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Mundo Justo, Confiança nas Instituições e Moderações Socioeconômicas e Políticas

Resumo

Este estudo investiga o papel justificador do sistema através da crença no mundo justo (CMJ), testando se a confiança institucional está relacionada com essa crença e se esta relação depende de fatores socioeconômicos e políticos específicos. Uma pesquisa com 381 universitários, com idades de 18 a 64 anos (M = 22,4, DP = 6,25), explorou seus graus de CMJ e confiança institucional. Análises de regressão e moderação revelaram que a CMJ se relaciona com a confiança institucional apenas naqueles de esquerda e menores rendimentos. Acreditamos que isso ocorra porque estas pessoas precisam mais de uma ideologia justificadora do sistema para poder confiar nas instituições. Este fenômeno pode lhes indispor a buscar mudanças sociais estruturais, já que o sistema passa a ser visto como justo.

Palavras-chave:
crença no mundo justo; confiança institucional; orientação política; status socioeconômico

Abstract

This study investigates the system justifying role through belief in a just world (BJW), testing whether institutional trust is related to this belief and whether this relationship depends on specific socioeconomic and political factors. A research with 381 university students, aged 18 to 64 years (M = 22.4, SD = 6.25), explored their BJW and their degree of institutional trust. Regression and moderation analyses revealed that BJW relates to institutional trust only in left-wing and with lower income participants. We believe this occurs because they need more an ideology that justifies the system to trust the institutions. This phenomenon can prevent these people from pursuing structural social changes since the system is now seen as fair.

Keywords:
belief in a just world; institutional trust; political orientation; socioeconomical status

As instituições políticas e sociais brasileiras têm sido objeto de ampla e continuada desconfiança dos cidadãos, embora determinadas instituições gozem de mais confiança do que outras (Russo, 2016Russo, G. (2016). Barômetro das Américas: Actualidades, 1 de abril de 2016. http://www.vanderbilt.edu/lapop/insights/ITB025po.pdf
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). Assim, apesar do baixo nível geral de confiança, o Latinobarómetro (Corporación Latinobarómetro, 2018Corporación Latinobarómetro. (2018). Informe 2018 [2018 Inform]. https://www.latinobarometro.org/latdocs/INFORME_2018_LATINOBAROMETRO.pdf
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) apontou essas diferenças: enquanto 73% da população no Brasil confia muito ou moderadamente na Igreja, 58% nas Forças Armadas e 33% nas polícias, somente 7% confia no governo e 6% nos partidos políticos. Verificou, ainda, que 33% confia no Poder Judiciário e apenas 12% confia no Congresso Nacional. Por sua vez, o Instituto Datafolha (2019Datafolha. (2019). Grau de confiança nas instituições [Confidence degree in institutions]. http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/07/10/9b9d682bfe0f1c6f228717d59ce49fdfci.pdf
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) constatou que 22% dos entrevistados confia muito em grandes empresas nacionais e 21% na imprensa. No estudo de Lima et al. (2018Lima, M. E. O., Da Silva, P., Carvalho, N. C., & Monteiro Farias, L. C. (2018). Identidade nacional e confiança nas instituições em contexto de crise no Brasil [National identity and confidence in institutions in a crisis context in Brazil]. Psicologia e Saber Social, 6(2), 205-222. https://doi.org/10.12957/psi.saber.soc.2017.33557
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), a família foi a instituição mais confiada, avaliada com escore superior ao ponto médio da escala utilizada. Portanto, os resultados apresentam uma tendência para a desconfiança nas instituições que caracterizam um regime democrático. A desconfiança persistente nas instituições pode ser um problema para a estabilidade da democracia moderna.

Governos democráticos não podem usar da coerção na mesma medida que outros regimes e, por isso, precisam que a sociedade confie neles para serem legitimados. As pessoas não confiam no sistema político quando eles são incapazes de aumentar ou manter o bem-estar social e apresentar uma boa qualidade de governança percebida (Catterberg & Moreno, 2006Catterberg, G., & Moreno, A. (2006). The individual bases of political trust: Trends in new and established democracies. International Journal of Public Opinion Research, 18(1), 31-48. https://doi.org/10.1093/ijpor/edh081
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). Assim, quando as instituições deste sistema passam a ser ineficientes diante de demandas sociais, envolvem-se em corrupção ou desrespeitam direitos, acabam gerando suspeição e descrédito (Dalton, 1999Dalton, R. (1999). Political support in advanced industrial democracies. In P. Norris (Ed.), Critical citizens: Global support for democratic government (pp. 57-77). Oxford University Press.; Miller & Listhaug, 1999Miller, A., & Listhaug, O. (1999). Political performance and institutional trust. In P. Norris (Ed.), Critical citizens: Global support for democratic government (pp. 204-216). Oxford University Press.; Tyler, 1998Tyler, T. R. (1998). Trust and democratic governance. In V. Braithwaite & M. Levi (Eds.), Trust and governance. Russell Sage Foundation.). Ademais, em um contexto marcado pela desigualdade social acentuada, como é o caso dos países da América Latina, a percepção de que os sistemas político e econômico beneficiam diferentemente as pessoas pode fazer com que os indivíduos desfavorecidos não confiem nelas (Colen, 2010Colen, C. M. L. (2010). As covariantes da confiança política na América Latina [The covariates of political trust in Latin America]. Opinião Pública, 16(1), 1-27. https://doi.org/10.1590/S0104-62762010000100001
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). Com isto, as instituições perdem a legitimidade. Uma vez deslegitimadas, podem passar a ser percebidas, mais tarde, como dispensáveis ou mesmo nocivas à sociedade, abrindo caminho para o reconhecimento de alternativas antidemocráticas e autoritárias como solução para os problemas sociais.

Embora as variáveis estruturais, como a qualidade de governança, sejam fundamentais para se compreender o apoio às instituições de um sistema, as variáveis ao nível individual também têm parte na explicação, em muito porque se relacionam, de uma maneira ou de outra, às estruturais. A confiança nas instituições políticas e sociais varia conforme diferenças políticas, econômicas e sociais das pessoas, o que inclui indicadores de escolaridade, crenças religiosas, posicionamento político e rendimentos. Assim, algumas pessoas confiam mais do que outras nas instituições. Por exemplo, no contexto latino-americano, Ribeiro (2011Ribeiro, E. A. (2011). Confiança política na América Latina: Evolução recente e determinantes individuais [Political trust in Latin America: Recent evolution and individual determinants]. Revista de Sociologia Política, 19(39), 167-182.) verificou que o autoposicionamento ideológico de argentinos e peruanos estava relacionado com a confiança política, indicando que quanto mais à direita do espectro político esquerda-direita, e com mais rendimentos, mais as pessoas tendiam a confiar nas instituições políticas democráticas (parlamento, partidos políticos, Poder Judiciário, serviços públicos e sindicatos). Ramos et al. (2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.) chegaram à mesma conclusão para os europeus. Por este motivo, também esperamos, neste estudo, que rendas mais altas e posicionamento político à direita estejam positivamente relacionados com a confiança nas instituições.

É possível que pessoas mais abastadas confiem ainda mais nas instituições quando vivem em uma sociedade com diferenças mais acentuadas de renda entre os indivíduos (Catterberg & Moreno, 2006Catterberg, G., & Moreno, A. (2006). The individual bases of political trust: Trends in new and established democracies. International Journal of Public Opinion Research, 18(1), 31-48. https://doi.org/10.1093/ijpor/edh081
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). As pessoas com maiores privilégios socioeconômicos arriscam menos ao confiar nas instituições (Ramos et al., 2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.) porque, no geral, são sempre tratadas dignamente e favorecidas por elas. Já as pessoas de classes mais desfavorecidas, em geral, não são retribuídas por confiarem nelas. Se a desigualdade social é maior em uma sociedade, é mais provável que as pessoas nos níveis mais altos confiem em maior medida no establishment político tal como é, e que as tem favorecido, para manter o status quo e preservar intacta a sua posição na hierarquia social.

Sendo as pessoas de direita e de rendas mais altas as que, em geral, mais confiam nas instituições como forma de manter o status quo (Lima et al., 2018Lima, M. E. O., Da Silva, P., Carvalho, N. C., & Monteiro Farias, L. C. (2018). Identidade nacional e confiança nas instituições em contexto de crise no Brasil [National identity and confidence in institutions in a crisis context in Brazil]. Psicologia e Saber Social, 6(2), 205-222. https://doi.org/10.12957/psi.saber.soc.2017.33557
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; Ramos et al., 2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.; Ribeiro, 2011Ribeiro, E. A. (2011). Confiança política na América Latina: Evolução recente e determinantes individuais [Political trust in Latin America: Recent evolution and individual determinants]. Revista de Sociologia Política, 19(39), 167-182.), e uma vez que as instituições precisam adquirir legitimidade de uma forma ampla, não apenas advinda das pessoas nos estratos sociais mais altos, nos questionamos o que pode fazer com que pessoas de rendas mais baixas e de orientação política de esquerda confiem nas instituições de um sistema que mantém uma desigualdade social tão grande como o brasileiro. Enquadramos essa questão no contexto da teoria sobre a crença no mundo justo.

Crença no Mundo Justo e Confiança nas Instituições

Alguns estudos indicam que existe uma relação positiva entre o ato de confiar e crenças sociais tais como a crença no mundo justo (Otto et al., 2009Otto, K., Glaser, D., & Dalbert, C. (2009). Mental health, occupational trust, and quality of working life: Does belief in a just world matter? Journal of Applied Social Psychology, 39(6), 1288-1315. https://doi.org/10.1111/j.1559-1816.2009.00482.x
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; Zuckerman & Gerbasi, 1977Zuckerman, M., & Gerbasi, K. C. (1977). Belief in a just world and trust. Journal of Research in Personality, 11(3), 306-317. https://doi.org/10.1016/0092-6566(77)90039-3
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). A Crença no Mundo Justo (CMJ), segundo a teoria desenvolvida por Melvin Lerner (1980Lerner, M. J. (1980). The belief in a just world: A fundamental delusion. Plenum Press. https://doi.org/10.1207/s15327752jpa4604_19
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), é a motivação que os indivíduos têm, em maior ou menor grau, para agirem como se acreditassem que o mundo é um lugar justo e, por isso, creem que as pessoas recebem o que merecem e merecem o que recebem (Hafer & Bègue, 2005Hafer, C. L., & Bègue, L. (2005). Experimental research on just-world theory: Problems, developments, and future challenges. Psychological Bulletin, 131(1), 128-167. https://doi.org/10.1037/0033-2909.131.1.128
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). A CMJ tem propósitos adaptativos importantes, levando as pessoas a lhe defenderem diante de ameaças e injustiças (Dalbert, 2001Dalbert, C. (2001). The justice motive as a personal resource: Dealing with challenges and critical life events. Plenum.). Segundo Otto et al. (2009Otto, K., Glaser, D., & Dalbert, C. (2009). Mental health, occupational trust, and quality of working life: Does belief in a just world matter? Journal of Applied Social Psychology, 39(6), 1288-1315. https://doi.org/10.1111/j.1559-1816.2009.00482.x
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), ser confrontado com uma injustiça, tanto vivenciada pelo próprio indivíduo como a observada ocorrendo a outra pessoa, ameaça a crença de que a justiça prevalece no mundo, o fundamento da CMJ. Assim, quando pessoas com alto nível de CMJ vivenciam injustiças que não podem ser resolvidas, elas tentam restaurar a justiça, literal ou figurativamente. De acordo com Dalbert (1999Dalbert, C. (1999). The world is more just for me than generally: About the personal belief in a just world scale’s validity. Social Justice Research, 12(2), 79-98. https://doi.org/10.1023/A:1022091609047
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), isto pode ser feito, dentre outras maneiras, pela minimização das ações do perpetrador, percebendo-as como não intencionais, ou pela minimização da injustiça em si. Dessa forma, reinterpretam a situação como sendo justa, aceitável ou correta.

Por isso, a CMJ tem pelo menos três funções adaptativas: função de dotar os indivíduos de confiança, função de assimilação de injustiças e função de proteção da saúde mental (Dalbert, 2001Dalbert, C. (2001). The justice motive as a personal resource: Dealing with challenges and critical life events. Plenum.; Otto et al., 2009Otto, K., Glaser, D., & Dalbert, C. (2009). Mental health, occupational trust, and quality of working life: Does belief in a just world matter? Journal of Applied Social Psychology, 39(6), 1288-1315. https://doi.org/10.1111/j.1559-1816.2009.00482.x
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). Nesta perspectiva, a confiança é uma expressão da CMJ. Indivíduos com maior CMJ tendem a confiar mais porque têm certeza de que os outros agirão de maneira justa e de que serão tratados justamente pelos outros (Hafer & Sutton, 2016Hafer, C. L., & Sutton, R. (2016). Belief in a just world. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of Social Justice Theory and Research (pp. 1-504). Springer New York. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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). Esta relação não se limita ao nível interpessoal e também atinge o nível societal.

Neste sentido, para além da correlação entre CMJ e confiança interpessoal geral, Correia e Vala (2004Correia, I., & Vala, J. (2004). Belief in a just world, subjective well-being and trust of young adults. In H. Sallay & C. Dalbert (Eds.), The Justice Motive in Adolescence and Young Adulthood: Origins and Consequences (pp. 1-271). Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203575802
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) e Zhang e Zhang (2015Zhang, Z., & Zhang, J. (2015). Belief in a just world mediates the relationship between institutional trust and life satisfaction among the elderly in China. Personality and Individual Differences, 83, 164-169. https://doi.org/10.1016/j.paid.2015.04.015
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) verificaram que a CMJ está positivamente correlacionada com a confiança nas instituições. Logo, quanto mais se apoia a crença de que o mundo é um lugar justo, mais se confia nas instituições sociais. Nós acreditamos que, nesta relação, é a CMJ a preditora da confiança institucional. No entanto, talvez a CMJ não se relacione com a confiança institucional em todas as pessoas, uma vez que ela tem muitos determinantes individuais que parecem ter um objetivo comum claro.

Em geral, as pessoas com alta CMJ são mais religiosas, mais autoritárias e mais orientadas à crença no controle interno do que pessoas com baixa CMJ (para uma revisão, ver Dalbert & Donat, 2015Dalbert, C., & Donat, M. (2015). Belief in a Just World. In C. Dalbert & M. Donat (Eds.), International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences (2nd ed., Vol. 2, pp. 487-492). Elsevier. https://doi.org/10.1016/B978-0-08-097086-8.24043-9
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). Atitudes políticas mais conservadoras e ideologias de direita também estão relacionadas com uma CMJ mais alta, uma vez que pessoas que assim pensam tendem a venerar pessoas de alto status e depreciar outras de baixo status, têm foco na ordem e controle e apoiam o status quo (Sabbagh & Schmitt, 2016Sabbagh, C., & Schmitt, M. (2016). Handbook of social justice theory and research. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of social justice theory and research (pp. 1-11). Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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). Logo, ideologias e posições dominantes se associam com frequência à alta adesão à CMJ. Contudo, a expressão da crença no mundo justo não é assim tão evidente. Por exemplo, as pessoas de classes socioeconômicas mais altas nem sempre apresentam graus de CMJ significativamente mais altos que as de classes baixas.

De fato, é interessante a relação entre CMJ e status social e econômico. Algumas pesquisas nos Estados Unidos demonstraram que afro-americanos e outros grupos de participantes de baixo status socioeconômico revelaram uma CMJ geral mais alta em comparação com os participantes brancos e ricos da amostra (Hunt, 2000Hunt, M. O. (2000). Status, religion, and the “belief in a just world”: Comparing African Americans, Latinos, and Whites. Social Science Quarterly, 81(1), 325-343.; Umberson, 1993Umberson, D. (1993). Sociodemographic position, worldviews, and psychological distress. Social Science Quarterly, 74(3), 575-589.). De maneira similar, em uma pesquisa com estudantes adolescentes brasileiros de níveis socioeconômicos diferentes, Thomas (2018Thomas, K. J. (2018). Justice perceptions and demographics of privilege among Brazilian adolescents. Psychological Reports, 121(6), 1086-1105. https://doi.org/10.1177/0033294117745886
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) verificou que aqueles de grupos mais desfavorecidos percebiam em maior medida o mundo como um lugar justo do que aqueles mais privilegiados. É possível que os indivíduos em contextos sociais vulneráveis vejam o sistema como menos escapável e, por isso, sejam mais propensos a ter uma CMJ mais alta, como uma forma de assimilar e restaurar a justiça de uma situação que é percebida como não podendo ser resolvida ou se sair dela.

Os teóricos da justificação do sistema já propõem que, em algumas circunstâncias, as pessoas que mais sofrem com um determinado estado das coisas são, paradoxalmente, as menos propensas a questioná-lo, desafiá-lo, rejeitá-lo ou mudá-lo (por exemplo, Jost et al., 2003Jost, J. T., Pelham, B. W., Sheldon, O., & Ni Sullivan, B. (2003). Social inequality and the reduction of ideological dissonance on behalf of the system: Evidence of enhanced system justification among the disadvantaged. European Journal of Social Psychology, 33(1), 13-36. https://doi.org/10.1002/ejsp.127
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). Com isto, Henry e Saul (2006Henry, P. J., & Saul, A. (2006). The development of system justification in the developing world. Social Justice Research, 19(3), 365-378. https://doi.org/10.1007/s11211-006-0012-x
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) testaram se mesmo as pessoas em um dos países mais pobres do mundo, a Bolívia, endossariam crenças que justificam o status quo. Descobriram que jovens de baixo status endossaram, mais do que os de alto status, crenças na eficácia do governo em atender às necessidades do povo. Estas descobertas apoiam fortemente as teorias que enfatizam a manutenção da estratificação social. Dentre as explicações para tanto, está a redução da dissonância cognitiva (Jost et al., 2003Jost, J. T., Pelham, B. W., Sheldon, O., & Ni Sullivan, B. (2003). Social inequality and the reduction of ideological dissonance on behalf of the system: Evidence of enhanced system justification among the disadvantaged. European Journal of Social Psychology, 33(1), 13-36. https://doi.org/10.1002/ejsp.127
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), de modo que os membros de grupos de status inferior podem usar estratégias cognitivas para lidar com a dissonância criada pela tensão de contribuir para a estabilidade de um sistema que os prejudica.

Desta perspectiva, embora a teoria da CMJ tenha sido originalmente construída para explicar como as pessoas reagem a situações de injustiça interpessoal, há evidências empíricas de que, em determinadas situações, esteja relacionada à legitimidade percebida dos sistemas sociais (Martin & Cohn, 2004Martin, T. A., & Cohn, E. S. (2004). Attitudes toward the criminal legal system: Scale development and predictors. Psychology, Crime and Law, 10(4). https://doi.org/10.1080/10683160310001629265
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; Ng & Allen, 2005Ng, S. H., & Allen, M. W. (2005). Perception of economic distributive justice: Exploring leading theories. Social Behavior and Personalityr, 33(5), 435-454. https://doi.org/10.2224/sbp.2005.33.5.435
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; Rubin & Peplau, 1975Rubin, Z., & Peplau, L. A. (1975). Who believes in a just world? Journal of Social Issues, 31(3), 65-89. https://doi.org/10.1111/j.1540-4560.1975.tb00997.x
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), porque facilitaria a percepção de justiça, mesmo em sistemas que trabalham contra os interesses das pessoas (Hafer & Sutton, 2016Hafer, C. L., & Sutton, R. (2016). Belief in a just world. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of Social Justice Theory and Research (pp. 1-504). Springer New York. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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). Na mesma linha, outras investigações (por exemplo, Silva et al., 2018Silva, K. C., Torres, A. R. R., Estramiana, J. L. Á., Luque, A. G., & Linhares, L. V. (2018). Racial discrimination and belief in a just world: Police violence against teenagers in Brazil. Journal of Experimental Social Psychology, 74(October 2017), 317-327. https://doi.org/10.1016/j.jesp.2017.10.009
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) revelaram que a adesão à CMJ está ligada à legitimação das diferenças de status socioeconômico entre os grupos, favorecendo a expressão de comportamentos discriminatórios contra os mais desfavorecidos. Furnham (1991Furnham, A. (1991). Just world beliefs in twelve societies. The Journal of Social Psychology, 133(3), 317-329.), inclusive, demonstrou que, em uma sociedade desigual em que a maioria das pessoas acredita que o mundo é um lugar justo, as desigualdades econômicas e sociais são consideradas justas e se entende que os pobres têm menos recursos porque realmente merecem menos.

Neste sentido, a desigualdade é, em algum grau, legitimada também pela CMJ. Dito de outra forma, a CMJ é também uma forma de legitimação do sistema social. Para uma parcela das pessoas de classes mais baixas, ela teria a função de fazê-las justificar o modo como as coisas são e, consequentemente, aceitá-las e conformar-se a elas. Tomando emprestadas as palavras de Lerner (1980Lerner, M. J. (1980). The belief in a just world: A fundamental delusion. Plenum Press. https://doi.org/10.1207/s15327752jpa4604_19
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), é uma ilusão fundamental. No presente estudo, a partir dos correlatos da confiança institucional que a literatura traz (para uma revisão, ver Ramos et al., 2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.; Ribeiro, 2011Ribeiro, E. A. (2011). Confiança política na América Latina: Evolução recente e determinantes individuais [Political trust in Latin America: Recent evolution and individual determinants]. Revista de Sociologia Política, 19(39), 167-182.), acreditamos que rendas mais altas e ser de direita estão positivamente associados à confiança nas instituições. Sendo assim, de que forma pessoas de rendas mais baixas e de esquerda confiam nas instituições? Propomos que o farão quando têm CMJ mais alta. Quer dizer, sem a CMJ, é possível que muitas destas pessoas não confiem nas instituições por conta de conjunturas e condições estruturais em que estão imersas, como a percepção de incapacidade do sistema capitalista de promover bem-estar social. Com uma alta crença que justifica os sistemas sociais, como a CMJ, e que leva à concepção de que a ausência de bem-estar não tem a ver com falhas estatais, mas com responsabilidades individuais, podem passar a confiar. Isto seria mais uma maneira de evidenciar que a CMJ tem um papel de justificação do sistema para pessoas de baixa renda.

O problema de confiar nas instituições mesmo quando elas agem de modo contrário aos seus interesses está em que, como demonstraram Cichocka et al. (2018Cichocka, A., Górska, P., Jost, J. T., Sutton, R. M., & Bilewicz, M. (2018). What inverted u can do for your country: A curvilinear relationship between confidence in the social system and political engagement. Journal of Personality and Social Psychology, 115(5), 883-902. https://doi.org/10.1037/pspp0000168
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), a confiança institucional em excesso está ligada a um baixo engajamento político, porque pode fazer com que a necessidade de mudança social não seja realmente percebida. Isto pode ter consequências sociais concretas importantes em sociedades como a brasileira, cujo Estado de bem-estar é pouco robusto e ineficaz na reparação de desigualdades sociais. De tal modo, se, por um lado, a confiança nas instituições políticas democráticas é muito importante para a estabilidade do regime democrático, por outro lado, pode ser nociva para a busca por mudanças sociais quando as instituições não são eficientes, pois as legitima. Isto é particularmente mais preocupante quando ocorre em pessoas para quem mudanças sociais estruturais são necessárias, e que mais deveriam buscá-las, como as pessoas de baixas rendas.

Neste sentido, nos questionamos de que maneira as instituições podem adquirir a confiança de pessoas para as quais, com frequência, fazem pouco por suas necessidades. Nos perguntamos se a CMJ está associada à confiança institucional e em que pessoas isso ocorre. Isto é importante para compreendermos melhor o papel das diferenças individuais na CMJ e sua relação com a confiança nas instituições. Especificamente, é importante saber, como supomos, se realmente determinados indivíduos necessitam mais dessa crença para confiarem nas instituições, o que nos fará refletir sobre as razões de sua ocorrência. Se somente as pessoas nas camadas mais pobres precisarem de uma alta CMJ para confiarem em maior grau nas instituições, sobretudo as estatais e públicas, isto poderá ser tomado como mais uma evidência do papel justificador da CMJ.

Esta questão ainda não foi adequadamente respondida na literatura da área. Por esta razão, o presente estudo visa analisar a relação entre CMJ e confiança, especificamente a confiança institucional, que é crucial para a legitimidade do sistema. Nossa hipótese é que: (1) CMJ, orientação política de direita e maior renda familiar se correlacionam positivamente com a confiança nas instituições, uma vez que essas são variáveis que estão correlacionadas com a confiança na literatura (Ramos et al., 2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.; Ribeiro, 2011Ribeiro, E. A. (2011). Confiança política na América Latina: Evolução recente e determinantes individuais [Political trust in Latin America: Recent evolution and individual determinants]. Revista de Sociologia Política, 19(39), 167-182.); e (2) o posicionamento político de esquerda e renda familiar baixa moderam a relação entre CMJ e a confiança nas instituições, a hipótese nuclear deste estudo.

Método

Participantes

Os participantes do estudo foram estudantes universitários de uma universidade pública da Paraíba. A amostra contou com 381 participantes, com idades variando de 18 a 64 anos (M = 22.4, DP = 6.25). Realizamos uma análise do poder de teste no WebPower (Zhang & Yuan, 2018Zhang, Z., & Yuan, K.-H. (2018). Practical statistical power analysis using Webpower and R (Eds). ISDSA Press. https://webpower.psychstat.org
https://webpower.psychstat.org...
), considerando o delineamento do estudo, e o poder de teste de 0,80 com p < 0,05, que indicou que essa amostra é grande o suficiente para detectar um efeito com tamanho igual ou superior a f = 0,15 numa a análise de regressão com termos de interação. A Tabela 1 detalha o perfil sociodemográfico dos participantes.

Tabela 1
Perfil sociodemográfico da amostra de estudantes universitários.

Instrumentos

Apresentamos aos participantes uma lista de 17 instituições brasileiras de interesse ao estudo: Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Partidos políticos, Polícia Federal, Polícia Militar, Forças Armadas, Empresariado, Mídia Televisiva e Rádio, Jornais e Revistas, Mídia Digital, ONGs de Direitos Humanos, Sindicatos, Grêmios e Movimentos estudantis, Movimentos Populares, Associações de Moradores e Igrejas. A tarefa dos participantes consistiu em indicar o seu grau de confiança (nenhuma, pouca, moderada e muita confiança) em cada uma dessas instituições.

Para medir a Crença no Mundo Justo, utilizamos uma medida de cinco pontos desenvolvida e validada por Linhares (2017Linhares, L. V. (2017). Crença no mundo justo e ditados populares [Belief in a just world and popular sayings, Master’s Thesis, Universidade Federal da Paraíba]. https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/12169
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), a qual avalia esse construto por meio de ditados populares que refletem princípios nucleares da CMJ (por exemplo, “Quem com ferro fere, com ferro será ferido” e “A justiça da vida tarda, mas não falha”). As respostas dos participantes variam de 1 (discorda muito) a 5 (concorda muito) com cada ditado. Esta escala foi escolhida por se tratar de uma medida implícita de crença no mundo justo cuja consistência interna é elevada. No presente estudo, a consistência interna da escala foi elevada, pois apresentou um alfa de 0,81. Além disso, também incluímos um questionário sociodemográfico com perguntas sobre idade, gênero, curso, religião, orientação político-ideológica e renda familiar.

Procedimento

A coleta de dados ocorreu presencialmente, em contexto de sala de aula, sendo que cada participante respondeu ao instrumento individualmente. Entregamos a cada participante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em que foram disponibilizadas algumas informações sobre o objetivo do estudo, além de garantir o caráter voluntário e anônimo da participação. Respeitamos todos os preceitos éticos dispostos na resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde acerca das pesquisas com seres humanos nas Ciências Humanas e Sociais. A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Paraíba em parecer de número 3.667.067.

Análise dos Dados

A análise dos dados foi feita por meio do software estatístico SPSS - Statistical Package for Social Sciences em sua versão 23. Nele, procedemos à estimação de estatísticas descritivas, análises de correlação, análise fatorial dos eixos principais com rotação Varimax, análises de variância para amostras com medidas repetidas. Por fim, realizamos análises de regressão e análises de moderação por meio do PROCESS Macro para SPSS, versão 3.5 (Hayes, 2018Hayes, A. F. (2018). Introduction to mediation, moderation, and conditional process analysis: A regression-based approach (2nd ed.). The Guilford Press.), sem a realização de correção. Sendo uma moderação, foi realizada pelo modelo 1, e o parâmetro de bootstrapping utilizado foi o de 5.000 amostras.

Resultados

As estatísticas descritivas (Tabela 2) revelam a tendência dos participantes para declararem confiar pouco na maior parte das instituições. A maioria deles revelou nenhuma ou pouca confiança em 12 de 17 instituições. As ONGs foram as instituições mais confiáveis (80,2%), enquanto os partidos políticos obtiveram os níveis mais baixos de confiança, visto que 92,9% revelou ter nenhuma ou pouca confiança neles.

Tabela 2
Estatísticas descritivas da confiança em cada instituição (N = 381).

Para testar a adequabilidade da medida de confiança institucional no presente estudo, realizamos uma análise fatorial da medida de confiança institucional utilizada, a qual apontou um valor de KMO de 0,82 e Teste de Esfericidade de Bartlett significativo (χ² [136] = 2381,47; p < 0,001). A medida apresentou uma estrutura tetrafatorial e a variância explicada dos quatro fatores foi de 61.54%, com eigenvalues variando entre 1,01 e 3,98 entre os fatores extraídos. As consistências internas dos quatro fatores gerados variaram entre 0,63 e 0,83. Além disso, calculamos um índice de confiança geral, formado pela junção de todas as instituições da medida, que indica a tendência geral dos participantes para confiarem em instituições. A consistência interna da confiança geral foi de 0,78.

O primeiro fator que resultou da análise fatorial foi chamado de Organizações Civis, por abarcar instituições da sociedade civil como ONGs, Sindicatos, Movimentos Estudantis, Movimentos Populares e Partidos Políticos. Ao segundo fator, chamamos de Coerção Social, uma vez que agregou Polícia Federal, Polícia Militar, Forças Armadas, Empresariado e Igrejas. O terceiro fator reuniu TV e Rádio, Jornais e Revistas e Mídia Digital, pelo que foi intitulado de Mídia. Finalmente, o quarto fator organizou a confiança nas instituições que formam os três poderes do Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário - sendo por isso designado de Estado.

Uma ANOVA com medidas repetidas demonstrou que as médias dos quatro tipos de confiança são significativamente diferentes (F [3; 1068] = 71,17; p < 0,001; ƞ² parcial = 0,167). Comparações múltiplas com correção de Bonferroni mostraram que os estudantes confiaram significativamente mais nas Organizações Civis quando comparadas aos outros fatores (p < 0,001). Além disso, como mostra a Tabela 3, a confiança no fator Estado teve a menor média observada.

Tabela 3
Médias, desvios-padrão e correlações entre CMJ e o grau de confiança nos quatro fatores de instituições e no índice geral.

A nossa primeira hipótese, que previa que a CMJ e a confiança nas instituições se correlacionariam positivamente, foi confirmada. As correlações apresentadas (Tabela 3) confirmam esta hipótese ao evidenciar que a CMJ, de fato, correlacionou-se positivamente e de modo significativo com a confiança nas instituições da Coerção Social, do Estado e com o índice de confiança nas instituições em geral. Isto significa que aquelas pessoas que mais veem o mundo como um lugar justo para se viver têm maior tendência a confiar nas instituições como um todo, e especialmente nas instituições de Coerção Social e do Estado.

A segunda hipótese propõe que a CMJ, a orientação política de direita e rendas familiares mais altas prediriam positivamente a confiança nas instituições. As regressões múltiplas deste modelo preditivo indicaram que a CMJ predisse positivamente a confiança na Coerção Social e no Estado de forma significativa (Tabela 4). A orientação política, que se dividia em esquerda, centro e direita, foi operacionalizada em duas variáveis dummies: D1 (que comparava esquerda com o centro) e D2 (que comparava esquerda com direita). A D2 foi capaz de predizer significativamente a confiança na Coerção Social, de modo que levou as pessoas de direita a confiarem mais nas instituições coercitivas que as de esquerda. Por sua vez, a renda familiar foi igualmente categorizada em duas dummies: renda baixa (até três salários-mínimos) e renda alta (acima de 3 salários mínimos). Verificamos, então, que as diferenças de rendas predisseram de modo significativo a confiança na Mídia e no Estado. Maiores rendas levaram a maior confiança nestas instituições.

Tabela 4
Regressões múltiplas do modelo preditivo da confiança nas instituições.

Com estes resultados, verificamos que ser de direita e ter rendas mais elevadas está relacionado com a tendência nas pessoas a confiarem nas instituições, principalmente nas de Estado e de Coerção Social, ao passo que ser de esquerda e ter menos rendimentos não predisse a confiança. Hipotetizamos que quando pessoas de esquerda e menos rendimentos apresentam alta adesão à CMJ, isso pode fazê-las passar a confiar. Assim, para compreender como as pessoas de esquerda e rendas mais baixas podem confiar nas instituições, exploramos seu papel moderador na relação entre a CMJ e a confiança institucional, por meio do PROCESS Macro para SPSS (Hayes, 2018Hayes, A. F. (2018). Introduction to mediation, moderation, and conditional process analysis: A regression-based approach (2nd ed.). The Guilford Press.), versão 3.5. Apesar de a Tabela 4 revelar que houve uma interação significativa entre a CMJ e a renda, e somente para o fator Estado, realizamos análises de moderação simples para melhor investigar como os polos opostos de posicionamento político (esquerda e direita) e de rendimento familiar (baixo e médio/alto) afetam esta relação de predição entre CMJ e confiança nas instituições. Para tanto, utilizamos como moderadores o posicionamento político e a renda. Para cada análise foram controlados a idade e o sexo como covariáveis.

Em relação à confiança nas organizações civis, encontramos uma interação significativa entre CMJ e renda (b = -0,15; EP = 0,07; p = 0,042), de modo que a relação entre CMJ e confiança nestas instituições ocorreu no sentido negativo para pessoas com renda alta (b = -0,16; EP = 0,06; p = 0,006), mas não para indivíduos com renda baixa de uma maneira significativa (b = -0,001; EP = 0,04; p = 0,915). Isto significa que ter uma maior CMJ estava associado à tendência das pessoas com rendas mais altas a confiar menos nas instituições que formam o arco das Organizações Civis, como movimentos sociais, sindicatos e ONGs. Já no que diz respeito à posição política do participante, verificamos que a relação entre CMJ e confiança nas organizações civis não foi moderada de forma significativa por esta variável. Sendo assim, a relação independeu de o participante ser de esquerda ou de direita.

Na predição da Coerção Social, interação foi não significativa entre a CMJ e a D2 (b = -0,15; EP = 0,11; p = 0,163). Apesar disto, exploramos se realmente o padrão de relação entre a CMJ e a Coerção Social é realmente igual para cada posição política. Quando decompomos essa relação, observamos diferentes padrões de relação, pois esta foi para as pessoas de esquerda (b = 0,30; EP = 0,04; p < 0,001), mas não para as de direita (b = 0,15; EP = 0,10; p = 0,155). De tal modo, para que pessoas de esquerda confiassem significativamente mais em instituições coercitivas, foi necessário que tivessem uma alta CMJ. Por sua vez, a relação entre CMJ e confiança na Coerção foi significativa para os dois níveis de renda, ou seja, a relação independeu dos rendimentos dos participantes.

A relação entre a CMJ e a confiança nas instituições midiáticas não foi moderada pelo nível de renda (b = -0,13; EP = 0,07; p = 0,085) ou posição política (b = -0,08; EP = 0,12; p = 0,460) dos participantes, uma vez que as interações e decomposições das interações não resultaram em efeitos significativos (p > 0,05). Do mesmo modo, em relação à confiança no Estado, os resultados evidenciarem uma interação não significativa entre a CMJ e a D2 (b = -0,10; EP = 0,10; p = 0,339). Apesar disto, julgamos importante realizar uma análise exploratória para verificarmos se o padrão de relação entre a CMJ e a confiança nas instituições do Estado é realmente similar nos diferentes níveis do posicionamento político dos participantes, como sugere a ausência de interação significativa. Verificamos, contudo, diferentes padrões de relação, uma vez que a relação foi significativa para pessoas de esquerda (b = 0,14; EP = 0,03; p < 0,001) e não significativa para as de direita (b = 0,03; EP = 0,10; p = 0,701). Logo, a CMJ associou-se à tendência das pessoas de esquerda a confiarem nas instituições de Estado, mas não nas de direita. Portanto, quando as pessoas de direita confiam no Estado, isso acontece independentemente da sua CMJ, mas as de esquerda precisam da CMJ para confiar. Além disso, obtivemos uma interação marginalmente significativa entre CMJ e renda (b = -0,13; EP = 0,07; p = 0,052) na confiança nas instituições que formam o Estado, de modo que a relação entre CMJ e confiança nelas só ocorreu em pessoas de renda baixa (b = 0,21; EP = 0,04; p < 0,001), mas não de rendas mais altas (b = 0,07; EP = 0,05; p = 0,147). Isto quer dizer que para confiarem nas instituições do Estado, pessoas de rendas baixas e pessoas de esquerda precisam ter uma alta adesão à crença de que o mundo é um lugar onde a justiça predomina.

Finalmente, na relação entre CMJ e o índice de confiança geral, verificamos que houve uma interação não significativa entre a CMJ e a D2 (b = -0,11; EP = 0,08; p = 0,146). Contudo, a decomposição da interação mostrou que a relação entre CMJ e a confiança geral nas instituições foi significativa apenas para pessoas de esquerda (b = 0,12; EP = 0,02; p < 0,001), e não para as de direita (b = 0,004; EP = 0,08; p = 0,956). Neste sentido, para poder confiar em instituições como um todo, as pessoas de esquerda precisam ter uma CMJ alta. Ademais, a interação entre CMJ e renda foi significativa (b = -0,11; EP = 0,04; p = 0,019) para explicar a confiança geral. Assim, a relação entre CMJ e confiança institucional geral só ocorreu significativamente em pessoas de renda mais baixa (b = 0,16; EP = 0,03; p < 0,001), e não de rendas mais elevadas (b = 0,04; EP = 0,05; p = 0,251). Dito de outra forma, a CMJ associou-se positivamente à confiança em geral nas instituições em pessoas de rendas mais baixas, mas não em pessoas de rendas mais altas, que podem confiar nas instituições independentemente dela. Com isso, confirmamos a ocorrência da terceira hipótese do estudo.

Discussão

Este estudo analisou o papel moderador das variáveis de renda e posicionamento político para examinar a relação entre Crença no Mundo Justo e confiança nas instituições. Os resultados mostraram, em primeiro lugar, o baixo grau de confiança na maioria das instituições, sobretudo nas ligadas ao regime de democracia representativa, como o Poder Legislativo e os partidos políticos. Por outro lado, a média de confiança em instituições como as Forças Armadas foi significativamente superior a das instituições políticas democráticas. Este é um dado que, embora seja reiterado nas pesquisas sobre confiança institucional no Brasil (Corporación Latinobarómetro, 2018Corporación Latinobarómetro. (2018). Informe 2018 [2018 Inform]. https://www.latinobarometro.org/latdocs/INFORME_2018_LATINOBAROMETRO.pdf
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; Datafolha, 2019Datafolha. (2019). Grau de confiança nas instituições [Confidence degree in institutions]. http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/07/10/9b9d682bfe0f1c6f228717d59ce49fdfci.pdf
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), é preocupante porque pode significar uma ameaça à estabilidade do regime democrático, principalmente diante de momentos de crise e de fortalecimento de discursos antidemocráticos.

No geral, o estudo também revelou que a Crença no Mundo Justo (CMJ) e a confiança nas instituições estão positivamente correlacionadas, de maneira que quanto maior a CMJ dos participantes, maior a sua confiança institucional. Este achado corroborou outras pesquisas que também investigaram esta associação, como Correia e Vala (2004Correia, I., & Vala, J. (2004). Belief in a just world, subjective well-being and trust of young adults. In H. Sallay & C. Dalbert (Eds.), The Justice Motive in Adolescence and Young Adulthood: Origins and Consequences (pp. 1-271). Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203575802
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) e Zhang e Zhang (2015Zhang, Z., & Zhang, J. (2015). Belief in a just world mediates the relationship between institutional trust and life satisfaction among the elderly in China. Personality and Individual Differences, 83, 164-169. https://doi.org/10.1016/j.paid.2015.04.015
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). Além disso, verificamos que a posição à direita no espectro político e rendas mais altas predisseram a confiança institucional. Em sociedades estruturalmente desiguais como a brasileira, isto pode estar ligado, por um lado, ao fato de que as instituições tratam as pessoas diferentemente conforme suas classes sociais e os mais ricos arriscam menos em confiar nas instituições (Ramos et al., 2016Ramos, A., Brites, R., & Vala, J. (2016). Confiança nas instituições políticas em países europeus: O papel dos valores, da experiência democrática e da perceção de eficácia do sistema político numa perspetiva multinível [Trust in political institutions in European countries: The role of values, democratic experience, and efficacy perception of the political system in a multilevel perspective]. In F. L. Machado, A. N. de Almeida, & A. F. da Costa(Eds.), Sociologia e sociedade: Estudos de homenagem a João Ferreira de Almeida (pp. 345-367). Mundos Sociais.), porque, em geral, são bem tratados e mais favorecidos por elas. Além disso, como apontam Catterberg e Moreno (2006Catterberg, G., & Moreno, A. (2006). The individual bases of political trust: Trends in new and established democracies. International Journal of Public Opinion Research, 18(1), 31-48. https://doi.org/10.1093/ijpor/edh081
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), pode se dever igualmente ao fato de que as pessoas nas classes socioeconômicas mais altas têm interesse na manutenção do sistema como ele é para preservar sua posição privilegiada na estratificação social.

Constatamos, também, que a CMJ prediz significativamente a confiança nas instituições do Estado e da Coerção Social. Uma vez que a CMJ está ligada à preservação do status quo, já que o sistema é percebido como justo e não necessita de grandes mudanças (Hafer & Sutton, 2016Hafer, C. L., & Sutton, R. (2016). Belief in a just world. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of Social Justice Theory and Research (pp. 1-504). Springer New York. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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; Sabbagh & Schmitt, 2016Sabbagh, C., & Schmitt, M. (2016). Handbook of social justice theory and research. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of social justice theory and research (pp. 1-11). Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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), é compreensível que ela tenha se associado a maior confiança justamente nas instituições que em grande medida também têm esta função. Entretanto, essa relação entre CMJ e confiança foi moderada pelo posicionamento político e status econômico dos participantes, não tendo ocorrido para todos.

A análise de moderação revelou que a renda mais baixa moderou a relação entre a CMJ e a confiança no Estado e nas instituições de forma geral. Nesses casos, a CMJ predisse a confiança institucional nas pessoas de rendas mais baixas. Assim, se ser de direita e ter maiores rendas prediz positivamente a confiança, e, nestas pessoas, a CMJ não se relaciona à confiança institucional, nas pessoas de esquerda e rendas mais baixas é a CMJ quem prediz a confiança institucional. Dito de outra maneira, é como se as pessoas de classes mais baixas precisassem de uma crença que as façam perceber o mundo como justo para poderem confiar nas instituições, porque somente a sua condição socioeconômica não foi capaz de predizer a confiança.

São muitas as maneiras pelas quais poderíamos tentar explicar este fenômeno. Acreditamos que isso ocorre com as pessoas com rendimentos mais baixos e não com as de rendimentos mais altos pela mesma razão que leva aquelas com menores rendas a terem uma alta CMJ: a justificação do sistema (Thomas, 2018Thomas, K. J. (2018). Justice perceptions and demographics of privilege among Brazilian adolescents. Psychological Reports, 121(6), 1086-1105. https://doi.org/10.1177/0033294117745886
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), em um processo, baseando-se em Dalbert (2001Dalbert, C. (2001). The justice motive as a personal resource: Dealing with challenges and critical life events. Plenum.) e Otto et al. (2009Otto, K., Glaser, D., & Dalbert, C. (2009). Mental health, occupational trust, and quality of working life: Does belief in a just world matter? Journal of Applied Social Psychology, 39(6), 1288-1315. https://doi.org/10.1111/j.1559-1816.2009.00482.x
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), de assimilação da realidade injusta que sentem que não podem mudar. Possivelmente, indivíduos em contextos sociais mais vulneráveis percebem o sistema e a realidade em que vivem como mais inescapáveis e, recorrendo a um mecanismo de defesa psicológica, como a redução da dissonância cognitiva (Jost et al., 2003Jost, J. T., Pelham, B. W., Sheldon, O., & Ni Sullivan, B. (2003). Social inequality and the reduction of ideological dissonance on behalf of the system: Evidence of enhanced system justification among the disadvantaged. European Journal of Social Psychology, 33(1), 13-36. https://doi.org/10.1002/ejsp.127
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), passam a ver o mundo como justo e meritocrático como uma forma de não se voltarem contra esta realidade. Isto também foi verificado por Henry e Saul (2006Henry, P. J., & Saul, A. (2006). The development of system justification in the developing world. Social Justice Research, 19(3), 365-378. https://doi.org/10.1007/s11211-006-0012-x
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) na Bolívia, indicando que crenças justificadoras do sistema são endossadas por pessoas de baixo status socioeconômico que mais sofrem em decorrência de um dado sistema.

Ter uma baixa adesão à CMJ não se associou a um maior nível de confiança institucional quando as pessoas eram de esquerda ou de rendas mais baixas, mas ter alta adesão à CMJ se associou a um maior nível de confiança nas instituições para estas pessoas. Isto pode ocorrer porque a CMJ favorece o desenvolvimento da percepção de que os sistemas são justos, até mesmo quando o sistema trabalha contra os interesses das pessoas (Hafer & Sutton, 2016Hafer, C. L., & Sutton, R. (2016). Belief in a just world. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of Social Justice Theory and Research (pp. 1-504). Springer New York. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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). Neste sentido, entendemos que, como o Estado brasileiro tem sido ausente no suprimento das necessidades das populações mais vulneráveis social e economicamente, é preciso que estas pessoas tenham uma alta adesão à CMJ para ainda assim confiar nele. Por essa razão, tais pessoas podem reagir a esse paradoxo que é confiar em instituições que não lhes têm sido favoráveis interpretando a realidade pelo viés de que o mundo é essencialmente justo e meritocrático. Como concluiu Furnham (1991Furnham, A. (1991). Just world beliefs in twelve societies. The Journal of Social Psychology, 133(3), 317-329.), em uma sociedade desigual em que a maioria das pessoas acredita que o mundo é um lugar justo, as desigualdades socioeconômicas são consideradas justas e se entende que os pobres têm menos recursos porque realmente merecem menos. É nesta medida que compreendemos a CMJ como uma crença legitimadora que leva à confiança nas instituições.

O mesmo se deu para as pessoas de esquerda e de direita. As análises de moderação revelaram que a posição política também moderou a relação entre a CMJ e a confiança nos fatores Coerção Social, Estado e a Confiança Geral nas instituições, de maneira que ter uma CMJ mais alta levou as pessoas de esquerda a confiarem nestas instituições, mas não o fez nas pessoas de direita. Tradicionalmente, as pessoas de ideologias políticas mais conservadoras e de direita tendem a confiar mais nas instituições (Ribeiro, 2011Ribeiro, E. A. (2011). Confiança política na América Latina: Evolução recente e determinantes individuais [Political trust in Latin America: Recent evolution and individual determinants]. Revista de Sociologia Política, 19(39), 167-182.). São posicionamentos que priorizam a manutenção do status quo.

Isto também é evidenciado pela moderação das rendas mais altas na relação entre a CMJ e confiança no grupo de instituições a que chamamos de Organizações Civis. Especificamente nesse caso, a relação entre a CMJ e confiança nestas instituições foi negativa em pessoas com maiores rendas. Desta forma, uma maior CMJ não esteve associada à confiança, e sim à desconfiança nas instituições de Organizações Civis. Instituições da sociedade civil, como ONGs e movimentos populares, se voltam a mudanças sociais, o que é contrário aos interesses das classes mais altas, que por isso podem não confiar nelas.

As pessoas de esquerda também almejam mudanças sociais mais profundas (Sabbagh & Schmitt, 2016Sabbagh, C., & Schmitt, M. (2016). Handbook of social justice theory and research. In C. Sabbagh & M. Schmitt (Eds.), Handbook of social justice theory and research (pp. 1-11). Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-3216-0
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), a partir da leitura do mundo contemporâneo como um lugar tomado por injustiças sociais, as quais são sustentadas por parte das instituições. Logo, as instituições de Estado e Coerção Social tendem a ser percebidas com mais desconfiança por quem é de esquerda. O presente estudo evidenciou que uma das formas pelas quais as pessoas assim declaradas passam a confiar em maior grau nas instituições também é a expressão de uma maior CMJ, inclusive em instituições de Coerção, em relação às quais a posição de esquerda tradicionalmente dirige muitas críticas, como as polícias, Forças Armadas e o empresariado.

Assim, para além de uma motivação individual, é possível que a adesão à CMJ também tenha impactos ao nível social. Isto envolve a legitimação de diferenças de status socioeconômico entre os grupos (Furnham, 1991Furnham, A. (1991). Just world beliefs in twelve societies. The Journal of Social Psychology, 133(3), 317-329.; Silva et al., 2018Silva, K. C., Torres, A. R. R., Estramiana, J. L. Á., Luque, A. G., & Linhares, L. V. (2018). Racial discrimination and belief in a just world: Police violence against teenagers in Brazil. Journal of Experimental Social Psychology, 74(October 2017), 317-327. https://doi.org/10.1016/j.jesp.2017.10.009
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) e a legitimação do sistema sociopolítico (Martin & Cohn, 2004Martin, T. A., & Cohn, E. S. (2004). Attitudes toward the criminal legal system: Scale development and predictors. Psychology, Crime and Law, 10(4). https://doi.org/10.1080/10683160310001629265
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; Ng & Allen, 2005Ng, S. H., & Allen, M. W. (2005). Perception of economic distributive justice: Exploring leading theories. Social Behavior and Personalityr, 33(5), 435-454. https://doi.org/10.2224/sbp.2005.33.5.435
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). Para pessoas com alta CMJ, desigualdades sociais passam a ser vistas como consequência de atitudes individuais, uma vez que percebem o mundo como justo, onde as pessoas recebem o que merecem. Pobres teriam menos porque são percebidos como se tivessem feito por onde merecer menos. Quando a CMJ faz com que só as pessoas com menos renda, mas não as mais abastadas, confiem nas instituições estatais, é como se encobrisse, para estas pessoas, a noção de que estas instituições lhes estão em falta, dentro do quadro de referências do Estado de Direito que o Brasil se propõe a ser.

É possível, contudo, que este fenômeno seja realmente próprio de sociedades muito desiguais, onde as instituições parecem tratar as pessoas diferentemente, assim como de países com regimes democráticos mais recentes (Catterberg & Moreno, 2006Catterberg, G., & Moreno, A. (2006). The individual bases of political trust: Trends in new and established democracies. International Journal of Public Opinion Research, 18(1), 31-48. https://doi.org/10.1093/ijpor/edh081
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; Colen, 2010Colen, C. M. L. (2010). As covariantes da confiança política na América Latina [The covariates of political trust in Latin America]. Opinião Pública, 16(1), 1-27. https://doi.org/10.1590/S0104-62762010000100001
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; Lima et al., 2018Lima, M. E. O., Da Silva, P., Carvalho, N. C., & Monteiro Farias, L. C. (2018). Identidade nacional e confiança nas instituições em contexto de crise no Brasil [National identity and confidence in institutions in a crisis context in Brazil]. Psicologia e Saber Social, 6(2), 205-222. https://doi.org/10.12957/psi.saber.soc.2017.33557
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). Pode ser que sociedades que conseguem manter bons níveis de bem-estar social e qualidade de vida para toda a sua população obtenham mais confiança em suas instituições devido a fatores como estes, e que crenças justificadoras do sistema não precisem atuar de modo a fazer pessoas desfavorecidas pelas instituições reintepretarem a realidade a fim de confiar em instituições que não lhes dão muito em troca.

Talvez uma das maiores implicações práticas deste achado seja que a confiança nas instituições possa levar a um baixo engajamento político, porque o sistema e as instituições não são percebidos como falhos e necessitados de mudança (Cichocka et al., 2018Cichocka, A., Górska, P., Jost, J. T., Sutton, R. M., & Bilewicz, M. (2018). What inverted u can do for your country: A curvilinear relationship between confidence in the social system and political engagement. Journal of Personality and Social Psychology, 115(5), 883-902. https://doi.org/10.1037/pspp0000168
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). Os problemas sociais não são vistos como decorrentes de sua ineficiência ou indiferença. Embora grandes mudanças sociais e revolucionárias aconteçam nas sociedades, em geral o ímpeto que as desencadeia vem de fora da classe baixa, de indivíduos altamente educados ou razoavelmente abastados, como os líderes das Revoluções Francesa e Americana, Gandhi ou Che Guevara. É possível que as crenças justificadoras do sistema, amplamente difundidas entre grupos de status inferior nas sociedades, ajudem a explicar por que estas mudanças não são impulsionadas pela própria classe trabalhadora quando não pode mais tolerar as injustiças de uma sociedade injusta (Henry & Saul, 2006Henry, P. J., & Saul, A. (2006). The development of system justification in the developing world. Social Justice Research, 19(3), 365-378. https://doi.org/10.1007/s11211-006-0012-x
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; Jost et al., 2003Jost, J. T., Pelham, B. W., Sheldon, O., & Ni Sullivan, B. (2003). Social inequality and the reduction of ideological dissonance on behalf of the system: Evidence of enhanced system justification among the disadvantaged. European Journal of Social Psychology, 33(1), 13-36. https://doi.org/10.1002/ejsp.127
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). Com isto, o resultado alerta para a possível existência de um mecanismo que pode “docilizar” os indivíduos e entorpecer a disposição para agir no sentido de mudar realidades que podem lhes estar prejudicando. É a ideia presente na concepção de Lerner (1980Lerner, M. J. (1980). The belief in a just world: A fundamental delusion. Plenum Press. https://doi.org/10.1207/s15327752jpa4604_19
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) sobre a ilusão fundamental da CMJ. Além do mais, é possível que, na população geral, a adesão à CMJ pelas pessoas de rendas mais baixas seja ainda maior do que neste estudo, composto por universitários. Isto pode, então, levar o fenômeno que aqui foi exposto para outra dimensão.

Em termos teóricos, a articulação entre a Crença no Mundo Justo com o fenômeno da confiança institucional não é algo que tem sido suficientemente explorado pela literatura acadêmica. Além disso, neste estudo, enquadramos a abordagem da CMJ enquanto uma crença justificadora e legitimadora do sistema, uma perspectiva preterida e menos utilizada que seu enfoque motivacional clássico. Os resultados são inovadores no estudo do impacto das crenças e percepções de justiça na confiança nas instituições, especialmente ao demonstrar o papel de fatores políticos e principalmente socioeconômicos. Têm o potencial de indicar como pessoas de grupos desfavorecidos devido a questões sociopolíticas, sistêmicas e institucionais, ou de grupos que têm ideologias opostas ao sistema vigente, passam a confiar em instituições, que, com frequência, são percebidas como ineficientes perante as demandas de tais grupos.

Esse estudo não está isento de limitações. Em primeiro lugar, destacamos a amostra exclusivamente composta por estudantes universitários e de apenas uma minoria que se autodeclarou como de direita no espectro político. É provável que a população geral difira em relação à adesão e aos determinantes da CMJ e da confiança institucional, por isso, deve-se ponderar a generalização dos resultados. Ademais, o posicionamento político foi mensurado apenas em termos de esquerda, centro e direita, outra importante limitação.

Como direcionamentos futuros, mais estudos são necessários para replicar os achados aqui descritos em amostras diversificadas e representativas da população brasileira, inclusive contando com amostras de diferentes regiões brasileiras e grupos equiparados do espectro político. Além disso, é importante verificar a influência de outras variáveis que podem vir a moderar a relação entre CMJ e confiança nas instituições, bem como investigar que outros fatores explicam eventual alta confiança nas instituições de pessoas de classes socioeconômicas mais baixas e de esquerda, como o nível de religiosidade. A lacuna mais importante parece ser, sobretudo, sobre como a CMJ pode exercer a função de legitimação dos sistemas e das instituições, uma vez que o presente estudo sinalizou, por meio das moderações, esta possibilidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    13 Set 2020
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