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O que é bioética?

RESENHAS

Feminismo: um movimento de vanguarda na bioética

Cristiano Guedes

ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

O que é bioética?

Debora Diniz; Dirce Guilhem.

São Paulo: Brasiliense, 2002. 69 p.

(Coleção Primeiros Passos, 315).

O livro da antropóloga Debora Diniz e da enfermeira Dirce Guilhem, pesquisadoras feministas, pode ser considerado uma descrição sociológica da trajetória da bioética. Partindo das teorias centrais presentes no campo da bioética e das contribuições que representaram para o estabelecimento da disciplina, o/a leitor/a é levado/a a construir uma concepção sobre o significado e o papel desse novo campo do conhecimento científico na contemporaneidade.

A década de 1960 abrigou importantes avanços tecnológicos e o surgimento de vários movimentos sociais responsáveis pela promoção de direitos humanos ou mesmo a defesa da liberdade de expressão reivindicada por diferentes grupos étnicos, religiosos, políticos, culturais e ideológicos. Foi nesse cenário que as pesquisas no campo da medicina passaram a ser alvo de questionamentos morais. O livro apresenta episódios marcantes desse período e também de outras épocas, tais como os controversos experimentos científicos realizados durante a Segunda Guerra Mundial, a publicação de artigos nos quais são apresentadas as maneiras como os profissionais da medicina se arrogavam os procedimentos a serem adotados com relação aos/às pacientes e a utilização de cobaias humanas para pesquisas. Esses são alguns dos fatores apontados no texto como os desencadeadores do processo que conduziu "a opinião pública a perceber que nem tudo estava moralmente correto no campo da ciência, da tecnologia e da medicina" (p. 18). A autoridade da medicina passa a ser questionada em virtude dos conflitos morais suscitados, o que torna necessário estabelecer o diálogo entre as diferentes perspectivas envolvendo os vários aspectos relacionados às práticas de saúde. Assim, emerge a " bioética como uma instância mediadora e democrática para os conflitos morais" (p. 20). Os Estados Unidos são indicados no livro como pioneiros no processo de institucionalização da bioética, e tal constatação é fundamental para compreender a influência estadunidense no contexto internacional.

As autoras apontam o Relatório Belmont, documento elaborado pelo congresso estadunidense que tinha como meta estabelecer princípios éticos a serem contemplados nas pesquisas científicas com seres humanos, como um marco fundamental para "... a formalização definitiva da bioética como um novo campo disciplinar..." (p. 23). O Relatório Belmont, ao eleger o "respeito pelas pessoas", a "beneficência" e a "justiça" como os princípios que deveriam pautar os procedimentos científicos, promoveu o surgimento de várias publicações na década de 1970 que exploraram, sob diferentes aspectos, os embates morais existentes no campo da saúde e culminaram no surgimento da teoria principialista, que tem na obra intitulada Princípios da ética biomédica, de autoria do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, publicada em 1979, um de seus expoentes. Apresentados e didaticamente exemplificados os pressupostos da teoria principialista, Diniz e Guilhem expõem as dúvidas que passaram a recair sobre a legitimidade e adequabilidade dos princípios propostos.

Os princípios seriam aplicáveis às diversas sociedades em todo o mundo? Inicialmente os/as defensores/as da teoria principialista acreditaram na suposta universalidade dos princípios, mas, posteriormente, foi possível constatar que "... as diferenças existentes entre as inúmeras culturas e mesmo dentro dos arranjos sociais de cada cultura foram deliberadamente ignoradas..." (p. 33). A bioética perdia, assim, o seu propósito original de 'instância mediadora', uma vez que determinava por meio de princípios, compartilhados apenas por algumas moralidades, procedimentos capazes de lidar com situações conflituosas.

Como resultado das ambigüidades presentes na teoria principialista, surgiram perspectivas críticas que contribuíram para o amadurecimento da disciplina e a difusão desse novo campo da ciência no cenário mundial. As autoras adotam os conceitos de central e periférico para descrever e analisar as diferentes perspectivas bioéticas. São identificados como países centrais os pioneiros na produção, consolidação e disseminação da bioética, e no grupo dos países periféricos se encontram aqueles que posteriormente ingressaram no campo de estudos da bioética e ainda são grandes importadores das teorias produzidas em países centrais. Nesse sentido, o texto apresenta o Brasil como um país periférico, onde se pode observar, por exemplo, forte influência da teoria principialista, por vezes, equivocadamente, adotada em detrimento das especificidades presentes no contexto brasileiro. Ao sugerir os conceitos de central e periférico, as autoras destacam que se trata de conceitos relacionais, ou seja, o Brasil, embora periférico com relação aos EUA, pode ser considerado um país central no cenário da América Latina, em virtude do avanço das pesquisas e disseminação dos conhecimentos.

O livro O que é bioética?, ao destacar a dificuldade do estabelecimento de princípios universais legítimos no sentido de comportar o pluralismo característico entre as pessoas portadoras de moralidades distintas, propõe o surgimento de diferentes bioéticas que almejam reconhecer as diferenças e promover a tolerância como requisito fundamental à mediação das situações conflituosas sobre as quais a bioética tem se debruçado. Desse modo, é possível observar que o livro destaca as vantagens que o método etnográfico pode conceder aos/às pesquisadores/as da bioética cônscios/as do papel a ser desempenhado pela disciplina. Explorando o conceito de "relativismo", as autoras destacam a importante contribuição que estratégias etnográficas de investigação podem oferecer para identificar os diferentes atores sociais em situação de conflito e estabelecer mecanismos de mediação capazes de promover a tolerância.

Autores como Tristram Engelhardt e Peter Singer são apresentados no livro como de importância destacada no estabelecimento de pressupostos bioéticos que reconhecem e analisam a questão das diferenças morais em suas produções teóricas. As autoras apresentam e explicam conceitos como os de "estranhos morais" e "amigos morais", como categorias-chave que foram introduzidas por Engelhardt no campo da bioética. A teoria especista é também explorada no livro e possibilita que o/a leitor/a compreenda questões polêmicas propostas por Singer, como a da sacralidade da vida humana tão aclamada em culturas ocidentais. São apresentados também a gênese e o avanço das perspectivas feministas para a bioética que, baseadas nas desigualdades entre gêneros, têm contribuído substancialmente para o amadurecimento dos debates estabelecidos.

As perspectivas feministas para a bioética podem ser consideradas teorias críticas que atuam no sentido de apresentar as desigualdades sociais que inviabilizam o estabelecimento de princípios universais e exigem a construção de "... mecanismos de reparação social..." (p. 59) capazes de defender pessoas em situação de vulnerabilidade e cujos interesses têm sido freqüentemente desconsiderados nas discussões. Diniz e Guilhem, cujos estudos no campo da bioética feminista brasileira têm se destacado, citam o caso das novas tecnologias reprodutivas como exemplo da insuficiência do princípio da autonomia. Muitas mulheres se candidatam às técnicas de reprodução assistida como meio de cumprir o papel social da maternidade que lhes foi imposto, e nesse sentido não exercitam a liberdade de escolha, sendo submetidas a tratamentos ainda considerados experimentais. Aos estudos feministas na bioética é atribuída parcela considerável de um movimento de vanguarda que tem contribuído para o aprimoramento teórico e metodológico da disciplina.

A obra apresenta a bioética como um mecanismo acadêmico que promove o exercício da tolerância junto a sociedades plurais. Como os demais números que compõem a Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, o livro O que é bioética? pode ser considerado uma obra singular, visto que não se restringe a expor a trajetória da bioética no mundo e seu desenvolvimento no Brasil, como também apresenta os principais desafios que se colocam para esse novo campo do conhecimento científico. Trata-se de uma leitura indispensável não somente a estudantes de graduação, público-alvo desse tipo de publicação, mas também aos pesquisadores e profissionais envolvidos no seu cotidiano com questões rela-cionadas à bioética, sobretudo à bioética feminista, visto que o livro é antes de tudo um convite à reflexão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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