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O potencial do agribusiness na fronteira

The potential of agribusiness in the frontier

Resumo

É amplamente reconhecido o forte contraste entre as crises universais enfrentadas pela economia brasileira nos anos 80 e o quadro de bastante sucesso do agronegócio do país. Entre os aspectos positivos revelados pelo desempenho do setor, destaca-se a notável capacidade de atração de capitais do Centro-Sul para a fronteira. O tema principal deste artigo é a expansão-transformação da fronteira do agronegócio Centro-Oeste. Analisa também as mudanças recentes ocorridas na política agrícola brasileira e as respostas fornecidas pelo setor privado.

Palavras-chave:
Agricultura; crescimento econômico; nova teoria do comércio internacional; exportações

Abstract

The sharp contrast between the universal crises faced by the Brazilian economy during the 80s and the quite successful picture shown by the country’s agribusiness have been widely recognized. Amongst the positive aspects revealed by the sector’s performance, the remarkable capacity to attract capital from the Center-South to the frontier must be stressed. This article’s main subject is the expansion-cum-transformation of the Centro-Oeste agribusiness frontier. It also analyses the recent changes occurred in the Brazilian agricultural policy and the answers provided by the private sector.

Keywords:
Agriculture; economic growth; new trade theory; exports

INTRODUÇÃO

Na década de 80, a economia brasileira abandona a trajetória de crescimento acentuado das três décadas anteriores, que se traduzia em taxas médias anuais de 7,4% ao ano, despencando para um patamar anual de 1,5%, inferior ao crescimento populacional. Enquanto a indústria de transformação apresenta um crescimento médio negativo (-0,1%), a agropecuária expande-se a 2,5% ao ano, o que se situa abaixo de sua tendência histórica.

É nossa intenção mostrar que nem todos os setores1 1 Entre 1980 e 1990 a agropecuária cresceu à taxa de 2,5% ao ano, taxa essa superior à do conjunto da economia, que foi de 1,5%. A indústria de transformação, por sua vez, teve um crescimento médio negativo de O,1% ao ano. Entretanto, os setores industriais de forte base agrícola apresentaram resultados superiores à média global: produtos alimentares (1,5%), fumo (3,5%), papel e papelão (2,7%) e, de menor conteúdo agrícola, perfumaria, sabões e velas (5,0%) e bebidas (2,9%). , nem todos os espaços regionais, tampouco tiveram o mesmo desempenho e que, nos interstícios, ou nos espaços vazios, à margem do escasso movimento dos principais setores industriais brasileiros, o comportamento da agricultura e do agribusiness contrariou a tendência dominante. A capacidade de atração de capitais demonstrada pela fronteira agrícola, em especial pela região dos cerrados, constitui uma exceção digna de nota, convidando à reflexão sobre o papel da agroindústria e da política de incentivos nas regiões mais distantes.

DESEMPENHO DA AGRICULTURA E DO AGRIBUSINESS NA FRONTEIRA

A consolidação do complexo agroindustrial produtor de grãos e carnes, entre outras atividades industriais que floresceram na fronteira agrícola, é acompanhada por uma verdadeira mudança no padrão agrícola da fronteira agrícola, que compreende a área dos cerrados do Centro-Oeste, parte de Minas Gerais e da Bahia. Em poucos anos, o arroz, um tradicional produto de abertura de fronteira, cede espaço ao milho e à soja. Entre 1980 e 1990, a participação do arroz da região no total nacional declina de 32% para apenas 13%. Enquanto sua taxa de crescimento se mostra negativa na região Centro-Oeste, a produção nacional aumenta 1,2% ao ano.

Em contrapartida, a produção regional de soja, que representava 12,5% do total nacional em 1980, atinge 44% do mesmo total em 1991. No caso do milho, a participação do produto regional no total do país chega a dobrar, passando de 10% para 19%, entre 1980 e 1989. Parece ter havido, assim, um processo de realimentação entre a produção agrícola e agroindustrial com impactos positivos sobre as taxas de crescimento da produção agropecuária regional. Enquanto a taxa de expansão do milho no país foi de 2,7% ao ano, entre 1980 e 1989, na região Centro-Oeste ela alcançou 9,4% no mesmo período. A soja cresceu, em média, 16,5% ao ano no Centro-Oeste, contra uma expansão de 4,73% no país.

Tabela 1
Evolução da produção agrícola - Brasil e Centro-Oeste: quantidade produzida

A vigorosa expansão agrícola da região sustenta-se em expressivos ganhos de produtividade (rendimento médio) verificados para quase todos os produtos, à exceção do arroz. Essa produtividade está associada ao potencial ainda não esgotado de modernização agrícola dos cerrados, e não apenas à chamada expansão horizontal. Os ganhos de produtividade obtidos na atividade agrícola podem ser associados a rendimentos crescentes. O rendimento médio do milho nos estados do Centro-Oeste, por exemplo, superou a média nacional, no ano de 1991, em cerca de 64%, apresentando um rendimento 50% superior ao longo da década. Quanto à soja, obteve-se um rendimento entre l0% e 20% superior à média nacional, principalmente a partir da segunda metade da década de 80.

Tabela 2
Rendimento médio - Centro-Oeste/Brasil

Como veremos a seguir, o potencial do agribusiness nessas áreas não deriva apenas do potencial agropecuário aí verificado. Porém, antes de analisá-lo, é necessário caracterizar o conjunto das empresas agroindustriais cujos negócios se desenvolvem nessas regiões2 2 A evolução da agroindústria na região Centro-Oeste carece de fontes estatísticas capazes de medir o desempenho setorial. Na pesquisa recentemente realizada pelas autoras foram utilizadas tabulações especiais do censo industrial de 1985, requeridas pela Pesquisa Industrial Mensal (PIM/IBGE), em que foram identificadas as empresas cuja produção representava, em 1985, um “grau de significância” da ordem de 50% (sua produção pertence aos primeiros 50%da produção nacional daquele gênero ou produto). Essa amostra foi comparada com a listagem de empresas agroindustriais entre as 200 maiores firmas pagadoras de ICMS de cada Estado para o ano de 1991. Entrevistas com um número significativo de empresas identificadas nas duas fontes, especialmente sobre sua estratégia de crescimento na região, completaram o material da pesquisa. Os problemas de mensuração e os procedimentos adotados estão explicitados na metodologia da pesquisa ‘’A dinâmica agroindustrial no Centro-Oeste: caracterização, problemas, potencial de expansão e fluxos de investimento”. . Acreditamos que os critérios, a seguir sugeridos, para avaliar a capacidade de expansão das empresas na fronteira agrícola possam revelar-se benéficos para subsidiar a política (agro) industrial num contexto de retomada do crescimento.

Um critério de grande importância na classificação das empresas é seu setor de atividade dentro do conjunto da agroindústria. Entre os setores mais capazes de induzir investimentos “a montante” e “a jusante” do setor agrícola, identificados na matriz intersetorial brasileira, estão o de óleos vegetais em bruto e o de abate e preparação de carnes (Prado, 1981PRADO, E.F.S. (1981) “Estrutura tecnológica e desenvolvimento regional”. São Paulo IPE/ USP, Ensaios Econômicos nº 10.)3 3 Dados primários obtidos junto ao BNDES. . A montagem, nas áreas de fronteira, de uma estrutura agroindustrial centrada no setor de óleos vegetais, por um lado, e no setor de abate e preparação de carnes, por outro, provoca inegáveis efeitos de encadeamento com a base produtiva agropecuária, com os setores da indústria de insumos modernos e máquinas agrícolas, e com os setores de armazenagem, beneficiamento, comercialização e transporte de matérias-primas e alimentos.

Em suma, tende a estabelecer-se, na fronteira, um perfil de agroindústria cujos investimentos acabam sendo complementares entre si. Destaca-se, assim, a importância da cadeia de grãos - carnes - composta por setores capazes de induzir efeitos de encadeamento por sinergias técnico-produtivas, por um lado, e por complementaridade com a base de produção agropecuária, por outro. Estão aí incluídos setores como a produção agropecuária de milho, soja, bovinos, aves, ovos, leite etc.; os frigoríficos e a produção de derivados como o sebo; a produção de couros; a de laticínios; os produtos industriais derivados de milho (fubá, entre outros); abate e preparação de aves e, finalmente, a produção de óleo vegetal em bruto, óleo refinado, farelo, rações e outros produtos derivados.

Um outro critério de classificação é a origem do capital das empresas: empresas de capital de origem internacional (como a Cargill), de capital nacional (como a Sadia), cooperativas (como a Comigo) ou empresas regionais (como a Arisco) revelam comportamentos em geral convergentes, mas que possuem certas peculiaridades que interessa revelar.

As empresas nacionais como a Ceval, a Sadia e a Perdigão possuem uma estratégia de crescimento por diversificação produtiva do tipo grãos-farelo-óleo e grãos-rações-carnes. Assim como as multinacionais, elas mantêm uma face externa voltada para os mercados de commodities, em que atuam com agilidade, obtêm grandes lucros, mas enfrentam grandes riscos. Nos últimos anos, os investimentos têm-se voltado, no entanto, às atividades dirigidas ao mercado interno, à espera de mudanças na conjuntura que reorientem a produção. Sendo grupos industriais de porte razoável, distribuem suas atividades segundo avaliações que fazem do mercado. Os produtos de maior valor agregado (como os embutidos de suínos e frangos) constituem os mercados mais dinâmicos, especialmente no Centro-Sul. Entretanto, nas regiões de fronteira, sua atuação está concentrada em produtos para os quais a proximidade da obtenção da matéria-prima constitui importante vantagem comparativa.

As empresas internacionais são, em geral, grandes compradoras, na fronteira, de matéria-prima, que será processada em suas plantas do Centro-Sul, consumida nacionalmente, e/ou exportada. Constituem, na realidade, grandes tradings. Sabedoras do potencial de crescimento agropecuário dessas regiões de fronteira, e pertencentes a setores-chave da agroindústria nacional, buscam assegurar as fontes de aprovisionamento de matéria-prima e um espaço privilegiado em relação a seus concorrentes nacionais.

Dado que seus centros de decisão se situam muitas vezes fora do país, as empresas internacionais não possuem a devida autonomia e flexibilidade em face da sempre cambiante conjuntura econômica nacional, o que reduz, em geral, sua capacidade de realizar investimentos de porte nas regiões de fronteira. A autonomia nas decisões quanto a investimentos em ampliação da capacidade e/ou da diversificação produtiva é, aliás, uma variável chave a ser levada em conta nas estratégias de crescimento das empresas na fronteira. Diante de um meio ambiente em constante mudança, tendem a responder com estratégias mais conservadoras, preferindo contratos estáveis com seus fornecedores. A utilização das fontes creditícias nacionais é feita mediante muita seletividade. Sua privilegiada posição no mercado internacional facilita o financiamento de suas atividades. Por fim, e isto elas têm em comum com as empresas líderes nacionais do complexo grãos-carnes, estão fundamentalmente conectadas ao mercado de commodities, cuja interface com os mercados financeiros é amplamente conhecida. Os investimentos tendem a adotar, assim, uma lógica produtivo-financeira de difícil caracterização. Em outras palavras, os processos de busca e seleção de novas oportunidades, as decisões quanto à produção, ampliação da capacidade, diversificação produtiva, investimentos de diferentes tipos, estão sujeitos a um grande número de variáveis, e, como veremos, a uma maior complexidade das relações entre essas variáveis.

À margem do processo de substituição de importações que marcou a moderna industrialização brasileira e diretamente vinculadas à base agropecuária dos estados, proliferaram historicamente as chamadas empresas regionais, como um segundo andar da agricultura. Essas empresas haviam sido concebidas para mercados de reduzida expressão, o que supunha, em regra, a adoção de processos técnicos mais modestos. Dificilmente poderiam ampliar escalas e renovar processos sem atravessar profundas alterações. Apesar do seu limitado dinamismo, constituíram a base sobre a qual se erguia a agroindústria regional, na medida em que eram capazes de mobilizar recursos produtivos e organizar mercados locais que, embora preexistentes, encontravam-se dispersos ou mesmo ignorados. Foi, em regra, em função do crescimento dessas empresas que se constituiu a infraestrutura hoje existente. Algumas delas, capazes de sustentar uma alta taxa de crescimento, passaram a orientar sua produção para fora da região, vindo a competir com as grandes empresas nacionais e a adotar padrões de comportamento similares.

Por fim, deve-se destacar o importante segmento das cooperativas agroindustriais. Possuidoras, em geral, de uma forte base agropecuária que orienta a diversificação de suas atividades, comportam-se com uma lógica própria, na qual há que discernir entre os padrões de relacionamento interno dos cooperados e as atividades de busca e seleção de oportunidades lucrativas de investimento, nas quais pouco se diferenciam das empresas de capital não associativo.

Há uma ampla diversidade entre as cooperativas, que depende basicamente da existência, ou não, de atividades de processamento e da localização dos centros de decisão - determinando uma maior ou menor autonomia dos dirigentes locais e do corpo de cooperados. A mais importante diferença entre elas e suas congêneres nacionais e regionais é a forma como tende a ocorrer a diversificação produtiva. Os investimentos agroindustriais seguem, em geral, uma determinada coerência técnico-produtiva, aproveitando sinergias tecnológicas e comerciais. As cooperativas agroindustriais, no caminho da diversificação, não se limitam a seguir uma estrita coerência industrial, mas buscam fundamentalmente verticalizar a partir da ampla gama de matérias-primas agropecuárias produzidas pelos cooperados. Como resultado, os investimentos agroindustriais das cooperativas tendem a ser mais diversificados e se inserem, portanto, em diferentes estruturas de mercado.

Essa diversificação de atividades atende fundamentalmente à necessidade de sobrevivência da cooperativa e do corpo de sócios. Trata-se de uma conhecida resposta tanto à crise quanto a períodos de rápida expansão. A agroindustrialização diversificada consolida uma estrutura mais forte e mais resistente às flutuações da conjuntura, e tende a tomar-se um processo, em geral, irreversível.

CARACTERIZAÇÃO DA AGROINDÚSTRIA REGIONAL

Tendo em conta a origem do capital das empresas e o setor de atividades, buscaremos a seguir caracterizar a agroindústria nos estados da região Centro-Oeste, com base numa amostra das empresas agroindustriais presentes na listagem dos 200 maiores contribuintes de ICMS (dados em valores reais) de cada Estado. Esse procedimento revelou-se eficaz para obter um mapeamento, até agora inexistente, desses setores e empresas na região.

A ocupação de Goiás antecede a dos demais estados da região e apresenta características próprias. A importância de grandes empresas internacionais é significativamente maior, em Goiás, do que nos demais estados. Assim sendo, a distribuição das firmas da amostra, segundo a origem dos capitais, é a seguinte: 20% correspondem a empresas de capital internacional, 20% a capitais do Centro-Sul, 25% às cooperativas e 35% às firmas de origem regional.

Quanto à distribuição das empresas por setores, frigoríficos, laticínios e derivados de soja somam aproximadamente 73% do total da amostra (cada um dos setores, respectivamente, com 23%, 23%, e 27%), deixando aos demais setores da agroindústria os restantes 27%. Como consequência da maior dispersão relativa das atividades, a cadeia agroindustrial de grãos e carnes atinge 85% do total, o que constitui um resultado inferior ao obtido para os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Abrigando hoje a maior e mais diversificada agroindústria da região Centro-Oeste, o estado de Goiás não parece constituir, na década de 90, o maior polo de atração de novos capitais do Centro-Sul. A implantação da sua agroindústria se deu num momento anterior, quando os incentivos estaduais e a localização da capital federal constituíam fatores de atratividade de grande importância. Por outro lado, as empresas líderes do complexo grãos-carnes não haviam consolidado o recente padrão de integração, que exige amplas escalas de produção e uma fronteira agrícola em expansão.

Já o estado do Mato Grosso, em contraste com o estado de Goiás, apresenta a agroindustrialização mais recente e mais concentrada, predominando amplamente as grandes empresas nacionais. Estas respondem por 60% da amostra, contra 20% em Goiás; as empresas internacionais foram responsáveis por apenas 9%, as cooperativas por 11 %, e as empresas de origem regional pelos 20% restantes. A forte atração de capitais do Centro-Sul que os dados sugerem, e que outras fontes comprovam, deve-se, em grande medida, à existência de incentivos fiscais na região, mas deriva também da avaliação prospectiva das empresas, à espera de uma situação de estabilização da inflação, da retomada do crescimento, ou da recuperação dos preços no mercado internacional. Outros fatores que devem ser tomados em consideração são o alto padrão tecnológico e a elevada escala de custos relativos de transporte. Cria-se, assim, um ambiente propício à modernização agroindustrial, consolidando um padrão próprio de relacionamento fornecedor-indústria. Quanto à distribuição setorial, cerca de 55% das empresas da amostra produzem derivados da soja, 30% correspondem aos frigoríficos, restringindo-se as demais atividades à proporção de apenas 15%. O complexo grãos-carnes, assim, corresponde a 91% do total.

Numa situação intermediária, encontra-se o estado do Mato Grosso do Sul, beneficiado pela melhor localização geográfica (proximidade dos mercados de São Paulo, do Paraná, do Triângulo Mineiro, da própria região Centro-Oeste e dos vizinhos países latino-americanos Paraguai e Bolívia), pela melhor rede de transportes intermodais e pela inegável vocação natural para a produção de carnes e grãos. O Mato Grosso do Sul, detentor do maior rebanho bovino de corte, ainda mantém uma característica acentuadamente pecuária, combinando-a com a expansão da sojicultura, à diferença de Goiás, que apresenta uma forte característica de diversificação das atividades agrícolas e agroindustriais.

No Mato Grosso do Sul, as empresas nacionais da amostra respondem por 51% do total, as empresas regionais por 36%, as cooperativas respondem por 7%, as empresas internacionais por apenas 4 % e os demais capitais nordestinos pelos restantes 2%. No que diz respeito à composição setorial da agroindústria, frigoríficos (cuja participação, sem dúvida, está subestimada) e couros somam 47%, enquanto os derivados de soja contabilizam 33% do total. Os 20% restantes distribuem-se entre os demais setores, numa posição intermediária entre Goiás e Mato Grosso. Dessa forma, o complexo de grãos-carnes totaliza cerca de 90% da amostra.

ESTRATÉGIAS DE AGROINDÚSTRIA NA SEGUNDA METADE DA DÉCADA DE 80 E INVESTIMENTOS NA REGIÃO DO CERRADO CENTRAL

O recente processo de deslocamento das agroindústrias para a região Centro-Oeste e áreas do Cerrado Central do Brasil pode ser explicado pelo seu excelente desempenho agrícola na década de 80, que serviu como fator inicial de alteração para algumas das empresas mais dinâmicas do complexo agroindustrial brasileiro. Nessa região, as empresas encontraram condições de desenvolver algumas estratégias típicas desse segmento industrial, estratégias voltadas para reforçar sua capacidade competitiva, tanto no mercado internacional quanto no âmbito interno.

O deslocamento, durante pouco mais de uma década, de 40% da capacidade de produção de soja do país para as terras agricultáveis de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, foi acompanhado, com uma defasagem de alguns anos, pelo deslocamento de grandes grupos agroindustriais voltados para a atuação no mercado de commodities, investindo na implantação de uma base de armazenamento, logo seguida por inversões em atividades de esmagamento de grãos, para a produção de óleos e farelo.

O resultado da investigação junto às empresas e o levantamento de dados existentes no BNDES, na SUDAM e nos Fundos Regionais mostraram que as empresas mantiveram suas estratégias de investimento na região na fase descendente do ciclo, enfrentando simultaneamente problemas de queda na demanda no mercado interno e dificuldades no mercado mundial. Note-se que, apesar de o país continuar sendo o segundo maior exportador de grãos de soja no final da década, perdeu a liderança no óleo degomado para a Argentina (apesar de os dados, em valor, continuarem a apontar a liderança até 1990), mantendo-a na exportação de farelo de soja. Ainda, nesse período, as atividades agroindustriais e agrícolas sofreram os efeitos indiretos da mudança de orientação da política agrícola, que atingiu fortemente o crédito rural, e, mais recentemente, da alteração dos critérios de determinação regional dos preços mínimos.

O DESLOCAMENTO DA AGROINDÚSTRIA PARA O CENTRO-OESTE E PARA O CERRADO CENTRAL: AS RAZÕES DA ATRAÇÃO

A tendência ao deslocamento das empresas nacionais líderes da cadeia de soja para o cerrado expressa-se na participação crescente de cada uma delas no conjunto da capacidade de esmagamento no país. As fábricas da Sadia, da Ceval e da Perdigão, localizadas no cerrado, respondem por cerca de 37% da capacidade global de esmagamento, mais do que a região do cerrado representa no conjunto do país (cerca de 20%).

As empresas multinacionais, em parte devido ao fato de estarem orientadas basicamente para o mercado de commodities, não mantêm fábricas de esmagamento longe dos grandes centros consumidores, com exceção da Cargill (no cerrado mineiro). As empresas nacionais também atuam nesse mercado, e uma delas, a Ceval, chegou a ter aí uma participação destacada, movimentando 20% do volume global. Uma vez que o preço do grão e dos derivados da soja é formado no mercado internacional, os ganhos das empresas dependerão de sua capacidade de previsão de safras, e do acompanhamento sistemático da oferta mundial e dos preços. Nos últimos anos, as empresas de origem nacional têm procurado, crescentemente, a integração com atividades relacionadas à cadeia de carne, através da qual podem somar vantagens competitivas e agregar valor.

As causas do movimento

São as seguintes as razões do deslocamento do segmento mais dinâmico da agroindústria para a região do Cerrado Central, ao longo da década de 80:

  1. expansão da sojicultura para a região do cerrado, onde são obtidos excelentes níveis de produtividade e onde o padrão tecnológico possibilita ganhos de rentabilidade, que as empresas agroindustriais têm condições de absorver com maior facilidade. A soja produzida no cerrado é classificada como de melhor qualidade, o que lhe assegura um prêmio em preço e ganhos competitivos;

  2. perspectiva de expansão dos mercados de soja em grão e de derivados (óleo degomado e farelo) no mercado internacional associada à tendência de aumento da demanda de óleos refinados com menor saturação de gorduras;

  3. estratégia combinada de participação nos mercados externo e interno, de forma a consolidar posições, seja em função das compras de matéria-prima, seja em função da proximidade a centros de consumo com potencial de crescimento;

  4. estratégia de localização da infraestrutura de armazenamento perto das áreas de cultivo com perspectivas de expansão, como é o caso do Cerrado Central. Essa estratégia, no caso das empresas com forte participação no mercado interno, como a Sadia e a Ceval, é acompanhada, na sequência, pela instalação de plantas de processamento industrial.

  5. tendência ao aumento de integração das atividades de processamento de soja e de carnes por parte das empresas que atuam numa dessas duas cadeias agroindustriais, o que pode ser visto como uma forma de diversificação coerente com a base produtiva (e com os ativos) dessas empresas. Essa integração permite ainda racionalização e economia de custos, inclusive de transportes, na medida em que as cargas se constituem em produtos de maior valor agregado (óleo, farelo, carnes e subprodutos) em relação ao grão propriamente dito.

  6. presença de programas de incentivos fiscais e regionais.

Com exceção dos incentivos fiscais, as demais razões estão associadas à forma de concorrência desse segmento da agroindústria em que algumas características de mercados oligopolizados se combinam com outras de mercados mais competitivos. No caso do óleo degomado, um produto homogêneo, as empresas costumam competir através da redução de custos no processo de produção, o que depende da existência de economias de escala e de organização.

O montante de capital necessário para a instalação de uma fábrica de esmagamento não se mostra muito elevado. Portanto, não há dificuldade de acesso de novos concorrentes de grande porte. Apesar disso, o custo de instalação de uma planta de esmagamento (em torno de US$ 40 milhões) pode representar uma barreira às empresas regionais de médio porte. Nesse caso, o acesso aos recursos incentivados ou financiamentos representa uma maneira de contornar os obstáculos. As economias de escala e de organização interna, da mesma forma, não são intransponíveis.

A presença de estratégias de diferenciação do produto é comum na concorrência entre os fabricantes de óleo refinado, distinguindo-se um mercado de primeira linha, em que a qualidade do produto (junto com a marca) define a liderança de vendas, e um mercado de segunda linha, em que o preço é o elemento mais importante. As empresas que atuam nos dois segmentos do mercado são praticamente as mesmas, salientando-se a presença de algumas multinacionais como a Sambra-Samring (Bunge Bom), Cargill e Unilever, e nacionais como Refinações de Milho Brasil, Ceval, Sadia, Perdigão, Olvebra e Granol, com cerca de 80% das vendas de óleo refinado.

No caso da região Centro-Oeste, o mercado é mais concentrado do que no restante do país, e quase todas as plantas usufruem economias de escala. A oferta de recursos incentivados toma mais fácil o acesso de grupos regionais com menor capacidade de financiamento.

Um dos maiores problemas das empresas esmagadoras refere-se à obtenção de recursos para fazer frente à sazonalidade da produção do grão, o que as obriga a trabalhar com nível elevado de capital de giro para poder transportar o estoque ao longo do tempo. Para o agricultor existe o recurso de atenuar o problema da sazonalidade através do sistema de financiamento e empréstimos do governo (AGF e EGF), ou seja, do crédito à comercialização. A agroindústria recorre a diferentes formas de financiamento, mas depende das condições em que são feitos os empréstimos e da taxa de juros.

Na ausência de infraestrutura de armazenamento na propriedade agrícola ou na cooperativa, os agricultores tendem a utilizaras armazéns e silos das próprias agroindústrias na compra da matéria-prima, fato bastante comum no Centro-Oeste e que dá uma vantagem adicional às indústrias.

No decorrer da pesquisa, através das entrevistas diretas com diretores e em visita às empresas da região, constatou-se que a proximidade com a área produtora traz vantagens competitivas de localização, permitindo diminuir os custos de movimentação de cargas associadas à operação industrial entre a planta industrial e a zona de cultivo (a não mais do que 30 ou 40 quilômetros). Segundo os líderes nacionais, o “ponto ótimo” de localização da fábrica situa-se em áreas próximas aos grandes centros produtores, embora reconheçam que enfrentam problemas no transporte do produto para o resto do país. Essa estratégia também supõe o relacionamento econômico contínuo, e em condições especiais, com os agricultores.

O deslocamento dos grandes grupos agroindustriais para o Cerrado Central iniciou-se com a instalação de entrepostos de comercialização. Foi só na década de 80 que o volume (e o retomo) das operações comerciais passou a justificar investimentos na montagem de uma infraestrutura de armazenamento, atraindo quase todas as grandes empresas que atuam na comercialização de grãos. A localização desses armazéns é estratégica para as empresas - trata-se da logística de abastecimento. Na sua ausência, o grão perde as características de qualidade que o tomam competitivo, em especial o menor teor de umidade e a quantidade de óleo. Por essas razões, as empresas procuram aproximar-se e controlar territórios próximos às regiões de maior potencial produtivo, como o Cerrado Central, mesmo que isso implique arcar com dificuldades temporárias (como o custo de transporte do produto processado para o resto do país).

ALGUNS DADOS SOBRE A RELOCALIZAÇÃO DOS INVESTIMENTOS AGROINDUSTRIAIS

Entre os anos de 1987 e 1991, a pesquisa identificou mais de dez projetos de financiamento apresentados por grandes grupos industriais ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e à SUDAM, destinados à abertura de novas plantas industriais de esmagamento de soja e à instalação de infraestrutura de armazenagem no Cerrado Central, a saber, Rio Verde, Teka, Encomind, Perdigão, Sadia, Caramuru, Quintela, Ceval, Copasa, Granol etc.

Além desses, encontrou-se um número expressivo de projetos de criação e abate de aves e gado integrados à produção de farelo e rações, como o complexo da Sadia Oeste e Sadia Agroavícola no Mato Grosso, Coagri e Agroeliane no Mato Grosso do Sul. Não foram incluídos os projetos financiados pelo projeto FOMENTAR em Goiás, o que deixa de fora a empresa Avipar, que está investindo na implantação de um grande complexo de esmagamento de grãos e processamento de carnes naquele Estado.

Nesse período, o BNDES financiou projetos agroindustriais para a região (dos quais cerca de 50% com recursos próprios) envolvendo recursos da ordem de US$ 350 milhões. Esses projetos abrangem atividades diferentes, como armazenagem para grãos, aproveitamento do caroço (para óleo) e de fibras de algodão, processamento de cana-de-açúcar (incluindo álcool), instalação de granjas em sistemas de. integração com pequenos agricultores, construção de fábricas de rações, de abatedouros de frango e gado e de fábricas de óleo e farelo.

A maior parte dos investimentos destinou-se à produção de óleo e farelo e à instalação da infraestrutura básica de armazenamento de grãos, seguida, nos anos recentes, pela criação e ampliação da capacidade de abate de aves e bovinos. A amostra não inclui as inversões realizadas pela Sadia na construção de sua fábrica de óleo e infraestrutura de armazenamento em Rondonópolis, em 1986, nem os recursos alocados em projetos em dificuldades, o que torna a estimativa um pouco conservadora4 4 Dados do Banco Central e do Banco do Brasil, elaborados pelas autoras. .

Além dos financiamentos concedidos pelo BNDES, os projetos agroindustriais da região contam com numerosos recursos creditícios repassados pela SUDAM. Pelo que foi possível apurar na pesquisa, cerca de US$ 400 milhões foram comprometidos com as atividades agroindustriais no Centro-Oeste, em apenas cinco anos. Diferentemente dos financiamentos do Banco (e devido a seu caráter seletivo), os recursos foram distribuídos por um conjunto de atividades, embora a maior parte ainda ficasse com as atividades de esmagamento e de abate.

A participação de recursos incentivados da SUDAM pode atingir 50% do seu valor total, e a isenção fiscal tem a validade de dez anos. No entanto, esses recursos, quando liberados, podem sofrer uma sensível desvalorização e, dependendo das taxas de inflação, podem ter reduzida a parcela referente aos incentivos fiscais a níveis pouco expressivos.

Mais de 90% dos recursos destinados à agroindústria no Mato Grosso foram liberados entre os anos de 1989 e 1991, refletindo o amadurecimento das decisões de investimento realizadas pelos grandes grupos econômicos agroindustriais de carne e soja, sendo que os mais expressivos foram os investimentos em infraestrutura de transporte.

Outra modalidade de incentivo regional analisado, baseado na isenção parcial de ICMS- PRODEI-transferiu cerca de US$ 280 milhões para a instalação de plantas de esmagamento de grãos e US$80 milhões para a criação de complexos integrados de industrialização de carne, entre 1988 e 1991. Observe-se que as empresas agroindustriais beneficiárias se encontram entre as campeãs de recolhimento de ICMS nos estados analisados, devido à grande expressão que têm na economia dos estados do Centro-Oeste. No Mato Grosso, por exemplo, as duas maiores empresas do complexo grãos e carnes chegaram a recolher em ICMS, em 1989, mais do que lograram obter em incentivos ou prêmios fiscais junto à SUDAM e ao PRODEI. A amostra analisada não dá a dimensão total dos investimentos associados à infraestrutura de transporte, embora os inclua parcialmente. O grupo Itamarati, por exemplo, destina pouco menos de um quarto dos recursos para atividades agroindustriais no seu projeto da Chapada dos Parecis (MT), estando o restante do financiamento comprometido com a construção da Ferronorte.

ANÁLISE DA POLÍTICA AGRÍCOLA

Alguns autores chamaram a atenção para as distorções derivadas da equiparação dos preços únicos, introduzidos a partir de 1981, para as áreas agrícolas mais longínquas. Essa igualação desconsideraria os “elementos materiais” que diferenciam os preços ao produtor, alterando as condições mercantis de distribuição regional de produção e de regionalização (Delgado, 1990DELGADO, G. (1990). Política de preços mínimos: uma avaliação do sistema de garantia de preços da CFP. Brasília: IPEA/IPLAN, maio, 1990. Texto para discussão.)5 5 Dados da CONAB, trabalhados pelas autoras. e transformando-se em subsídios à produção agrícola na fronteira. A hipótese implícita é de que sem o desvirtuamento das regras mercantis não haveria deslocamento da produção agropecuária para a fronteira do Centro-Oeste do país.

Constata-se também que o preço recebido pelo produtor, na fronteira, difere do preço das regiões produtoras mais próximas devido ao fator distância, que afeta principalmente o custo do transporte. Se os preços mínimos são fixados sem levar em conta esse dado, o governo, ao realizar uma compra na fronteira, arcaria com o custo total de transferência do produto (Silva, 1989SILVA, E. R. A. (1989). “A política de preço uniforme do óleo diesel e suas implicações no avanço da fronteira agrícola”. Brasília, maio, 1989. Texto para discussão.). A concepção que está por trás desses trabalhos é a de que a exploração econômica agrícola na região Centro-Oeste é resultante dos subsídios implícitos e dependente, em última instância, da subtração dos custos de transporte aos preços de referência (mínimos). A competitividade da agricultura, segundo essa visão, dependeria basicamente de fatores naturais e da distância aos centros de consumo. (O custo de transporte seria o elemento diferenciador do custo total e do preço do produto, que explicaria a existência de renda diferencial e sobre lucro entre regiões.)

Os argumentos que sustentam a expansão da agricultura no Centro-Oeste têm a sua principal explicação no artificialismo da política de preços mínimos uniformes, porém tenderam a ignorar importantes elementos, a seguir apontados:

  1. as análises não levam em consideração nem a dinâmica populacional na região Centro-Oeste (o deslocamento populacional é anterior à política agrícola), nem o progresso tecnológico obtido na pesquisa de produtos como a soja, o milho e o algodão, que tomou viável a agricultura na região e acarretou a elevação da participação do Centro-Oeste na oferta agrícola;

  2. boa parte dos textos não dá importância aos baixos preços da terra e à possibilidade de praticar agricultura de grande escala na região do cerrado;

  3. essas análises terminam por reafirmar o argumento, de rígida inspiração ricardiana, de que o diferencial (de preços) se explica basicamente pelos custos de transporte, deixando de considerar a possibilidade de os custos de produção serem mais baixos;

  4. omite-se ou ignora-se, também, o fato de que o arroz tem sido um produto típico de abertura de áreas (o que não ocorre apenas no Centro-Oeste), ajudando a “amansar” o cerrado, permitindo um retomo do investimento em formação da área agricultável. A participação desse produto no conjunto das aquisições já foi bastante elevada, perdendo importância no Centro-Oeste no período mais recente;

  5. a política de preços mínimos teve o inequívoco propósito de substituir a grande oferta de crédito rural à agricultura, que constituiu um dos principais traços da política agrícola da década de 70, funcionando como uma compensação. A partir de 1987/1988 esses recursos foram extremamente reduzidos, como veremos a seguir.

Ocorreu efetivamente, na década de 80, uma sensível redução dos recursos destinados ao financiamento agropecuário no país: o montante de crédito rural concedido atingiu seu máximo em 1980, a partir daí caiu continuamente em valores reais. Ao longo da década alterou-se a participação do setor público e do setor privado na oferta do crédito agropecuário. Em 1985 o Tesouro Nacional financiou 92% do total do crédito de 89,6% do de custeio, porcentuais que declinaram rapidamente chegando a 29,7% e 25,6% em 1989. Os recursos de cadernetas rurais representaram 18% do crédito total do 15% do de custeio em 1987 e 54% em 1989. A participação de recursos complementares ao Banco do Brasil, repassados a uma taxa de juros mais elevada pela rede de bancos privados, tendeu a aumentar, deslocando a participação oficial e ampliando a taxa de juros média incidente sobre o crédito à produção e à comercialização agropecuária. A elevação dos juros do EGF tornou quase proibitiva a atividade de estocagem privada, forçando o governo a fazer aquisições via AGF. Na realidade, na safra de 1989/1990, os altos custos dos empréstimos e a escassez da oferta de dinheiro influíram na redução da área plantada e da produtividade.

Os recursos destinados à agricultura e à pecuária, somados, atingiram, em 1990, apenas 30,43% do montante do ano de 1980. O crédito à agricultura, por sua vez, atinge, em 1990, 34,32% do seu montante de 1980, e o crédito à pecuária, em 1989, havia sido igual a apenas 8,35% do seu valor no ponto inicial da série. A região Centro-Oeste manteve, basicamente, constante sua participação nos recursos financeiros concedidos à agricultura, à diferença das regiões Nordeste (até 1987) e Sul (principalmente nos últimos anos), que ampliaram suas participações relativas ao longo da década. Se em 1980 o Centro-Oeste respondia por cerca de 5,85% do total, a média dos dez anos para os quais os dados estão disponíveis atinge 5,99%, sendo que a participação do Centro-Oeste na oferta nacional de produtos como o milho e a soja elevou-se consideravelmente ao longo da década, como vimos anteriormente.

Procederemos agora à análise da PGPM, com base na sistematização de dados primários em quantidades e valores dos Empréstimos do Governo Federal (EGF) e das Aquisições do Governo Federal (AGF) para o conjunto dos estados brasileiros. Os dados em valor foram inflacionados pelo IPA-Agrícola/Oferta Global (preços médios de 1990). Partiu-se da avaliação do comportamento dos preços mínimos e dos preços de mercado ao longo da década (cuja proximidade já foi apontada por outros autores).

As séries de preços mínimos e de preços de mercado revelam que estes foram declinantes, a partir de 1983, para a maioria dos produtos da PGPM (algodão, feijão, milho e soja), e que ambos ficaram muito próximos. Como apontou o CEA/IBRE (Cyhlar et al., 1992CYHLAR, M. J. et al. (1992). “Retrospectiva da agropecuária”. Conjuntura Econômica, fevereiro, 1992.), tomando-se o ano de 1980 como base, os preços recebidos (corrigidos) passaram do índice 100 para 93 em 1985; para 70 em 89 e para 54 em 1990. O declínio dos preços agrícolas ao longo da década de 80 acompanhou a tendência à estagnação das cotações internacionais das principais commodities agrícolas. No caso da soja, 1985, 1986 e 1987 foram anos de forte redução de preços, tendo importantes consequências sobre os volumes de AGF e de EGF bancados pelo governo. Sendo assim, as AGF e os EGF em valor crescem significativamente menos do que os dados em quantidades. A composição dos produtos financiados e comprados pelo governo a cada ano (e seus respectivos patamares de preços) interfere também nos montantes globais de AGFs e EGFs: produtos de maior valor, como o algodão e a soja, ceteris paribus, apresentam participação relativa, em valor, superior às suas participações em quantidades.

O crescimento das AGFs em quantidades pode ser considerado explosivo a meados da década: tomando-se 1980 = 100, em 1985 o índice atingiria 393, em 1986, 325; em 1987, 590; em 1988, 195. A partir desse ano as AGFs caem verticalmente, atingindo valores inferiores aos do início da década (81 e 26 em 1989 e 1990). Entretanto, medidas em valor, as AGFs entre 1985 e 1988 são, respectivamente, 282, 174, 168 e 52, o que constitui um resultado bastante diferente. A partir desse ano, caem mais abruptamente, apresentando, nos anos de 1989 e 1990, índices de 14% e 7 ,5% do que haviam sido no início da década. Os anos de crescimento de AGF são efetivamente 1985, 1986 e 1987. A partir daí, perdem significativa importância.

As aquisições de arroz e milho lideraram, em geral, a pauta de produtos, chegando a somar uma participação superior a 80% do total após o ano de 1987. Em 1985, no entanto, as participações de arroz (17,3%) e do milho (26,6%) são superadas pela do algodão (em pluma e em caroço), que responde por 28,4% do total, ao que se acrescenta a participação da soja, 19,2%, e do feijão, 6,9% do total desse ano. No caso da soja a ocorrência de AGF limita-se ao período 1985/1987 - anos em que as cotações internacionais e internas do produto caem subitamente. Nos demais anos da série, suas cotações internas superam com folga os preços mínimos estabelecidos pelo governo. Nesse sentido, dada a composição da pauta de AGF, o período 1985/1987 pode ser considerado anômalo.

O financiamento da comercialização dos produtos (EGF) é declinante ao longo de toda a década. Apenas em 1982 o valor do EGF chega a ser 54% superior ao que havia sido no ano de 1980. A partir daí, os montantes caem até chegar ao índice de 22,9% no ano de 1990. A composição dos produtos nos EGFs é também diferente. Produtos de maior valor e que constituem matéria-prima para a agroindústria- soja e algodão e, em certa medida, o milho - respondem por uma maior participação no total dos EGFs. A participação do arroz (e também do milho) só se amplia a partir de 1988, quando os produtores decidem alongam prazo dos EGFs à espera de melhores cotações de mercado para a venda de seus produtos.

Para se ter ideia da ordem de grandeza das aquisições do governo em relação aos financiamentos da comercialização, em 1980 as AGFs somavam apenas 4% do valor dos EGFs. Entre 1980 e 1984, essa relação foi, em média, de 2,4%. Em 1985, a relação salta para 145%, em 1986 baixa de novo para 86,25% e, em 1987, atinge seu ponto máximo, 149%. Entretanto, dado o declínio verificado nos valores do EGF ao longo da década, em 1985 o AGF era apenas 88% do valor do EGF de 1980, ano inicial da série. Em 1986, essa porcentagem (AGF 1986/EGF 1980) representa apenas 54% do total dos empréstimos do ponto inicial da série.

A opinião de que a expansão agropecuária no Centro-Oeste dependeu fortemente da intervenção governamental na comercialização dos produtos, e de que tal crescimento seria artificial em condições de restrição do orçamento público e crise fiscal, se apoia na elevada participação da região Centro-Oeste nas AGFs, e na constatação de que uma parcela significativa da produção agrícola regional (em muitos casos mais do que 50%) era, de fato, adquirida pelo governo.

Nos anos 1980, 1981, 1989 e 1990 a participação da região iguala ou supera 80% das AGFs totais. Em termos absolutos, no entanto, os valores adquiridos pelo governo são os menores da série. Em média, nos onze anos analisados, a participação da região Centro-Oeste nas AGFs é da ordem de 58,09% do total. Entre 1985 e 1987, ano sem que são mais expressivos os valores de AGF, a participação média da região cai para 50% do total.

Ao separar a análise dos produtos, é possível relativizar a convicção de que existe uma estatização da comercialização de grãos no Centro-Oeste, como já foi constatado por Rezende (1990REZENDE, G. C. (1990) “A agricultura de grãos no Centro-Oeste: evolução recente, vantagens comparativas regionais e o papel da política de preços mínimos”. Brasília: IPEA. Texto para discussão.). No Centro-Oeste, assim como no conjunto do país, a ocorrência das AGFs na soja é uma exceção, sendo a comercialização da soja de fato um negócio do agribusiness. No caso do arroz, a região Centro-Oeste é responsável por uma parcela majoritária das quantidades compradas pelo governo. Uma vez que a participação da safra do Centro-Oeste no total da produção nacional vem caindo ao longo do tempo (chegando em 1990 a ser de apenas 13% do total nacional), as compras de arroz através de AGF (em valor) tomaram-se, em termos absolutos, praticamente irrisórias. Em síntese, as AGF, em valor, foram em 1990 apenas 7,5% do que haviam sido no início da década. Nesse total, pouco significativo, a participação do produto arroz é bastante elevada (59%, 69% e 25% entre 1988 e 1990, respectivamente), sendo que este arroz foi basicamente comprado na região Centro-Oeste.

Um exame dos dados para o milho revela que, entre 1985 e 1987, a participação das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste é muito similar (em 1985, as compras de milho no Sudeste e no Sul superaram as realizadas na região Centro-Oeste). A partir de 1988, observa-se uma redução muito expressiva das aquisições de milho em valor (18% do que haviam sido no ano anterior, caindo ainda para 5% desse montante no ano de 1989). Nesses anos, praticamente toda a aquisição se faz na região Centro-Oeste, mas os valores totais adquiridos são, evidentemente, muito pequenos. Até 1985, inclusive, a participação média da região Centro-Oeste no EGF foi da ordem de 8% e, de 1986 a 1990, essa participação eleva-se para 20% do total. No final da década, entretanto, o volume total dos EGFs era cerca de 20% do que havia sido em 1980.

Em síntese, a importância dos gastos de comercialização do governo (AGF e EGF) foi declinante ao longo da década. Após os anos nem tão críticos de 1985, 1986 e 1987 (quando comparados com o início da década,) os valores financiados pelo governo praticamente se esvaíram, de forma que, ao implementar a regionalização dos preços mínimos para resolver o grande problema da estatização da comercialização de grãos no Centro-Oeste, o governo estava, na realidade, atirando num alvo que já fora abatido.

PARA CONCLUIR

Buscamos chamar a atenção para o grande crescimento agroindustrial na fronteira, que, encontrando brechas na crise brasileira, mostrou-se capaz de viabilizar investimentos num quadro de desempenho medíocre do comércio internacional de produtos agrícolas. As empresas lograram, assim, ampliar sua capacidade produtiva, visando ocupar espaços para uma futura retomada do crescimento dos mercados regionais, nacionais e externos. Uma vez em curso, esses investimentos revelaram-se capazes de induzir renda e emprego, transbordando seus efeitos benéficos para a economia regional.

Se tais resultados foram, em alguma medida, devidos aos incentivos fiscais, e certamente o foram, fica mais difícil afirmar que devam tributo às políticas agrícolas - crédito rural e PGPM -, cuja manutenção se toma discutível num quadro de alta inflação e de crise fiscal, haja vista o notável declínio dos recursos aplicados na agricultura na segunda metade dos anos 80.

A experiência dos cerrados nos leva, no entanto, a repensar o papel das políticas de desenvolvimento (agro)industrial. Ainda que essa temática possa parecer anacrônica para muitos, ela vem ganhando recentemente novos adeptos. A defesa de políticas ativas encontra fundamento na nova teoria do comércio internacional, segundo a qual justifica-se o papel das políticas governamentais de assegurar mais renda através da promoção de setores com capacidade de gerar “economias externas”, ou externalidades, benéficas à região e ao país.

“A razão pela qual as economias externas se tomaram uma questão de comércio é que (...) a reavaliação do comércio dá à inovação tecnológica um papel estratégico. A inovação, na medida em que envolve a geração de conhecimentos, é particularmente capaz de gerar valiosos ‘transbordamentos’, de forma que existe uma boa razão para suspeitar que algumas políticas de sustentação de renda possam ser usadas para encorajar atividades produtoras de economias externas”. (Krugman, 1986KRUGMAN, P. R. (1986). Strategic trade policy and the new international economics. Londres: The MIT Press..)

GRÁFICO 1
Algodão em pluma (a preços de nov/91)

GRÁFICO 2
Arroz sequeiro (a preços de nov/91)

GRÁFICO 3
Feijão cores (a preços de nov/91)

GRÁFICO 4
Milho (a preços de nov/91)

GRÁFICO 5
Soja (a preços de nov/91)

GRÁFICO 6
Preço internacional médio de mercado agrícola (commodities) selecionados

Tabela 3
Participação das regiões no total dos financiamentos concedidos à agricultura, em % sobre o total anual Brasil (1980=100)

GRÁFICO 7
AGF - Soja. Brasil e regiões

GRÁFICO 8
EGF - Soja. Brasil e regiões

GRÁFICO 9
AFG - Algodão. Brasil e regiões

GRÁFICO 10
EGF - Algodão. Brasil e regiões

GRÁFICO 11
AFG - Arroz. Brasil e regiões

GRÁFICO 12
EGF - Arroz. Brasil e regiões

GRÁFICO 13
EGF - Milho. Brasil e regiões


Empresas por origem do capital (valor do ICMS) - 1991.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • CYHLAR, M. J. et al (1992). “Retrospectiva da agropecuária”. Conjuntura Econômica, fevereiro, 1992.
  • DELGADO, G. (1990). Política de preços mínimos: uma avaliação do sistema de garantia de preços da CFP. Brasília: IPEA/IPLAN, maio, 1990. Texto para discussão.
  • KRUGMAN, P. R. (1986). Strategic trade policy and the new international economics Londres: The MIT Press.
  • PRADO, E.F.S. (1981) “Estrutura tecnológica e desenvolvimento regional”. São Paulo IPE/ USP, Ensaios Econômicos nº 10.
  • REZENDE, G. C. (1990) “A agricultura de grãos no Centro-Oeste: evolução recente, vantagens comparativas regionais e o papel da política de preços mínimos”. Brasília: IPEA. Texto para discussão.
  • SILVA, E. R. A. (1989). “A política de preço uniforme do óleo diesel e suas implicações no avanço da fronteira agrícola”. Brasília, maio, 1989. Texto para discussão.
  • 1
    Entre 1980 e 1990 a agropecuária cresceu à taxa de 2,5% ao ano, taxa essa superior à do conjunto da economia, que foi de 1,5%. A indústria de transformação, por sua vez, teve um crescimento médio negativo de O,1% ao ano. Entretanto, os setores industriais de forte base agrícola apresentaram resultados superiores à média global: produtos alimentares (1,5%), fumo (3,5%), papel e papelão (2,7%) e, de menor conteúdo agrícola, perfumaria, sabões e velas (5,0%) e bebidas (2,9%).
  • 2
    A evolução da agroindústria na região Centro-Oeste carece de fontes estatísticas capazes de medir o desempenho setorial. Na pesquisa recentemente realizada pelas autoras foram utilizadas tabulações especiais do censo industrial de 1985, requeridas pela Pesquisa Industrial Mensal (PIM/IBGE), em que foram identificadas as empresas cuja produção representava, em 1985, um “grau de significância” da ordem de 50% (sua produção pertence aos primeiros 50%da produção nacional daquele gênero ou produto). Essa amostra foi comparada com a listagem de empresas agroindustriais entre as 200 maiores firmas pagadoras de ICMS de cada Estado para o ano de 1991. Entrevistas com um número significativo de empresas identificadas nas duas fontes, especialmente sobre sua estratégia de crescimento na região, completaram o material da pesquisa. Os problemas de mensuração e os procedimentos adotados estão explicitados na metodologia da pesquisa ‘’A dinâmica agroindustrial no Centro-Oeste: caracterização, problemas, potencial de expansão e fluxos de investimento”.
  • 3
    Dados primários obtidos junto ao BNDES.
  • 4
    Dados do Banco Central e do Banco do Brasil, elaborados pelas autoras.
  • 5
    Dados da CONAB, trabalhados pelas autoras.
  • 6
    JEL Classification: Q17; F14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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