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Estratégias de erosão constitucional no Brasil: bolsonarismo e a desconstituição por meios legais e administrativos

Resumo

O processo de erosão constitucional acontece em vários países do mundo e, em muitos casos, envolve a mudança ou criação de nova constituição. No Brasil o fenômeno fortaleceu-se no governo Bolsonaro (2019-2022) com o uso das estratégias de unilateralismo legislativo, com o uso de normas infraconstitucionais; modificação da estrutura administrativa e ataques à burocracia; uso do orçamento como forma de negociação e esvaziamento de determinadas áreas, cerceamento de espaços de participação da sociedade civil e redução da transparência e captura dos mecanismos de controle. A categorização feita no presente trabalho não é exaustiva, e, como observado nos últimos anos, sujeita a mudanças decorrentes do aprendizado sobre a eficácia das medidas. Ainda assim fornece panorama importante para compreender e se opor ao processo de destruição.

Palavras-chave:
Erosão constitucional; Infralegalismo autoritário; Estratégias erosão

Abstract

The process of constitutional erosion happens in several countries around the world and, in many cases, involves changing or creating a new constitution. In Brazil the phenomenon has strengthened under the Bolsonaro government (2019-2022) with the use of the strategies of legislative unilateralism, with the use of infra-constitutional norms; modification of the administrative structure and attacks on bureaucracy; use of the budget as a form of negotiation and the emptying of certain areas, curtailment of spaces for civil society participation, and reduction of transparency and capture of control mechanisms. The categorization made in this paper is not exhaustive, and, as observed in recent years, it is bound to changes resulting from the learning about the effectiveness of such measures. Still, it provides an important panorama for understanding and opposing the process of destruction.

Keywords:
Constitutional erosion; Authoritarian infra-legalism; Erosion strategies

1. Introdução1 1 Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no 2º Encontro Brasileiro da Sociedade Internacional de Direito Público (ICON-S BRASIL) em 2021 e objeto de debate no Insper. Agradeço aos comentários e debates ocorridos nos eventos que possibilitaram o aperfeiçoamento dos argumentos, especialmente a Diego Werneck Arguelhes.

Estão em curso processos de fragilização democrática e de pilares do Estado de Direito em diversos países como: Índia, Hungria, Polônia, Venezuela, Brasil e Estados Unidos.

A eleição de Donald Trump em 2016 fez com que o tema, antes concentrado nos estudos dos departamentos globais, passasse a ser mais estudado nos departamentos de Ciência Política, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa. Como era de se esperar, a literatura teve como questões norteadoras compreender como e porque os fenômenos têm se desenvolvido, além de acrescentar dúvidas sobre o significado de tal processo (é temporário? Representa uma mudança duradoura? Quais os diálogos com movimentos anteriores, como o fascismo?).

Um dos consensos produzidos é que as formas de ameaça à democracia e às instituições têm se dado sem os “golpes clássicos”, tão comuns na história da América Latina. Ao invés de golpes militares com tomada de poder, o movimento atual passa por líderes eleitos que alteram as regras, capturam as instituições e fragilizam os mecanismos de controle. Desta forma, ameaçam direitos humanos, perseguem opositores e, ao fim, chegam a comprometer a existência de processo eleitoral competitivo.

Neste trabalho objetiva-se avaliar os instrumentos utilizados no caso brasileiro. Embora haja divergência sobre quando começou e mesmo sobre a existência de uma “crise”, um marco relevante para compreender os desarranjos democráticos é o das Jornadas de Junho (2013), acontecimento complexo que mostra o descontentamento difuso de parte da população com determinadas escolhas políticas, e, em sentido mais amplo, com a própria representação política - um dos lemas era o não me representa.

Ainda que com omissões significativas, a cronologia passa por alguns acontecimentos. Em 2014 a não aceitação do resultado da eleição presidencial ajudou a corroer a credibilidade do processo eleitoral e avivar antagonismos2 2 Emílio Peluso Neder Meyer (2021, p. 1) adota como marco o ano da “lenta, prejudicial erosão da identidade constitucional estabelecida pela Constituição de 1988” a ano de 2014. A escolha da data deu-se em decorrência da análise institucional, uma vez que as eleições de 2014 teriam interrompido os confrontos institucionais, levando à crise política. . Em 2016, houve o impeachment da presidente Dilma Rousseff e, em 2018, a vitória do candidato de extrema-direita, autoafirmado outsider, Jair Messias Bolsonaro. A intensidade dos eventos políticos foi acirrada por crise econômica e de segurança pública, atuações controvertidas do Judiciário, especialmente do STF agindo no campo político, e a Operação Lava Jato. O período foi, portanto, marcado por instabilidade política e jurídica.

Diante da diversidade de possibilidades de análise, o recorte aqui estabelecido é o de avaliar como a erosão constitucional tem ocorrido no Brasil no governo Bolsonaro (2019-2022). Desde a campanha, o então candidato defendia medidas antidemocráticas e anti-institucionais, que em grande medida foram e estão sendo executadas, com resultado de destruição de políticas públicas e fragilização das instituições. O objetivo é avaliar para além da retórica, tratando-se de analisar os instrumentos utilizados para concretizar as ameaças. Como processo em curso, o presente artigo pretende fazer uma fotografia do tempo presente, havendo o risco tanto de excluir fatos importantes, quanto de não acompanhar parte dos desdobramentos.

Antecipa-se a conclusão de que no caso brasileiro há a utilização de mecanismos infraconstitucionais e administrativos, com pouca utilização de mecanismos de alteração constitucional. A erosão ocorre normativamente através do predomínio de atos unilaterais, pela captura institucional, fragilização administrativa, indicação para cargos administrativos de pessoas não capacitadas e, em paralelo, a militarização da administração pública. Acrescente-se o cerceamento de espaços de participação popular - como conselhos e comitês -; restrição orçamentária em áreas prioritárias, e, por fim, a redução da transparência e controle.

Os elementos acima - não exaustivos - são mostras de que, no Brasil, as estratégias não passam pela alteração da constituição ou articulação de nova constituinte, mas caracterizam-se pelo uso de medidas provisórias, leis, e especialmente decretos e portarias, no que Vieira, Glezer e Barbosa (2020VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura, Governando sem coalizão: um balanço sobre o primeiro ano de mandato do Bolsonaro. In: CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Bôas, GOUVÊA, Carina Barbosa; LAMENHA, Bruno (Ed.): Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Grupo Editorial Letramento, Casa do Direito, Belo Horizonte, 2020.) nomearam como “infralegalismo autoritário”.

Neste trabalho fazemos um brevíssimo panorama da erosão democrática, e em sequência expomos as estratégias adotadas no Brasil, com o objetivo de categorizá-las. É fundamental avaliar as áreas que o bolsonarismo ataca, como cultura, ensino, meio-ambiente; mas é igualmente relevante conhecer as técnicas e estratégias, tanto para compreender as brechas e ilegalidades, quanto para estruturação de formas eficazes de reação.

2. Breve panorama da erosão constitucional

Países distintos têm passado por significativas ameaças à democracia e ao constitucionalismo. Um dos pontos em comum das experiências díspares é a constatação de que provêm de líderes eleitos; não há golpe de estado em sentido clássico, mas a manipulação constitucional e legal que, mesmo sem sair do quadro do estado de direito, captura-o e corrói de tal maneira que, aos poucos, torna-se um regime autoritário. Sendo um fenômeno complexo, neste trabalho restringimo-nos à questão das estratégias e formas de erosão constitucional. Internacionalmente uma referência no tema tem sido o conceito de constitucionalismo abusivo de David Landau, bem como o de legalismo autocrático de Javier Corrales e usado por Kim Schappele.

Landau faz o diagnóstico de que, embora o uso de meios como golpes de estado para destruir a democracia tenha diminuído, tem crescido o uso de instrumentos constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários. Landau trabalha o conceito constitucionalismo abusivo para descrever o processo de utilização das regras constitucionais de mudança ou de criação de uma nova constituição para erodir a ordem democrática (2014, p. 189).

Ao tratar dos casos da Colômbia, da Venezuela e da Hungria, ele exemplificou três formas de erosão. Na Colômbia elaborou-se emenda para permitir reeleição, no que seria o constitucionalismo abusivo por emenda. Entretanto, a Corte Constitucional colombiana considerou a emenda inconstitucional, limitando o fenômeno. O caso venezuelano seria exemplo do constitucionalismo abusivo por substituição de constituição, uma vez que na constituinte aconteceram mudanças que levaram à diminuição dos controles do poder. Por fim, na Hungria, combinou-se reforma e substituição constitucional patrocinadas pelo partido Fidesz do primeiro-ministro Viktor Orbán. O resultado foi o cerceamento da oposição e diminuição dos mecanismos de controle. Embora o objetivo de Landau seja identificar como a fragilização constitucional pode ocorrer de forma aparentemente regular, conforme veremos adiante, as suas considerações não ajudam a compreender o caso brasileiro.

O processo de fragilização constitucional é descrito por Javier Corrales como legalismo autoritário (2015CORRALES, Javier. Autocratic Legalism in Venezuela. Journal of Democracy. V. 26, n. 2, p. 37-51, abr. 2015., p. 38). Corrales considera que o legalismo autoritário tem três elementos “o uso, abuso e não uso do direito em benefício do poder executivo”. O uso do direito descreve a mudança da constituição e leis de forma a favorecer o Poder Executivo. Nem sempre as leis serão abertamente autocráticas e aprovadas pelo processo legislativo, o que dificulta o processo de mudança. O segundo elemento, o abuso do direito, ocorre com a implementação de medidas claramente tendenciosas que aumentam o poder do governante. E o não uso implica em irregularidades graves através do descumprimento das leis e da constituição. Corrales analisou a situação da Venezuela e o processo de degradação constitucional efetuado sem que houvesse ruptura repentina com a ordem constitucional.

Na esteira de Corrales, Kim Scheppele utiliza-se do conceito para descrever “o fenômeno de uso de mandatos eleitorais, além de mudanças constitucionais e legais para promover uma agenda não liberal” (SCHEPPELE, 2018SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. Volume 85, 2, 2018. Disponível em: <https://lawreview.uchicago.edu/volume-85-issue-2-march-2018-239-608>.
https://lawreview.uchicago.edu/volume-85...
, p. 548). Este fenômeno faz parte de um cenário mais amplo de declínio democrático.

O conceito de legalismo autocrático encontrou eco em outros autores como forma de analisar a fragilização da democracia liberal. Isso implica dizer que o direito é usado, alterado e manipulado de maneira a estrangular as limitações e propiciar que o governante subverta as ferramentas que o impedem de concentrar o poder.

Nacionalmente, Cristiano Paixão tem tratado do processo desconstituinte no sentido de que não seria necessária a mudança da constituição, ou invocação de um novo processo constituinte, mas que os ataques aos direitos sociais, e as ações e omissões do governo em áreas cruciais da ordem constitucional, como igualdade racial, cultura, patrimônio histórico e meio ambiente, têm a possibilidade de destruir o pacto constituinte. Assim, não seria necessário o uso de medidas provisórias ou aprovação de projetos de lei, mas bastaria “destruir por dentro”, ou seja, “adotar práticas administrativas que violam o texto constitucional de modo frontal, ora retirando a proteção mínima estabelecida pela Constituição, ora subvertendo alguns de seus dispositivos fundamentais” (PAIXÃO, 2020). No Brasil a erosão constitucional passa precisamente pela desconstituição das conquistas trazidas pela constituição de 1988, mas sem a necessidade de alteração textual, bastando a utilização de mecanismos administrativos e infralegais. Neste sentido, apesar da importância da literatura comparada, ela não consegue mapear adequadamente o processo ocorrido no Brasil, de forma que há a necessidade de olharmos especificamente às nossas práticas.

3. Os instrumentos da erosão constitucional

A maior dificuldade de identificação e categorização dos mecanismos utilizados no Brasil reside no excesso de informações e processos, uma vez que houve retrocessos em todas as áreas. Na síntese de Leonardo Avritzer: “A concepção de antigovernabilidade do capitão ganhou forma durante o primeiro ano de seu mandato devido à sua capacidade de destruir políticas” (AVRITZER, KERCHE, MARONA, 2021AVRITZER, Leonardo; KERCHE, Fábio; MARONA, Marjorie. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2021., p. 14). A estratégia de destruição passa por incessantes alterações, dificultando o mapeamento e respostas institucionais e sociais.

Educação, saúde, redução da desigualdade, meio-ambiente, políticas de controle e transparência, proteção aos povos tradicionais, ciência e inovação, direitos humanos, trabalho, segurança pública, é impossível encontrar um campo não afetado por políticas de desmonte. Dessa forma, não se pretende fazer uma exposição detalhada sobre o processo. Para mais informações, direcionamos para fontes que têm feito qualificado mapeamento temático3 3 O mapeamento temático pode ser verificado nos seguintes relatórios e sites: Sinal de Fumaça - Monitor Socioambiental; Relatório Cronologia de um Desastre Anunciado da Associação Nacional dos Servidores de Meio Ambiente (ASCEMA), Agenda de Emergência LAUT, Assediômetro, Assédio Institucional no Poder Público; as petições enviadas à Corte Penal Internacional trazem fatos para caracterizar a conduta presidencial em crime contra a humanidade e genocídio, VENTURA, AITH, REIS, A Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid-19. .

Por si só políticas que trazem retrocessos em políticas públicas não são práticas de erosão constitucional. Políticas, ainda que ruins, fazem parte do campo democrático de definição de atuação governamental. Desta forma, o primeiro passo é estabelecermos o motivo de considerarmos as práticas bolsonaristas nesse campo como capazes de destruir a constituição. A constituição brasileira tem como um de seus eixos mais estruturados a proteção a direitos fundamentais. A destruição de direitos, especialmente os relacionados a grupos vulneráveis, afeta negativamente a própria existência constitucional. Mas esse argumento ainda é insuficiente. A política de retrocessos faz parte de uma agenda de erosão constitucional na medida em que vem acompanhada de diversas práticas que afrontam diretamente as premissas e o próprio texto constitucional, em um ataque contínuo que naturaliza descumprimentos de deveres constitucionais. A atuação em várias frentes, os ataques à direitos e instituições, a atuação contínua e a dificuldade crescente de controles institucionais e sociais, ultrapassam a disputa política e policies, promovendo o esgarçamento da própria constituição.

A primeira estratégia diz respeito à arena normativa, na qual o presidente usa parte de seus poderes legislativos de forma a suprir a falta de negociação com o Congresso Nacional, em prática de unilateralismo legislativo sem precedentes.

3.1 Unilateralismo legislativo - governando por decretos e portarias

Um tema persistente na ciência política brasileira diz respeito à forma de governar existente no presidencialismo de coalizão e a relação entre Executivo e Legislativo nesse modelo.

Desde a criação do termo por Abranches (1987) até o clássico estudo de Figueiredo e Limongi (1999FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando de Magalhaes Papaterra. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.), há farta literatura sobre o funcionamento do presidencialismo brasileiro. Essa literatura passou por uma avaliação inicial de que a junção de federalismo, presidencialismo, sistema eleitoral proporcional e multipartidarismo levaria a crises constantes, e por análises do funcionamento concreto do sistema.

Um dos fatores analisados para explicar o funcionamento do sistema, mesmo após a previsão inicial negativa, foi a existência de poderes do presidente da República, especialmente no tocante à agenda.4 4 Em definição de Magna Inácio “O poder de agenda refere-se à capacidade de determinado ator influenciar ou determinar as alternativas consideradas nos processos decisórios, em relação ao conteúdo e aos procedimentos a partir dos quais tais alternativas convertem-se em decisões políticas” O Presidente tem amplos poderes de agenda, e incluem poder de decreto, competência para propositura de Emenda Constitucional, iniciativa legislativa exclusiva em algumas matérias, pedido de urgência, iniciativa legislativa (2007, p. 170). Essas prerrogativas passam pela esfera Legislativa e incluem a iniciativa privativa de leis orçamentárias e o uso da Medida Provisória (MP), o que possibilita a alteração imediata da ordem jurídica. No caso da MP há o benefício de prazo determinado para avaliação pelo Congresso Nacional, cujo não cumprimento leva ao trancamento da pauta. Devido ao poder de agenda que a MP propicia, todos os presidentes fizeram extenso uso do instrumento.

Entretanto, a despeito de tais prerrogativas, para o funcionamento regular do presidencialismo de coalizão é necessário haver negociação entre o Executivo e o Legislativo, caso contrário o presidente sofrerá derrotas legislativas, dificultando a governabilidade. Alguns dos indicadores utilizados para avaliação dessa relação são as taxas de sucesso e de dominância do Executivo e o percentual de conversão em lei de medidas provisórias5 5 Taxa de sucesso diz respeito ao percentual de propostas legislativas enviadas pelo executivo que são aprovadas, taxa de dominância mede dentre as propostas aprovadas, qual o percentual foi enviado pelo executivo. .

Seguindo estes critérios, percebe-se que nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro a relação entre os poderes é frágil e o presidente minoritário. No primeiro ano do governo Bolsonaro as taxas de sucesso e dominância do Executivo foi, respectivamente, de 19% e 21% (BATISTA, 2020), enquanto a taxa de dominância do Presidente da República no Congresso Nacional oscila entre 75 e 90%, tendo uma média de 76,6%. A taxa de sucesso do Presidente da República no Congresso Nacional gira em torno de 80% (SCHIER, 2017SCHIER, Paulo Ricardo. Presidencialismo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. CAMPILONGO, Celso Fernandes, et al (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/ verbete/38/edicao-1/presidencialismo>.
https://enciclopediajuridica.pucsp.br/ v...
, s/p).

No caso das MPs, apesar do aumento do uso no governo Bolsonaro, nos dois primeiros anos foram convertidas em lei 47% das propostas, percentual menor do que os presidentes anteriores6 6 CAMPEÃO em MPs, Bolsonaro aprovou menos da metade delas no Congresso. Congresso em foco, 25 nov. 2020. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/campeao-em-mps-bolsonaro-aprovou-menos-da-metade-delas-no-congresso/> acesso em 17 nov. 2021. . Em 2021, foram editadas 697 7 Em comparação com 108 em 2020. , destas, 25 foram convertidas em lei, conforme dados do site da Câmara dos Deputados.

A dificuldade - ou recusa - em negociar com o Congresso tem levado a um panorama amplo de unilateralismo administrativo. A frase de Bolsonaro de que ele tem o poder da caneta de fazer decretos, o que a faria mais poderosa do que o poder de fazer leis8 8 “Eu disse ao Rodrigo Maia: com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, né? Eu tenho o poder de fazer decretos. Logicamente, decretos com fundamento", relatou Bolsonaro, durante lançamento da Frente Parlamentar Mista da Marinha Mercante Brasileira, no Clube Naval.” Disponível em:<https://exame.com/brasil/com-a-caneta-eu-tenho-mais-poder-do-que-voce-diz-bolsonaro-a-maia/> Acesso em 17 nov. 2021. resume bem a resposta do presidente à falta de diálogo com o Congresso: o uso e abuso dos decretos9 9 Embora na literatura utilize-se poder de decreto para designar instrumentos normativos editados pelo presidente da república (por todos DA ROS, 2008; CAREY, SHUGART, 1998), neste trabalho separo ambos por entender que ainda que a MP venha de ato unilateral, precisa ser confirmada pelo Congresso, de forma que a rejeição expressa ou não decisão levam à perda de eficácia da medida. Já os decretos não precisam ser confirmados, e, embora exista a possibilidade de sustação dos atos normativos do executivo (art. 49, V, CRFB), é um ônus maior do que deixar à perda de eficácia por decurso do prazo. 10 10 Decretos executivos são instrumentos do presidente da república para regulamentar leis ou dispor sobre a estrutura administrativa. Desta forma são instrumentos que conferem celeridade e não demandam de aprovação congressual. Mas o excesso de decretos, especialmente em temas que não seriam de sua atribuição, podem indicar falta de apoio no legislativo, o que pode ser corroborado por projetos para a suspensão dos decretos. , portarias11 11 Portaria é um ato administrativo ordinário que tem a função de disciplinar o funcionamento da Administração Pública. e demais atos normativos.

A edição de atos normativos faz parte das competências do Presidente da República (art. 84, IV, CRFB). Entretanto há duas situações distintas: o uso de decretos de forma constitucional para regular temas passíveis de serem tratados por essa forma normativa, e, o uso de decretos de forma inconstitucional, ou seja, fora das atribuições presidenciais. O que argumentamos é que o presidente adota práticas inconstitucionais, e, adicionalmente, que mesmo o uso em temas que seriam de sua atribuição promove pressão nos outros atores, em um ato de jogo duro constitucional12 12 Para Mark Tushnet (2003) o jogo duro constitucional (constitutional hardball) designa modificação na maneira como as regras são avaliadas e utilizadas, fazendo com que as instituições passem a adotar o confronto como melhor estratégia política .

Nos primeiros oito meses de governo, Bolsonaro editou 27% mais decretos do que Lula. Em números totais, Bolsonaro editou 323 decretos, contra 253 de Lula e 131 de Dilma (primeiro mandato de ambos). Nos dois primeiros anos de governo foram 939 decretos - em comparação: Fernando Henrique Cardoso (753), Lula (766) e Dilma Rousseff (460) (RODAS, 2022). No primeiro ano de mandato, Bolsonaro editou 536 decretos, contra 382 de Lula e 239 de Dilma (primeiro mandato de ambos).

O aumento do uso de decretos foi acompanhado de número significativo de questionamentos, 286 decretos de Bolsonaro foram objeto de PDLs13 13 Os PDLs significam proposta de decreto legislativo para sustar o decreto executivo, conforme nota número 8. Deste modo sinalizam conflitos entre executivo e legislativo. (projeto de decreto legislativo), enquanto apenas 10 decretos de Lula e o mesmo número de Dilma o foram (VIEIRA, GLEZER, BARBOZA, 2020VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura, Governando sem coalizão: um balanço sobre o primeiro ano de mandato do Bolsonaro. In: CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Bôas, GOUVÊA, Carina Barbosa; LAMENHA, Bruno (Ed.): Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Grupo Editorial Letramento, Casa do Direito, Belo Horizonte, 2020.).

Tabela 1
Dados sobre os Decretos e Medidas Provisórias emitidos pelos Presidentes da República em diferentes marcos temporais14 14 Fontes: Portal da legislação, Palácio do Planalto, Congresso em Foco, Poder 360. *Conforme consta do Congresso em Foco, no governo FHC, contou-se apenas as MPs posteriores à Emenda Constitucional 32.

E, embora os decretos tradicionalmente sejam usados para regulamentar, e não inovar a ordem jurídica, a análise dos decretos de Bolsonaro mostram que o tipo normativo tem promovido mudanças jurídicas marcantes.

No tema de porte e uso de armas fica evidente a estratégia normativa do executivo de usar de instrumentos infraconstitucionais unilaterais, e de construção de emaranhado de normas. Em um breve panorama de 2019, primeiro ano do governo, demonstra-se o modus operandi.

Em 15 de janeiro foi publicado o decreto 9.685, que permitia compra de até quatro armas e ampliou o direito à posse. Em 07 de maio foi publicado o decreto 9.785, que revogou o Estatuto do Desarmamento e anulou efeitos do decreto anterior, ampliando o direito de porte para categorias profissionais e de posse a proprietários rurais, além de permitir compra de fuzil - que era de uso exclusivo de forças policiais. Em 21 de maio foi editado o decreto 9.797, que conferiu poder ao Exército para editar portaria com lista de quais armas poderiam ser compradas por cidadãos. Em 18 de junho o Senado revogou os decretos 9.785 e 9.797. Em 26 de junho o STF pautou cinco ações que questionaram a constitucionalidade dos atos. Em 25 de junho Bolsonaro editou quatro novos decretos15 15 Decretos 9.844, 9.845, 9.846 e 9.847. e revogou o 9.787 e 9.797, mas manteve parte do texto, inclusive a possibilidade de compra de fuzil. No mesmo dia encaminhou o projeto de lei 3723/201916 16 Síntese presente em: <https://www.conectas.org/noticias/entenda-o-vai-e-vem-da-politica-de-armas-de-bolsonaro/?gclid=CjwKCAiA1uKMBhAGEiwAxzvX9wO5iRGx 1cP6cvsZ2dTH24brxjl0SXHamGjz8_9A6XH4GiAU9idXKhoCOUQQAvD_BwE >. .

Entre 2019 e fevereiro de 2021 o executivo expediu 14 decretos e 14 portarias sobre o tema, com 31 alterações17 17 Como exemplos de atos normativo em 2020: a portaria 62/2020 impedia rastreio de armas. Os decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, de 12 de fevereiro de 2021, a pretexto de regulamentar a lei 10.826/2003 - lei do desarmamento - que, dentre outros itens, facilitavam acesso às armas e afastava o controle do Comando do Exército de projéteis, e itens relacionados à armamentos. Ver: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/desde-inicio-do-governo-bolsonaro-mudou-31-vezes-a-politica-de-armas-no-brasil/>. Acesso em 15 mar. 2022. , tornando uma missão complexa o mapeamento das normas aplicáveis. E, em paralelo, o número de armas registradas no país aumentou oito vezes entre 2018 e 202018 18 Disponível em:<https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-17/atuacao-vacilante-do-stf-nao-contem-a-venda-de-armas-incentivada-por-bolsonaro.html>. .

As alterações no acesso a armas foram bastante noticiadas, tendo sido pauta de campanha e item caro à agenda presidencial de insegurança pública19 19 Por este termo designamos a atuação retórica presidencial que apesar de referenciar a segurança pública o faz sem políticas concretas, mas com acenos aos oficiais de segurança pública, sua base de apoio. Apesar disso busca atribuir a si números positivos na área. Como exemplo dessa postura: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/02/21/bolsonaro-atribui-reducao-de-assassinatos-a-liberacao-de-armas-especialistas-dizem-que-presidente-distorce-fatos-e-que-mais-armas-em-circulacao-sao-risco-a-sociedade.ghtml>. Acesso em 02 set. 2022. , mas o cenário é similar em outras áreas.

O uso dos atos normativos parece ser uma tática presidencial para a modificação de políticas públicas em temas importantes para seu eleitorado. As áreas objeto de alteração são as mesmas em que o presidente desde a sua campanha já sinalizava como centrais. Apesar da estratégia normativa utilizada, houve recentes negociações com o “Centrão”, que possibilitaram aprovação de emenda à constituição.20 20 Em meio aos debates relacionados ao “orçamento secreto”, foi votada na Câmara a PEC 23/21, que limita gastos anuais com precatórios. O tema é sensível ao presidente uma vez que sua aprovação é condição para que tenha orçamento para estabelecer pagamento de auxílio financeiro. A PEC foi aprovada nos dois turnos na Câmara, em primeiro por 312 a favor e 144 contra, e, em segundo, por 323 votos a favor e 172 contra. 21 21 Em 2022, até agosto, foram aprovadas onze emendas constitucionais, enquanto em 2021 foram seis, em 2020, três, e em 2019, seis.

3.2 Modificação da estrutura administrativa e ataques à burocracia

O Presidente da República tem atribuições constitucionais de alterações na administração pública (art. 84, II, VI, CRFB). Entretanto as alterações feitas tiveram como resultado a precarização de algumas áreas, diminuição de controle e desestruturação administrativa que, mesmo com decisões do STF, caracterizam erosão constitucional nos termos anteriormente apresentados.

A modificação da estrutura administrativa deu-se logo nos primeiros dias de governo, através da MP 870/2019, publicada no dia da posse do presidente e que trouxe alterações nos ministérios.

A MP estabeleceu a transferência das atribuições do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura, os quais têm pautas completamente distintas, de forma que a proteção ao meio-ambiente seria severamente ameaçada. Além disso, determinou que a competência de demarcação de terras indígenas e quilombolas seria do Ministério da Agricultura. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) seria removida do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos22 22 Estas alterações foram objeto de emenda no decorrer do processo da MP 870. . O objetivo seria “instituir a agricultura extensiva, a mineração e outras atividades na terra indígena existente”. Esta medida não foi aprovada no Congresso23 23 No Congresso a competência de demarcação de terras indígenas voltou à Funai, que, por sua vez foi reincorporada à estrutura do Ministério da Justiça. Mesmo assim Bolsonaro reeditou MP com mesmo teor (MP 886), mas a MP foi suspensa pelo STF pela vedação de reedição de MP na mesma sessão legislativa (ADIs 6172, 6173 e 6174). (HOCHSTELER, 2021, p. 275). As mudanças citadas seguem as manifestações presidenciais de que não haveria mais demarcação de terra indígena24 24 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/no-que-depender-de-mim-nao-tem-mais-demarcacao-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-a-tv.shtml>. Acesso em 15 mar. 2022. .

Às alterações na estrutura acrescente-se desinstitucionalização e cerceamento de autonomia funcional e perseguições a servidores.

Em pesquisa com 141 burocratas, Gabriela Lotta, Mariana Silveira e Michelle Fernandez classificaram a perseguição de servidores em quatro tipos de opressão: 1) física, 2) sobre rotinas e procedimentos administrativos, 3) moral e social, além de opressão ideológica, e 4) de apagamento e silenciamento (LOTTA, SILVEIRA, FERNANDEZ, no prelo, p. 10).

A opressão física caracteriza-se pelo controle do local de trabalho; a título de exemplo, tem-se o controle e modificação do espaço físico, regulação de horários no teletrabalho, além de controle de plataformas para gerar a sensação de controle e vigilância. A opressão sobre rotinas e procedimentos atua na alteração de regras e procedimentos, deixando os servidores sem a proteção de regras padronizadas. Um dos exemplos é a proibição de tramitação de demandas via SEI (Sistema Eletrônico de Informações), cerceamento de aplicação de procedimentos previstos em lei e o questionamento a rotinas e indicadores já consolidados. Através das opressões morais e sociais objetiva-se desmoralizar a burocracia. Pode ocorrer com o questionamento e desmoralização das decisões, ou, no cotidiano, com ameaças de processos e punições. Nesse item incluem-se assédios institucionais diversos, como a não liberação para formações ou representações institucionais. Neste ponto, enquadram-se diversas manifestações do alto escalão contra o conhecimento técnico e contra a administração pública. Na opressão por apagamento/silenciamento, o objetivo é calar os burocratas, o que ocorre através do impedimento nos processos decisórios ou pelo expurgo. Ademais, houve uso de processos administrativos contra servidores que estavam em cumprimento de sua função, como pode ser visto na área ambiental em relação a servidores que aplicaram multas (LOTTA, SILVEIRA, FERNANDEZ, no prelo, p. 10).

A área ambiental foi diretamente afetada e podem ser identificadas todas as opressões acima mencionadas. Além de ser área-alvo de ataques desde a campanha, segundo Lotta, Silveira e Fernandez (no prelo) os órgãos ambientais possivelmente foram “cobaias” de medidas que, ao serem efetivas, depois foram adotadas em outras áreas.

Primeiro, pelo impulso normativo: entre março e maio de 2020 foram publicados 195 atos sobre meio-ambiente no Diário Oficial contra 16 do mesmo período de 201925 25 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/12/em-dois-anos-bolsonaro-promove-desmonte-no-meio-ambiente-funai-e-reforma-agraria.shtml>. . Segundo, pelas alterações administrativas através da já citada MP 870 que extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, o SFB (Serviço Florestal Brasileiro) e o CAR (Cadastro Ambiental Rural), os quais foram para o Ministério da Agricultura, e a Agência Nacional de Águas (ANA) deslocada para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) (ASCEMA, 2020, p. 9).

Logo no início de 2019 foram exonerados 21 dos 27 superintendentes regionais do Ibama; após, muitas superintendências ficaram meses sem a efetivação e alguns dos novos indicados eram policiais militares sem expertise na área (ASCEMA, 2020, p. 8). A militarização da estrutura é bastante clara no caso do órgão ambiental, como veremos adiante.

Além disso, houve despacho interpretativo26 26 Disponível em: < https://cdn.oantagonista.net/uploads/2021/05/SEI_IBAMA-7036900-Despacho-Gabin.pdf>. do presidente do Ibama que facilitou a exportação de madeira ao eliminar exigência de autorização do órgão, favorecendo o contrabando de madeira.

Em fevereiro de 2021 foi editada instrução normativa interministerial que dificultou a investigação em campo, na medida em que retirou a autonomia dos fiscais de campo, que passaram a precisar de autorização prévia de superior para aplicar multa. Mesmo antes da instrução, já havia queda no número de autos de infração do Ibama27 27 Houve queda de 43,5% de autos de infração do órgão na Amazônia entre 2019 e 2020, período em que houve aumento de queimadas e desmatamento. Disponível em: <https://csr.ufmg.br/csr/wp-content/uploads/2021/06/colabora_autos-de-infracao-na-amazonia-caem-com-bolsonaro.pdf>. , situação ampliada após o instrumento28 28 Exemplificativamente, no Amapá a queda foi de 85%. Disponível em: <https://g1.globo.com/ap/amapa/natureza/amazonia/noticia/2021/06/04/ibama-tem-queda-de-85percent-em-multas-com-menor-autonomia-de-fiscais-no-ap-diz-associacao.ghtml>. .

Outro órgão bastante impactado foi a Polícia Federal, o que afeta o controle dos atos da Administração Pública Federal, conforme item 3.5.

O primeiro cerceamento deu-se pela nomeação de Diretor-Geral que, em sua primeira reunião, indicou que a autonomia dos delegados e superintendentes de investigação seria limitada, sob o que ele chamou de “segredismo” e “anarquia”, referindo-se a garantias de autonomia criadas na primeira década do ano 2000 para evitar ingerências políticas. No caso mais conhecido, o superintendente do Amazonas, Alexandre Saraiva, foi transferido para o interior do Rio de Janeiro após defender o trabalho da Polícia Federal que levou à maior apreensão de madeira da história, operação que foi criticada pelo ex-ministro do meio-ambiente, Ricardo Salles. A transferência ocorreu depois de entrevista em que Saraiva informou que “não passaria a boiada na PF”29 29 A menção a “passar a boiada” vem da divulgação da reunião ministerial ocorrida em 20 de abril de 2020 em que Salles diz que se poderia aproveitar a pandemia e a atenção da imprensa no tema para “passar a boiada” e flexibilizar os mecanismos de proteção ambiental. A reunião foi divulgada no contexto de inquérito no STF para investigação da alegação de Sérgio Moro de ingerência de Bolsonaro na Polícia Federal. (ABREU, 2021ABREU, Allan de. O Aparelho. Como Bolsonaro tomou conta da Polícia Federal. Piauí, n. 182, novembro, 2021. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-aparelho/>. Acesso em: 02 dez. 2021.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o...
, p. 20-26).

Ademais, a desinstitucionalização passa pela nomeação de pessoas comprometidas com a destruição de suas áreas. Daí que o ex-ministro da Educação tenha identificado educação pública com imoralidades, que o Secretário de Cultura seja contra manifestações culturais, o presidente da Fundação Palmares exclua personalidades negras do site, e o coordenador regional da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) no Vale do Javari, tenente da reserva do Exército, tenha encorajado líderes da etnia marubo a atirar contra indígenas isolados no Amazonas.

Ainda, importa mencionar o esvaziamento e desmonte ocorrido no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT. Por meio do decreto 9831/19, o presidente realocou cargos em comissão do órgão, ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para secretaria do Ministério da Economia, exonerando automaticamente os ocupantes dos cargos remanejados, além de transformar a participação no MNPCT em serviço não remunerado.

A PGR propôs ADPF contra o mencionado decreto, com o argumento que houve extrapolamento das prerrogativas presidenciais ao alterar, via decreto, o funcionamento de órgão criado por lei (12847/13). Em março de 2022 o STF julgou a ação reconhecendo o abuso de poder regulamentar do Executivo.

Paralelo a esse processo, há a militarização da administração pública30 30 Ainda que neste artigo a evidência de militarização ocorra através da análise quantitativa de militares em cargos civis, é possível considerar militarização através do prisma da forma de organização das atividades, ocupação do sistema político etc. Sobre o tema ver SCHMITT, 2022. , que tem sido feita de forma a fragilizar as áreas, uma vez que há a substituição de servidores de carreira por militares que não têm expertise na área. Entre 2018 e 2020 aumentou em cerca de 55% a quantidade de militares na administração federal, naquele ano eram 6157 militares, além de serem quase metade dos ministros (NOZAKI, 2021NOZAKI, Willliam. Cadernos Reforma Administrativa: 20. A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder? FONACATE (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Públicas), 2021. Disponível em:< https://fpabramo.org.br/observabr/wp-content/uploads/sites/9/2021/05/Cadernos-Reforma-Administrativa-20-V4.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2021.
https://fpabramo.org.br/observabr/wp-con...
, p. 9). Em março de 2021 eram 92 militares ocupando cargos de cúpula nas maiores estatais, número dez vezes maior do que o ocorrido no governo Temer (SEABRA, GARCIA, 2021SEABRA, Catia; GARCIA, Diego. Bolsonaro multiplica por 10 número de militares no comando de estatais. Folha de S. Paulo, 2021. Disponível em:< https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
). Acrescente-se que 30% dos cargos comissionados são ocupados por militares, e “em determinados órgãos - como ambientais, CGU, áreas de recursos humanos, etc. - eles chegam a ocupar 90% dos pontos de direção” (LOTTA, SILVEIRA, FERNANDEZ, no prelo, p. 13). Conforme notam as autoras, a militarização permite tanto a politização como a criação de um clima de medo, opressão e controle. O grau de militarização da administração pública não tem paralelo em outras democracias.

Na área ambiental, além das indicações de militares em cargos importantes31 31 “na gestão socioambiental há mais de 90 militares alocados em áreas como Funai, Ibama, ICMBio, Sesai, Incra, Mapa, Funasa, FCP, além do Ministério do Meio-Ambiente e do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.” NOZAKI, 2021, p.21. , houve uso de GLO (Garantia da Lei e Ordem) nas operações Verde Brasil 1 (2019) e Verde Brasil 2 (2020-2021), que atribuíram às Forças Armadas a função de evitar crimes ambientais na Amazônia. As Forças Armadas ficaram hierarquicamente acima do Ibama e do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgãos com conhecimento e experiência na função, os quais, frise-se, estão em processo de esvaziamento. Além dos recursos gastos32 32 Segundo dados no site do Ministério da Defesa, a Operação Brasil Verde 2 (entre 11/05/2020 a 30/04/2021) custou R$ 379.230.988,82. , no período das operações houve aumento do desmatamento, mostrando absoluta ineficiência das operações.

Muitos dos militares indicados aos cargos políticos estão na ativa, o que gera conflitos sobre as demandas políticas e a vida militar.

3.3 Orçamento - diminuição e não execução orçamentária

A definição orçamentária sempre está no centro dos debates políticos, é esperado que cada governante priorize temas importantes para sua base em atuação política ordinária. Há, todavia, limites à definição, seja por vinculação constitucional, seja pela necessidade de negociação com o Congresso. No período analisado houve crise econômica, o que afeta diretamente o campo orçamentário. Entretanto, isso ocorre de forma desigual, com diminuição em determinadas áreas e ampliação de gastos em outras, o que sugere que, a espelho do que ocorreu em outros países33 33 Trump assinou em seu quarto dia de mandato ordem com proibição de uso de recursos federais para auxiliar mulheres no exterior que queiram abortar. A ordem decreto restaura medida adotada por Ronald Reagan em 1985. Na Hungria foram criadas fundações para administrar as faculdades públicas, inclusive seu orçamento. Apesar de alegar autonomia da instituição, os membros dos conselhos são indicações do governo. , o orçamento tem sido utilizado como mecanismo de destruição de áreas e desmantelamento burocrático.

O governo Bolsonaro tem atuado de forma a diminuir o orçamento em áreas envolvendo direitos, como educação, ciência e tecnologia, além da área ambiental, que já enfrentavam redução orçamentária. Ao mesmo tempo, ocorreu aumento do orçamento em áreas que conversam diretamente com sua base, além da não execução orçamentária em áreas como direitos humanos. Portanto, ao estrangulamento orçamentário em alguns setores soma-se ao aumento de gastos sem a devida transparência e controle.

Segundo Lotta et al (2022LOTTA, Gabriela; LIMA, Iana Alves de; PEDOTE, João Paschoal; SILVEIRA, Mariana Costa; FERNANDEZ, Michelle; GUARANHA, Olívia Landi Corrales . Burocracia na mira do governo: Os mecanismos de opressão operados para moldar a burocracia. In: CARDOSO JUNIOR, José Celso et al (org). Assédio institucional no Brasil: Avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado. Brasília: Associação dos Funcionários do Ipea: EDUEPB, 2022., p. 476), a redução drástica nos orçamentos dos órgãos ou o impedimento de execução de recursos tem sido bastante efetiva na desmobilização e desmotivação dos servidores. Conforme Miguel (2022MIGUEL, Francisco. Assédio institucional nas instituições do executivo federal ligadas a áreas da cultura. In: CARDOSO JUNIOR, José Celso et al (org). Assédio institucional no Brasil: Avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado. Brasília: Associação dos Funcionários do Ipea: EDUEPB, 2022. p. 672-711., p. 688) “os cortes orçamentários são

formas de ataque direto e, por vezes, letal às instituições porque inviabilizam a formulação e execução de políticas públicas destas mesmas instituições.”

Os cortes orçamentários são identificados pelos servidores como assédio institucional, por dificultar a previsibilidade na execução de suas tarefas. Mas esses cortes também afetam o oferecimento de serviços públicos, uma vez que projetos e ações precisam ser interrompidos, afetando diretamente a população (MIGUEL, 2022MIGUEL, Francisco. Assédio institucional nas instituições do executivo federal ligadas a áreas da cultura. In: CARDOSO JUNIOR, José Celso et al (org). Assédio institucional no Brasil: Avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado. Brasília: Associação dos Funcionários do Ipea: EDUEPB, 2022. p. 672-711.).

Nos últimos anos o orçamento federal tem mostrado algumas tendências34 34 A pandemia COVID-19 estabeleceu algumas peculiaridades na análise e comparação entre os orçamentos anuais por ter exigido recursos significativos, em 2020 , como o aumento de recursos do Ministério da Defesa e a diminuição para o Ministério do Meio-Ambiente (GERBASE, 2021). Neste exemplo, tem-se a redução orçamentária de 30% entre 2019 e 2020 no Ibama.35 35 Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/703644-frente-detalha-queda-no-orcamento-ambiental-e-busca-solucoes-para-reverter-o-rombo/>. Acesso em 20 mar. 2022. Nesse mesmo sentido, apesar de o orçamento para o Incra ter aumentado, a verba para Assistência Técnica e Extensão Rural, Promoção de Educação no Campo e Reforma Agrária e Regularização Fundiária foi reduzido em mais de 99%36 36 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-incrementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml>. .

Como exemplos do primeiro caso temos o corte de 600 milhões para a pasta de Ciência, Tecnologia e Inovação37 37 Disponível em:< https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/21/cct-vai-debater-corte-de-r-600-milhoes-no-orcamento-da-ciencia-e-tecnologia>. para 2022, o que corresponde a 87% do orçamento da pasta. A educação teve cortes de 27%38 38 Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/03/26/orcamento-2021-e-aprovado-com-cortes-em-areas-centrais-para-o-combate-a-covid-19>. , lembrando que já havia um contexto de diminuição de recursos39 39 “Na Educação, os investimentos públicos caíram em termos reais de R$ 109 bilhões em 2018 para R$ 106 bilhões em 2019 (...) O orçamento da Capes caiu de R$ 9 bilhões em 2015 para R$ 4,5 bilhões em 2019.” GERBASE, 2021. , o que tem levado à precarização e ao fenômeno de fuga de cérebros40 40 Dados sobre o fenômeno e cortes orçamentários na área podem ser acessados em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-diaspora/>. . Os cortes orçamentários afetaram diretamente as universidades federais41 41 Em abril de 2019 o MEC anunciou o corte de 30% dos recursos de universidades e institutos federais. Depois de protestos o corte foi revertido. . Tratando do caso húngaro, Renáta Uitz diz que:

universidades podem ser disciplinadas por meio de cortes orçamentários, da nomeação de administradores financeiros e reitores, a fim de controlar os seus gastos, e também por meio de bolsas de estudo e alocação de fundos para os alunos estudarem em determinados lugares e, por último, mas não menos importante, por meio do financiamento do salário dos professores (VENTURINI, 2021VENTURINI, Anna Carolina. Ensino superior público e cortes orçamentários: discricionariedade ou discriminação? Nexo, 25 jun. 2021. Disponível em: < https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2021/Ensino-superior-p%C3%BAblico-e-cortes-or%C3%A7ament%C3%A1rios-discricionariedade-ou-discrimina%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 28 ago. 2022.
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/202...
).

O uso do orçamento como foram de pressão também ocorre através de cortes em áreas específicas. Como exemplo, o edital de abril de 2020 do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), dentre as 25 mil bolsas de iniciação científica, não contemplou cursos de humanidades. Isso em paralelo a manifestações que associavam ensino público a atividades imorais, e cursos nas áreas de humanas como inúteis.

Entre o envio do projeto e a aprovação do orçamento de 2021 houve aumento expressivo de recursos nas áreas de segurança pública (aumento de 28,2%), proteção à vida, fortalecimento da família (154,1%) e desenvolvimento regional, ou seja, obras (647,5%)42 42 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/orcamento-de-2021-favorece-programas-ligados-ao-bolsonarismo.shtml>. , áreas de interesse direto do bolsonarismo.

Além de cortes em áreas prioritárias e direcionamento para pautas bolsonaristas, houve a estratégia de não uso dos recursos. O MPF, através de inquérito civil, investiga a baixa execução do orçamento do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. Segundo a portaria de instauração do inquérito, apenas 44% do orçamento previsto para 2020 foi executado, isso em um momento em que casos de violações de direitos humanos aumentaram, especialmente de violência contra a mulher. A Casa da Mulher Brasileira, referência no atendimento à mulher vítima de violência, gastou apenas R$ 1 milhão em 2021, do total de R$ 21, 8 milhões autorizados43 43 Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/03/4991333-orcamento-do-governo-para-combate-a-violencia-contra-mulher-e-o-menor-em-4-anos.html>. .

O mesmo processo de não uso de recursos pode ser visto na paralização do Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES. O Fundo possui como finalidade “captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal”44 44 Definição retirada do site http://www.fundoamazonia.gov.br/pt/home/. . O governo desmontou a governança do Fundo, ao extinguir dois colegiados que compunham a sua gestão: o Comitê Orientador (COFA) e o Comitê Técnico (CTFA). Dessa maneira, haja vista que o contrato com os doadores previa a governança por meio dos referidos comitês, deixou-se de poder usar o dinheiro doado para novos projetos. Assim, há 3.3 bilhões de reais parados no Fundo desde janeiro de 201945 45 Os dados e informações referentes ao desmonte do Fundo Amazônia foram retirados da entrevista concedida pela pesquisadora Suely Araújo ao podcast “Ilústríssima Conversa”, em 03 de setembro de 2022, disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/09/brasil-so-reconstroi-politica-ambiental-sem-bolsonaro-diz-ex-presidente-do-ibama.shtml>. Acesso em 04 set. 2022. , o que afeta diretamente a proteção na região Amazônica.

A área orçamentária também tem sido central na política bolsonarista ao ser usada para coroar a parceria com o Centrão. Neste sentido, há o uso das emendas do relator para fortalecer o apoio aos projetos governistas, mecanismo com baixa possibilidade de controle46 46 A lei orçamentária pode ser objeto de emendas, entretanto em 2019 foi criada a modalidade de emenda do relator que permite transferir recursos em nome do relator, portanto sem a identificação de qual parlamentar que recebe, além de ausência de critérios para recebimento ou não (diferente das demais formas de emenda). Tem sido utilizada como forma de negociação para aprovação de medidas como a PEC dos Precatórios. . A “emenda do relator”, ou orçamento secreto, dificulta o controle orçamentário. Em 2021 foram distribuídos por essa via R$ 16,86 bilhões de reais, sem que houvesse critérios definidos e, em alguns casos, sem informações sobre o gasto, e, parte do valor foi usada em compra de tratores com valor 259% acima do valor de referência47 47 Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,orcamento-secreto-de-bolsonaro-entenda-o-passo-a-passo-do-esquema,70003708734>. . Apesar de ter sido suspensa em 05 novembro de 2021 por decisão liminar do STF na ADPF 854, de relatoria da Ministra Rosa Weber, foi decidido em Plenário o reestabelecimento após explicações enviadas pelo Congresso Nacional.

3.4 Cerceamento de espaços de participação da sociedade civil

A edição do decreto 9.759/2019 afetou diretamente os conselhos, comitês e grupos de trabalhos de políticas públicas48 48 Os conselhos são órgãos colegiados nos quais há participação social e existem em âmbito federal, estadual e municipal, e têm objetivo de formular, supervisionar e avaliar as políticas públicas em sua área de atuação. , uma vez que estabeleceu a revogação de todos os órgãos que não fossem previstos em lei49 49 Os conselhos previstos em decretos ou portarias deveriam ser justificados até 28 de junho de 2019, ou seriam extintos. . A medida foi defendida por Bolsonaro em tuite, sua forma favorita de comunicação institucional, como “gigantesca economia, desburocratização e redução do poder das entidades aparelhadas politicamente” (apud BEZERRA, RODRIGUES, ROMÃO, 2021BEZERRA, Carla de Paiva; RODRIGUES, Maira; ROMÃO, Wagner de Melo. Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impactos do Decreto 9.759/2019 sobre a participação da sociedade civil. Texto elaborado para livro da Área Temática de Participação Política da ABCP - 3ª. Versão, 2021. Disponível em: < https://www.academia.edu/ 46872457/Institui%C3%A7%C3%B5es_participativas_no_governo_Bolsonaro_impactos_do_Decreto_9_759_2019_sobre_os_Conselhos_de_Direitos_Humanos>. Acesso em 20 jan. 2022.
https://www.academia.edu/ 46872457/Insti...
). O então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirmou que haveria redução de cerca de 700 órgãos de deliberação para 50, e que “Tinham como gênese uma visão ideológica dos governos que nos antecederam de fragilizar a representação da sociedade. Foram criados no governo do PT e traziam o pagamento de diárias, passagens aéreas e alimentação.”50 50 Disponível em: <https://www.diap.org.br/index.php/noticias/noticias/89189-presidente-jair-bolsonaro-extingue-varios-conselhos-federais>. Foram extintos trinta e cinco órgãos colegiados51 51 1) Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT); 2) Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena; 3) Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH); 4) Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua; 5) Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (Cnaeja); 6) Comissão Nacional de Florestas (Conaflor); 7) Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae); 8) Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad); 9) Conselho Superior do Cinema (CSC); 10) Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); 11) Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC); 12) Conselho das Cidades (Concidades); 13) Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade); 14) Conselho da Autoridade Central Administrativa Federal contra o Sequestro Internacional de Crianças; 15) Conselho Deliberativo da Política do Café (CDPC); 16) Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf); 17) Conselho de Desenvolvimento do Agronegócio do Cacau (CDAC); 18) Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP); 19) Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (Conpdec); 20) Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS); 21) Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); 22) Conselho de Relações do Trabalho (CRT); 23) Conselho de Representantes dos Brasileiros no Exterior (CRBE); 24) Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit); 25) Comissão Especial de Recursos (CER); 26) Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD); 27) Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti); 28) Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio); 29) Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT); 30) Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (Cadara); 31) Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI); 32) Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia (CMCH); 33) Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo); 34) Comissão Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (Cnatre); 35) Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) .

Além da extinção, houve alteração da composição,52 52 Como exemplos: o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos destituiu nove entidades que representavam a sociedade civil no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o decreto 9.926 diminuiu a composição do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) de 31 para 14 integrantes, excluindo toda a representação da sociedade civil. O Decreto nº 9806/2019 alterou a composição do Conama, reduzindo de 96 para 23 os componentes. com a diminuição da representação societária, a não convocação de reuniões e a indicação de pessoas com possíveis conflitos de interesse. As alterações têm tornado os órgãos de participação mecanismos meramente formais, sem representação efetiva das áreas, o que confere maior poder de alteração ao governo ou paralisia de políticas públicas. O efeito mais direto das ações contra os conselhos é o enfraquecimento dos rotulados como adversários políticos e a desconstituição de políticas públicas consolidadas (BEZERRA, RODRIGUES, ROMÃO, 2021BEZERRA, Carla de Paiva; RODRIGUES, Maira; ROMÃO, Wagner de Melo. Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impactos do Decreto 9.759/2019 sobre a participação da sociedade civil. Texto elaborado para livro da Área Temática de Participação Política da ABCP - 3ª. Versão, 2021. Disponível em: < https://www.academia.edu/ 46872457/Institui%C3%A7%C3%B5es_participativas_no_governo_Bolsonaro_impactos_do_Decreto_9_759_2019_sobre_os_Conselhos_de_Direitos_Humanos>. Acesso em 20 jan. 2022.
https://www.academia.edu/ 46872457/Insti...
), que, como são relacionadas à proteção de direitos humanos, são apresentadas pelo presidente a seus apoiadores como “ideologia”.

Ainda que possamos questionar se todos os conselhos eram efetivos e contribuíam com as políticas públicas em suas áreas, a decisão de extingui-los ou modificá-los não passou por essa análise, mas pela tentativa de destruição de um legado anterior. Neste sentido, a destruição dos colegiados na administração pública federal implicaria tanto um afastamento com o Partido dos Trabalhadores, como também a desarticulação de políticas públicas, muitas voltadas para a proteção de direitos humanos de grupos vulneráveis.

Dois elementos compõem o quadro do diagnóstico destrutivo de Bolsonaro sobre as instituições participativas: seu papel na governança social dos governos do PT e a significativa presença nesses espaços de movimentos sociais e organizações da sociedade civil comprometidos com pautas identitárias, progressistas e de defesa de direitos humanos.(...) Combater o PT significa, também, expulsar de canais institucionalizados a constelação de atores sociais que definiram a teia de liames dos governos petistas com a sociedade civil, especialmente os segmentos comprometidos com essas pautas (LAVALLE, BEZERRA, 2021LAVALLE, Adrian Gurza; BEZERRA, Carla de Paiva. Por que ‘desconstruir’ a participação social? Nexo Jornal, 10 fev. 2021. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/ 2021/Por-que-%E2%80%98desconstruir%E2%80%99-a-participa%C3%A7%C3%A3o-social#:~:text=9.759%2C%20visando%20a%20%E2%80%9Cdesconstruir%E2%80%9D,e%2C%20como%20esquecer%2C%20sa%C3%BAde.>. Acesso em: 20 nov. 2021.
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/ 20...
).

O decreto foi objeto de ações de controle de constitucionalidade e teve liminar parcialmente deferida pelo STF. Foi, então, editado o decreto 9812/2019, no que parece ser uma estratégia governamental: ao questionamento judicial, edita-se novo ato normativo que corrija os pontos mais frágeis, mas ao mesmo tempo mantenha os pontos centrais de decretos anteriores. Neste novo ato normativo, limitou-se o funcionamento dos conselhos através de redução do número de membros e das reuniões presenciais.

Foram editados decretos que alteravam conselhos específicos para reduzir, alterar a composição ou inviabilizar reuniões. Dos 21 casos analisados por Bezerra, Rodrigues e Romão (2021BEZERRA, Carla de Paiva; RODRIGUES, Maira; ROMÃO, Wagner de Melo. Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impactos do Decreto 9.759/2019 sobre a participação da sociedade civil. Texto elaborado para livro da Área Temática de Participação Política da ABCP - 3ª. Versão, 2021. Disponível em: < https://www.academia.edu/ 46872457/Institui%C3%A7%C3%B5es_participativas_no_governo_Bolsonaro_impactos_do_Decreto_9_759_2019_sobre_os_Conselhos_de_Direitos_Humanos>. Acesso em 20 jan. 2022.
https://www.academia.edu/ 46872457/Insti...
, p. 9), 13 tiveram nova regulamentação editada por meio de decreto específico e/ou portaria. Somente um dos conselhos teve ação proposta no STF para controle de constitucionalidade, indicando que mesmo a atuação do STF tem sido insuficiente para fazer frente às mudanças e cerceamento da participação.

A diminuição de espaço da sociedade civil leva também à opacidade das políticas públicas, evita questionamentos e pressões e fecha um importante canal democrático. A administração pública acaba fechando-se, e com as táticas de perseguição à burocracia, objetiva-se dissipar qualquer possibilidade de divergência.

3.5 Opacidade da transparência e captura de mecanismos de controle

Diante de cenário de fragilização da autonomia institucional, de ataques à burocracia, e do uso de estratégias orçamentárias obscuras, não causa surpresa a existência de ataques contra a transparência e controle.

Dentre os ataques citem-se: modificações da Lei de Acesso à Informação (LAI), desmantelamento de estrutura de combate à corrupção, do controle político do Parlamento por via do orçamento secreto, do controle jurídico através da imobilidade do Procurador-Geral da República. Diante disso criou-se uma arquitetura da impunidade (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL BRASIL, 2022, p. 3).

Houve duas tentativas frustradas de modificar da LAI para omitir informações públicas. A primeira foi em janeiro de 2019, por meio do decreto nº 9.690/2019 que ampliava o rol de agentes públicos autorizados a classificar de sigilosa, secreta e ultrassecreta, informação pública. Com maior número de servidores habilitados a proceder a classificação, o efeito esperado seria o aumento das excepcionalidades que impediriam acesso público a informações e documentos governamentais. Contudo, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que suspenderia os efeitos do decreto, e antes do projeto ser colocado em pauta, Bolsonaro revogou o decreto presidencial.

Na segunda tentativa, em março de 2020, foi editada a MP 928, que estabelecia uma limitação no acesso a dados dos órgãos públicos durante a situação de emergência sanitária ocasionada pela pandemia de COVID-19. Ainda, o recurso interposto contra negativa de resposta fundamentada na mencionada suspensão não seria conhecido. No entanto, a MP foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal no mesmo mês.

Além disso, foi decretado sigilo e negativa de informações sobre fatos relevantes na esfera política. Em 2019, o Ministério da Justiça alegou direito à privacidade e negou pedido de informação solicitado via LAI sobre o encontro do então ministro Sérgio Moro com representantes do setor de armas e munições. A imposição de sigilo de 100 (cem) anos tem sido constante em quaisquer fatos desconfortáveis ao governo. Como exemplos: os estudos que embasaram a reforma da previdência, os exames de COVID-19 do presidente, e o processo interno do Exército contra o general Eduardo Pazuello pela participação em ato político no começo de 2021.

A desinformação afetou diretamente a produção de dados sobre o país. Os dados da COVID-19 deixaram de ser atualizados, o que fez com que fosse criado consórcio de imprensa para atualização das informações. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) teve redução orçamentária significativa, inviabilizando a produção do Censo53 53 O censo estava previsto para 2020, mas por causa da pandemia foi adiado para 2021, momento em que não havia orçamento disponível. Em maio de 2021, em demanda do estado do Maranhã o STF determinou que o governo federal adote as medidas para a realização do censo. , principal fonte de informações sobre a população, fundamental para compreensão das demandas de políticas públicas.

A opacidade afetou os mecanismos de controle, apesar da retórica de combate à corrupção. No governo Bolsonaro houve a captura de diversos órgãos de controle e com função central na identificação de movimentações de dinheiro suspeitas. Nesse sentido tanto a Polícia Federal, a Receita Federal, o Conselho de Controle de Atividade Financeiras - COAF, foram afetados, o que possivelmente influenciou na queda no índice de percepção à corrupção.54 54 Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/sob-bolsonaro-brasil-volta-a-cair-em-ranking-de-corrup%C3%A7%C3%A3o/a-60548242> .

Além das alterações na Polícia Federal já citadas, houve ingerência na PF no Rio de Janeiro, instituição que investigava possível esquema de corrupção de Flávio Bolsonaro, acusado de apropriação de salário de assessores. Houve substituição de superintendente e delegados da Receita Federal no Rio de Janeiro. Houve mudanças no COAF, responsável por atuar na prevenção e combate à lavagem de dinheiro. O órgão era subordinado ao Ministério da Economia, no entanto, foi transferido ao Ministério da Justiça, mudança que foi posteriormente rejeitada pelo Congresso. Também teve redução significativa de orçamento que seria usado para a modernização de sistema contra corrupção55 55 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/bolsonaro-corta-verba-do-coaf-destinada-a-modernizacao-de-sistema-contra-corrupcao.shtml>. . O órgão foi central na identificação de movimentação anormal de recursos de ex-assessor do senador Flavio Bolsonaro, dando início à investigação do esquema de “rachadinhas”. Em 2019, o presidente da República estabeleceu que a COAF estaria na estrutura do Banco Central. Com a transferência ao Banco Central, Bolsonaro afirmou que pretendia “tirar o COAF do jogo político”56 56 Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/09/bolsonaro-diz-querer-tirar-coaf-de-jogo-politico-apos-suspeita-contra-filho.htm>. .

Conforme se observa, a interferência do governo em mecanismos de controles - em especial a Polícia Federal, o COAF e a Receita Federal - para além de afetar as atividades desses órgãos, obstaculiza o combate à corrupção, uma vez que os três órgãos juntos atuaram em conjunto em diversas operações, como a Lava-Jato, a Zelotes, a Greenfield e a Furna da Onça.

A desarticulação dos mecanismos de controle passa pela captura do cargo de Procurador-Geral da República. O PGR tem a prerrogativa exclusiva de oferecimento de denúncias contra o Presidente da República, além de ser ouvido nas ações de controle abstrato de constitucionalidade. Segundo levantamento da CNN, o PGR foi contra 74 pedidos de investigação contra Bolsonaro e a favor de 1, mas nesse caso o Procurador-Geral solicitou posteriormente o arquivamento da investigação.57 57 Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/desde-a-posse-aras-foi-contra-74-pedidos-de-investigacao-contra-bolsonaro-e-a-favor-de-1/>. O PGR tem servido como anteparo à possibilidade de investigação do Presidente da República, restando acompanhar como atuará em ano eleitoral em que o presidente será candidato à reeleição.

4. Considerações Finais

Nos últimos anos tem ocorrido processo de erosão constitucional e democrática no Brasil. Neste artigo pretendemos tratar da esfera constitucional para pensar além das áreas afetadas, centrando-nos nas estratégias utilizadas. Através do mapeamento e sistematização de estratégias de destruição pretendemos pensar não o onde, ou o porquê, mas o como. A sistematização não se pretende exaustiva, inclusive porque a destruição é processo em curso que se utiliza dos aprendizados das experiências nacionais e internacionais para ser mais efetiva. Ao analisarmos as estratégias, buscamos tanto apontar os limites das análises comparadas, algumas centradas no campo de alteração constitucional, quanto analisar as rupturas com o direito, de forma que seja possível estruturar resistências e possibilitar um caminho para a reconstrução das áreas afetadas.

Ainda que o marco temporal estabelecido seja o governo Bolsonaro, ficou evidente que as práticas não começaram em 2019. Ocorreu a amplificação e aprofundamento em termos de quantidade, rapidez e criação de emaranhados que dificultam o controle e oposição. Embora as estratégias não sejam novas, o uso concomitante, a explosão quantitativa, aliada aos conteúdos e áreas mostram que há um novo panorama com o potencial de erodir a constituição.

O uso do unilateralismo normativo, as mudanças da administração pública e perseguição dos servidores, o uso do orçamento como forma de estrangulamento de determinadas áreas, o cerceamento de espaços de participação da sociedade civil, e por fim, as medidas de diminuição da transparência e controle mostram um cenário de uso de várias medidas concomitantes como forma de dificultar a articulação e impedir resistências. Em algumas áreas, como as do meio-ambiente e da cultura, isso fica ainda mais evidente, mas é impossível citar uma área em que não tenha havido retrocesso. Políticas consolidadas foram reduzidas a pó.

Inicialmente pretendíamos trazer também as instituições e práticas que têm trazido limites ao fenômeno de destruição. Neste sentido, analisar o Congresso Nacional, o STF e a ação de servidores pode fornecer importantes aprendizados. Entretanto, por compreender que este tópico demanda uma pesquisa específica, direcionamos a trabalhos já existentes, como os de Lotta et al, e sugerimos a continuidade do acompanhamento sobre essas instituições e práticas para avaliar em que medida estão sendo bem-sucedidas na limitação das práticas de destruição.

Referências bibliográficas

  • 1
    Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no 2º Encontro Brasileiro da Sociedade Internacional de Direito Público (ICON-S BRASIL) em 2021 e objeto de debate no Insper. Agradeço aos comentários e debates ocorridos nos eventos que possibilitaram o aperfeiçoamento dos argumentos, especialmente a Diego Werneck Arguelhes.
  • 2
    Emílio Peluso Neder Meyer (2021, p. 1) adota como marco o ano da “lenta, prejudicial erosão da identidade constitucional estabelecida pela Constituição de 1988” a ano de 2014. A escolha da data deu-se em decorrência da análise institucional, uma vez que as eleições de 2014 teriam interrompido os confrontos institucionais, levando à crise política.
  • 3
    O mapeamento temático pode ser verificado nos seguintes relatórios e sites: Sinal de Fumaça - Monitor Socioambiental; Relatório Cronologia de um Desastre Anunciado da Associação Nacional dos Servidores de Meio Ambiente (ASCEMA), Agenda de Emergência LAUT, Assediômetro, Assédio Institucional no Poder Público; as petições enviadas à Corte Penal Internacional trazem fatos para caracterizar a conduta presidencial em crime contra a humanidade e genocídio, VENTURA, AITH, REIS, A Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid-19.
  • 4
    Em definição de Magna Inácio “O poder de agenda refere-se à capacidade de determinado ator influenciar ou determinar as alternativas consideradas nos processos decisórios, em relação ao conteúdo e aos procedimentos a partir dos quais tais alternativas convertem-se em decisões políticas” O Presidente tem amplos poderes de agenda, e incluem poder de decreto, competência para propositura de Emenda Constitucional, iniciativa legislativa exclusiva em algumas matérias, pedido de urgência, iniciativa legislativa (2007, p. 170).
  • 5
    Taxa de sucesso diz respeito ao percentual de propostas legislativas enviadas pelo executivo que são aprovadas, taxa de dominância mede dentre as propostas aprovadas, qual o percentual foi enviado pelo executivo.
  • 6
    CAMPEÃO em MPs, Bolsonaro aprovou menos da metade delas no Congresso. Congresso em foco, 25 nov. 2020. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/campeao-em-mps-bolsonaro-aprovou-menos-da-metade-delas-no-congresso/> acesso em 17 nov. 2021.
  • 7
    Em comparação com 108 em 2020.
  • 8
    “Eu disse ao Rodrigo Maia: com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, né? Eu tenho o poder de fazer decretos. Logicamente, decretos com fundamento", relatou Bolsonaro, durante lançamento da Frente Parlamentar Mista da Marinha Mercante Brasileira, no Clube Naval.” Disponível em:<https://exame.com/brasil/com-a-caneta-eu-tenho-mais-poder-do-que-voce-diz-bolsonaro-a-maia/> Acesso em 17 nov. 2021.
  • 9
    Embora na literatura utilize-se poder de decreto para designar instrumentos normativos editados pelo presidente da república (por todos DA ROS, 2008; CAREY, SHUGART, 1998), neste trabalho separo ambos por entender que ainda que a MP venha de ato unilateral, precisa ser confirmada pelo Congresso, de forma que a rejeição expressa ou não decisão levam à perda de eficácia da medida. Já os decretos não precisam ser confirmados, e, embora exista a possibilidade de sustação dos atos normativos do executivo (art. 49, V, CRFB), é um ônus maior do que deixar à perda de eficácia por decurso do prazo.
  • 10
    Decretos executivos são instrumentos do presidente da república para regulamentar leis ou dispor sobre a estrutura administrativa. Desta forma são instrumentos que conferem celeridade e não demandam de aprovação congressual. Mas o excesso de decretos, especialmente em temas que não seriam de sua atribuição, podem indicar falta de apoio no legislativo, o que pode ser corroborado por projetos para a suspensão dos decretos.
  • 11
    Portaria é um ato administrativo ordinário que tem a função de disciplinar o funcionamento da Administração Pública.
  • 12
    Para Mark Tushnet (2003) o jogo duro constitucional (constitutional hardball) designa modificação na maneira como as regras são avaliadas e utilizadas, fazendo com que as instituições passem a adotar o confronto como melhor estratégia política
  • 13
    Os PDLs significam proposta de decreto legislativo para sustar o decreto executivo, conforme nota número 8. Deste modo sinalizam conflitos entre executivo e legislativo.
  • 14
    Fontes: Portal da legislação, Palácio do Planalto, Congresso em Foco, Poder 360. *Conforme consta do Congresso em Foco, no governo FHC, contou-se apenas as MPs posteriores à Emenda Constitucional 32.
  • 15
    Decretos 9.844, 9.845, 9.846 e 9.847.
  • 16
    Síntese presente em: <https://www.conectas.org/noticias/entenda-o-vai-e-vem-da-politica-de-armas-de-bolsonaro/?gclid=CjwKCAiA1uKMBhAGEiwAxzvX9wO5iRGx 1cP6cvsZ2dTH24brxjl0SXHamGjz8_9A6XH4GiAU9idXKhoCOUQQAvD_BwE >.
  • 17
    Como exemplos de atos normativo em 2020: a portaria 62/2020 impedia rastreio de armas. Os decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, de 12 de fevereiro de 2021, a pretexto de regulamentar a lei 10.826/2003 - lei do desarmamento - que, dentre outros itens, facilitavam acesso às armas e afastava o controle do Comando do Exército de projéteis, e itens relacionados à armamentos. Ver: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/desde-inicio-do-governo-bolsonaro-mudou-31-vezes-a-politica-de-armas-no-brasil/>. Acesso em 15 mar. 2022.
  • 18
    Disponível em:<https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-17/atuacao-vacilante-do-stf-nao-contem-a-venda-de-armas-incentivada-por-bolsonaro.html>.
  • 19
    Por este termo designamos a atuação retórica presidencial que apesar de referenciar a segurança pública o faz sem políticas concretas, mas com acenos aos oficiais de segurança pública, sua base de apoio. Apesar disso busca atribuir a si números positivos na área. Como exemplo dessa postura: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/02/21/bolsonaro-atribui-reducao-de-assassinatos-a-liberacao-de-armas-especialistas-dizem-que-presidente-distorce-fatos-e-que-mais-armas-em-circulacao-sao-risco-a-sociedade.ghtml>. Acesso em 02 set. 2022.
  • 20
    Em meio aos debates relacionados ao “orçamento secreto”, foi votada na Câmara a PEC 23/21, que limita gastos anuais com precatórios. O tema é sensível ao presidente uma vez que sua aprovação é condição para que tenha orçamento para estabelecer pagamento de auxílio financeiro. A PEC foi aprovada nos dois turnos na Câmara, em primeiro por 312 a favor e 144 contra, e, em segundo, por 323 votos a favor e 172 contra.
  • 21
    Em 2022, até agosto, foram aprovadas onze emendas constitucionais, enquanto em 2021 foram seis, em 2020, três, e em 2019, seis.
  • 22
    Estas alterações foram objeto de emenda no decorrer do processo da MP 870.
  • 23
    No Congresso a competência de demarcação de terras indígenas voltou à Funai, que, por sua vez foi reincorporada à estrutura do Ministério da Justiça. Mesmo assim Bolsonaro reeditou MP com mesmo teor (MP 886), mas a MP foi suspensa pelo STF pela vedação de reedição de MP na mesma sessão legislativa (ADIs 6172, 6173 e 6174).
  • 24
    Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/no-que-depender-de-mim-nao-tem-mais-demarcacao-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-a-tv.shtml>. Acesso em 15 mar. 2022.
  • 25
    Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/12/em-dois-anos-bolsonaro-promove-desmonte-no-meio-ambiente-funai-e-reforma-agraria.shtml>.
  • 26
    Disponível em: < https://cdn.oantagonista.net/uploads/2021/05/SEI_IBAMA-7036900-Despacho-Gabin.pdf>.
  • 27
    Houve queda de 43,5% de autos de infração do órgão na Amazônia entre 2019 e 2020, período em que houve aumento de queimadas e desmatamento. Disponível em: <https://csr.ufmg.br/csr/wp-content/uploads/2021/06/colabora_autos-de-infracao-na-amazonia-caem-com-bolsonaro.pdf>.
  • 28
    Exemplificativamente, no Amapá a queda foi de 85%. Disponível em: <https://g1.globo.com/ap/amapa/natureza/amazonia/noticia/2021/06/04/ibama-tem-queda-de-85percent-em-multas-com-menor-autonomia-de-fiscais-no-ap-diz-associacao.ghtml>.
  • 29
    A menção a “passar a boiada” vem da divulgação da reunião ministerial ocorrida em 20 de abril de 2020 em que Salles diz que se poderia aproveitar a pandemia e a atenção da imprensa no tema para “passar a boiada” e flexibilizar os mecanismos de proteção ambiental. A reunião foi divulgada no contexto de inquérito no STF para investigação da alegação de Sérgio Moro de ingerência de Bolsonaro na Polícia Federal.
  • 30
    Ainda que neste artigo a evidência de militarização ocorra através da análise quantitativa de militares em cargos civis, é possível considerar militarização através do prisma da forma de organização das atividades, ocupação do sistema político etc. Sobre o tema ver SCHMITT, 2022.
  • 31
    “na gestão socioambiental há mais de 90 militares alocados em áreas como Funai, Ibama, ICMBio, Sesai, Incra, Mapa, Funasa, FCP, além do Ministério do Meio-Ambiente e do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.” NOZAKI, 2021, p.21.
  • 32
    Segundo dados no site do Ministério da Defesa, a Operação Brasil Verde 2 (entre 11/05/2020 a 30/04/2021) custou R$ 379.230.988,82.
  • 33
    Trump assinou em seu quarto dia de mandato ordem com proibição de uso de recursos federais para auxiliar mulheres no exterior que queiram abortar. A ordem decreto restaura medida adotada por Ronald Reagan em 1985. Na Hungria foram criadas fundações para administrar as faculdades públicas, inclusive seu orçamento. Apesar de alegar autonomia da instituição, os membros dos conselhos são indicações do governo.
  • 34
    A pandemia COVID-19 estabeleceu algumas peculiaridades na análise e comparação entre os orçamentos anuais por ter exigido recursos significativos, em 2020
  • 35
    Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/703644-frente-detalha-queda-no-orcamento-ambiental-e-busca-solucoes-para-reverter-o-rombo/>. Acesso em 20 mar. 2022.
  • 36
    Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-incrementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml>.
  • 37
    Disponível em:< https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/21/cct-vai-debater-corte-de-r-600-milhoes-no-orcamento-da-ciencia-e-tecnologia>.
  • 38
    Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/03/26/orcamento-2021-e-aprovado-com-cortes-em-areas-centrais-para-o-combate-a-covid-19>.
  • 39
    “Na Educação, os investimentos públicos caíram em termos reais de R$ 109 bilhões em 2018 para R$ 106 bilhões em 2019 (...) O orçamento da Capes caiu de R$ 9 bilhões em 2015 para R$ 4,5 bilhões em 2019.” GERBASE, 2021.
  • 40
    Dados sobre o fenômeno e cortes orçamentários na área podem ser acessados em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-diaspora/>.
  • 41
    Em abril de 2019 o MEC anunciou o corte de 30% dos recursos de universidades e institutos federais. Depois de protestos o corte foi revertido.
  • 42
    Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/orcamento-de-2021-favorece-programas-ligados-ao-bolsonarismo.shtml>.
  • 43
    Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/03/4991333-orcamento-do-governo-para-combate-a-violencia-contra-mulher-e-o-menor-em-4-anos.html>.
  • 44
    Definição retirada do site http://www.fundoamazonia.gov.br/pt/home/.
  • 45
    Os dados e informações referentes ao desmonte do Fundo Amazônia foram retirados da entrevista concedida pela pesquisadora Suely Araújo ao podcast “Ilústríssima Conversa”, em 03 de setembro de 2022, disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/09/brasil-so-reconstroi-politica-ambiental-sem-bolsonaro-diz-ex-presidente-do-ibama.shtml>. Acesso em 04 set. 2022.
  • 46
    A lei orçamentária pode ser objeto de emendas, entretanto em 2019 foi criada a modalidade de emenda do relator que permite transferir recursos em nome do relator, portanto sem a identificação de qual parlamentar que recebe, além de ausência de critérios para recebimento ou não (diferente das demais formas de emenda). Tem sido utilizada como forma de negociação para aprovação de medidas como a PEC dos Precatórios.
  • 47
    Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,orcamento-secreto-de-bolsonaro-entenda-o-passo-a-passo-do-esquema,70003708734>.
  • 48
    Os conselhos são órgãos colegiados nos quais há participação social e existem em âmbito federal, estadual e municipal, e têm objetivo de formular, supervisionar e avaliar as políticas públicas em sua área de atuação.
  • 49
    Os conselhos previstos em decretos ou portarias deveriam ser justificados até 28 de junho de 2019, ou seriam extintos.
  • 50
    Disponível em: <https://www.diap.org.br/index.php/noticias/noticias/89189-presidente-jair-bolsonaro-extingue-varios-conselhos-federais>.
  • 51
    1) Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT); 2) Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena; 3) Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH); 4) Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua; 5) Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (Cnaeja); 6) Comissão Nacional de Florestas (Conaflor); 7) Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae); 8) Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad); 9) Conselho Superior do Cinema (CSC); 10) Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); 11) Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC); 12) Conselho das Cidades (Concidades); 13) Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade); 14) Conselho da Autoridade Central Administrativa Federal contra o Sequestro Internacional de Crianças; 15) Conselho Deliberativo da Política do Café (CDPC); 16) Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf); 17) Conselho de Desenvolvimento do Agronegócio do Cacau (CDAC); 18) Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP); 19) Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (Conpdec); 20) Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS); 21) Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); 22) Conselho de Relações do Trabalho (CRT); 23) Conselho de Representantes dos Brasileiros no Exterior (CRBE); 24) Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit); 25) Comissão Especial de Recursos (CER); 26) Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD); 27) Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti); 28) Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio); 29) Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT); 30) Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (Cadara); 31) Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI); 32) Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia (CMCH); 33) Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo); 34) Comissão Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (Cnatre); 35) Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)
  • 52
    Como exemplos: o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos destituiu nove entidades que representavam a sociedade civil no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o decreto 9.926 diminuiu a composição do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) de 31 para 14 integrantes, excluindo toda a representação da sociedade civil. O Decreto nº 9806/2019 alterou a composição do Conama, reduzindo de 96 para 23 os componentes.
  • 53
    O censo estava previsto para 2020, mas por causa da pandemia foi adiado para 2021, momento em que não havia orçamento disponível. Em maio de 2021, em demanda do estado do Maranhã o STF determinou que o governo federal adote as medidas para a realização do censo.
  • 54
    Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/sob-bolsonaro-brasil-volta-a-cair-em-ranking-de-corrup%C3%A7%C3%A3o/a-60548242> .
  • 55
    Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/bolsonaro-corta-verba-do-coaf-destinada-a-modernizacao-de-sistema-contra-corrupcao.shtml>.
  • 56
    Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/09/bolsonaro-diz-querer-tirar-coaf-de-jogo-politico-apos-suspeita-contra-filho.htm>.
  • 57
    Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/desde-a-posse-aras-foi-contra-74-pedidos-de-investigacao-contra-bolsonaro-e-a-favor-de-1/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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