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EDITORIAL

Este número da REF sai em pleno processo de realização da II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. A I Conferência, realizada em julho de 2004 em Brasília, tem sido avaliada por pesquisadoras e ativistas do campo feminista como um marco na definição de políticas públicas para as mulheres e pela igualdade de gênero no Brasil. Organizada pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, do Governo Federal, a Conferência, que foi o resultado de um longo processo de conferências municipais e estaduais, reunindo em seus vários estágios cerca de 120 mil participantes e delegadas, teve como objetivo definir propostas e diretrizes de políticas públicas para a atuação do Estado. Mas esse processo constituiu-se, sobretudo, em uma experiência inédita na história do país de consulta popular em relação a políticas de igualdade e eqüidade de gênero a serem implementadas pelo Estado brasileiro. O resultado da I Conferência foi o Plano Nacional de Política para Mulheres,1 1 Disponível na página da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres ( www.presidencia.gov.br/spmulheres). que sintetiza as 239 diretrizes aprovadas em 199 ações, elaborado por uma equipe interministerial, publicado em dezembro de 2004 e aprovado pelo decreto 5.390, de 8 de março de 2005.

A II Conferência, que acontece de 17 a 20 de agosto, resultado de um processo semelhante ao da primeira, com conferências municipais e estaduais, é um momento importante de avaliação da implementação do Plano Nacional, das dificuldades e das formas de garantir a implementação dessas políticas – junto com o debate sobre a participação das mulheres nos espaços de poder. É fundamental um balanço que vá além do otimismo governamental ou de quem está na gestão das políticas públicas e que leve em conta aspectos não apenas quantitativos, mas também qualitativos do cotidiano das mulheres brasileiras em relação à igualdade e à desigualdade. Não é à toa que um dos fatos marcantes do ano de 2007 tenha sido o espancamento de Sirlei, trabalhadora doméstica no Rio de Janeiro, por um grupo de jovens de classe média. Além da intensa cobertura da mídia impressa e televisiva, o evento provocou a produção de artigos, crônicas e comentários de críticos, pesquisadores e ativistas buscando interpretar esse e outros eventos de agressão por parte de gangues de classe média e alta a mulheres, indígenas, homossexuais, sem-teto e mendigos em cidades brasileiras. Esse tipo de violência sexista, racista, homofóbica e classista tem se caracterizado como uma nova forma das violências no Brasil contemporâneo. Não é possível que as discussões sobre direitos e igualdade no Brasil passem ao largo desse fato e não busquem caminhos não apenas para combater a impunidade, mas também para construir mecanismos eficazes no cotidiano.

Especificamente no caso do espancamento de Sirlei, o sentido misógino e sexista do ataque está manifesto na própria justificativa dos agressores, ao dizerem que achavam tratar-se de uma prostituta. A história é bem conhecida. Como interpretar uma realidade em que se constatam avanços importantes em relação a políticas igualitárias de gênero e de direitos sexuais, conquista e implementação de reivindicações históricas do movimento feminista, maior abertura do Estado às lutas feministas e das mulheres, e em que ao mesmo tempo crescem as agressões (físicas e simbólicas) às mulheres? Que distância é essa entre direitos formais conquistados no plano das leis e das políticas públicas e uma sociedade que autoriza esse tipo de prática? Buscar respostas para essas questões é uma exigência para que qualquer política pública de justiça e direitos seja bem-sucedida.

Este número da REF traz reflexões pertinentes à complexidade dessa conjuntura.

Nancy Fraser, em "Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação", discute questões como redistribuição, reconhecimento e representação, buscando compreender o que seria a reinvenção do projeto feminista no mundo globalizado e no contexto posterior ao 11 de Setembro. Seu ponto de partida é um balanço das mudanças vividas pelo feminismo no contexto das transformações do capitalismo pós-guerra e na geopolítica pós-comunista.

Ainda sobre o tema "políticas públicas", Stéphanie Rousseau realiza, no artigo "Las políticas de salud reproductiva en el Perú: reformas sociales y derechos ciudadanos", uma instigante análise sobre a elaboração de políticas públicas de saúde reprodutiva no Peru no contexto das reformas das políticas sociais implementadas nos últimos 15 anos. A autora analisa os fatores que impõem limites à implantação dessas políticas, entre os quais a dificuldade de acesso das mulheres de classes populares e o impacto da influência dos setores conservadores sobre os serviços publicamente disponíveis de planejamento familiar.

Em "Educação sexual e primeira relação sexual: entre expectativas e prescrições", Helena Altmann utiliza uma pesquisa etnográfica desenvolvida em uma escola municipal do Rio de Janeiro para analisar como as meninas idealizam sua primeira relação sexual e os limites da intervenção escolar em relação a esse aspecto, que inclui questões como virgindade, a primeira relação, o uso de preservativos e a valorização de certo tipo de relação entre meninos e meninas.

Cláudia da Silva Pereira observa o Orkut, uma rede virtual de relacionamento, identificando um sistema de classificação a partir da forma como os usuários interagem. Em "Os wannabees e suas tribos: adolescência e distinção na Internet", ela analisa dois tipos de comunidades virtuais, o dos "góticos", tribo urbana que cultua uma "dada feminilidade", e o das "pró-anas", comunidade virtual que defende as práticas anoréxicas como estilo de vida. A autora discute as formas de construção de identidade na adolescência a partir de processos de distinção e controle social na Internet.

Em "'Cartas a uma senhora': questões de gênero e a divulgação do darwinismo no Brasil", Moema de Rezende Vergara contribui com um recorte de gênero na história da divulgação científica no Brasil, analisando uma prática específica de divulgação científica dos oitocentos, as "Cartas a uma senhora" escritas por Rangel S. Paio e publicadas n'O Vulgarizador. Trata-se de uma série de cartas de divulgação científica em que o conteúdo de gênero é dado de antemão pelo próprio autor ao direcioná-las ao público feminino no Brasil do Segundo Reinado.

Neste número, publicamos também o dossiê Mulheres em áreas rurais nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, organizado pela professora Rosineide de L. M. Cordeiro e pelo professor Parry Scott, ambos da Universidade Federal de Pernambuco. O objetivo do dossiê é dar maior visibilidade à situação das relações de gênero em estados do Norte e do Nordeste brasileiro e fazer conhecer, para além das fronteiras regionais, os numerosos estudos sobre o tema desenvolvidos nos últimos anos. Certamente um dos impulsos para esses estudos foi a ação das próprias mulheres trabalhadoras rurais, que desde os anos 1980 vêm se reorganizando, constituindo grupos e movimentos e tendo uma atuação destacada nas lutas sociais do país e, particularmente no caso deste dossiê, nas regiões Norte e Nordeste. É difícil não relacionar esse novo impulso com as lutas camponesas da região no final dos anos 50 e início dos 60, quando as mulheres se destacaram não apenas como participantes mas também como líderes desses movimentos, sofrendo perseguições, prisões e algumas delas vivendo na clandestinidade durante os anos de ditadura militar.

Conforme afirmam os organizadores, as mulheres nas duas regiões têm participado ativamente das diversas lutas sociais que se travam em áreas rurais: a luta por reforma agrária, por reservas extrativistas, pelo apoio à agricultura familiar e ao desenvolvimento rural, pela demarcação das terras quilombolas e das reservas indígenas.

Este dossiê, juntamente com o dossiê As agricultoras do Sul do Brasil, publicado no volume 12, número 1, de 2005 da REF, constitui-se em um importante instrumento para as estudiosas do tema e para os movimentos de agricultoras e trabalhadoras rurais.

Aproveitando a ocasião de abordar essa temática, publicamos na seção Ponto de Vista uma entrevista com uma das líderes do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, Dona Adélia Schmitz, cuja história se confunde com a própria história do movimento de mulheres agricultoras de Santa Catarina. Destoando um pouco do perfil mais acadêmico das entrevistas publicadas na REF, desta vez decidimos, a partir da entrevista realizada por Maria Ignez Paulilo e Cristiani Bereta da Silva, ouvir uma ativista das lutas rurais e dialogar com ela, cujas reflexões nos instigam e contribuem para uma compreensão da luta das mulheres no campo.

As resenhas sobre livros publicados recentemente no campo do gênero e do feminismo complementam mais este número da REF que, em 2007, é sempre bom lembrar, completa seus 15 anos de existência.

Boa Leitura.

Sônia Weidner Maluf e Cristina Scheibe Wolff

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    Disponível na página da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
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