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Apresentação

DOSSIÊ RETRATO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO E RAÇA

APRESENTAÇÃO

Alinne BonettiI; Ana Carolina QuerinoII

IInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IIFundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher

É na vida cotidiana que percebemos pungentemente a ação insidiosa das desigualdades. Compreendê-las para enfrentá-las tem sido, cada vez mais, a preocupação tanto de gestoras/es do poder público quanto de ativistas e de estudiosas/os. Na tentativa de conhecê-las mais profundamente e de contribuir com o seu enfrentamento é que, desde 2005, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher - UNIFEM e, mais recentemente, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM vêm conjugando esforços para apresentar o estudo Retrato das desigualdades de gênero e raça.

Trata-se de uma compilação de alguns dados considerados estratégicos para conhecer a incidência da interseccionalidade dos marcadores sociais de gênero e raça na produção das desigualdades no país, oriundos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Assim, o estudo traz diferentes indicadores de 11 temas distintos - população; chefia de família; educação; saúde; previdência e assistência social; mercado de trabalho; trabalho doméstico remunerado; habitação e saneamento; acesso a bens duráveis e exclusão digital; pobreza, distribuição, desigualdade de renda; e uso do tempo -, apresentados para o período de 1993 a 2007, a partir do cruzamento por sexo e cor/raça, para o Brasil e para as Grandes Regiões, para as áreas urbanas e rurais e, quando relevante, também por faixas etárias.

Como se pode perceber, o Retrato revela-se um instrumento de análise da realidade social com grandes potencialidades tanto para aprofundamentos de pesquisas quanto para a promoção de políticas públicas. Em função dessas potencialidades é que se idealizou o presente dossiê, com vistas a reunir um conjunto de análises sobre diferentes temas, a partir dos dados do Retrato. Assim, o intuito deste dossiê é o de proporcionar ao público da REF um contato mais estreito com os dados disponíveis no estudo, demonstrando a sua riqueza para as análises das desigualdades sociais do país, em especial as de gênero e de raça, bem como para a proposição de políticas públicas e para o controle social.

Para tanto, foram selecionados alguns dos temas que compõem o Retrato e convidadas as autoras, com alguns critérios em mente. Buscaram-se autoras1 1 De maneira um tanto jocosa, mas não menos séria, usamos , propositadamente, o plural flexionado no feminino mesmo com a presença de autores homens, em virtude de a maioria ser composta de mulheres, propositadamente. Com essa pequena subversão às regras da língua, queremos chamar a atenção para as possibilidades de desconstrução das convenções sociais de gênero, no mais das vezes implicada na promoção das desigualdades, e para a sua reinvenção. que estivessem alinhadas à vocação híbrida do Retrato, de produzir conhecimento aplicado a proposições com vistas ao enfrentamento das desigualdades. Trata-se de autoras com duplos ou triplos vínculos: pesquisadoras acadêmicas, gestoras públicas em diferentes graus, algumas já inseridas no campo tanto da reflexão quanto da política feminista e suas interseccionalidades, outras recém-chegadas.

Assim, os sete textos aqui reunidos trazem essa hibridez como sua marca de origem. E, de forma geral, eles podem ser entendidos como constituindo dois grandes blocos que representam as diferentes dimensões sociais da produção e o impacto das desigualdades sociais.

No primeiro bloco, os textos trazem em comum uma discussão sobre a ingerência das desigualdades no mundo doméstico. Refletem, de distintas perspectivas, sobre o espaço, por excelência, da família, esse constructo ideológico tido como instituição humana universal e lugar do afeto e da cooperação, que se constitui numa oposição simbólica ao mundo público do trabalho e da política.2 2 Sylvia YANAGISAKO e Carol DELANEY, 1995. Sendo assim, não é gratuito que as convenções sociais de gênero e de raça, empenhadas na produção das desigualdades que estruturam nossa sociedade, estejam tão fortemente presentes no espaço doméstico, um dos espaços mais hierárquicos e marcados por profunda desigualdade.3 3 Hannah ARENDT, 1987.

Os quatro textos, portanto, investigam, a partir da distribuição dos afazeres domésticos, as transformações nos arranjos familiares brasileiros contemporâneos, a participação no mercado de trabalho, o trabalho doméstico não remunerado e o remunerado, salientando o papel do Estado nessas questões. O texto de Luana Pinheiro, Marcelo Galiza e Natália Fontoura, "Novos arranjos familiares, velhas convenções sociais de gênero: a licençaparental como política pública para lidar com essas tensões", concentra-se nos reflexos da conjunção entre os novos arranjos familiares, as persistentes convenções tradicionais de gênero e o lugar do Estado na promoção de políticas públicas que deem conta dessas mudanças e permanências. Para pensar essa conjunção, como exercício analítico, as autoras exploram o caso da licença para cuidado de filhas/os como alternativa às licençasmaternidade e paternidade. A partir dos dados sobre arranjos familiares no Brasil, a situação das mulheres no mercado de trabalho e a inabilidade do Estado diante dessas transformações, que ainda lida com um modelo estrito de família, as autoras argumentam sobre a relevante discussão da conciliação entre trabalho e família no Brasil. Advogam a extensão de benefícios trabalhistas aos homens trabalhadores com responsabilidades familiares e também um sistema mais flexível, chamado de "licença-parental", para que tanto o pai quanto a mãe possam usufruir igualmente do direito à licença com salário integral para o cuidado com a prole.

A relevância de se tratar das intersecções entre arranjos familiares, mercado de trabalho e políticas públicas para se analisarem as desigualdades é reforçada pelo texto de Daniela Ramos, "Pesquisas de usos do tempo: um instrumento para aferir as desigualdades de gênero". A autora inspira-se nos dados sobre "uso do tempo" que versam sobre o tempo de deslocamento entre a residência e o local de trabalho e o tempo médio dedicado por semana aos afazeres domésticos. A partir deles, a autora reafirma a importância de se empreenderem pesquisas nacionais sobre o tema, ainda incipientes no Brasil, já que é um importante indicador para medir as desigualdades, sobretudo dentro da família, porque escrutina os meandros da divisão sexual do trabalho no que tange ao trabalho não remunerado. A autora defende a tese de que as análises podem contribuir para a compreensão, o acesso e a utilização de serviços sociais por grupos que têm constrangimentos temporais distintos, além da introdução de novos temas de políticas públicas, como a necessidade de maior provisão de serviços sociais de cuidado para o reequilíbrio e a equidade de gênero.

Os textos de Miguel Ragone e de Solange Sanches abordam, de diferentes perspectivas, outro aspecto crucial para a reprodução da vida social que reflete as desigualdades vividas no interior do espaço doméstico: o trabalho doméstico remunerado. O texto de Miguel Ragone, "Trabalhadores urbanos e domésticos: a Constituição Federal e sua assimetria", aborda a precariedade do trabalho doméstico remunerado a partir do desenvolvimento histórico da legislação que regulamenta o trabalho doméstico, tendo como foco principal a distinção que essa parcela dos/as trabalhadores/as brasileiros/as recebeu na Constituição Federal. O autor analisa os principais argumentos utilizados para tal distinção, revelando os meandros do trabalho doméstico remunerado no que diz respeito aos seus custos no campo da produção capitalista e à legislação trabalhista.

Já o texto "Trabalho doméstico: desafios para o trabalho decente", de Solange Sanches, analisa a situação do trabalho doméstico remunerado na América Latina e, em especial, no Brasil, demonstrando a precariedade em que se encontra essa expressiva parcela da força de trabalho feminina. Salienta que tal precariedade combina, perversamente, os marcadores de gênero e de raça de modo a potencializar a situação de exclusão. Para a reversão do quadro de extrema desproteção a que estão submetidas essas trabalhadoras, a autora defende a utilização do conceito de trabalho decente, tal como proposto pela Organização Internacional do Trabalho - OIT.

Os textos do segundo bloco ocupam-se de questões estruturais da sociedade brasileira e, como se verá, estruturantes das desigualdades sociais mais amplas e do papel do Estado na permanência desse quadro. Nesse bloco os temas analisados são a pobreza, as políticas assistenciais e a educação, um dos principais canais para sua superação. Nesses temas, a questão racial surge com mais força como determinante de desigualdades verificadas.

O texto de Waldemir Rosa, "Sexo e cor: categorias de controle social e reprodução das desigualdades socioeconômicas no Brasil", apresenta reflexões sobre a pobreza a partir dos dados do Retrato das desigualdades. São reflexões que apresentam sexo e cor como marcos reguladores das oportunidades sociais, que produzem e reproduzem as iniquidades de poder na sociedade brasileira. O autor trabalha com a ideia de que tanto a branquidade quanto a masculinidade afetam de forma direta a capacidade de negociação e de acesso às redes de influência. Além disso, o texto trabalha com a ideia de que a pobreza tem cor e apresenta, de forma sucinta, caminhos para compreender a especificidade da pobreza feminina.

O texto de Silvana Aparecida Mariano e Cássia Maria Carloto tem como pano de fundo a discussão sobre a pobreza, enfocando sua análise nas convenções de gênero presentes no Programa Bolsa Família. Em uma reflexão inspirada em pesquisa qualitativa desenvolvida em Londrina, as autoras apresentam como uma política de combate à pobreza pode atuar para reforçar lugares sociais marcados por convenções tradicionais de gênero, ou seja, a reflexão evidencia como a prática do Programa Bolsa Família apresenta contradições entre ações estatais e demandas feministas e, por isso, limitações no que se refere à superação das desigualdades, sobretudo as de gênero.

Por fim, o último texto deste dossiê é sobre educação. O acesso à educação formal é tido como um dos principais instrumentos de mobilidade e conquista de autonomia. No Brasil, os indicadores educacionais mostram que a desvantagem das mulheres em relação aos homens no campo educacional é de natureza qualitativa e quantitativa, ou seja, está relacionada com a reprodução de convenções tradicionais de gênero na escolha das profissões, e não tanto no acesso, cujas dificuldades, por sua vez, estão relacionadas a outro eixo estruturante das desigualdades: a questão racial. É por isso que Danielle Valverde e Lauro Stocco discutem os dados educacionais apresentados no Retrato, tendo como referência a produção acadêmica sobre situações de preconceito e discriminação raciais observadas no sistema educacional brasileiro. O texto mostra o quadro de desigualdades no ensino e os mecanismos de discriminação que operam no ambiente escolar, afetando desempenho e permanência de negros na escola.

Esperamos, assim, que este dossiê seja inspirador às/aos leitoras/es na produção de novos estudos sobre as desigualdades no nosso país.

  • ARENDT, Hannah. A condição humana Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
  • YANAGISAKO, Sylvia; DELANEY, Carol. "Introduction." In: ______ (Orgs.). Naturalizing Power. Essays in Feminist Cultural Analysis New York: Routledge, 1995. p. 1-24.
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    De maneira um tanto jocosa, mas não menos séria, usamos , propositadamente, o plural flexionado no feminino mesmo com a presença de autores homens, em virtude de a maioria ser composta de mulheres, propositadamente. Com essa pequena subversão às regras da língua, queremos chamar a atenção para as possibilidades de desconstrução das convenções sociais de gênero, no mais das vezes implicada na promoção das desigualdades, e para a sua reinvenção.
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    Sylvia YANAGISAKO e Carol DELANEY, 1995.
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    Hannah ARENDT, 1987.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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