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Uma história possível do movimento LGBTI+

A possible history of the LGBTI+ movement

Una posible historia del movimiento LGBTI+

QUINALHA, Renan. . Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias . São Paulo: Autêntica, 2022.

O livro Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias, escrito por Renan Quinalha, professor do curso de Direito e coordenador do NúcleoTrans da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), é resultado de anos de estudos, pesquisas e elaborações em torno da temática da diversidade sexual e de gênero. Em linguagem acessível, o autor busca ampliar o público de pessoas interessadas na história do movimento LGBTI+. O texto se destina tanto para quem já estuda as produções teóricas e ficcionais que envolvem as diferenças sexuais e de gênero quanto às que desejam uma introdução às discussões presentes no livro.

Logo no início do texto, o autor faz uma breve discussão acerca das letras que compõem a sigla LGBTI+. O objetivo é identificar as identidades que constituem a comunidade, pois a sigla é fruto de negociações sociais que variam de acordo com o contexto cultural, histórico e a quem se quer comunicar. Nas palavras de Renan Quinalha (2022 QUINALHA, Renan . Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias. São Paulo: Autêntica, 2022. , p. 11)

Assim, opto, para os propósitos e objetivo deste livro, pelo uso da sigla LGBTI+ que tem sido a formulação mais consensual no âmbito do movimento organizado no Brasil, incluindo pessoas intersexo e com um sinal de “+” que expressa o caráter indeterminado, aberto e em permanente construção dessa comunidade que desafia as estruturas binárias e heterocisnormativa da nossa sociedade.

A fim de historiografar o movimento, o autor passa pela Alemanha do fim do século XIX, cujo epicentro do protoativismo marcou a afirmação de uma identidade homossexual; pelos Estados Unidos após a Segunda Grande Guerra, com destaque ao pioneirismo dos grupos homófilos da década de 1950, e, mais especialmente, aos coletivos que surgiram a partir da tão famosa Rebelião de Stonewall em 1969; até chegar ao eixo Rio-São Paulo de 1970 e aos nossos dias, elaborando uma reflexão acerca do desenvolvimento das principais bandeiras, sujeitos e organizações do ativismo organizado. O autor ainda mobiliza referências conceituais, históricas e da memória LGBTI+ com o propósito de apontar os desafios postos às lutas por liberdade sexual e de gênero na atualidade do nosso país. O objetivo do livro é ser um convite à ação política e à luta justa por democracia, diversidade, igualdade e diferenças. Ao fazer as pesquisas e escrever a obra, Renan ainda afirma no texto que aprendeu mais do que ensinou.

Renan compreende que a história LGBTI+ é uma história de ausências, de lacunas e de silenciamentos, embora não haja, contudo, uma única história possível de ser narrada, afinal há sempre vários pontos de partidas. Um ponto negativo é que o livro também produz lacunas, pois fica a vontade de conhecer mais sobre a história do movimento dentro do Brasil para além da região Sudeste. Desde tempos remotos, existem pessoas que desafiam as normas de gênero e sexualidade ao longo da história, pois não se conformam com os binarismos; logo, transitam com maior criatividade entre as fronteiras. Por conta das diversas violências sofridas no cotidiano, a comunidade LGBTI+ constrói territórios de sociabilidade, cria modos de vida autênticos e estrutura redes de afetos. Apesar das violências, as famílias LGBTI+ sempre existiram.

É sabido desde antes das reflexões propostas por Felipe Carvalho e Fernando Pocahy (2020CARVALHO, Felipe da Silva Ponte de; POCAHY, Fernando. “Odiados pela nação: como ensinamos e aprendemos a odiar a diferença?”.Interfaces Científicas - Educação, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 47-66, abr. 2020. Disponível em Disponível em https://periodicos.set.edu.br/educacao/article/view/7994 . Acesso em 02/07/2023.
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) que se aprende e se ensina a odiar outras pessoas em nosso tempo. Há produção de ódios nas redes sociais, discursos políticos etc. Essas ambiências causam tensionamentos ético-políticos na sociedade. O que podemos notar ainda é o pânico às possibilidades de diferenciações. Ora, tratando da palavra “diferenças”, ela é de extrema potência na construção do nosso dia a dia, pois também estamos atentos ao esvaziamento das próprias diferenças na palavra “diversidade”, que, por vezes, pode ser capturada pelo neoliberalismo. Há tentativas de administração da vida dos/as outros/as por meio da imposição dos próprios desejos. Por consequência, acreditamos que as diferenciações possíveis no mundo contemporâneo devem ser intensificadas (Anete ABRAMOWICZ; Tatiane RODRIGUES; Ana CRUZ, 2011ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane Cosentino; CRUZ, Ana Cristina Juvenal da. “A diferença e a diversidade na educação”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, n. 2, p. 85-97, dez. 2011. Disponível em Disponível em https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/38 . Acesso em 02/07/2023.
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).

Ao abordar diversos assuntos polêmicos dentro das temáticas de sexualidade, o autor não deixa de refletir sobre os campos dos discursos médico-científico e jurídico (entende-se patologizações e criminalizações) das diferenças. São justamente os campos de discursos e práticas que se pode perceber o controle político de subjetividades, pois ditam o que é saúde, doença e o que é juridicamente aceitável. Esses discursos, segundo o autor, embora tenham possibilitado a promoção da politização de determinadas identidades, por vezes, perturbam vidas dissidentes (que não se conformam e/ou que divergem das normas, nesse caso, de gênero e sexualidade). A “subcultura” se forma, portanto, em contraposição à cultura hegemônica. Sabe-se que, por muitas vezes, os lares de pessoas LGBTI+, ao invés de serem lugares de abrigo e acolhimento, podem vir a ser campos de violências. O grande desafio é construir, a partir de fragmentos, o sentido positivo - e/ou orgulhoso - da própria existência. É força, luta e resiliência.

O autor também comenta as discussões em volta do essencialismo e do construcionismo. Uma questão que elucida o debate é a seguinte: tudo estaria inscrito nos códigos genéticos e nos dados biológicos ou estaria relacionado às próprias práticas sociais de cada contexto sociocultural? Ou ainda: é produto da natureza e a-histórico ou é produto da cultura e da linguagem?

O essencialismo e o construcionismo são maneiras de entender as identidades políticas nos campos de gênero e sexualidade. São duas abordagens que pautam as formulações e estratégias do movimento em seus diversos momentos, afinal essas são identidades que vêm sendo ressignificadas e que abrem caminhos para as ações políticas e de conquistas de direitos em prol da equidade. É a estrada que pode ter como ponto de partida a vergonha, mas que, certamente, alcança o orgulho. Ainda é verdadeiro afirmar que o movimento LGBTI+ avançou, mas é preciso preservar as conquistas materializadas lutando por cidadania efetiva.

Renan Quinalha comenta sobre a polêmica e o pânico moral em volta da chamada “ideologia de gênero”, que, no livro, recebe significado diferente à ideologia designada pelos/as conservadores/as: “estou falando de um sistema que interpela e constitui os sujeitos a partir de alguns princípios elementares que definem o que é normalidade” (QUINALHA, 2022 QUINALHA, Renan . Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias. São Paulo: Autêntica, 2022. , p. 36). Aliados às mentiras e às propagações de fake news acerca do tão discutido kit gay1 1 É como ficou conhecida a cartilha “Escola Sem Homofobia” que orientava professores/as em atividades de combate à homofobia. , ajudaram a levantar e decidir a eleição de um governo conservador (ou de extrema-direita) no Brasil em 2018. Desse modo, afirmamos que se faz importante se atentar à história política de lutas e superações a fim de que tal fatalidade não se repita.

O acesso ao conhecimento tem papel primordial na manutenção da democracia. Compreendemos que a memória e a história do movimento LGBTI+ têm importância não somente para se conhecer o passado, mas também para projetar o futuro, ou seja, é preciso cuidar das formas de ação no próprio presente. Que nas escolas sejam debatidas questões de gênero e sexualidade, a fim de ampliar e seguir com as discussões sobre temas tão caros à nossa sociedade. A ideia é compartilhar vivências, experiências e aprendizagens que nossas próprias histórias podem nos proporcionar - e que são tantas!

Inclusive, a história do movimento LGBTI+ vai na contramão do autoritarismo, da competividade e do individualismo: é luta coletiva, repleta de acolhimentos, sensibilidades e solidariedades. É preciso dar dimensão coletiva às individualidades, afinal vivemos em comunidades e também somos coletividades. Nós também somos responsáveis uns/umas pelos/as outros/as; estamos juntos/as nessa trajetória e nas narrativas. Por isso, é preciso politizar determinadas identidades, afinal são notáveis as desigualdades e opressões persistentes no cotidiano de diferentes pessoas a partir de marcadores sociais que se interseccionam, tais como sexo, gênero, raça, classe etc.

Aprende-se, portanto, que a história do movimento LGBTI+ contada por Renan tem o seu currículo (Tomaz Tadeu da SILVA, 2013SILVA, Tomaz Tadeu da. “Currículo e identidade social: territórios contestados”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 185-201) e a sua pedagogia cultural (Sandro BORTOLAZZO, 2020BORTOLAZZO, Sandro. “Os usos do conceito de pedagogias culturais para além dos oceanos: uma análise do contexto Brasil e Austrália”. Momento: Diálogo em Educação, Rio Grande, v. 29, n. 2, p. 315-336, dez. 2020. Disponível em Disponível em https://periodicos.furg.br/momento/article/view/8674 . Acesso em 02/07/2023.
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) incorporados em sua própria trajetória de lutas, resistências, narrativas coletivas e plurais. O volume produz o social por meio de saberes e conhecimentos. É importante ressaltar que as histórias LGBTI+ não caminham sozinhas, mas de mãos dadas com outros movimentos, tais como o de negros/as, mulheres, indígenas, sem-terra, pessoas com deficiências, trabalhadores/as etc. Embora já existam, é preciso proporcionar espaços e interlocuções, de maneira a ampliar ainda mais o senso de comunidades entre todas/es/os.

Por fim, a obra é um convite para embarcar em uma história enriquecedora. É preciso conhecer e se orgulhar do movimento LGBTI+ a fim de valorizar a potencialidade das nossas diferenças. O livro é um recurso poderoso para a conscientização e sensibilização dos/as leitores/as, além de ser bastante apropriado ao trazer possibilidades de amplificar discussões e qualificar o debate público sobre o tema, tendo muito a contribuir com o desenvolvimento desse campo de pesquisa. É preciso ainda que haja mais leituras e diálogos, a fim de se produzir processos de aprendizagens, em nome da justiça, da liberdade e da pluralidade de existências e vivências. Vamos todas, todes e todos construir um futuro mais igualitário (sempre em movimentos).

Referências

  • ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane Cosentino; CRUZ, Ana Cristina Juvenal da. “A diferença e a diversidade na educação”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, n. 2, p. 85-97, dez. 2011. Disponível em Disponível em https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/38 Acesso em 02/07/2023.
    » https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/38
  • BORTOLAZZO, Sandro. “Os usos do conceito de pedagogias culturais para além dos oceanos: uma análise do contexto Brasil e Austrália”. Momento: Diálogo em Educação, Rio Grande, v. 29, n. 2, p. 315-336, dez. 2020. Disponível em Disponível em https://periodicos.furg.br/momento/article/view/8674 Acesso em 02/07/2023.
    » https://periodicos.furg.br/momento/article/view/8674
  • CARVALHO, Felipe da Silva Ponte de; POCAHY, Fernando. “Odiados pela nação: como ensinamos e aprendemos a odiar a diferença?”.Interfaces Científicas - Educação, Aracaju, v. 8, n. 2, p. 47-66, abr. 2020. Disponível em Disponível em https://periodicos.set.edu.br/educacao/article/view/7994 Acesso em 02/07/2023.
    » https://periodicos.set.edu.br/educacao/article/view/7994
  • QUINALHA, Renan . Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias São Paulo: Autêntica, 2022.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. “Currículo e identidade social: territórios contestados”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação Petrópolis: Vozes, 2013. p. 185-201
  • 1
    É como ficou conhecida a cartilha “Escola Sem Homofobia” que orientava professores/as em atividades de combate à homofobia.
  • 2
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: HELENA, Rener de Melo; ROSA, Marcelo Victor da. “Uma história possível do movimento LGBTI+”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 1, e95812, 2024
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • 4
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 5
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2023
  • Revisado
    19 Set 2023
  • Aceito
    13 Out 2023
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