se fiar nessa razão para organizar suas proposições pedagógicas. Frequentando o mundo, Montaigne nota que a imensa variedade de costumes, de ideias, de modos de viver não precisa ser neutralizada, padronizada em uma forma única: essa variedade, antes de mais nada, se não nos conta sobre uma verdade inquestionável, conta, a seu turno, sobre nosso próprio tamanho, dá-nos contornos, e é essa a aprendizagem fundante de seu pensamento educacional. Para tanto, ainda que não nos forneçam programa algum sobre o que fazer, suas ideias conduzem a uma didática que assume a diversidade não como problema, mas como condição; que, por assumi-la põe à prova aquilo que se sabe, criando espaço para a dúvida e para a abertura sem pretensões de encerramento, ou seja, para o inacabamento de nossos saberes e de nós mesmos; e que, por fim, demanda uma genealogia do que se aprende, do que se tem por certo, que é constantemente revisada à medida que o colocamos para se "atritar e polir" com o que não o é.

Nesse sentido, acreditamos que essas disposições didáticas disparadas pelo pensamento de Montaigne configuram-se como estratégia original e, talvez, mais eficaz para a ação em uma escola atravessada por discursos cada vez mais variados e, por isso, menos capaz de firmar verdades inquestionáveis. A variedade assumida, mais do que controlada, é o que talvez promova um engajamento de outra ordem em relação aos saberes escolares: não mais por conta de uma autoridade consensual ou por circularem sozinhos e sem contrapontos, mas por um desejo, por fome em relação a seus sabores.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) <revisao@tikinet.com.br>
  • 3
    Apoio: Este texto é resultado de pesquisa financiada pela CAPES.

Referências

  • Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida Zahar.
  • Calvino, I. (1993). Por que ler os clássicos? (Nilson Moulin, trad.). Companhia das Letras.
  • Chartier, R. (1999). A aventura do livro Editora UNESP.
  • Chartier, R. (2009). As práticas da escrita. In História da vida privada, v. 3: da Renascença ao Século das Luzes. Companhia das Letras.
  • Comenius. (2011). Didática Magna (Ivone Castilho Benedetti, trad.). WMF Martins Fontes.
  • Compagnon, A. (2014). Uma temporada com Montaigne WMF Martins Fontes.
  • Coppi, L. A. C. (2021). Uma pedagogia menor: reflexões sobre o acaso, a incerteza e o gesto de desmobilizar em Educação [Tese de doutorado em Cultura, Filosofia e História da Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo] Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. doi:10.11606/T.48.2021.tde-28062021-193534
    » https://doi.org/10.11606/T.48.2021.tde-28062021-193534
  • Eby, F. (1976). História da educação moderna: teoria, organização e práticas educacionais (Maria Ângela Vinagre de Almeida, Nelly Aleotti Maia, Malvina Cohen Zaide, trad.). Globo.
  • Han, B.-C. (2017). Agonia de Eros Vozes.
  • Han, B.-C. (2014). En el enjambre Herder.
  • Heller, A. (1982). O homem do Renascimento Presença.
  • Larrosa, J. (2014). Escritos sobre experiência Autêntica.
  • Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo Manole.
  • Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2011). A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada (Maria Lúcia Machado, trad.). Companhia das Letras.
  • Meirieu, P. (2010). Frankenstein, educador LAertes.
  • Montaigne, M. (2009). Les Essais Gallimard.
  • Montaigne, M. (2002). Os ensaios: vol. I Martins Fontes.
  • Montaigne, M. (2006). Os ensaios: vol. II Martins Fontes.
  • Moura, R. S. (2014). Finitude, “frequentação do mundo” e formação humana em Michel de Montaigne. Educação & Realidade, 39(4), 1169-1184. http://educa.fcc.org.br/pdf/rer/‌v39n04/v39n04a12.pdf
    » http://educa.fcc.org.br/pdf/rer/‌v39n04/v39n04a12.pdf
  • Pariser, E. (2012). O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Zahar.
  • Postman, N. (1999). O desaparecimento da infância (Suzana Menescal de Alencar Carvalho, José Laurentino de Melo, trad.). Graphia.
  • Postman, N. (1993). Technopoly: the surrender of the culture to the technology Vintage Books.
  • Sibila, P. (2016). O show do eu Contraponto.
  • Velho, G. (1978). Observando o familiar. In E. D. O. Nunes, A aventura sociológica Jorge Zahar.
1
Editor responsável: Pedro Angelo Pagni. <https://orcid.org/0000-0001-7505-4896>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    29 Set 2022
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br