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Entre a acomodação e o confronto: os dilemas da renegociação da dívida externa brasileira, 1983-1987

Between accommodation and confrontation: the dilemmas of renegotiating the Brazilian external debt, 1983-1987

RESUMO

Após uma revisão histórica dos procedimentos de renegociação da dívida externa brasileira de 1983 a 1987, este artigo discute cinco pontos técnicos controversos: cálculo do spread e método de reestruturação, repasse interno das amortizações reestruturadas, jurisdição do tribunal estrangeiro, monitoramento do FMI e conversão patrimonial da dívida.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; crise da dívida

ABSTRACT

After a historical revision of the Brazilian foreign debt renegotiation procedures from 1983 to 1987, this article discusses five controversial technical points: the spread’s calculus and restructuring method, internal re-lending of the restructured amortizations, foreign court’s jurisdiction, IMF monitorization, and debt equity conversion.

KEYWORDS:
External debt; debt crisis

Em dezembro de 1982, no Hotel Plaza de Nova York, a comunidade financeira internacional assistiu aliviada à apresentação, pelo presidente do Banco Central do Brasil, da proposta para a primeira renegociação da dívida externa brasileira, sob a égide do Fundo Monetário Internacional. Quatro anos depois, essa mesma comunidade ouviu consternada a declaração do governo brasileiro, desconectado do Fundo Monetário Internacional, de suspensão unilateral do pagamento dos juros da dívida externa de médio e longo prazos do país com os bancos comerciais.

A próxima seção analisa a evolução das negociações brasileiras com os bancos comerciais desde a reunião no Hotel Plaza até a moratória unilateral de fevereiro de 1987. Discutem-se a seguir alguns dos principais pontos de controvérsia sobre o conteúdo da renegociação suscitados por esta experiência. As conclusões estão sumariadas na última seção.

AS FASES DA RENEGOCIAÇÃO

A necessidade da reestruturação da dívida externa brasileira tornou-se inevitável a partir da moratória mexicana de agosto de 1982. A subestimativa dos recursos necessários na primeira fase da renegociação, fruto da incompreensão dos negociadores quanto à dimensão da crise que então se iniciava, logo tornou necessária a abertura de uma segunda fase da renegociação. A recuperação da posição de reservas internacionais do país, em virtude da mudança de patamar das exportações brasileiras em 1984, deu mais adiante condições para a preparação de um Acordo de Reestruturação Plurianual. Este, entretanto, não chegou a ser assinado devido à suspensão pelo Fundo Monetário Internacional, no início de 1985, do programa trienal de ajuste que havia acertado com o governo brasileiro em 1983. A partir da posse do primeiro governo civil no país em vinte e um anos, em março de 1985, não houve condições para um novo entendimento com o Fundo. Após sucessivas prorrogações informais dos acordos anteriores, finalmente se acordou um novo esquema de reestruturação anual com os bancos em março de 1986. No segundo semestre de 1986, o excesso de demanda interna e atraso cambial provocados pelo Plano Cruzado fizeram minguar o superávit comercial que desde o final de 1984 sustentava uma confortável posição de reservas internacionais para o país. Em consequência, essas reservas tenderam rapidamente a desaparecer, o que induziu o governo brasileiro a suspender o pagamento dos juros da dívida de médio e longo prazos devidos aos bancos estrangeiros em fevereiro de 1987.

1. Moratória mexicana e Fase I da renegociação

A forte contração das linhas internacionais de crédito de curto prazo que se seguiu à moratória mexicana causou uni rápido esgotamento das reservas externas brasileiras no segundo semestre de 1982 (Quadro 1). Evitou-se, entretanto, uma moratória dos pagamentos externos através da obtenção de “empréstimos-ponte” do Tesouro norte-americano, do Banco de Compensações Internacionais (BIS) e de um pequeno grupo de grandes bancos comerciais americanos, no valor total de US$ 5,5 bilhões.

Naquele momento, a visão do governo brasileiro era a de que o país estava passando por uma crise de liquidez de caráter temporário, e que seu acesso às fontes privadas de crédito internacional seria brevemente restabelecido, uma vez que passassem os efeitos da tormenta causada pela moratória mexicana. O importante era tranquilizar a comunidade financeira internacional, diferenciando o mais possível a situação brasileira da mexicana.1 1 Típica da atitude do governo brasileiro no período é a exposição do ministro da Fazenda ao Congresso Nacional no início de 1983. Veja-se: E. Galveas, “A Crise Mundial e a Estratégia Brasileira de Ajuste do Balanço de Pagamentos”, Brasília, Senado Federal, 23.3.1983. Foi com este espírito que, ultrapassadas as eleições de novembro de 1982, os negociadores brasileiros trataram de obter o selo de aprovação do FMI à condução da política econômica interna, através da assinatura de um acordo plurianual de estabilização, como condição prévia para assentarem-se, em fevereiro de 1983, os mecanismos de consolidação temporária da dívida externa brasileira com os bancos comerciais.

Estes mecanismos foram distribuídos em quatro projetos:

  • Projeto 1: US$ 4,4 bilhões de dinheiro novo. Participaram deste projeto, coordenado pelo Morgan Guaranty, os bancos com saldos credores acima de USS 35,0 milhões em empréstimos de médio e longo prazos, num total de 176 bancos. Os recursos deste projeto seriam liberados em quatro parcelas, a primeira em março, de US$ 2,5 bilhões, e as seguintes em junho, setembro e dezembro, todas no valor de US$ 635 milhões: A liberação de cada parcela ficou condicionada à prévia liberação de sucessivas tranches do empréstimo do FMI, previstas para março, maio, agosto e novembro.

  • Projeto 2: USS 4,6 bilhões de refinanciamento de amortizações de empréstimos de médio e longo prazos devidas em 1983, pelo prazo de oito anos, com 2 1/2 anos de carência, sob a liderança do Citibank.

  • Projeto 3: USS 8,8 bilhões de rolagem das linhas de crédito comercial de curto prazo, colocadas por bancos estrangeiros à disposição de empresas estatais brasileiras e de bancos brasileiros autorizados a operar em câmbio. Projeto coordenado pelo Chase Manhattan.

  • Projeto 4: USS 9,4 bilhões de rolagem dos depósitos interbancários mantidos pelos bancos comerciais estrangeiros nas agências de bancos brasileiros no exterior, com coordenação do Bankers Trust (No Quadro 2, o valor deste projeto é de USS 6,0 bilhões, porque foi este o número com que os bancos eventualmente vieram a se comprometer).

Quadro 1
Reservas Internacionais no Banco Central do Brasil (Em Us$ Milhões)

Os contratos para os empréstimos previstos nos Projetos 1 e 2 foram formalmente assinados em Nova York. Quanto aos Projetos 3 e 4, apenas solicitou-se aos bancos apresentarem manifestações de adesão por telex, sem que houvesse contratação formal das operações.

Contrariamente às expectativas otimistas iniciais, logo se manifestaram percalços na implantação, tanto do acordo com o FMI como do acordo com os bancos.

Antes mesmo que a Diretoria do Fundo pudesse analisar a primeira Carta de Intenções, enviada pelo governo brasileiro em 7.1.1983, estabelecendo os critérios trimestrais de desempenho para o exercício de 1983, o governo brasileiro decidiu promover uma desvalorização de 30 por cento da taxa de câmbio do cruzeiro em relação ao dólar. Este fato, aliado a diversos defeitos técnicos advindos da pressa com que o acordo foi negociado, propiciou o envio ao Fundo, em 24.2.1983, de um adendo à primeira Carta de Intenções, com novos critérios de desempenho para os quatro trimestres de 1983.2 2 Sobre os descaminhos das negociações com o FMI, consulte-se Maria Silvia Bastos Marques, “FMI: a Experiência Brasileira Recente”, em Edmar Lisboa Bacha e Miguel Rodriguez Mendoza (orgs.), Recessão ou Crescimento: o FMI e o Banco Mundial na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 123-168. Os critérios de desempenho creditício e fiscal deste adendo foram, entretanto, fixados na expectativa de uma taxa anual de inflação de 70 por cento quando na realidade ela iria situar-se em 211 por cento. Consequentemente, os limites previstos para o déficit fiscal e a expansão creditícia foram amplamente violados, já no primeiro trimestre do programa. Este fato levou a Diretoria do Fundo, no final de maio, a suspender o desembolso de novas parcelas de seu empréstimo ao país, dependendo de uma revisão do programa de estabilização. Também parece haver pesado na decisão do Fundo o acúmulo de atrasados de pagamentos, em consequência das dificuldades de implantação do acordo com os bancos.

Quanto aos bancos, o principal problema residiu nas linhas interbancárias. O Projeto 4 previa a restauração de depósitos interbancários, nas agências dos bancos brasileiros no exterior, nos valores observados em 31.6.1982, ou seja, USS 9,4 bilhões. Ao tornar-se patente a inviabilidade deste número, pois se partia de um valor de USS 6, l bilhões em janeiro de 1983, o diretor executivo do FMI conclamou os bancos a sustentarem uma meta imediata de USS 7,5 bilhões. Entretanto, após um aumento dos depósitos em fevereiro, eles voltaram a cair nos meses subsequentes, situando-se em USS 6,0 bilhões no final de maio.

Quadro 2
Acordos de renegociação com os bancos comerciais quadro comparativo

A indefinição causada por essas dificuldades e pela suspensão do programa com o FMI levou à parada quase total do fluxo de recursos externos para o país, inclusive dificultando o saque de parcelas devidas de empréstimos bancários anteriormente comprometidos.

Nessas circunstâncias, foram se acumulando os atrasos nos pagamentos devidos ao exterior, atingindo a cifra de USS 2,5 bilhões em agosto de 1983. Já no final de julho, a deterioração do fluxo de caixa levou o Banco Central, pela Resolução n. 851, de 29.7.1983, a monopolizar as compras de câmbio, estabelecendo critérios administrativos para a liberação dos pagamentos, com vistas a um melhor ordenamento das contas externas do país. Esta centralização cambial somente veio a ser revogada em março de 1984.

Em retrospecto, o principal erro da negociação da Fase I consistiu na crença, por parte dos negociadores brasileiros, de que mecanismos voluntários seriam o melhor caminho para restaurar a posição de caixa do país. Disto resultou o equívoco de confiar-se numa restauração voluntária dos depósitos interbancários através do Projeto 4, e a consequente subestimativa do volume de dinheiro novo no Projeto 1 necessário para fechar o balanço de pagamento em 1983.3 3 Para uma contundente crítica desta postura, veja-se Paulo Nogueira Batista Jr., “Negociação Financeira Externa: Resultados Iniciais e Problemas Pendentes”, Texto para Discussão n 11/86, Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional, IBRE, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

2. Fase II da renegociação

Face às dificuldades da Fase I, antes mesmo do final do primeiro semestre tiveram início os entendimentos para a Fase II da renegociação da dívida externa brasileira.

A primeira providência foi o fortalecimento administrativo do comitê de bancos credores, encarregado da coordenação e acompanhamento da renegociação, o qual passou a ser presidido exclusivamente pelo Citibank. A primeira reunião dos negociadores brasileiros com o novo Comitê de Assessoramento teve lugar em Nova York, em 16.6.1983. Estabeleceram-se então, como prioridades, a consolidação das linhas de curto prazo, especialmente no Projeto 4, e a obtenção de recursos adicionais de médio prazo requeridos para o restante do ano de 1983 e para 1984.

Como resultado dos mecanismos de supervisão e controle montados pelo novo Comitê Assessor, a partir de julho obteve-se uma relativa estabilização nas linhas de crédito interbancário. No final de outubro, o governo obteve do Congresso brasileiro a aprovação de uma proposta de desindexação parcial dos salários, a partir da qual desenhou uma nova proposta de estabilização, que foi aprovada pela Diretoria do FMI em novembro. Com a aprovação do novo programa, foram liberadas as parcelas dos empréstimos até então retidas, tanto do FMI como do dinheiro novo da Fase I. Com estes recursos, o país pôde então começar a saldar seus pagamentos atrasados, incluindo os empréstimos-ponte do BIS e dos próprios bancos, concedidos no final de 1982.

A estrutura da Fase II - formalizada em solenidade de assinatura dos contratos no Hotel Pierre, de Nova York, em 27.1.1984 - foi semelhante à da Fase 1, envolvendo os mesmos projetos básicos, com as seguintes novidades:

  1. contratação formal das linhas de curto prazo, comerciais e interbancárias, mediante assinatura de cartas de compromisso;

  2. renegociação dos créditos oficiais no âmbito do Clube de Paris;

  3. participação de agências oficiais de crédito na concessão de linhas de financiamento para importações brasileiras;

  4. alargamento do espectro de bancos participantes do projeto de dinheiro novo, de forma a alcançar-se o universo de credores;

  5. inclusão, na base de cálculo determinante da participação de cada banco no projeto relativo a dinheiro novo, dos saldos dos Projetos 3 e 4.

Especificamente, foram os seguintes os projetos assinados:

  • Projeto A ou “New Money Facility Agreement”. Projeto “jumbo”, coordenado pelo Morgan Guaranty Trust, reunindo USS 6,5 bilhões em novos empréstimos de 792 bancos credores;

  • Projeto B ou “Deposit Facility Agreement”, coordenado pelo Citibank, envolvendo a rolagem de aproximadamente USS 5,4 bilhões, correspondentes ao refinanciamento por nove anos de prazo com cinco anos de carência das amortizações de médio e longo prazo devidas em 1984 para cerca de 554 instituições bancárias;

  • Projeto C ou “Trade Facility Agreement”, pelo qual 231 bancos credores, coordenados pelo Chase Manhattan Bank, comprometeram-se a manter linhas comerciais de curto prazo no nível das existentes em 30 de junho de 1983, ou USS 10,3 bilhões;

  • Projeto D ou “Interbank Facility Agreement”, coordenado pelo Bankers Trust, envolvendo USS 6,0 bilhões para operações no mercado interbancário. Trata-se da manutenção dos depósitos de curto prazo feitos por 275 bancos estrangeiros e agências de bancos brasileiros no exterior, nos níveis de 30 de junho de 1983.

Houve ainda uma melhoria marginal nas condições financeiras, com redução dos spreads e alargamento de prazos, conforme se vê no Quadro 2. O Brasil também sugeriu ao Comitê Assessor, relativamente ao projeto de dinheiro novo, a capitalização parcial dos juros como forma substitutiva ao levantamento desses recursos mediante sindicação em mercado, tendo em vista o caráter moroso, o custo comparativo elevado e os desgastes inerentes a este processo. Entretanto, tal proposta - que implicaria um alto grau de autonomia na produção de “dinheiro novo” por parte do país, contrariando assim o princípio da “rédea curta” que norteava a posição negociadora dos bancos credores - não foi aceita pelos bancos, sob o pretexto das restrições regulatórias prevalecentes nos Estados Unidos, país-sede dos principais credores. Na época, o governo brasileiro, ainda dominado pela ideia da conciliação como a melhor forma de assegurar um breve retorno ao mercado, houve por bem não insistir nessa demanda.

O pleito inicial do Brasil de “dinheiro novo” na Fase II, de USS 9,2 bilhões, também não foi atendido pelos bancos, que concordaram em desembolsar não mais do que USS 6,5 bilhões. Apesar disto, o extraordinário desempenho das exportações brasileiras, evoluindo de USS 21,9 bilhões em 1983 para USS 27,0 bilhões em 1984, permitiu uma ampla reposição das reservas internacionais do país. No conceito de caixa do Banco Central, estas reservas saíram de USS 1,5 bilhões em dezembro de 1983 para atingir USS 7,5 bilhões em dezembro de 1984.

A melhoria da posição de reservas do país fortaleceu sua posição de barganha frente ao FMI, permitindo ao governo ir obtendo sucessivos “perdões” pelo não cumprimento das metas creditícias e fiscais do seu programa de ajustamento. Deste modo, através de sucessivas revisões, o acordo manteve-se sem novas suspensões até o final do ano.

Foi assim num clima de relativa tranquilidade que se iniciaram no último trimestre de 1984 os preparativos para a Fase III da renegociação, para a qual se contemplavam duas grandes novidades: a não-necessidade de “dinheiro novo” e a renegociação plurianual das amortizações da dívida preexistente.

3. Minuta da Fase III da renegociação

A mudança de patamar das exportações brasileiras em 1984, associada ao sensível aumento da produção doméstica de petróleo, tornaram subitamente caducas todas as projeções anteriores do balanço de pagamento, que previam contínua necessidade de “dinheiro novo” provindo dos bancos comerciais, para sustentar um retorno às taxas históricas de crescimento do PIB da ordem de 6,5 por cento ao ano.4 4 Veja-se, por exemplo, Edmar Bacha, “Choques Externos e Perspectivas de Crescimento: o Caso do Brasil, 1973-89”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 14(3), dez. 1984, pp. 583-622. Nesse texto, sob a hipótese de uma taxa de crescimento das exportações de 7% ao ano em termos reais, estimava-se a necessidade da capitalização de metade dos juros devidos, para permitir um crescimento do PIB de 6,5% ao ano. Projeções auxiliares indicavam ser preciso um crescimento aparentemente inatingível das exportações, de 10%o ao ano em termos reais, para tornar desnecessária a obtenção de “dinheiro novo” dos bancos. Tornadas caducas pelo surpreendente comportamento das exportações em 1984, essas projeções voltaram a ser relevantes em 1987, conforme atestado pelo Plano do Controle Macroeconômico do ministro Bresser-Pereira, em virtude do decepcionante comportamento das exportações em 1986. No início de 1985, a estimativa oficial passou a ser que, “sob hipóteses conservadoras”, a balança comercial brasileira poderia apresentar superávits anuais ao redor de USS 13,0 bilhões, enquanto o déficit em transações correntes se situaria na faixa dos USS 2,0 bilhões. Nessas projeções, a necessidade de montantes expressivos de novos empréstimos de bancos apareceria apenas em 1990 e 1991.5 5 Ver Banco Central do Brasil, Relatório do Setor Externo da Economia Brasileira, 1979-1984, Brasília, fev. 1985, pp. 7-8.

Acenava-se, assim, novamente com a possibilidade de o país em breve voltar a ter um acesso voluntário ao mercado internacional de capitais. Deste modo, a preocupação central dos negociadores brasileiros foi a de reconstruir o perfil da dívida externa, de modo a evitar a necessidade de novas renegociações com os bancos comerciais - pelo que se esperava fosse um longo tempo. Além da consolidação das amortizações dos empréstimos de médio e longo prazos a vencer no período de 1985 a 1991, outro passo importante para isso era encontrar uma solução para o problema colocado pelo congelamento das linhas interbancárias mantidas pelos bancos estrangeiros junto às agências dos bancos brasileiros no exterior (Projeto D da Fase II). A estratégia de solução contemplava o progressivo fortalecimento da posição de caixa dessas agências, por sua exclusão do plano de refinanciamento da dívida externa brasileira. A liberação de divisas para o pagamento, no prazo previsto, das amortizações devidas pelos residentes no país a estas agências permitiria a elas dispensar parte dos depósitos interbancários congelados. Paralelamente, os bancos estrangeiros assumiriam o compromisso de transferir um valor equivalente aos depósitos que fossem sendo saldados para linhas comerciais de curto prazo. Essas, aliás, como consequência mesmo da retomada das exportações brasileiras, já vinham tendendo a se situar, de forma voluntária, em níveis superiores àqueles previstos no Projeto C da Fase II da renegociação.

Sem embargo, a proposta em discussão estava longe de implicar uma total limpeza de área, conforme seria desejável dentro de uma perspectiva de propiciar uma solução duradoura para a dívida externa brasileira. O total da dívida de médio e longo prazos com os bancos estrangeiros a vencer no período 1985 a 1991 era de USS 52,1 bilhões, dos quais USS 6,8 bilhões, referentes à Fase II e devidos no período de 1989 a 1991, foram desde o início excluídos da renegociação. Os bancos também sustentaram haver um entendimento prévio - negado pelo governo brasileiro - no sentido de excluir de futuras renegociações os empréstimos, anteriormente contratados, mas somente desembolsados durante a crise cambial de 1983, na vigência da Fase I, no valor de USS 1,3 bilhões. Adicionalmente, os bancos propuseram um sistema de down-payments, estabelecendo a remessa aos credores de percentuais crescentes dos valores reestruturáveis a cada ano - 4% em 1985, 5% em 1986, 8% em 1987, e 10% em 1988. Aceitas as condições propostas pelos bancos, no total, o país se comprometeria a resgatar cerca de USS 10,4 bilhões, ou seja, 20% da dívida originalmente devida no período 1985-1991. Novamente, a ideia do retorno ao mercado por via da adoção de uma atitude conciliadora com os bancos prevalecia sobre a alternativa de se fazer uma “limpeza de área” da dívida velha, para dar espaço a novas formas de acesso ao mercado internacional de capitais.

Em termos de custos, propiciava-se uma redução de spreads e fees em comparação com os valores vigentes nas Fases I e II, além de se abolir a opção dos bancos de usarem a prime rate como taxa de juros de referência. Outras características controversas do acordo proposto referem-se ao relending, ao monitoramento do FMI e à forma da reestruturação. Elas estão sumariadas no Quadro 2, e são discutidas com maior detalhe na Seção 3.

Em fevereiro de 1985, Tancredo Neves, que iria tomar posse na presidência do país em 15 de março, deu luz verde aos negociadores do governo anterior para fechar o acordo com os bancos. Entretanto, face a um desvio substancial das metas monetárias previstas para dezembro e janeiro, o Fundo Monetário Internacional decidiu não tomar em consideração a carta de intenções submetida pelo governo em novembro-dezembro de 1984, e suspendeu a vigência do acordo com o Brasil, esperando a posse do novo governo para discussão do programa econômico para 1985. Isto impediu a assinatura do acordo plurianual com os bancos.

4. Acordo de 1985-1986

Após alguns entendimentos iniciais, o novo governo e o Fundo decidiram cancelAr a Facilidade Ampliada de Empréstimos (“Extended Financing Facility”) assinada em 1983, iniciando-se então a negociação para um stand by de 18 meses. Entretanto, não foi possível chegar-se a um acordo particularmente sobre as metas fiscais a serem perseguidas. Considerou-se, então, a possibilidade de manter-se um sistema atenuado de monitoramento do Fundo sobre a política econômica interna, sem a assinatura de um acordo formal de crédito, à semelhança da Venezuela. Face à situação de relativa folga cambial do país, os negociadores brasileiros resolveram, entretanto, forçar a renegociação com os bancos, mantendo com o Fundo exclusivamente as consultas anuais previstas no artigo 4º. de seu convênio constitutivo.

Enquanto assim evoluíam os entendimentos com o Fundo, os acordos da Fase II foram sendo sucessivamente prorrogados por períodos de três-quatro meses, até que, no início de março de 1986, o governo brasileiro acertou com o comitê assessor um acordo referente às amortizações devidas em 1985 e 1986 e a prorrogação, por mais um ano, das linhas comerciais e interbancárias. A assinatura formal do acordo, entretanto, somente se deu em setembro, em virtude da reação negativa de alguns bancos à decisão do governo brasileiro - quebrando uma praxe do governo anterior - de não tratar os bancos credores estrangeiros de uma forma privilegiada em relação aos credores brasileiros de três bancos locais, cuja liquidação havia sido determinada pelo Banco Central.6 6 Esse problema foi eventualmente contornado pela criação pelo Banco Central de um sistema de seguros para empréstimo a bancos brasileiros, o qual aparentemente teve aplicação retroativa ao caso dos três bancos liquidados.

Em virtude da resistência do governo brasileiro a firmar novos acordos com os bancos, em que admitisse jurisdição estrangeira, tecnicamente as cláusulas do novo acordo consistiram apenas de um adendo aos acordos da Fase II das negociações. A par da novidade de não estar “colateralizado” por um acerto prévio com o Fundo Monetário Internacional, na área de custos o novo acordo previa três alterações referentes à parcela de dívida com vencimento em 1985 e 1986: o spread foi reduzido de 2% sobre a LIBOR para 1 l/8%; a prime rate norte-americana deixou de servir como taxa de referência alternativa à LIBOR; e suprimiram-se as comissões (flat fees) cobradas anteriormente, que foram de l,5% e 1% respectivamente nas Fases I e II. Outras características estão indicadas no Quadro 2.7 7 No Acordo de 1985-1986, o governo brasileiro concordou com o pleito dos bancos de excluir dos valores reestruturados os créditos contratados antes da Fase I, mas “voluntariamente” internados no país após 1.1.1983. Também deve-se notar que as novas condições financeiras se aplicaram retroativamente, a partir de janeiro de 1986.

Com relação ao acordo plurianual, as negociações não puderam prosseguir, tanto pela não assinatura de um acordo de stand by com o FMI, como pela recusa do governo brasileiro em admitir o esquema de monitoramento de sua política econômica interna pelo Fundo, conforme previsto na minuta de fevereiro de 1985 para a Fase III das negociações. Havia inicialmente uma tendência a aceitar a enhanced surveillance ao estilo mexicano durante o período de consolidação da dívida, ou seja, até 1991, mas posteriormente a posição brasileira evoluiu para somente admitir um relacionamento com o Fundo com base no art.4º. No final de janeiro de 1987, o governo brasileiro concluiu um acordo de renegociação com o Clube de Paris, prevendo um mecanismo de enhanced contacts com o Fundo, uma fórmula mantida propositalmente vaga, mas que embute uma promessa de manter o FMI constantemente informado sobre a economia do país, independentemente da visita anual prevista no art. 4º.. Este mecanismo, entretanto, foi julgado insuficiente pelo Clube de Paris para apoiar um esquema de consolidação plurianual da dívida, reestruturando-se então - dependendo de um parecer favorável do staff do FMI sobre a condução da política econômica interna do país - apenas as prestações da dívida devidas até o final do primeiro semestre de 1987 - o que já foi inusitado, tendo em vista a tradicional resistência do Clube em negociar com países devedores que não estivessem mantendo um acordo de stand by com o Fundo.

5. Moratória unilateral

Desde 1984, o Brasil vinha mantendo um saldo da balança comercial ligeiramente superior a USS 1 bilhão de dólares por mês. Em virtude do superaquecimento da economia e do atraso cambial provocados pelo Plano Cruzado, este saldo começou a diminuir a partir de maio de 1986. Em agosto, ele ainda se situava em USS 950 milhões, mas em setembro caiu para USS 544 milhões e em outubro tornou-se negativo, permanecendo nesta situação até o fim do ano. Como consequência, as reservas em caixa do Banco Central caíram verticalmente, de USS 7,8 bilhões em maio de 1986 para USS 3,7 bilhões em janeiro de 1987 (Quadro 2).

A tendência ao rápido esgotamento das reservas cambiais colocou a seguinte opção para o governo brasileiro: ou tratava de obter um “empréstimo-ponte” do governo americano, como fez o México em junho de 1985, ou declarava uma suspensão unilateral dos pagamentos dos juros da dívida externa. A obtenção do empréstimo-ponte obrigaria o governo a explicitar sua disposição de entrar em acordo com o FMI, o que lhe seria politicamente desastroso, face às atitudes em relação ao Fundo que vinha anteriormente tomando. Somente restou o caminho da moratória, que começou a ser trilhado em 20 de fevereiro de 1987. Ela envolveu duas medidas: suspensão dos pagamentos dos juros da dívida de médio e longo prazos devida aos bancos comerciais, e congelamento dos depósitos comerciais e interbancários em agências de bancos brasileiros no exterior. Ambas as medidas foram tomadas por prazo indeterminado. Os termos do acordo anterior para a reestruturação das amortizações de 1985 e 1986 passaram também a incidir sobre as amortizações de 1987.

O impasse criado pela decisão brasileira torna oportuna a revisão de alguns dos principais temas de negociação, referentes à renegociação da dívida externa do país, na forma em que ela se vem desenvolvendo desde 1982.

PONTOS CONTROVERSOS

A discussão que se segue sobre os temas controversos da renegociação da dívida brasileira está dividida em cinco tópicos: 1) métodos de reestruturação e cálculo dos spreads; 2) reempréstimos internos das amortizações reestruturadas; 3) jurisdição; 4) monitoramento do FMI; 5) conversão de dívida em capital de risco.

1. Métodos de reestruturação e cálculo dos spreads

As reestruturações da dívida externa brasileira até agora negociadas foram feitas através de um “Deposit Facility Agreement” (DFA). Por este método, o governo brasileiro e os bancos credores firmam um acordo que permite ao Banco Central do Brasil manter depositados, em nome dos respectivos credores externos, os valores das compras de câmbio efetuadas pelos devedores originais relativas às amortizações objeto de reestruturação. Do ponto de vista legal, as obrigações contratuais originais permanecem inalteradas e somente são reestruturadas as parcelas efetivamente depositadas junto ao Banco Central em decorrência da quitação, pelos mutuários, de suas obrigações, passando as novas condições financeiras acordadas nas Fases I e II e no Acordo de 1985-1986 a incidir, sobre os valores reestruturados, somente a partir do momento de cada depósito - o que se chama serial pick-up DFA.

Contrasta-se esta metodologia com aquela adotada pelo governo mexicano, que se responsabilizou diretamente apenas pela reestruturação da dívida externa do setor público. Cada uma das 52 empresas públicas mexicanas devedoras fez acordos individuais, garantidos pela República, com seus credores internacionais, para modificação dos termos dos contratos originais envolvidos. Isto permitiu a imediata vigência das novas condições acordadas com a comunidade financeira internacional sobre a totalidade da dívida reestruturada - ·trata-se do interest carve-out.

Claramente, para um mesmo spread nominal, o metodo carve-out resulta num spread efetivo menor do que o método “DFA”, porque no primeiro caso o novo spread mais baixo passa a incidir imediatamente sobre o total da dívida reestruturada, enquanto no segundo caso o novo spread somente passa a incidir sobre as amortizações reestruturadas a partir de quando o devedor original fizer os depósitos correspondentes a essas amortizações, em moeda nacional, no Banco Central.

A diferença de métodos é importante, porque as comparações dos termos financeiros das renegociações dos diversos países vêm sendo feitas com base nos spreads nominais delas resultantes, em geral com o México liderando as reduções desses spreads em sucessivas rodadas de negociação. Também neste sentido, há um interesse do Brasil em modificar o método de reestruturação em futuros entendimentos com os bancos. É preciso, entretanto, vencer obstáculos de ordem legal, operacional e administrativa, vinculados ao fato de o país renegociar a dívida não apenas do setor público (abrangendo cerca de 400 entidades), mas também do setor privado (com milhares de tomadores). O certo é que, ao adotar-se o sistema DFA, imediatamente se coloca a questão do reempréstimo dos valores depositados, que se discute a seguir.8 8 Para esta discussão, beneficiei-me da leitura do texto de Paulo Nogueira Batista Jr., “Negociação Financeira Externa: Resultados Iniciais e Problemas Pendentes”, Estudos e Pesquisas, do Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional, n. 11, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1986.

2. Reempréstimos dos valores reestruturados

Como se viu, a reestruturação da dívida externa brasileira tem obedecido ao princípio de manutenção das condições dos mútuos originais até seus respectivos vencimentos e liquidação pelo tomador interno, quando então originam depósitos junto ao Banco Central sujeitos às condições da reestruturação. Esses depósitos constituem aplicações dos bancos credores junto ao Banco Central a condições e prazo predeterminados, com liberação para remessas ao exterior baseadas em esquema definido antecipadamente. Pelos acordos das Fases I e II, os depósitos também podiam ser liberados para empréstimos a mutuários no país, pelo mesmo prazo em que ficariam no Banco Central. Entre os principais devedores latino-americanos, o Brasil parece ser o único país a aceitar um tão amplo programa de reempréstimos. Sem embargo, nas negociações da Fase III, os bancos estrangeiros pleitearam maior flexibilidade ainda para o relending, inclusive com descasamento entre os prazos internos de reempréstimos e os prazos de pagamento externo das obrigações.

Na origem do sistema de relending, introduzido em 1983, estava o propósito das autoridades brasileiras de então, em manter uma aparência de normalidade das relações com o mercado financeiro internacional, preservando-se o contato direto entre os devedores brasileiros e os credores externos. Esse mecanismo, justificado com base na ideia de que o Brasil iria, depois de breve interrupção, retornar ao mercado de empréstimos voluntários, foi produzindo uma série de distorções na medida em que, premidas pela escassez de recursos, as empresas estatais e demais entidades do setor público estabeleceram um verdadeiro leilão pelo reempréstimos desses depósitos, com a consequente pressão dos bancos pelo pagamento de comissões extras.

No acordo de 1985-1986, acordou-se que os recursos depositados no Banco Central em 1985 continuariam podendo ser emprestados ao setor privado, sujeitos apenas à fixação de tetos mensais, determinados de acordo com o comportamento da política monetária.9 9 Com relação aos valores depositados em 1986, o acordo somente previu a possibilidade de sua mobilização para conversão em investimento de capital de risco no país, conforme se discute mais abaixo. No caso do setor público, ficou estabelecido que o relending só se faria para fins de refinanciamento do serviço da dívida e, para cada tomador individual, dentro de um limite definido pelo volume de juros e amortizações devidos em 1985. Como a maior parte da dívida externa do setor público é garantida pelo Tesouro, as empresas estatais e demais entidades governamentais têm quase sempre a possibilidade de recorrer a empréstimos-ponte do Banco do Brasil, quando se trata de refinanciar obrigações externas dentro dos índices de rolagem autorizados pelo Ministério do Planejamento. Por isto, com as restrições introduzidas, havia a expectativa de que cessasse a pressão das entidades públicas para realizar operações de relending a custos elevados.

Quando se retomar a renegociação plurianual da dívida externa brasileira, pelo volume dos recursos envolvidos, a questão do relending deverá novamente ocupar a atenção dos negociadores brasileiros. A par de questões relacionadas à regulação administrativa do acesso de entidades públicas a esses créditos, é de se notar que, enquanto permanecerem fechadas ao país as portas do mercado internacional de capitais, as restrições creditícias internas deverão continuar a implicar a existência de um diferencial positivo entre a taxa de juros interna e a taxa de juros internacional. Isto quer dizer que lucros extraordinários poderão permanentemente estar sendo realizados através do processo de relending, evocando assim a oportunidade de intervenção governamental para uma distribuição mais racional dessas rendas. Além disso, os depósitos no Banco Central da contrapartida em cruzados das parcelas reestruturadas da dívida externa constituem uma fonte de financiamento do déficit público e, portanto, numa perspectiva macroeconômica, sua liberação para outros propósitos deveria estar condicionada à existência de formas alternativas de financiamento desse déficit.

3. Jurisdição

Por ocasião das negociações para a Fase III, os negociadores brasileiros manifestaram ao comitê assessor dos bancos seu propósito de mudar as regras aceitas nas Fases I e II, por força das quais as questões que emergissem dos contratos envolvendo o Banco Central seriam submetidas a jurisdição estrangeira, especificamente a corte de Nova York. A postulação brasileira envolvia dois pontos: primeiro, uso da “arbitragem” internacional como meio de solução de controvérsias jurídicas; e, segundo, não renúncia à imunidade soberana que lhe é assegurada pelas leis americana e inglesa, no que se refere à possibilidade de attachments.

Essa postura suscitou uma forte reação negativa dos bancos credores, que se mostraram irredutíveis em sua disposição de manter a jurisdição estrangeira sobre os contratos da Fase III. Por esse motivo, o acordo de 1985-1986 somente pôde ser assinado como um adendo à Fase II, postergando-se para o futuro uma decisão a respeito dessa questão, juridicamente difícil de resolver, mas de questionável importância prática, tendo em vista que pendências mais sérias, envolvendo devedores soberanos com o peso específico do Brasil na arena internacional, dificilmente serão decididas de acordo com as regras do Judiciário norte-americano.

4. Monitoramento do FMI

A recusa do Brasil em admitir o monitoramento do FMI começou a manifestar-se a partir da posse do novo governo em março de 1985, e mais particularmente após a substituição de Dornelles por Funaro no Ministério da Fazenda, em setembro daquele ano.

De um ponto de vista econômico, são bastante conhecidas as críticas aos ajustes patrocinados pelo FMI, desde a eclosão da crise da dívida externa em 1982. Em primeiro lugar, eles tomaram a disponibilidade externa de recursos como um dado imutável, tratando de fazer os países devedores adaptarem-se à dieta existente. Esta postura sequer examinou a possibilidade de capitalizarem-se os juros da dívida externa como parte de um programa “simétrico” de ajuste-com-financiamento, conforme minimamente requereria a situação criada pela ruptura dos mercados internacionais de capitais em 1982. Ademais, até recentemente, o staff do Fundo sequer admitia discutir o caráter “inercial” dos processos inflacionários crônicos, estabelecendo metas de redução da expansão monetária claramente inatingíveis sem uma longa recessão nos países devedores.10 10 Para maiores detalhes, ver Edmar Bacha e Miguel Rodrigues (orgs.), Recessão ou Crescimento: O FMI e o Banco Mundial na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. Na medida em que a atitude do Fundo a respeito dessas duas questões se mantenha inalterada, será muito difícil interessar os países devedores num monitoramento de longo prazo. Programas de curto prazo, por outro lado, somente tenderão a ser assinados ou em último recurso ou com a predisposição de não os cumprir, como fez o Brasil em 1983.

A par desses problemas de natureza econômica, coloca-se também uma questão de estilo, que tem a ver com a forma de relacionamento do Fundo com os países membros que com ele mantêm acordos de crédito de alta condicionalidade. A rigidez no estabelecimento e verificação de critérios quantitativos de duvidosa eficácia, através de visitas trimestrais de missões de alta visibilidade, frequentemente prejudica a possibilidade de entendimentos mais frutíferos sobre a direção e a intensidade de medidas de política econômica interna, num formato que fosse respeitoso da soberania do país membro e ainda assim propiciasse um efetivo ajustamento econômico.

No caso brasileiro estas dificuldades de forma e conteúdo são adicionalmente agravadas pela má imagem que o FMI adquiriu no país, de agência coletora dos juros dos credores privados, em função de seu papel central na série de equívocos de interpretação e análise, a partir dos quais foram desenhadas as fases iniciais da renegociação da dívida brasileira.

Para que o Fundo pudesse ter um papel construtivo na busca de uma solução duradoura para o problema da dívida externa brasileira, seria desejável que novas ações em nível internacional - tendo a ver com a provisão de recursos externos e com a metodologia de atuação do Fundo - fossem iniciadas, a partir das quais se poderia desenhar um relacionamento mais produtivo entre essa organização e o governo brasileiro.11 11 Para um conjunto de propostas nesta direção, veja-se Intergovernmental Group of Twenty-Four on International Monetary Affairs, “The Role of the IMF in Adjustment with Growth - Report of the Working Group of G-24”, Washington, D.C., 27.3.1987.

5. Conversão da divida em capital de risco

No Acordo de 1985-1986, o Banco Central autorizou a liberação das amortizações depositadas em 1986 para efeito de sua conversão em capital de risco no país, sujeita às limitações em vigor. Essas limitações foram estabelecidas em meados de 1984, quando o Banco Central entendeu que os incentivos fiscais para a conversão então existentes estavam, por um lado, complicando a obtenção de novos recursos via Projeto l, ao permitir uma redução da exposure dos bancos credores; por outro lado, reduzindo o alcance do Projeto 2, pois, dada a compulsoriedade do refinanciamento por mais oito-nove anos, os incentivos fiscais para a conversão atraíam ainda mais a venda dos créditos pela possibilidade de repatriamento indireto dos recursos uma vez feita a conversão. Ou seja, o país teria reestruturado as amortizações apenas em tese, pois efetivamente perderia um montante equivalente de divisas devido ao repatriamento de investimentos diretos previamente realizados.

Procurando contornar essas dificuldades, a regulamentação instituída pelo Banco Central em meados de 1984 e que agora se encontra em reestudo estabeleceu critérios limitando a autorização de conversões para os seguintes casos: 1) créditos originalmente entre companhias (matriz/filial, tipicamente); 2) créditos de instituições financeiras, no caso em que ela mesma seja a investidora; 3) créditos de instituições financeiras, originalmente garantidos por empresas no exterior, assumindo tais empresas a titularidade do investimento (trata-se novamente de operações entre matriz e filial, com interveniência bancária). No caso dos itens 2 e 3, o futuro investidor deve comprometer-se a manter os recursos convertidos no país por um prazo pelo menos igual ao do empréstimo original e a não repatriar, no mesmo período, qualquer outro investimento anteriormente realizado, bem como não transferir, no mesmo período, a titularidade do investimento.

Restringindo-se o espaço para conversões, estas, que haviam aumentado de USS 143 milhões em 1982 para USS 452 milhões em 1983 e USS 746 milhões em 1984, declinaram para USS 581 milhões em 1985 e USS 220 milhões em 1986.

Os fortes descontos com que a dívida externa brasileira está sendo atualmente negociada em Nova York torna atraente para os bancos credores o desenvolvimento de mercados alternativos para essa dívida, de modo a reduzir tais descontos, aumentando, assim, o valor de mercado de sua carteira de empréstimos ao país. Por outro lado, é de interesse do país substituir dívida por investimento direto, como parte de uma estratégia de redução de seu endividamento externo, visando uma normalização de suas relações financeiras internacionais.

Contrapondo-se a essas considerações favoráveis a um abrandamento das atuais restrições à conversão, colocam-se, entretanto, os riscos de este abrandamento resultar numa redução da entrada de investimentos diretos no país em moeda conversível, bem como num repatriamento de capital. Além disso, formas alternativas de conversão de dívidas em títulos podem ser imaginadas, à semelhança da reestruturação da dívida externa brasileira em 1943, as quais permitiriam ao país beneficiar-se dos atuais descontos de uma forma mais plena do que ocorre nos esquemas de conversão em capital de risco conforme atualmente aplicados, por exemplo, no Chile. Finalmente, há que se levar em conta que a conversão de dívida pública externa em capital de risco no setor privado implica um gasto fiscal do governo, igual ao valor em cruzados da dívida convertida. Por este motivo, enquanto não estiver devidamente equacionada a questão do déficit público no país, a conversão terá muito pouco espaço financeiro para crescer.

SUMÁRIO E CONCLUSÕES

Historiam-se neste texto as principais etapas da renegociação da dívida externa brasileira. Elas se iniciam com a moratória mexicana e o esgotamento das reservas cambiais brasileiras no segundo semestre de 1982. A primeira fase da renegociação foi construída sob o falso pressuposto de que a crise do endividamento era passageira, daí resultando termos e condições de renegociação bastante insatisfatórios para a economia brasileira. O acordo plurianual com o FMI também foi assinado no pressuposto de que as condições nele especificadas não eram para valer, disso resultando o envio de sete sucessivas cartas de intenções ao Fundo num espaço de dois anos.

Entre 1983 e 1984, as exportações brasileiras saltam de US$ 21 para US$ 27 milhões, enquanto a extração de petróleo bruto passa de 19 milhões de m3 em 1983 para 27 milhões em 1984. Desses dois fatores resulta uma forte e inesperada recuperação das reservas internacionais, sustentadas por um saldo comercial superior a US$ l bilhão por mês. Apesar das deficiências das renegociações iniciais, o país passa assim a contemplar a possibilidade da assinatura de um Acordo de Renegociação Plurianual, sem a necessidade de dinheiro novo dos bancos. A intratabilidade do problema fiscal brasileiro num contexto de crise financeira e alta inflação leva, entretanto, o FMI a suspender seu acordo de estabilização com o país, à espera da posse do novo governo em março de 1985.

Na Nova República, torna-se impossível conciliar os objetivos do governo com os requisitos do FMI. Entretanto, face à posição folgada de reservas internacionais do país, os bancos terminam por concordar em assinar um acordo de reestruturação da dívida vencida em 1985 e 1986, sem a “colateralização” de um acordo com o Fundo. No segundo semestre de 1986, o excesso de demanda interna e o atraso cambial provocados pelo Plano Cruzado fazem minguar o superávit comercial que sustentava a posição de reservas internacionais brasileiras. Num curto espaço de tempo, as reservas em caixa do Banco Central caem de USS 7 bilhões (em julho de 1986) para USS 3,7 bilhões (em janeiro de 1987). Face à expectativa de esgotamento das reservas, em fevereiro de 1987 o governo brasileiro declara uma moratória unilateral da dívida externa de médio e longo prazos com os bancos estrangeiros. É neste ponto que se interrompe a história.

O texto trata então de algumas questões técnicas controversas quanto aos procedimentos da renegociação da dívida externa brasileira, conforme se vem manifestando desde 1983. Compara-se inicialmente o método de reestruturação através do Deposit Facility Agreement, adotado pelo Brasil, com o método de interest carve out, praticado pelo México, concluindo-se que, para um mesmo spread nominal, o segundo método resulta num spread efetivo menor do que o primeiro. Discutem-se a seguir algumas questões suscitadas pela possibilidade, admitida pelo país até 1985, do reempréstimo interno pelos bancos estrangeiros das amortizações reestruturadas, as quais deram margem à geração de quase-rendas, inadequadamente reguladas pelo governo brasileiro. A controvérsia quanto à jurisdição de cortes estrangeiras sobre os contratos de reestruturação assinados pelo Banco Central do Brasil é brevemente revista, concluindo tratar-se de uma questão juridicamente delicada, mas de duvidosa relevância prática. Faz-se então uma avaliação da relutância do governo brasileiro em aceitar o monitoramento do FMI, concluindo-se pela necessidade de uma mudança tanto de forma como de conteúdo dos programas de ajuste patrocinados pelo Fundo. O tema final analisado é o da conversão da dívida em capital de risco, onde se conclui ser necessário avaliar os prós e contras dessa conversão no contexto de uma reesquematização ampla da renegociação da dívida externa brasileira.

Os objetivos deste estudo foram mantidos propositadamente modestos, pois uma revisão histórica dos procedimentos da renegociação da dívida externa é apenas um passo, mas um passo indispensável para a realização de pesquisas mais ambiciosas. Estas devem ter como objetivo: uma avaliação do impacto macroeconômico das sucessivas renegociações de dívida externa brasileira; uma análise do debate, em curso entre economistas brasileiros, sobre a possibilidade de o país manter uma transferência de recursos reais para o exterior nos montantes observados em 1984-1985 sem prejudicar outros objetivos da política econômica interna; um julgamento sobre os prós e os contras da decisão do governo brasileiro de suspender os pagamentos dos juros devidos aos bancos estrangeiros; bem como uma reflexão mais ampla sobre os elementos de uma estratégia alternativa para o tratamento da dívida externa brasileira.

  • 1
    Típica da atitude do governo brasileiro no período é a exposição do ministro da Fazenda ao Congresso Nacional no início de 1983. Veja-se: E. Galveas, “A Crise Mundial e a Estratégia Brasileira de Ajuste do Balanço de Pagamentos”, Brasília, Senado Federal, 23.3.1983.
  • 2
    Sobre os descaminhos das negociações com o FMI, consulte-se Maria Silvia Bastos Marques, “FMI: a Experiência Brasileira Recente”, em Edmar Lisboa Bacha e Miguel Rodriguez Mendoza (orgs.), Recessão ou Crescimento: o FMI e o Banco Mundial na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 123-168.
  • 3
    Para uma contundente crítica desta postura, veja-se Paulo Nogueira Batista Jr., “Negociação Financeira Externa: Resultados Iniciais e Problemas Pendentes”, Texto para Discussão n 11/86, Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional, IBRE, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.
  • 4
    Veja-se, por exemplo, Edmar Bacha, “Choques Externos e Perspectivas de Crescimento: o Caso do Brasil, 1973-89”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 14(3), dez. 1984, pp. 583-622. Nesse texto, sob a hipótese de uma taxa de crescimento das exportações de 7% ao ano em termos reais, estimava-se a necessidade da capitalização de metade dos juros devidos, para permitir um crescimento do PIB de 6,5% ao ano. Projeções auxiliares indicavam ser preciso um crescimento aparentemente inatingível das exportações, de 10%o ao ano em termos reais, para tornar desnecessária a obtenção de “dinheiro novo” dos bancos. Tornadas caducas pelo surpreendente comportamento das exportações em 1984, essas projeções voltaram a ser relevantes em 1987, conforme atestado pelo Plano do Controle Macroeconômico do ministro Bresser-Pereira, em virtude do decepcionante comportamento das exportações em 1986.
  • 5
    Ver Banco Central do Brasil, Relatório do Setor Externo da Economia Brasileira, 1979-1984, Brasília, fev. 1985, pp. 7-8.
  • 6
    Esse problema foi eventualmente contornado pela criação pelo Banco Central de um sistema de seguros para empréstimo a bancos brasileiros, o qual aparentemente teve aplicação retroativa ao caso dos três bancos liquidados.
  • 7
    No Acordo de 1985-1986, o governo brasileiro concordou com o pleito dos bancos de excluir dos valores reestruturados os créditos contratados antes da Fase I, mas “voluntariamente” internados no país após 1.1.1983. Também deve-se notar que as novas condições financeiras se aplicaram retroativamente, a partir de janeiro de 1986.
  • 8
    Para esta discussão, beneficiei-me da leitura do texto de Paulo Nogueira Batista Jr., “Negociação Financeira Externa: Resultados Iniciais e Problemas Pendentes”, Estudos e Pesquisas, do Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional, n. 11, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1986.
  • 9
    Com relação aos valores depositados em 1986, o acordo somente previu a possibilidade de sua mobilização para conversão em investimento de capital de risco no país, conforme se discute mais abaixo.
  • 10
    Para maiores detalhes, ver Edmar Bacha e Miguel Rodrigues (orgs.), Recessão ou Crescimento: O FMI e o Banco Mundial na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
  • 11
    Para um conjunto de propostas nesta direção, veja-se Intergovernmental Group of Twenty-Four on International Monetary Affairs, “The Role of the IMF in Adjustment with Growth - Report of the Working Group of G-24”, Washington, D.C., 27.3.1987.
  • **
    Sem responsabilizá-los pelo produto final, agradeço os comentários dos participantes do seminário “La Economia Mundial y el Desarrollo Latinoamericano y Perspectivas”, promovido pelo Sistema Econômico Latino-americano (SELA), em Caracas, 4 a 8.3.1987. e de Paulo Nogueira Batista Jr.
  • 13
    JEL Classification: H63; F34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1988
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