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A Constituição, os juros e a economia

The Constitution, interest and the economy

Resumo

A promulgação da Constituição Brasileira de 1988, restabeleceu a chamada Lei da Usura. Segundo este antigo regulamento, que nunca foi revogado, mas que se tornou ineficaz devido às altíssimas taxas de inflação que vivemos há muito tempo, a taxa de juro, em termos nominais, não pode ultrapassar os 12% ao ano. Com o objetivo de inovar, ao mesmo tempo em que ignorava a sempre vigente lei da oferta e da demanda, a Constituição de 1988 estabeleceu esse teto em termos reais. O artigo enfoca não apenas as dificuldades de medir a taxa efetiva de juros que incide sobre os empréstimos bancários, mas também a tarefa quase impossível de a medir em termos reais. A conclusão inevitável é que esta nova versão da Lei da Usura também se tornará ineficaz na prática.

Palavras-chave:
Juros; lei da usura; inflação

Abstract

The promulgation of the Brazilian Constitution of l988, reinstated the so-called Usury Law. According to this old regulament, which was never revoked but that was made ineffective due to the extremely high rates of inflation that we have been experiencing since a long time ago, the rate of interest, in nominal terms, cannot exceed 12% yearly. Aiming to innovate, while at the same time ignoring the ever-present law of supply and demand, the 1988 Constitution established that ceiling in real terms. The paper focuses not only on the difficulties of measuring the effective rate of interest that is charged on bank loans, but also on the almost impossible task of measuring it in real terms. The unavoidable conclusion is that this new version of the Usury Law will be also rendered ineffective in practice.

Keywords:
Interest; usury laws; inflation

1. INTRODUÇÃO

No que se configura como um desafortunado retrocesso, os nossos bravos constituintes eleitos em 1986 houveram por bem inserir na nova versão de nossa Carta Magna a reinstituição da moribunda Lei da Usura. Esta última, consubstanciada no Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933, e sob a justificativa de que “é de interesse superior da economia do País não ter o capital remuneração exagerada, impedindo o desenvolvimento das classes produtoras”, estabelecia punição para a cobrança de juros acima da taxa de 12% ao ano. Entretanto, e deixando momentaneamente de lado a questão de ser esse limite estabelecido em termos de taxa efetiva ou nominal e ainda, em face da presença de inflação, de ser aferido sob forma aparente ou real, sua aplicação encontrava-se virtualmente suspensa desde a promulgação da Lei nº 4.59 5, de 31 de dezembro de 1964, que criou o Conselho Monetário Nacional, dando-lhe competência para fixar os valores das taxas de juros. Desse modo, desde essa última data, a Lei da Usura, embora nunca revogada, ficou efetivamente caduca, com os valores das taxas de juros refletindo as forças do mercado, e a condução das políticas monetária e fiscal do governo flutuando de acordo com a lei econômica da oferta e da procura.

O ânimo regulador e equivocado de nossos legisladores, todavia, resultou numa nova versão, agora muito mais complexa, pois que busca tomar em consideração os efeitos da inflação, da Lei da Usura. Assim, no parágrafo 3° do artigo 192 da Constituição promulgada em 1988 estipula-se que: “As taxas de juros reais (grifo nosso), nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze porcento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punida, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Embora provocando controvérsias quanto a ser ou não autoaplicável, este dispositivo constitucional, a nova versão da Lei da Usura ainda aguarda regulamentação para que, inequivocamente, seja considerada em vigor.

Presentemente, no bojo de amplo projeto de lei complementar que dispõe sobre o Sistema Financeiro Nacional, inclui-se a regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal. Especificamente, no Substitutivo do Relator (deputado Cesar Maia), na sua versão de 30 de março de 1992, o título IV, que engloba os artigos 59 e 60, estabelece diretrizes para a definição e apuração do que se pretende entender como taxas de juros reais.

Nosso propósito aqui será duplo: não só iremos argumentar, do ponto de vista da economia, o contrassenso em se tentar regular os juros, como, buscando apoio na matemática financeira, ilustraremos as dificuldades associadas à mensuração, em termos efetivos, do valor real da taxa de juros que está implícita em certas operações de crédito. À guisa de conclusão, com base nos elementos apresentados, será efetuada uma apreciação crítica do mencionado projeto de lei complementar.

2. O CONCEITO ECONÔMICO DE JUROS

De uma maneira um tanto quanto livre, a taxa de juros pode ser interpretada como sendo um preço, qual seja o da utilização do dinheiro. Mais formalmente, a taxa de juros, do ponto de vista do agente econômico que se denomina poupador, reflete o preço de troca de uma unidade de consumo no presente por essa mesma unidade no futuro. Isto é, em outras palavras, só existirão pessoas dispostas a poupar se a remuneração (juros), que for recebida for suficientemente atrativa, o que depende tanto do nível da taxa de juros quanto do grau dos riscos associados ao processo. Quanto maior a taxa, maior a remuneração e, portanto, maior o incentivo ao ato de poupar.

Por outro lado, agora pela ótica do agente econômico engajado em um processo produtivo, a taxa de juros é determinante de suas decisões de acréscimo de produção, que é genericamente chamado de investimento. Em princípio, o investimento só será levado adiante se o incremento de receita gerado pelo aumento da produção for suficiente para remunerar os juros associados ao financiamento desse mesmo investimento. É claro, pois, que taxas de juros excessivamente elevadas atuam como inibidores de decisões de investimento.

Como, em última análise, a poupança financia os investimentos, segue-se que a taxa de juros, como qualquer outro preço, tem seu nível determinado pela inelutável lei da oferta e da procura. Desse modo, seu tabelamento, como quer a Constituição, resultará nas mesmas tradicionais distorções observadas em quaisquer mercados de bens e serviços: escassez (restrição de crédito) e cobrança por fora (ágios e sobretaxas).1 1 Para uma apreciação dos perniciosos efeitos de congelamento de preços, v. Barbosa, F. H., A.S.P. Brandão e C. de Faro, “O reino mágico do choque heterodoxo”, especialmente a seção 3.7, in Barbosa e Simonsen, orgs. Plano Cruzado: Inércia x Inépcia, Rio de Janeiro: Globo, 1989, pp. 130-41. Além do mais, desincentivando a poupança, pode vir inclusive a provocar fuga de capitais para o exterior.

Na prática, a transformação de poupança em investimento se faz com o auxílio da intermediação financeira provida pelas instituições de crédito, que cobram uma certa remuneração por esse tipo de serviço. Por via de regra, a remuneração é embutida na taxa de juros cobrada dos tomadores de financiamento, o que faz com que a taxa de empréstimos seja maior do que a taxa oferecida aos poupadores. Culpar as instituições financeiras pelo nível das taxas de juros cobradas aos tomadores não faz, entretanto, muito sentido. Em um regime competitivo as sobretaxas cobradas, chamadas de spreads, tendem a refletir somente, para um dado nível de risco, os custos associados aos serviços de intermediação que são prestados.

Além da interpretação acima, que corresponde a uma situação de equilíbrio em condições normais, há que se considerar ainda a taxa de juros como um efeito de políticas econômicas. Em certas eventualidades, como quando da aplicação de programas de estabilização, uma das terapêuticas indicadas é a elevação temporária, via intervenção do Banco Central, por meio de uma contração monetária, do nível das taxas de juros2 2 Por exemplo, tal expediente tem sido um dos ingredientes fundamentais do programa de estabilização que vem sendo levado a efeito na gestão do ministro Marcílio M. Moreira, que teve início em maio de 1991. . Inibindo o consumo, em face do aumento do incentivo ao ato de poupar, e penalizando a formação de estoques especulativos, por força do incremento dos custos financeiros, tal política, quando devidamente acompanhada de medidas de efetivo equilíbrio nas contas governamentais, em um horizonte intertemporal, é um eficiente instrumento no combate à inflação. Assim, dado que ainda vivemos atormentados pelo flagelo inflacionário, limitar o nível das taxas de juros é abrir mão, de uma maneira inteiramente equivocada, do emprego eficaz de um importante instrumento de política econômica. A adoção de tal postura, não possibilitando o enxugamento de eventuais excessos de liquidez através da venda de títulos governamentais, pode vir até a induzir a um recurso a medidas heroicas, tais como confiscos de ativos financeiros. Obviamente, esses tipos de medida são indesejáveis, pois uma das principais consequências é a perda de confiança no ato de poupar, com resultante reflexo perverso nas decisões de investimento.

Em suma, limitar o valor da taxa de juros é uma visão falaciosa, pois isso só busca atender aos grupos de pressão que, em face de uma interpretação errônea e parcial do problema, julgam representar os interesses dos agentes investidores. Além dos efeitos deletérios do lado da poupança, essa medida tem ainda o grave defeito de tolher a ação governamental na implementação de programas de combate à inflação.

3. A QUESTÃO DA MEDIÇÃO

Uma vez discutida a impropriedade da limitação da taxa de juros, passemos agora à análise do problema que consiste na sua implementação prática. Como iremos mostrar, é tarefa praticamente impossível constatara violação da limitação do valor da taxa de juros. A aderência a tal tipo de regulamentação somente irá provocar um aumento dos custos associados à obtenção de crédito.

Regra geral, mesmo na ausência de inflação, a determinação do nível da taxa de juros que está implícita em uma dada operação financeira não é um problema trivial, resolvido no âmbito da matemática financeira. Para que se tenha uma ideia das dificuldades envolvidas no processo, comecemos com a indagação que diz respeito à distinção entre taxas efetivas e nominais. Quando se fala em um limite de 12% ao ano, é isso equivalente a 1% ao mês? A pergunta é pertinente, pois algumas das propostas de regulamentação do dispositivo constitucional que têm sido apresentadas, como a do deputado Paulo Marques (Projeto de lei nº 1.971, de 1989), estabelecem juros de mora de 1% ao mês. A resposta é negativa, exceto quando se trata do regime de juros simples, que será a priori descartado por ser um regime de juros intrinsecamente inconsistente, como discutido na literatura técnica sobre o assunto3 3 V., por exemplo, o cap. II in de Faro, Clovis, Princípios e aplicações do cálculo financeiro. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990. (fato esse que parece não ser do conhecimento do deputado Uldurico Pinto, autor do Projeto de lei nº 3.105, de 1989). A taxa de 1% ao mês corresponde à taxa de 12,68% ao ano. Assim, deve-se distinguir se o limite é a taxa efetiva de 12% ao ano, ou a taxa, dita nominal, de 12% ao ano com capitalização mensal, que implica a taxa de 1% ao mês. E mais: se for admitido que a taxa é de 12% ao ano com capitalização diária, seu valor efetivo anual sobe para 12,75%.

Uma outra dificuldade é a que se refere à cobrança antecipada dos juros, prática comum nas operações de desconto de duplicatas e de empréstimos bancários. Por exemplo, a cobrança antecipada de juros à taxa de 12% ao ano, por um empréstimo com prazo de um ano, implica a taxa efetiva anual de 13,64%. Um caso mais dramático é aquele em que, pelo prazo de três meses, cobram-se juros antecipados à taxa de 16% ao mês. Inicialmente, observemos que, em face dos níveis atuais de nosso processo inflacionário, que configuram taxas mensais de inflação na faixa de 20 a 22%, a taxa de juros que está sendo cobrada na operação aparenta ser altamente interessante para o tomador do empréstimo, pois que se afigura como sequer cobrindo a corrosão do poder de compra da moeda. Isso, porém, é extremamente enganoso, pois a taxa mensal que está sendo efetivamente cobrada, não se descontando o efeito da inflação, é superior a 24%.

Na prática, a situação acima descrita é ainda influenciada, em se tratando de um empréstimo bancário, por exigências ditas de reciprocidade. Uma das mais corriqueiras é a que diz respeito à manutenção, por parte do tomador, de um certo nível de saldo médio. Se, no caso considerado acima, for exigido que 30% do valor do empréstimo fique retido a título de cumprir exigência de manutenção de saldo médio, a taxa efetiva mensal, tal como calculada à luz da matemática financeira, sobe para o salgado valor de 47,08%, em comparação com taxas de inflação da ordem de 20% ao mês4 4 Formalmente, a imposição de retenção de parte do valor do empréstimo a título de compor saldo médio e ilegal. Entretanto, tal violação pode ser contornada mediante a exigência de depósito prévio. Para uma análise deste último caso, quando a determinação do valor da taxa de juros efetivamente cobrada é muito mais complexa, v. a seção 4.1.2.2 em de Faro, Clovis, Princípios e aplicações do cálculo financeiro, op. cit., pp. 150-3 e de Faro, Clovis, “Empréstimos bancários e saldo médio: o caso de prestações”. Estudos Econômicos, vol.18, nº2, pp.201-33, maio/ago. 1988. .

Uma variante da exigência de saldo médio é condicionar a concessão do empréstimo à aquisição de algum produto do banco ou de empresas coligadas. A título de ilustração, e supondo uma situação em que a taxa mensal de inflação seja da ordem de somente 16% (o que corresponde a 493% ao ano), considere-se o caso em que a taxa de cobrança de juros antecipada seja de não mais do que 15% ao mês e que os 30% anteriormente exigidos como saldo médio devam ser aplicados em um Certificado de Depósito Bancário (CDB), com prazo também de 3 meses e rendendo a taxa prefixada de 500% ao ano. Nessa eventualidade, que é obviamente muito mais interessante para o tomador do que a precedente, a taxa efetiva mensal que está sendo cobrada na operação, antes de considerar o efeito do Imposto de Renda sobre o rendimento do CDB, é da ordem de 28,5% ao mês (o que corresponde a mais de 1.927% ao ano).

A determinação da taxa efetiva fica ainda mais complicada se a reciprocidade exigida pelo banco for a aquisição de uma apólice de seguro, digamos de vida e de acidentes pessoais, com prazo de validade igual à do empréstimo. Se o sinistro ocorrer, o que não pode ser considerado como uma situação desejada pelo tomador do empréstimo, este terá pelo menos o consolo de ver reduzida, em face do pagamento da indenização, a taxa efetiva de juros cobrada na transação. Por outro lado, se o sinistro não ocorrer e a aquisição da apólice não tiver sido voluntária, a taxa efetivamente cobrada fica significativamente majorada. Por exemplo, nas condições da situação anterior, se os 30% do valor do empréstimo considerado forem empregados na aquisição da apólice e o sinistro não vier a ocorrer, a taxa efetiva sobe para 58,74% ao mês, o que corresponde a 25.500% ano.

Os exemplos apresentados não só ilustram a complexidade do processo de determinação da taxa de juros efetivamente cobrada, mas, e sobretudo, como artificias e estratagemas podem ser utilizados de modo a contornar a limitação do seu valor legal. Adicione-se ainda o fato de que certos aumentos de taxas efetivas, tais como os aqui apontados, não podem ser formalmente computados, do ponto de vista contábil, como custos para o tomador de financiamento.

4. INFLUÊNCIA DA INFLAÇÃO

Como se já não bastassem os percalços apontados no processo de aferição da taxa de juros efetivamente cobrada em certas operações, temos ainda que nos preocupar com a presença da inflação e com seus efeitos sobre as taxas de juros. Atentos a esse fato, nossos doutos constituintes houveram por bem especificar que o limite legal de 12% ao ano é em termos reais.

A primeira dificuldade adicional é a interpretação do que seja taxa real, o que não está definido na Constituição e que depende, ainda, de regulamentação. Temos, então, um novo perigo, qual seja o da definição legal de taxa real de juros. Para citar um exemplo representativo desse tipo fundamental de dificuldade, consideremos o Projeto de lei nº 982, de 1988, do deputado Fernando Gasparian, por todos os méritos apontado como o paladino por excelência do proviso constitucional em apreço. O parágrafo único do artigo 1 º de seu projeto define: “Entende-se por juros reais os resultados da divisão dos juros nominais da operação, pelo índice indicativo da inflação do período de tempo da mesma”. Esse texto é um primor de desinformação. Além de não definir o que são juros nominais, prescreve uma operação totalmente errônea para o cálculo dos juros reais.

A desinformação do ilustre deputado Gasparian não é, entretanto, privilégio seu. Mais esdrúxula ainda é a definição proposta no Projeto de lei nº 2.607, de 1989, do deputado José Camargo. Entendida ao pé da letra, temos que se tomaria efetivamente negativa a taxa de juros reais toda vez que a taxa anual de inflação ultrapassasse o patamar de 12%.

Formalmente, trabalhando-se com as taxas expressas em termos porcentuais, sendo i a chamada taxa aparente, isto é, como medida em termos efetivos e antes de escoimar os efeitos da inflação, e sendo 0 a taxa de inflação observada no período da taxa i, a taxa real é dada por R = 100 (i - 0)/(100 + 0).Assim, por exemplo, no caso da cobrança de juros antecipada à taxa de 15% ao mês, para um empréstimo com prazo de três meses e com exigência de manutenção de saldo médio na proporção de 30% do valor mutuado, o que implica uma taxa efetiva mensal, em termos aparentes, de 40,95%, se a taxa média mensal de inflação ao longo dos três meses do prazo de empréstimo for de 20%, a correspondente taxa real será de 17,49% ao mês. Cabe aqui observar que, na data da concessão do empréstimo, a taxa real não é conhecida. A cobrança antecipada à taxa de 15% ao mês embute, tão-somente, uma previsão da inflação. Se a estimativa for de inflação à taxa média de 20% ao mês, podemos somente afirmar que se espera que a taxa efetiva real seja de 17,49% ao mês. Entretanto, se for verificado que a taxa acumulada de inflação nos três meses considerados alcançou 190%, o que corresponde à taxa média de 42,60% ao mês, a taxa efetiva real terá sido negativa (- 1,16% ao mês), o que significa um prejuízo para quem efetuou o empréstimo.

Chamando a atenção para o fato de que, por um vício de linguagem, principalmente veiculado por economistas, costuma-se chamar de taxa nominal o que a matemática financeira conceitua como taxa aparente, vê-se que a taxa de inflação efetivamente observada no período é de capital importância para a determinação da taxa real. É precisamente nesse ponto que temos uma outra dificuldade, em alguns casos intransponível, do ponto de vista operacional. Tal dificuldade diz respeito ao processo de aferição da inflação. Regra geral, a medida da inflação é tomada como sendo dada pela taxa de variação de um certo índice de preços. Deixando de lado a discussão de qual índice de preços seria o mais representativo e adequado, o problema em questão refere-se à defasagem entre a data de publicação do índice e o seu período de apuração.

Para fixarmos ideias, suponha-se que o índice relevante seja o IPC, que é apurado pelo IBGE. Lembrando que, até antes da promulgação, em 16 de março de 1990, do chamado Plano Collor I, o IPC era o indexador oficial, pois era segundo sua variação que se processava a atualização mensal do valor nominal do Bônus do Tesouro Nacional, atentemos à seguinte peculiaridade. Por construção, o IPC é calculado no período compreendido entre o dia 15 do mês anterior e o dia 15 do mês ao qual se refere. Logo, como o processo de cálculo é baseado na média aritmética de seu valor em cada uma das quatro semanas do período em apreço, podemos dizer, de uma maneira aproximada, mas bastante razoável, que o valor publicado corresponde ao que teria assumido no dia 1 ° do mês a que se refere. Ou seja, o valor que é apresentado no final de um dado mês é, na verdade, o valor no início desse mês. Desse modo, a taxa de inflação, como medida pela variação do IPC, que é divulgada como sendo relativa a um dado mês, deve ser entendida como efetivamente representando a taxa de variação dos preços no mês imediatamente anterior. Assim, por exemplo, as taxas de inflação de 56,11% e de 72,78%, respectivamente apresentadas como relativas aos meses de janeiro e fevereiro de 1990, são, em realidade, respectivamente referentes aos meses de dezembro de l989 e janeiro de 1990.

Para ilustrar o efeito perverso advindo da defasagem apontada, suponha-se que, relativamente a uma operação de empréstimo com prazo de um mês, contraído no dia 1 ° de janeiro de 1990, a taxa efetiva aparente tenha sido de 60% ao mês. Tendo presente a relação de determinação da taxa real, se não for considerada a defasagem entre a data de publicação do IPC e o período a que efetivamente se refere, concluiríamos que a taxa real da operação teria sido de 2,49% ao mês. Ou seja, teria sido excedido o limite legal5 5 Aqui, para não deixar dúvidas, tanto se o limite legal for entendido como de 12% ao ano em termos efetivos (o que corresponde a 0,948879% ao mês), quanto se o for em termos nominais, com capitalização mensal (o que implica l% ao mês). .

Entretanto, o cálculo correto, que leva em conta que a taxa de inflação no mês de janeiro foi de 72,78%, e não de 56,11 %, conduz a uma taxa real negativa, igual a - 7,40% ao mês. Ou seja, longe de ter um caso que excede o limite legal, teríamos uma situação em que o tomador foi altamente beneficiado, pois, em termos de poder de compra, restituiu ao credor 7,40% a menos do que o que tomou emprestado.

Um interessante efeito de tal tipo de defasagem é o relativo ao processo de aferição da taxa de juros reais efetivamente paga por títulos da dívida pública. Como mostra a Tabela 1, relativa às taxas pagas na emissão das Letras Financeiras do Tesouro (LFT) e transcrita de um trabalho de Brandão e de Faro6 6 Brandão A.S.P. e C. de Faro, “Política fiscal no Plano Collor: o transitório e o permanente”, in Clovis de Faro, org. Plano Collor: Avaliações e perspectivas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990. , os juros reais efetivamente pagos pelo governo nos 12 meses imediatamente anteriores à promulgação do Plano Collor I (16 de março de 1990) foram, em média, negativos. Não sendo considerada a defasagem apontada, as taxas reais, como indicado na quarta coluna, teriam sido sempre positivas, e razoavelmente elevadas. Entretanto, como se vê na quinta coluna, uma vez levado em conta o processo efetivo da apuração do IPC, conclui-se que as taxas de juros em operação de financiamento no overnight foram, na realidade, quase sempre negativas.

Nesse ponto cumpre ressaltar que a distorção apontada encerra, inclusive, um efeito perverso na própria concepção do Plano Collor I. Uma das motivações para o sequestro da liquidez promovido pelo Plano foi a associada à interpretação do caráter financeiro do déficit das contas do governo. Por essa interpretação, os juros pagos sobre os títulos públicos seriam um dos principais fatores de desequilíbrio. Cumpria, pois, estancar essa fonte de pressão sobre as contas do governo, ainda mais porque se achava, como indicado na quarta coluna da Tabela 1, que as taxas de juros eram fortemente positivas. O efeito perverso reside no fato de que, ao sequestrar os ativos financeiros, passando a pagar a taxa de juros das cadernetas de poupança (0,5% ao mês), estar-se-ia, na verdade, embora jogando para o futuro o compromisso com o desembolso, pagando mais do que na situação anterior, caso a inflação fosse efetivamente subjugada.

Tabela 1
Taxas de juros da dívida pública (% a. m.)

5. A PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO E A REALIDADE

No mencionado projeto de lei complementar, no que tange à regulamentação do dispositivo constitucional que reinstituiu a Lei da Usura, é estabelecido que, no seu artigo 59, as taxas de juros reais formam-se no prazo médio de um ano. Ou seja, ao que parece, o legislador procurou distinguir situações ditas de curto prazo das de longo prazo. Desse modo, em uma primeira leitura, não seria afetada a possibilidade de o governo lançar mão de políticas de estabilização baseadas em elevação dos níveis das taxas de juros, posto que, em princípio, tais políticas só podem ser estritamente perseguidas por espaços de tempo não muito extensos. Tal inferência é, todavia, enganosa. Estar-se-á esquecendo que, através de operações de arbitragem, como veremos adiante, seriam gerados conflitos entre os processos de formação das taxas de juros de curto e de longo prazo.

Além da questão do longo prazo, aqui entendido como aquele não inferior a um ano, o projeto em questão contém ainda os seguintes pontos que merecem ser comentados. O primeiro deles, estabelecido no item Ido parágrafo 2º do artigo 59, estipula que no processo de determinação da taxa de juros reais sejam incluídas as comissões e outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito. Uma pergunta que logo ocorre, em vista das ilustrações apresentadas na seção 3 deste trabalho, é: como incluir as exigências ditas de reciprocidade? Provavelmente, a resposta será um mero exercício de futilidade. Nesse particular, e entendido ao pé da letra, estar-se-ia procurando ser mais realista do que o rei.

Um segundo ponto, e que desperta uma boa dose de perplexidade, é a faculdade, prevista na alínea (a) do item II desse mesmo parágrafo 2º, de as partes interessadas poderem pactuar livremente qual índice ou fator de reposição do capital financeiro mutuado será utilizado. A perplexidade, provocada pela percepção de que em um projeto que de certo modo busca engessar a economia, não se poderia esperar um dispositivo tão liberal, é ainda maior quando se aquilata que, afinal de contas, não foi definido o que sejam taxas de juros reais.

Com relação a esse ponto, notando que fica, pois, sendo válida a adoção de um coquetel de índices de preços, inclusive com especificação de cláusula de escolha do que tenha a maior taxa de variação a cada período, cabe destacar o uso da chamada Taxa Referencial de Juros (TR). Instituída no bojo do Plano Collor II, de 31 de janeiro de 1991, a TR passou a ser utilizada como um balizador do nível básico das taxas de juros na economia7 7 Para uma análise do papel atribuído à TR, v. Yoshino, J. “Alguns aspectos da reforma monetária do Plano Collor II”, in de Faro, Clovis, org. A economia pós-Plana Collor II, Rio de Janeiro: Livros Técnicos Científicos Editora, pp. 128-34, 1991. . Adicionalmente, estabelecendo a prática de correção monetária a priori8 8 A esse respeito, incluindo-se uma comparação com o princípio de correção monetária a posteriori, v. de Faro, Clovis, “Percalços da indexação ex-ante, in de Faro, Clovis, org. A economia pós:Plano Collor II, ap. cit, pp. 61-9. a TR foi também adotada como indexador, inclusive para efeito de atualização monetária dos saldos em cadernetas de poupança. Além disso, acrescida da taxa de 0,5% ao mês, que é a de remuneração “real” dos depósitos de poupança, tem sido também utilizada como indexador em contratos de financiamentos habitacionais.

Especificamente com relação ao emprego da TR, cabe aqui discutir a aludida questão das taxas de curto prazo versus taxas de longo prazo. Para tanto, consideremos os dados apresentados na Tabela 2. Nesta, na segunda coluna, temos a evolução da série de valores mensais, tais como fixados pelo Banco Central do Brasil, da Taxa Referencial de Juros, no período compreendido entre fevereiro de 1991 (quando foi instituída) e março de 1992. Para efeito de comparação, e devido ao fato de ser este o indexador por excelência para operações em nosso mercado de capitais, é incluído na terceira coluna o comportamento, no mesmo período, da taxa mensal de variação do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM), que é apurado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas. Deixando de lado a questão, embora relevante, da época de apuração do IGPM, e trabalhando com o valor relativo ao respectivo mês de publicação, apresenta-se na quarta coluna o correspondente comportamento do que se pode denominar “valor real” da TR mensal, no período em apreço.

Tabela 2
Valores reais da r taxa eferencial de juros (TR)

Como se vê, embora com alguns valores negativos (o relativo a fevereiro de 1991 não deve ser considerado, pois esse foi o primeiro mês do congelamento imposto pelo Plano Collor II, e, por questões de datas de apuração, não poderia ter sido captado no IGPM desse mesmo mês), os “valores reais” da TR têm sido, em média, bastante elevados. Em particular, o referente ao mês de novembro de 1991 (3,90% ao mês) implica uma taxa anual de 58,27%. Com o fito de dramatizar nosso argumento, que diz respeito à questão de arbitragem entre operações de curto e de longo prazo, fixemos a atenção no período novembro de 1991 a março de 1992. Considerando a remuneração adicional de 0,5% ao mês, os dados apresentados indicam que, para um período de apenas cinco meses, e a despeito do valor negativo observado em fevereiro de 1992, um depositante em caderneta de poupança teria auferido um “ganho real” de 13%, o que corresponde a 34,09% ao ano.

Fica assim claro que, mantida a TR como indexador dos depósitos de poupança, mas sendo ela proibida, como ora peticionado junto ao Supremo Tribunal Federal, como indexador dos contratos celebrados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação, as Sociedades de Crédito Imobiliário só poderão operar cobrando taxas “reais” muito superiores ao limite legal de 12% ao ano.

6. CONCLUSÃO

Os argumentos aqui apresentados evidenciam o equívoco de se tentar tabelar a taxa de juros. Tal prática só iria contribuir para aumentar as distorções em nossa economia, provavelmente acarretando mais dificuldades ainda aos tomadores de empréstimos. Por exemplo, investimentos de maior nível de risco provavelmente não seriam financiados, pois os financiadores só se interessariam por projetos cujo nível de risco não excedesse o compatível com o limite legal da taxa de juros. Além do mais, do ponto de vista estritamente formal, a tentativa mesmo de limitar a taxa real de juros é convite certo ao insucesso, pois sua aplicação só faria sentido se existisse uma medida confiável e instantânea da taxa de inflação. Por tudo isso, além da dificuldade intrínseca do processo de determinação da taxa efetiva de juros, ainda que em termos aparentes, o melhor é eliminar do texto constitucional a verdadeira excrescência representada pelo tabelamento da taxa de juros.

Embora o projeto de lei complementar possa ser considerado, até certo ponto, um avanço (pois, inclusive, na alínea (e) do item II do parágrafo 2º do artigo 59 indica que os custos de produção de serviços necessários à operação de crédito sejam desconsiderados do processo de apuração das taxas de juros reais), dá margem, como vimos, a várias incongruências. Além do mais, atribui, no seu artigo 60, ao Banco Central a discutível competência de definir os parâmetros que devem ser considerados quando da determinação das taxas de juros reais. Por tudo isso, considerando ainda que, como diz o ditado popular, muitas vezes a emenda é pior do que o soneto, o aconselhável é a eliminação pura e simples da nova versão da Lei da Usura.

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    Para uma apreciação dos perniciosos efeitos de congelamento de preços, v. Barbosa, F. H., A.S.P. Brandão e C. de Faro, “O reino mágico do choque heterodoxo”, especialmente a seção 3.7, in Barbosa e Simonsen, orgs. Plano Cruzado: Inércia x Inépcia, Rio de Janeiro: Globo, 1989, pp. 130-41.
  • 2
    Por exemplo, tal expediente tem sido um dos ingredientes fundamentais do programa de estabilização que vem sendo levado a efeito na gestão do ministro Marcílio M. Moreira, que teve início em maio de 1991.
  • 3
    V., por exemplo, o cap. II in de Faro, Clovis, Princípios e aplicações do cálculo financeiro. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990.
  • 4
    Formalmente, a imposição de retenção de parte do valor do empréstimo a título de compor saldo médio e ilegal. Entretanto, tal violação pode ser contornada mediante a exigência de depósito prévio. Para uma análise deste último caso, quando a determinação do valor da taxa de juros efetivamente cobrada é muito mais complexa, v. a seção 4.1.2.2 em de Faro, Clovis, Princípios e aplicações do cálculo financeiro, op. cit., pp. 150-3 e de Faro, Clovis, “Empréstimos bancários e saldo médio: o caso de prestações”. Estudos Econômicos, vol.18, nº2, pp.201-33, maio/ago. 1988.
  • 5
    Aqui, para não deixar dúvidas, tanto se o limite legal for entendido como de 12% ao ano em termos efetivos (o que corresponde a 0,948879% ao mês), quanto se o for em termos nominais, com capitalização mensal (o que implica l% ao mês).
  • 6
    Brandão A.S.P. e C. de Faro, “Política fiscal no Plano Collor: o transitório e o permanente”, in Clovis de Faro, org. Plano Collor: Avaliações e perspectivas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990.
  • 7
    Para uma análise do papel atribuído à TR, v. Yoshino, J. “Alguns aspectos da reforma monetária do Plano Collor II”, in de Faro, Clovis, org. A economia pós-Plana Collor II, Rio de Janeiro: Livros Técnicos Científicos Editora, pp. 128-34, 1991.
  • 8
    A esse respeito, incluindo-se uma comparação com o princípio de correção monetária a posteriori, v. de Faro, Clovis, “Percalços da indexação ex-ante, in de Faro, Clovis, org. A economia pós:Plano Collor II, ap. cit, pp. 61-9.
  • 9
    JEL Classification: E43; E52; G28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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