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Sobre a "aventura intelectual da história das mulheres": entrevista com Françoise Thébaud

PONTO DE VISTA

Sobre a "aventura intelectual da história das mulheres": entrevista com Françoise Thébaud

Janine Gomes da Silva

Universidade da Região de Joinville

A historiadora Françoise Thébaud, professora de História Contemporânea na Universidade de Avignon e membro da Escola Doutoral da Universidade Paris 7 e da Universidade Lyon 2, na França, é também diretora da revista CLIO, Histoire, Femmes et Sociétés, que vem sendo publicada desde 1995. O número 1 (Resistances et Liberations. France 1940-1945) e o número 6 (Femmes d'Afrique) foram coordenados por Françoise. Recentemente coordenou também, juntamente com Michelle Zancarini-Fournel, o número 16 (2002) da mesma revista, com o tema L'Histoire des femmes em revues, France-Europe, fruto de um seminário organizado por ambas em Lyon, em dezembro de 2000, que reuniu diversas revistas européias. Especialista da história das mulheres do século XX, tem participado de vários eventos que tematizam as histórias das mulheres, publicado numerosos artigos e participado de inúmeras obras coletivas. Seu livro Écrire l'histoire des femmes1 1 THÉBAUD, 1998. é uma obra de extrema importância, não só para os/as historiadores/as, mas para todos/as que se interessam em conhecer os diferentes caminhos que a história das mulheres e o feminismo vêm trilhando. Dividido em três partes, o livro nos conduz a uma leitura sobre a história das mulheres, desde sua 'emergência' (ou sua afirmação como um novo 'objeto-sujeito') até suas diferentes fases, e discute o conceito de 'gênero'.

Mas a obra que tem levado as reflexões de Françoise para diferentes países é outra. Faz parte da coleção dirigida por Georges Duby e Michelle Perrot, História das mulheres no Ocidente, em que ela organizou o volume 5,2 2 THÉBAUD, 1995. que enfoca o século XX. Nessa obra, além de apresentar diferentes temáticas ("A nacionalização das mulheres"; "Mulheres, criação e representação"; "As grandes mutações do século"; e "Desafios"), a autora aborda inúmeras questões que permearam as histórias das mulheres no decorrer da Primeira Guerra Mundial.

Historiadora atenta aos debates históricos que tematizam as relações sociais entre homens e mulheres, Françoise, entre outros trabalhos, contribuiu em obras coletivas, como por exemplo Un siècle d'antiféminisme3 3 Christine BARD e THÉBAUD, 1999. e L'histoire sans les femmes est-elle possible?4 4 Keith McCLELLAND e THÉBAUD, 1998. Tem diversos artigos publicados, dentro e fora da França. No último número da REF (v. 10, n. 2, 2002), participou do "Dossiê Parto" com o artigo "A medicalização do parto e suas conseqüências: o exemplo da França no período entre as duas guerras".

Foi durante o colóquio internacional "Histoire Orale, Histoire des Femmes, Mémoire des Femmes: Pratiques et Débats d'Hier et d'Aujourd'hui", organizado por Françoise, na Universidade de Avignon/França, em março de 2001, que surgiu a idéia de realizar com ela uma entrevista para a REF. Várias questões impossibilitaram a sua realização naquele momento, mas, quando esteve em Florianópolis participando do "Encontro Internacional Fazendo Gênero V - Feminismo como Política", nos concedeu esta entrevista.

Janine Gomes da Silva: Gostaria que você falasse de sua trajetória intelectual, seu campo de pesquisa e como você encontrou o feminismo e a história das mulheres, ou seja, como você se tornou feminista e como descobriu a história das mulheres.

Françoise Thébaud: Trata-se, sem dúvida, de um problema de geração. Eu nasci em 1952 e estava no penúltimo ano do ensino médio quando dos acontecimentos sociais da primavera de 1968 que sensibilizaram muito os estudantes franceses, tanto os universitários como os do ensino médio, e me trouxeram uma primeira consciência política. A partir de 1969/1970, fui fazer meus estudos universitários na região parisiense. Eu era um pouco politizada, e me sentia próxima da esquerda sindicalizada. Depois encontrei também o feminismo, mas não participei do acontecimento fundador na França daquilo que os jornalistas vão chamar de movimento de liberação das mulheres (MLF): no final de agosto de 1960 foram depositadas flores sobre o túmulo do soldado desconhecido no Arco do Triunfo, e com as flores havia uma fita onde estava escrito "à mais desconhecida que o soldado, sua mulher". Depois eu participei diretamente ou indiretamente de todas as manifestações do movimento, notadamente no que diz respeito ao direito à contracepção e ao aborto, sem estar realmente no cerne do feminismo da época, porque eu era muito jovem. A liderança histórica do feminismo na França é feita por pessoas da primeira geração do baby-boom do pós-segunda guerra, nascidas entre 1945 e 1949.

Por que eu estudei a história das mulheres? Aqui também se trata de um fenômeno de geração e de encontros. Eu estava nos cursos preparatórios de acesso à universidade (Grandes écoles5 5 Estabelecimentos de ensino de nível superior. (Nota da tradutora.) ) e ingressei na Escola Normal Superior de Fontenay-aux-Roses. Era necessário escolher uma universidade depois do terceiro ano na escola, chamado na França de Licença; eu tinha ouvido dizer que Paris VII era uma universidade intelectualmente muito aberta e então quis estudar ali, enquanto que o natural seria ter escolhido a Sorbonne. Fui para a Universidade Paris VII e encontrei Michelle Perrot. Eu fazia parte do grupo de suas primeiras estudantes do último ano de faculdade no ano em que ela ministrou o famoso curso "As mulheres têm uma história?". Estávamos em 1973 e nesse ano ela também apresentou seus primeiros temas de pesquisa para o trabalho de conclusão de curso em história das mulheres. Isso me entusiasmou, mas, como eu estava também um pouco engajada na esquerda, eu queria um tema que englobasse tanto a história operária quanto a história das mulheres. Foi por isso que trabalhei com o tema das operárias das usinas de guerra na região parisiense durante a Primeira Guerra Mundial, as quais substituíam os homens mobilizados nos campos de batalha.

JGS: Mencionando as temáticas desenvolvidas pela história das mulheres na França no livro Escrever a história das mulheres, você ressalta que os temas dominantes são ligados ao trabalho e à família e que só, recentemente, questões ligadas à sexualidade estão sendo problematizadas. Em maio de 2000 você veio ao Brasil e apresentou um trabalho muito interessante intitulado "A política de incentivo à natalidade na França no século XX".6 6 Trabalho apresentado no Encontro Internacional Franco-Brasileiro - O corpo das mulheres, realizado na UFMG, em Belo Horizonte. O título do trabalho em francês é "La politique nataliste en France au Xx ème siècle - une contrainte par corps". Contrainte par corps é o direito que o credor tem de mandar prender seu devedor. (N. T.) Nessa ocasião, em que o corpo das mulheres foi tematizado por profissionais franceses, diferentes pontos foram também apresentados. Você já pode verificar um maior interesse das pesquisas francesas por temáticas ligadas à sexualidade?

FT: Eu vou responder a esta pergunta, porém, antes vou continuar a falar um pouco de minha trajetória e de meus campos de pesquisa, porque na obra Escrever a história das mulheres não se tratava de fazer uma ego-história, ou seja, contar minha vida e minha trajetória intelectual. O objetivo era, sobretudo, assegurar uma transmissão intelectual desse campo de pesquisa porque temos sempre a impressão de que os resultados das pesquisas são esquecidos de geração a geração. Eu queria também dar uma coerência ao conjunto das pesquisas efetuadas e tentar um diálogo com os historiadores das outras especialidades que tinham um relativo desprezo pela história das mulheres. Dessa forma, a obra exprime um desejo de memória, de transmissão e de diálogo com o resto da história. Eu invoquei somente minha trajetória intelectual e sublinhei que ela me parecia bastante representativa no que diz respeito à trajetória da história das mulheres como um todo. Como eu contei antes, comecei com uma pesquisa coletiva (o que é pouco freqüente na França) de história das mulheres e de história operária. Quanto à história das mulheres, notadamente na história contemporânea, há em sua origem muitas ligações diretas com a história social. No que diz respeito à história operária, desenvolveu-se bastante durante os anos 1960 na França. Em seguida fiz uma tese de doutorado sobre a maternidade na França, no período entre guerras. Isso corresponde bem, ao que me parece, aos temas de pesquisa do que eu chamo "a história no feminino", que tende a suplantar uma história operária do trabalho feminino. Significa que durante o primeiro decênio de história das mulheres houve o objetivo de tornar visíveis as mulheres do passado; apareceram temas ligados à experiência das mulheres: o corpo, a maternidade, a vida cotidiana, a família.

Assim, tendo feito pesquisas sobre a maternidade, eu invoquei, logicamente, o tema da sexualidade, mas sem maiores aprofundamentos. A sexualidade foi, durante muito tempo (anos 1970 e anos 1980), pouco estudada ou, ao menos, pouco problematizada. Foram invocadas, sobretudo, as políticas de natalidade, a famosa lei francesa de 1920 que proíbe qualquer informação sobre a contracepção, mas não se trabalhou verdadeiramente a sexualidade como experiência de vida, como norma imposta ou como prática transgressiva. No entanto, nos anos 1990 isso começou a ser feito, notadamente com a tese de Anne-Marie Sohn, que trata da vida privada das mulheres do final do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, e que se baseia nos arquivos judiciários. Trata-se então de um primeiro trabalho sobre a vida privada em geral, mas com um componente de pesquisa sobre a sexualidade. Há cinco anos se manifesta na França um desejo de promover uma história da sexualidade. Por exemplo, temos Sylvie Chaperon, que prepara uma habilitação7 7 A Habilitation é um concurso que habilita a pessoa a dar aulas na univesidade. (N. T.) sobre esse tema. Ela começou a se perguntar sobre o discurso dos sexólogos para saber como a sexologia americana chegou à França, como ela foi recebida e sua distância em relação aos sexólogos franceses.

Vale acrescentar que desde o começo houve historiadoras dos anos 1970 que trabalharam de maneira talvez um pouco marginal em relação às outras, sobre a homossexualidade, notadamente Marie-Jobonnet, cuja tese sobre as relações amorosas entre mulheres foi a primeira que Michelle Perrot orientou e que foi defendida no campo da história das mulheres em 1979. Recentemente, em 1998, foi defendida uma nova tese sobre a homossexualidade na França, na Inglaterra e na Alemanha de entre-guerras. A sexualidade é então um tema que emerge (a construção das categorias da sexualidade, as práticas sexuais, a homossexualidade, a experiência das mulheres entre elas, o discurso da sexologia) na história, mas também na sociologia. Citemos o trabalho de Michel Bozon e a recente enquete de Janine Mossuz Lavau, que talvez seja conhecida no Brasil. Janine Mossuz Lavau é uma mulher extremamente interessante: primeira politóloga a ter colocado para a Ciência Política a questão das mulheres, ela acabou de publicar uma grande enquete sobre a sexualidade dos franceses e das francesas hoje. Recentemente falou-se muito desse livro na França.

JGS: Você trabalha especialmente com o período do entre-guerras, a questão da maternidade, da família, e você relata como, no caso da França, a maternidade era colocada, pois a ideologia dominante entre as duas guerras mundiais exigia que as mulheres fossem mães independentemente de qualquer coisa. Em um texto intitulado "Maternidade e família entre as duas guerras: ideologia e política familiar", você faz referência a um decreto de 1982 que tem por objetivo estimular a maternidade. Você poderia falar da política de natalidade na França e como os movimentos feministas estão se posicionando diante das políticas atuais?

FT: A natalidade na França é uma política que atravessa uma grande parte do século XX em reação a um comportamento malthusiano dos franceses. A França, na Europa, foi o primeiro país malthusiano, cronologicamente e pela amplitude do fenômeno. Desde a segunda metade do século XIX, os franceses restringem os nascimentos e geram cada vez menos crianças, diferentemente de seus vizinhos europeus, notadamente da Alemanha, considerada por muito tempo como a inimiga hereditária da França (houve três guerras franco-alemãs: a de 1870, a de 1914-18, e a de 1939-45). Em comparação com a Alemanha, onde nasciam muitas crianças e que exportava uma parte de sua população para os países novos como o Brasil, por exemplo, a França conheceu rapidamente, desde o fim do século XIX, uma estagnação de sua população. Globalmente, se quisermos simplificar, podemos dizer que, entre o fim do século XIX e 1945, a população francesa quase não aumentou; ela ficou estável em torno de 40, 41 milhões de habitantes, enquanto que a população de seus vizinhos continuou a aumentar.

Como reação a isso, nascem associações que militam pela adoção, por parte dos poderes públicos, de uma política que favorecesse os nascimentos. Eu estudei em minha tese o mais conhecido desses movimentos de natalidade: a Aliança Nacional pelo Crescimento da População Francesa, fundada em 1896. Essas associações são, no princípio, um pequeno grupo de pessoas que não são ouvidas pelos poderes públicos antes da Primeira Guerra Mundial. Antes da guerra de 1914, os poderes públicos são bastante indiferentes e não se preocupam com o problema demográfico. Mas a Primeira Guerra Mundial, que causou à França muitas mortes (1,5 milhão de mortes e um déficit de nascimentos), deu credibilidade às teses dos apoiadores da natalidade junto aos poderes públicos, que vão progressivamente erigir, conforme os desejos das associações, uma política de natalidade que é feita tanto de repressão como de incitação. Primeiramente de repressão, pois para que haja crianças é necessário impedir que os casais utilizem os meios existentes de controle de natalidade. Se não se pode fazer nada contra a retirada, a venda de qualquer meio contraceptivo (como o diafragma, por exemplo) é interditada nas farmácias, assim como é interditada qualquer informação sobre o controle de natalidade, e perseguido o aborto. Trata-se das famosas leis de 1920 e de 1923, que atravessarão uma grande parte do século XX, visto que serão revogadas, ao menos parcialmente - e voltarei ao tema depois -, somente em 1967, no tocante à contracepção, e em 1975 e 1979, no que diz respeito à interrupção da gravidez. Trata-se realmente de leis que coagem e que atravessam quase seis decênios. A esse aspecto repressivo se acrescenta um aspecto incitativo, ou seja, as associações pró-natalidade pedem aos poderes públicos - que progressivamente aceitarão tal pedido - para votar leis que incitem os casais a fazerem filhos, através de medidas honoríficas (as medalhas da mãe, os monumentos para as mães) ou de incentivos financeiros, notadamente abonos familiares. Quanto a esses incentivos, a França é um país pioneiro na Europa por causa da adoção, em 1932, de uma lei que torna obrigatórios os abonos familiares. Paralelamente, ela vai também tentar conservar as crianças que são concebidas, através de uma política de ajuda médica e social para a maternidade. Trabalha-se, então, com três idéias: repressão do aborto e da contracepção; incitação financeira para que os casais façam filhos; proteção às crianças concebidas e nascidas, através de uma política médico-social de proteção maternal e infantil.

JGS: E, atualmente, como anda o debate a respeito das novas tecnologias reprodutivas?

FT: Vou primeiro falar um pouco do decreto de 1982, que você acabou de mencionar. Trata-se de um decreto que se parece muito com um decreto de 1920 que instituía a medalha da família francesa, ou seja, em 1982 sente-se ainda a necessidade de adotar um decreto que recrie a medalha da família francesa: a única diferença é que o número de filhos requisitado é menos importante do que no decreto de 1920. Por que isso, se as leis que permitiam aos casais escolher e às mulheres controlar seu corpo já tinham sido votadas? Creio que seja porque a política pró-natalidade se baseou muito nas elites políticas francesas do século XX. Essas elites demoraram muito para se convencer (isso não aconteceu antes de 1920), mas depois, até os anos 1970/1980, podemos considerá-las pró-natalidade visto entenderem que uma forte população é sinal de um grande país.

Hoje, eu diria que, globalmente, essa ideologia incentivadora da natalidade vem a ser muito menos aceita. Entre os homens políticos mais velhos ela continua importante, até mesmo para François Mitterand, homem de esquerda que permitiu a alternância de 1981, e que foi o primeiro na campanha eleitoral de 1965 a colocar publicamente a questão da contracepção, propondo a adoção de uma lei que permitisse esse recurso, e tudo isso sob o regime das leis de 1920 e 1923. Até mesmo François Mitterand, que tinha uma política favorável ao direito à contracepção, mantinha uma posição pró-natalidade, ou ao menos profundamente familiarista. Quando ocorreu um colóquio em 1999 sobre os primeiros anos do governo Mitterand (1981-1984), eu tive acesso aos arquivos do palácio do governo para compreender qual tinha sido a política do governo e do Ministério dos Direitos das Mulheres nesses primeiros anos de alternância política. Yvette Roudy era então a primeira pessoa a receber o título de ministro dos Direitos das Mulheres e também a primeira que quis promover uma política realmente favorável a esses direitos. Eu pude constatar nesses arquivos (que voltaram a ser inacessíveis) que havia um conflito entre as concepções familiaristas do governo e a posição de Yvette Roudi (ressalte-se que na França o presidente cuida de tudo, ele quer controlar tudo). Um exemplo disso foi o fato de o governo ter criado muitos obstáculos no que concerne ao reembolso da interrupção da gravidez pelo sistema público de saúde, pois François Mitterand era contrário à posição de Yvette Roudy, a ministra dos Direitos das Mulheres que considerava tal medida como prioritária. Ela obteve ganho de causa, mas com dificuldade.

Hoje a situação das francesas é relativamente boa no que diz respeito ao acesso à contracepção, que é autorizada desde a lei de dezembro de 1967, mesmo que os decretos de aplicação sejam do começo dos anos 1970. As associações feministas colocam, no entanto, dois problemas. Primeiramente, a questão da informação das menores, o que permitiu, em 2002 (antes da derrota da esquerda nas eleições), uma nova campanha televisiva de informação sobre a contracepção, réplica da campanha organizada em 1982 por Yvette Roudy. O segundo problema diz respeito aos altos custos das pílulas da nova geração - pílulas com pouca dose de hormônio -, que, além de serem caras, não são normalmente reembolsadas pelo sistema de saúde pública.

Quanto ao aborto, depois de muitos anos de mobilização feminista, também obtivemos uma lei relativamente equilibrada, fruto do trabalho de uma outra mulher, componente do corpo ministerial de um governo de direita (1974-1975), mas que defendia os direitos das mulheres, a igualdade de todas as mulheres diante dessa questão. Simone Veil, talvez conhecida no Brasil, teve muitas dificuldades no parlamento para propor essa lei e para votá-la com o apoio da esquerda de então. 'Sua' lei era relativamente equilibrada: ela previa um procedimento de informação (consulta a psicólogo, etc.) bastante longo, medidas que em certos casos eram dissuasivas, mas ela deixava em última instância a decisão para a mulher, considerada como dona de seu corpo. Paralelamente, a lei previa uma cláusula de consciência para os médicos, que podiam assim recusar a praticar abortos. O problema consistia em equilibrar a consciência reivindicada pelos médicos e a reivindicação dos direitos das mulheres em controlar seu corpo. Na prática a aplicação foi mais complicada, visto que em algumas pequenas cidades do interior era comum que nenhum médico quisesse praticar abortos, o que obrigava as mulheres a procurar em outros lugares a solução do problema. Desde a adoção dessa lei, em torno de 200 mil abortos anualmente são legalmente praticados.

Uma mobilização dos anos 1990 permitiu o aumento do prazo legal, que passou de 12 semanas de amenorréia (ou seja, 10 semanas de gravidez, prazo curto na Europa) a 14 semanas. No entanto, essa modificação reativou na França o debate sobre o aborto (como se a questão não tivesse sido definida pela lei) e fez renascer a oposição entre uma França extremamente hostil (França de direita tradicional e católica) e uma França favorável que reivindica melhoramentos. Yvette Roudy deparou-se com essa França quando quis propor o reembolso do aborto. Nesse sentido, eu vi nos arquivos do governo cartas de injúria, telegramas enviados a François Mitterand pedindo que ele não desse apoio a Yvette Roudy; em um deles escrito o seguinte: "o aborto é um crime perfeito". No ano passado, quando se falou em aumento do prazo (acréscimo de duas semanas), essa França de direita colocou-se novamente em oposição à lei.

Um outro problema diz respeito aos movimentos antiaborto que se organizaram recentemente imitando um pouco a América do Norte. Há poucos movimentos, mas eles são muito ativos e intervêm de maneira extremamente forte, por exemplo, com manifestações em frente às clínicas, invadindo a sala de operação ou enviando cartas de ameaça aos médicos que praticam o aborto, sem chegar, no entanto, ao assassinato (eu creio que nos Estados Unidos tenha havido assassinatos de médicos que praticavam o aborto). As feministas que reagiram obtiveram uma lei que reprimia esses movimentos, qualificando-os de delito de entrave à lei do livre direito ao aborto nas condições ali delimitadas. No geral, a situação não é muito ruim, mas se mantém, no entanto, difícil para algumas jovens que não estão bem a par da lei e deixam passar o prazo legal, sendo então obrigadas a ir para o exterior fazer o aborto. Às vezes é também difícil para as menores que não querem falar desses problemas com os seus pais, mas globalmente as francesas estão bem amparadas no que diz respeito a tal questão, sobretudo se tomarmos em consideração o fato de que, paralelamente, há na França um cuidado especial quanto à proteção da maternidade.

JGS: E o debate sobre as novas tecnologias reprodutivas?

FT: Talvez eu esteja menos a par desse debate; é verdade que se trata de uma questão que gera muita divisão, notadamente entre as feministas. Não há uma posição única das feministas sobre isso. Algumas consideram que é um progresso para as mulheres, que permite a realização de um direito à maternidade e da luta contra a esterilidade. Alguns dizem que esse pode ser um meio para as homossexuais terem filhos como elas desejam, ou até, daqui a um certo tempo, que isso pode ser um meio de exteriorizar a gravidez do corpo das mulheres para liberá-las da maternidade. As que são contra denunciam, sobretudo, o domínio do corpo médico sobre o ventre das mulheres e que essas técnicas desumanizam a maternidade.

JGS: Eu perguntei porque no Brasil esse é um tema também problematizado por historiadores.

FT: Na França, há pouquíssimas pesquisas de historiadores a esse respeito; há mais trabalhos feitos por sociólogos ou juristas. Leis de bioética foram adotadas em 1984 e estão sendo atualizadas, após serem consultados os conselhos consultivos que refletem sobre o tema. Parece-me que as associações feministas não estão muito posicionadas a tal respeito, ou talvez menos que no Brasil, onde eu tive a impressão, notadamente no colóquio de Belo Horizonte em 2000, de que havia por parte das feministas um grande medo referente ao domínio dos médicos ou do Estado sobre o corpo das mulheres. Na França consideramos que estamos liberadas do domínio do Estado, visto que obtivemos o direito à contracepção e ao aborto. Penso que nós tememos menos o domínio da ciência sobre o corpo das mulheres porque a consideramos, sobretudo, como uma fonte de progresso: por exemplo, a maioria das feministas considera que os tratamentos substitutivos da menopausa são uma boa coisa para as mulheres, enquanto que eu imagino (talvez erroneamente) que no Brasil esse tema gera controvérsia.

JGS: Como é atualmente o movimento feminista na França e quais são os grupos mais engajados e suas principais reivindicações?

FT: A principal reivindicação dos últimos anos, a da paridade na política, acabou de ser satisfeita juridicamente. Podemos esboçar a seguinte cronologia do movimento feminista francês: ele era muito forte nos anos 1970, ficou um pouco desmobilizado depois da adoção definitiva da lei sobre o aborto em 1979 (a lei proposta por Simone Veil era, na verdade, uma lei experimental com prazo de cinco anos e isso é um fenômeno muito raro), e nos anos 1980 esse movimento deu muito pouco o que falar. Mas podemos falar da renovação do movimento feminista nos anos 1990, em torno da reivindicação da paridade homem/mulher na vida política; paridade significa uma igual representação dos homens e das mulheres nas assembléias políticas. O feminismo da segunda fase tinha deixado um pouco de lado, não o político, visto que o feminismo dos anos 1970 falava de "privado e político" e que essa politização do privado permitiu mudar muitas coisas, mas a política internacional, ou seja, os partidos ou o parlamento. O Movimento de Liberação das Mulheres dos anos 1970 não se preocupava nem um pouco com o parlamento; achava que isso não interessava e que não era ali que as coisas aconteciam. Ele não tinha percebido ou denunciado o fato segundo o qual na França havia uma fraquíssima representação das mulheres nas assembléias políticas. Isso começou a aparecer na década de 1990 (a partir de 1989 começou-se a falar de democracia paritária nas instâncias européias), particularmente na França, que estava em penúltima posição na Europa no que diz respeito à quantidade de mulheres na Assembléia Nacional. Até 1997 (quando a esquerda, ou melhor, o partido socialista, se engajou para promover um maior número de mulheres), a porcentagem girava em torno de 5%, 6%, e colocava a França um pouquinho à frente da Grécia, mas muito atrás dos Estados escandinavos que tinham 40%, ou mais, de mulheres deputadas. A França ficava quase na última posição na Europa, e esse escândalo da sub-representação das mulheres na política estourou nos anos 1990 e mobilizou numerosas associações que formaram então uma rede pela paridade, com uma centena de associações mobilizadas para isso.

A mobilização foi vitoriosa e conduziu a uma modificação da Constituição em seu artigo 3, que diz respeito à soberania nacional. Não foi colocado na Constituição o termo 'paridade' porque muitos juristas e muitos políticos estavam reticentes, e ficou inscrito o seguinte: "a lei favorece o acesso igual de homens e de mulheres nas assembléias políticas". Essa modificação constitucional ocorrida em 1999 foi completada pela adoção de uma lei em junho de 2000, que previu concretamente o meio de tornar as assembléias mais paritárias. Funcionou muito bem para as eleições municipais que ocorreram em 2001, e agora 47% dos conselheiros municipais são mulheres nos municípios de mais de 3.500 habitantes. Já nas eleições para senador, de setembro de 2001, não funcionou, pois o mecanismo da lei não foi aplicado pelos senadores. Também sobre as últimas eleições legislativas (primavera de 2002), para as quais a lei não tem um grande poder de obrigação, o mecanismo legal não funcionou. Para os sufrágios de lista é fácil favorecer a paridade. Por exemplo, nas eleições municipais, foi determinado que todas as listas deveriam ter o mesmo número de homens e de mulheres a cada seis lugares: os três homens e as três mulheres podem ser colocados em qualquer ordem, e dessa forma no final obtém-se quase a metade de mulheres, enquanto que nas eleições 'uninominais', em que em uma circunscrição só um indivíduo é eleito, como no caso das legislativas, foram somente previstas penalidades financeiras para os partidos que não apresentassem uma metade de candidatas femininas. Nas últimas eleições percebeu-se que alguns partidos preferiam pagar a apresentar candidatas, para não eliminar um ex-eleito ou para obter mais lugares, o que garante um melhor financiamento público do partido. Assim, a lei não deixa de ser aplicada, visto que as penalidades financeiras são aplicadas, mas o objetivo da lei não foi atingido.

Deve-se ressaltar que essa reivindicação de paridade dividiu o feminismo, assim como dividiu os partidos políticos. Ou seja, nem todas as feministas eram favoráveis à paridade. É bastante complicado resumir. Todas as feministas denunciavam a sub- representação das mulheres, mas uma parte não queria que a paridade se tornasse legal nem que a Constituição fosse modificada. Quais eram as argumentações dos respectivos grupos? Todas diziam: "a igualdade sexual dos direitos é fixada no Preâmbulo da Constituição, mas a França está muito atrasada; é necessário encontrar meios concretos para que haja mais representantes mulheres nas assembléias políticas (por exemplo, interdição do acúmulo de mandatos, estatuto do eleito)". Algumas denunciavam o universalismo abstrato e reivindicavam uma modificação da Constituição, porém outras diziam: "se vocês modificarem a Constituição, se fizerem leis falando da paridade, vocês reconhecem que há dois sexos biológicos diferentes, e isso significa biologizar, naturalizar os sexos". Esse medo de fazer das mulheres e dos homens categorias biológicas era expresso por aquelas que defendem o universalismo e temem toda forma comunitária. As partidárias da paridade respondiam: "os homens e as mulheres não são categorias, mas devemos simplesmente constatar que a humanidade é bissexuada". O debate sobre a paridade fez ressurgir o debate entre a diferença e o universalismo, mas fez também ressurgir a noção de 'mixidade', ou seja, a consciência de que a humanidade é composta de homens e de mulheres, que ela é bissexuada. Foram anos extremamente interessantes, tanto no que diz respeito ao debate quanto aos resultados, visto que agora temos essa famosa lei. Mesmo que a lei tenha sido desvirtuada, ela tem muitas conseqüências na esfera política e em outras esferas também. A reivindicação de paridade começa a surgir em outros setores da vida social; começa a se dizer que seria necessária a paridade profissional, a paridade doméstica, a paridade nas ciências, ou seja, isso cria a possibilidade de discutir novamente todos os problemas ligados ao lugar das mulheres no trabalho e na família. Eu penso ser isso uma forma de combate, e é interessante que a Constituição tenha sido modificada e que uma lei tenha sido votada nesse sentido.

JGS: Isso me lembra o grupo do qual você participa na França, a Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Gênero, que é um grupo muito importante na França.

FT: Antes de tocar nesse assunto, vou continuar a falar um pouco sobre o feminismo atual na França. A paridade era o seu combate dos anos 1990, mas o feminismo continua a ser muito vigilante no tocante à questão do aborto e da contracepção para que não haja um retrocesso, e ele obteve, como eu já lhe disse, o prolongamento do prazo legal para poder praticar uma interrupção de gravidez. Uma outra grande temática do feminismo dos anos 1990 é a questão das violências cometidas contra as mulheres, em todas as situações, notadamente nas guerras, visto que a guerra reapareceu na Europa dos anos 1990, sobretudo na ex-Iugoslávia. Os estupros e as violências de guerra foram denunciados, mas também as violências mais 'comuns' que ocorrem nas ruas e nas famílias de nosso país, que está em paz. As feministas quiseram sensibilizar os poderes públicos, e a esquerda tentou fazer enquetes e tomar medidas a respeito da violência doméstica.

O feminismo atual, em suas gerações mais jovens, é diferente do feminismo dos anos 1970. Uma última característica desse feminismo atual é a aceitação da 'mixidade'. O que se quer construir é uma melhor sociedade mista. Na concepção atual do feminismo, os direitos das mulheres e o seu lugar na sociedade não passam por uma separação entre homens e mulheres; pelo contrário, elas buscam o apoio dos homens progressistas e os aceitam em seu movimento.

JGS: E como se chama sua associação?

FT: Eu fundei em 2000 uma associação que se chama Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Gênero - Mnémosyne. Podemos chamá-la de feminista, mas é verdade que na França, mais que no Brasil, separamos um pouco o que é acadêmico do político, ou seja, eu me considero feminista mas declaro que trabalho com a história das mulheres e não com 'história feminista', termo que tiraria a legitimidade de nosso trabalho. A Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Gênero, que tem como subtítulo "Mnémosyne" - que é a mãe das musas, a mãe de Clio, a musa da história -, é uma associação cujo objetivo principal é obter, em uma França pouco acolhedora, um melhor reconhecimento intelectual e institucional da história das mulheres e do gênero. Pode-se dizer que se trata de feminismo acadêmico, porque para nós é importante que a história das mulheres e do gênero seja reconhecida na universidade, que as pesquisadoras consigam espaço, dinheiro, bolsas. O resultado de suas pesquisas será difundido na universidade mas também no ensino médio; assim haverá uma difusão global na sociedade das reflexões e dos resultados da pesquisa sustentada por questionamentos feministas.

JGS: Em seu livro Escrever a história das mulheres, com prefácio de Alain Corbin, você faz uma análise das questões que dizem respeito à história das mulheres dos anos 1960 até o período atual, discutindo uma vasta bibliografia de autores franceses e estrangeiros. Comente o livro, a metodologia utilizada, as referências teóricas, já que não há tradução no Brasil e é uma obra muito importante.

FT: Sim, eu estava dizendo há pouco que o que eu quis fazer ao escrever esse livro engloba dois objetivos principais. Por um lado eu queria assegurar a transmissão desse campo de pesquisa aos estudantes mais jovens. Como a história das mulheres e do gênero é relativamente pouco ensinada na França, visto ser ela mal institucionalizada, o que se adquiriu com as pesquisas precedentes, em sua grande maioria, não foi passado aos estudantes mais jovens. Eu gostaria de explicar um pouco a aventura da história das mulheres, por que nos lançamos nessa aventura, como ela foi vivida, realizada, quais tinham sido as questões em torno da escrita da história das mulheres, como apareceu o conceito de gênero, quais tinham sido as temáticas de pesquisa. Havia então a vontade de transmitir a memória de uma aventura intelectual para que ela continuasse. Havia também um segundo objetivo através desse livro, que era fazer com que aqueles que ignoram e às vezes até desprezam essa história das mulheres e do gênero a compreendessem, o que ela era e o que ela tinha a dizer para a história geral e para outras especialidades. Dessa forma, havia um desejo de explicação, de transparência, de forçar um pouco o diálogo para adquirir uma certa legitimidade e tentar obter a institucionalização. No que me diz respeito havia o desejo de compreender também como tinha acontecido a aventura da história das mulheres em outros países, notadamente nos Estados Unidos, dos quais recebíamos bastante informação. Joan Scott não é a única historiadora americana que trabalha com a história das mulheres, ao contrário, mas são os seus trabalhos que chegaram até nós, em inglês ou em francês, com posicionamentos às vezes um pouco afastados das abordagens francesas empíricas da história social. Assim, eu queria também compreender isso e fazer com que os leitores franceses compreendessem também. Essa é a razão pela qual eu escrevi tal livro.

A metodologia utilizada é a seguinte: eu tentei escrever uma história intelectual da história das mulheres e do gênero tendo como fontes o essencial dos trabalhos que tinham sido publicados e dos colóquios de reflexão. Tentei recensear uma vasta bibliografia, dar uma certa coerência a todas as pesquisas e colocá-las em perspectiva com as pesquisas estrangeiras para ver as temáticas privilegiadas na França e em outros lugares.

JGS: Gostei muito do livro, apesar das dificuldades ligadas às numerosas referências e aos trabalhos franceses, muitos dos quais não conhecidos no Brasil.

FT: O livro faz, efetivamente, referência a muitos trabalhos franceses. Ao mesmo tempo, é necessário sublinhar que tentei fazer uma narrativa da aventura intelectual da história das mulheres e encontrar uma coerência. Talvez um dia outras pessoas possam expor uma outra forma de coerência nessa aventura da história das mulheres. No momento, penso que é um livro interessante para os estudantes, pois tenta mostrar a eles o que foi essa aventura intelectual.

JGS: Gostaria de saber sua opinião sobre a masculinidade. Como estão esses estudos na França?

FT: Sim, isso está começando. A história das mulheres e do gênero continua a se desenvolver na França, apesar das dificuldades de reconhecimento intelectual e mais ainda institucional. Trata-se de um campo que se expande, que está atento aos trabalhos estrangeiros e explora novas temáticas, notadamente a da masculinidade. A questão da sexualidade é também uma questão emergente, como a da consumação ou do gênero da nação. Por outro lado, há uns dez anos, notadamente depois da publicação da coleção em cinco volumes da História das mulheres no Ocidente, os historiadores franceses não podem mais dizer que esse campo não existe, e podemos afirmar que o reconhecimento intelectual progrediu. Resta ainda o problema da institucionalização. Eu penso que ainda levará um certo tempo para que tal institucionalização ocorra, e é justamente esse o objetivo da Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Gênero.

JGS: No que concerne às relações masculino-feminino durante o período da grande guerra você menciona o seguinte: "A questão não é mais de saber se a guerra afetou de maneira diferente os sexos, mas como ela redefine as relações masculino-feminino no plano real ou no plano simbólico". Muitas vezes, ao fazer referência a Joan Scott, você sublinha a contribuição dos americanos quanto aos conceitos de gênero (ou gender system). Parece-me que seu trabalho está muito próximo dessa perspectiva, no entanto, podemos perceber um maior uso da expressão 'história das mulheres'. Qual é a influência do conceito de gênero como categoria de análise histórica junto aos pesquisadores franceses?

FT: É verdade que a expressão 'história das mulheres' foi durante muito tempo, aos meus olhos, uma expressão consensual, englobando para mim toda a aventura intelectual da história das mulheres, todas as maneiras de escrever a história das mulheres há 30 anos, ou seja, a história no feminino dos anos 1970, a evolução para uma história mais relacional de gênero. 'História das mulheres' foi um termo bastante englobador durante muito tempo, e teve muita dificuldade em se adaptar. Nos anos 1980 começamos a fazer gênero na França sem o dizer, sem reivindicar o termo. É necessário diferenciar a apropriação do conceito, que se fez sem dúvida depois das americanas no fim dos anos 1980, e a aceitação pela língua francesa e pelos historiadores franceses da palavra 'gênero', o que foi muito mais tardio, no mínimo dez anos depois.

Na coleção História das mulheres no Ocidente, o objetivo era fazer uma história relacional. Alguns fizeram uma história das mulheres marcantemente feminina; outros fizeram uma história mais relacional, mais ligada a gênero, sem porém utilizar o termo. Faz pouco tempo que esse termo começou a ser utilizado na França, em títulos de colóquio como o de Rennes, onde esteve Joana Maria Pedro ("O gênero face às mutações da Idade Média até os nossos dias").

JGS: Especialmente sobre essa relação com as americanas, como é a discussão da questão epistemológica, sobretudo no tocante ao pós-feminismo?

FT: A França, diante da América, está sempre em uma relação muito complicada de fascinação-repulsão. Por um lado os americanos nos fascinam, acrescentam muito, mas ao mesmo tempo existe na França um certo antiamericanismo muito forte na cultura política, notadamente na esquerda francesa, e assim sendo também um pouco no feminismo francês.

Creio que o feminismo francês, assim como a disciplina de história na França, tem muito menos teóricos que o feminismo americano ou que a disciplina histórica americana, onde a teoria é valorizada. Na França a história tornou-se uma disciplina muito empírica. A história das mulheres, e talvez eu, particularmente, tento compreender o que se faz nos Estados Unidos, o que se debate, e nós tentamos traduzir um pouco para a França o que isso quer dizer e o que pode nos acrescentar. Mas quando a teoria chega ao ponto de negar a realidade, existe na França uma reticência em ir até o fim desse pós-estruturalismo. Minha posição é tentar compreender o que eles querem dizer, ver se existe um interesse nos modos de interpretação da história, e eu acho que Joan Scott acrescentou muito a esse respeito, notadamente ao nos mostrar uma outra maneira de criticar as fontes, de prestar atenção nas práticas discursivas, de tornar complexa a categoria de gênero. Mas talvez eu não a siga até o fim em sua teorização nesse pós-feminismo.

JGS: E a questão das identidades nacionais? Você organizou com Yolande Cohen o colóquio "Feminismos e identidades nacionais", que conta com a contribuição de professores de diferentes universidades francesas e com a colaboração da análise de outros países. Você considera que há uma especificidade nacional para o feminismo?

FT: Era este o questionamento do colóquio, tentar colocar a seguinte questão: existe uma ligação dos feminismos com as culturas políticas nacionais? Eu acho que o feminismo é tanto um movimento transnacional (podemos observar uma cultura feminista transnacional, existem intercâmbios feministas, existem Internacionais feministas) quanto um movimento fortemente inserido no contexto nacional: as associações são estudadas em seus contextos nacionais, podemos ver concretamente as ligações, as formas que tomam os feminismos em cada país diferente, e essas diferenças são ligadas às culturas políticas nacionais. Por exemplo, nesse colóquio houve a interessante contribuição de Françoise Picq sobre o Movimento de Liberação das Mulheres (MLF), em que ela evidenciava as características francesas. Apesar de se tratar de um movimento de liberação como o Women's Lib americano, o MLF tinha características francesas: seu caráter revolucionário, sua ligação com o esquerdismo, sua recusa em lidar com o Estado, o que teve como conseqüência um feminismo às vezes pouco pragmático. Hoje isso mudou. Eu poderia ter acrescentado agora pouco, ao falar do feminismo, que o feminismo francês não tem mais medo de ser reformista: em um contexto pós-moderno de uma certa morte das ideologias, o feminismo é ainda uma grande idéia de afirmação dos direitos das mulheres, de liberação das mulheres, mas a maioria das feministas aceita posturas reformistas (considerar o contexto, denunciar tal discriminação, pedir ao Estado para intervir e fazer uma ou outra coisa, ou intervir elas mesmas na ação cotidiana). Há hoje uma certa aceitação do reformismo que não havia nos anos 1970. Isso talvez também fosse uma das características francesas.

JGS: É difícil ter um feminismo transnacional e nacional?

FT: Há várias décadas existem essas grandes conferências internacionais, das quais podemos criticar o conteúdo, mas que têm um papel na difusão internacional de uma certa concepção dos direitos das mulheres.

JGS: A revista CLIO, História, Mulheres e Sociedades, que você dirige, porta-se como um espaço de debate, ou de pesquisas diversificadas, recebendo a contribuição de historiadores e de historiadoras de diferentes países. Como nasceu a revista, e quais são os seus objetivos?

FT: A revista CLIO nasceu em 1995. Originalmente se tratava de um projeto pessoal que se tornou imediatamente uma aventura coletiva. Nós somos hoje 11 no Comitê de redação.

Os objetivos da revista são múltiplos. O primeiro objetivo consiste em transmitir a memória da aventura intelectual da história das mulheres, abrir um espaço de expressão a esse campo de pesquisa, que era relativamente maltratado pelas outras revistas de história mais generalistas (por exemplo, durante muito tempo Les Annales, a mais célebre das revistas francesas). Por conta desse problema, havia uma enorme perda dos trabalhos. Criar uma revista era abrir um espaço de expressão para pesquisas, permitir também que outros historiadores lessem a história das mulheres e tornar conhecidos na França os trabalhos estrangeiros. Desde o começo traçamos como objetivo publicar um certo número de trabalhos estrangeiros. Eu não sei mais a porcentagem exata, mas o próximo número que será publicado no final de novembro, começo de dezembro, se chama "A história das mulheres em revistas - França/Europa", e é a publicação de uma mesa-redonda que Clio organizou em seu quinto aniversário, em dezembro de 2000, convidando as outras revistas européias de história das mulheres. Haverá nesse número uma análise do conteúdo dos 12 primeiros números de Clio, em que se ressalta a parte dos artigos escritos por homens, a parte da história nacional e das histórias estrangeiras, o peso dos autores estrangeiros. Já nos demos conta, por exemplo, de que não há muita coisa sobre a América Latina, mas isso será resolvido, pois publicaremos em breve um dossiê sobre o Brasil; há poucas coisas sobre a Ásia; e mesmo em relação à Europa, por exemplo, publicamos relativamente poucas coisas sobre a Alemanha. Mas, globalmente, nosso objetivo é tornar conhecidos trabalhos estrangeiros. Logicamente, é uma revista que só publica dois exemplares por ano, ou seja, 600 páginas anuais. Seria necessário ter mais força e energia para aumentar a periodicidade, mas no momento isso não está na ordem do dia.

No entanto, CLIO, Historia, Mulheres e Sociedades está indo bem: ela passou na prova dos primeiros anos, que são sempre difíceis; ela já está no exemplar número 16 e está começando a ser conhecida no exterior. Há ainda muitos pesquisadores franceses que não a conhecem mas, globalmente, é uma revista que vai bem e que vai em breve aderir a um site nacional de revistas de ciências humanas (revues.org).

JGS: Gostaria que falasse sobre o colóquio internacional organizado por você em Avignon, em 2001, cujo tema era a história oral e a história das mulheres. Como aconteceu essa discussão na França, e como você se posiciona em relação à existência, ou não, de uma memória especificamente feminina?

FT: Eu quis organizar o colóquio "História oral, história das mulheres, memória das mulheres" porque eu tinha a impressão de que a história oral, particularmente no que diz respeito à história das mulheres, tinha perdido um pouco a importância na França. Fez-se história das mulheres nos anos 1970 e 1980, mas depois ela foi um pouco esquecida. Houve uma espécie de declínio da história oral, que é também um campo marginalizado, como a história das mulheres e de gênero. Eu queria fazer ressurgir a história oral e observar mais de perto as ligações entre a história oral e a história das mulheres, pois me parece que originalmente tratava-se de dois campos, os quais, por um lado, nasceram mais ou menos no mesmo período e, por outro, apoiaram-se um no outro. Eu desejava também ligar a história oral e a história das mulheres a uma temática mais recente, que é a história da memória, sobre a qual a história das mulheres trabalhou relativamente pouco.

Com referência à questão de uma memória específica das mulheres, lembro-me dos debates dos anos 1970. Não sei muito bem o que eu diria hoje. É verdade que não acredito muito no fenômeno da memória específica de sexo ou de gênero. Percebemos, ao entrevistar mulheres, que suas referências temporais, ou que as referências temporais dos indivíduos, são sempre ligadas a suas experiências e à importância dada a esse ou àquele tipo de vivência. As mulheres, notadamente as que ficaram em casa durante toda a vida, têm referências temporais ligadas a suas maternidades, e isso pode ser considerado como uma das características da memória feminina. Ela desaparecerá quando todas as mulheres trabalharem fora? Não sei, porque a maternidade ainda é uma experiência importante para as mulheres. Mas me parece que falar de memória específica feminina ou masculina pode ir muito longe, e existe aí um risco de naturalização dos sexos. Eu penso que há memórias específicas de cada indivíduo em função de suas experiências vividas.

JGS: O que você pensa ser importante dizer para as pessoas, ou para as mulheres, em relação a seu trabalho atual? Quais são seus temas de pesquisa?

FT: Posso falar um pouco do que eu teria vontade de fazer. É verdade que, atualmente, na França eu tento fazer muitas coisas e agir para que a história das mulheres tenha um melhor estatuto, e isso me toma muita energia, às vezes um pouco em detrimento da pesquisa. Por um lado, empenho-me em publicar regularmente Clio, e por outro me ocupo da Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Gênero. Eu me situo também nos projetos de transmissão. É necessário dar meios à transmissão da história das mulheres. Por isso penso que seria também necessário fazer rapidamente - e talvez eu tente fazê-lo com outros, porque é um grande trabalho - coletâneas de textos (fontes) de história das mulheres, porque na educação francesa utiliza-se muito o exercício do comentário de texto. Seria necessário fazer uma história das mulheres através de textos. Isso pode ser feito de maneira modesta mas também de maneira mais aprofundada, em muitos volumes, como é o caso da obra História das mulheres no Ocidente, que tem cinco volumes. Esses textos permitiriam a reflexão dos leitores mas também dariam aos professores da universidade e do ensino médio meios para trabalhar com a história das mulheres e para difundi-la. Seria também necessário escrever livros para o ensino médio, mas nesse caso penso que não serei eu a fazê-lo. Sem dúvida alguma, hoje um editor de livros para o ensino médio aceitaria colocar em sua equipe de historiadores especialistas em história das mulheres. Esse trabalho demanda muita energia.

Enfim, não gostaria de esquecer as pesquisas pessoais. Atualmente tenho vontade de me questionar sobre a escrita biográfica. Interesso-me particularmente por uma mulher que encontrei algumas vezes em meus trabalhos. Ela se chama Marguerite Thibert, uma mulher do século XX. Ela escreveu uma das primeiras teses de história das mulheres nos anos 1920 (sobre as saint-simoniennes do século XIX), mas ela não trabalhou na universidade porque na época as mulheres não faziam isso. Trata-se também de uma mulher que trabalhou no BIT - Bureau International du Travail -, e que se engajou nos debates sobre o trabalho das mulheres e as leis de igualdade. Ela interveio muito no debate que opôs os partidários de uma proteção específica ao trabalho feminino àqueles que reivindicavam a igualdade profissional. Escrever sua biografia permite assim refletir sobre o estatuto da intelectual, sobre a questão do trabalho das mulheres no século XX e sobre o impacto das leis protecionistas ou igualitárias. Enfim, a terceira razão pela qual Marguerite Thibert me interessa consiste no fato de que ela vivenciou os anos 1980, na época do Ministério do Direito das Mulheres, no primeiro mandato de François Mitterand, ou seja, no momento do ministério de Yvette Roundy, do qual eu já falei. Para Yvette Roundy, tratava-se tanto de uma antiga amiga como de uma referência intelectual. A ministra considerava que devia agir um pouco segundo os preceitos de Marguerite Thibert, que considerava, no que diz respeito à liberação das mulheres, que a questão do trabalho era fundamental. Isso quer dizer que, tanto para Yvette Roundy como para Marguerite Thibert, a questão do trabalho era mais fundamental do que a questão dos direitos sexuais. Interessar-me por Marguerite Thibert é, por um lado, questionar-me sobre como escrever uma biografia - talvez não se trate nem um pouco de uma biografia linear, mas de uma biografia um pouco desconstruída em torno de temáticas - e, por outro, revisitar o século XX no tocante à questão das mulheres intelectuais, da proteção do trabalho feminino, da memória e da transmissão de uma geração a outra.

Referências bibliográficas

BARD, Christine; THÉBAUD, Françoise. "Les effets antiféministes de la Grande Guerre". In: BARD, Christine (Dir.). Um siècle d'antiféminisme. França: Fayard, 1999. p. 149-166.

McCLELLAND, Keith; THÉBAUD, Françoise. "Questions et questionnements". In: SOHN, Anne-Marie; THÉLAMON, Françoise (Dir.). L'histoire sans les femmes est-elle possible? Rouen: Perrin, 1998. p. 65-69.

THÉBAUD, Françoise. (Org.). História das mulheres no Ocidente: o século XX. Tradução de Alda Maria Durães et. al. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1995. v. 5 (Coleção dirigida por Georges Duby e Michelle Perrot.)

THÉBAUD, Françoise. Écrire l'histoire des femmes. 2. ed. Fontenay/Saint-Cloud: ENS Éditions, 1998.

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  • 1
    THÉBAUD, 1998.
  • 2
    THÉBAUD, 1995.
  • 3
    Christine BARD e THÉBAUD, 1999.
  • 4
    Keith McCLELLAND e THÉBAUD, 1998.
  • 5
    Estabelecimentos de ensino de nível superior. (Nota da tradutora.)
  • 6
    Trabalho apresentado no Encontro Internacional Franco-Brasileiro - O corpo das mulheres, realizado na UFMG, em Belo Horizonte. O título do trabalho em francês é
    "La politique nataliste en France au Xx ème siècle - une contrainte par corps".
    Contrainte par corps é o direito que o credor tem de mandar prender seu devedor. (N. T.)
  • 7
    A Habilitation é um concurso que habilita a pessoa a dar aulas na univesidade. (N. T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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