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O processo orçamentário no Brasil* * Tradução de Otacílio Fernando Nunes Jr., com revisão do autor.

The budgetary process in Brazil

RESUMO

O Brasil, assim como a maioria dos países latino-americanos, possui um setor público inflado, que decorre das amplas políticas governamentais adotadas até o final dos anos 70, financiadas em grande parte pelo endividamento externo. Atualmente, a falta de transparência e a complexidade das contas do setor público prejudicam a eficácia das políticas de estabilização e a produtividade das empresas estatais. O orçamento do governo federal geralmente é equilibrado, mas não cobre as despesas de todo o setor público. Uma grande quantidade de subsídios a empresas estatais e tesourarias locais é fornecida indiretamente com fundos federais por meio de bancos estaduais e autoridades monetárias. Um programa de resgate em larga escala para aliviar empresas altamente endividadas permitirá que o Banco Central e outros intermediários financeiros parem de agir como financiadores de última instância. Para recuperar completamente a eficácia das políticas governamentais, é necessário descentralizar as despesas nacionais, conceder autonomia aos governos locais e empresas estatais e minimizar sua dependência financeira mútua

PALAVRAS-CHAVE:
Tamanho do Estado; gasto público; empresas estatais

ABSTRACT

Brazil, as well as most Latin American countries, have an inflated public sector, which follows from the expansive government policies pursued until late 70’s, largely financed by external indebtedness. Currently, the lack of transparency and the complexity of public sector accounts hinder the effectiveness of stabilization policies and the productivity of state enterprises. Federal government budget is often balanced, but it does not cover expenditures of the whole public sector. A large amount of subsidies to state enterprises and local treasuries are provided indirectly with federal funds through state banks and monetary authorities. A full-scale bailing out program to alleviate highly indebted enterprises will allow the Central Bank and other financial intermediaries to stop acting as a lender of last resort. In order to fully recover the effectiveness of government policies it is necessary to decentralize national expenditures, grant autonomy to local governments and state enterprises and to minimize their financial mutual dependence.

KEYWORDS:
Size of State; public spending; state-owned companies

INTRODUÇÃO

A maioria dos países latino-americanos tem um setor público inchado. Ele é resultado das políticas expansionistas adotadas na década de 70 e início da de 80, quando esses países viviam além de seus próprios meios. A demanda agregada foi ajustada para compensar a deterioração dos termos de troca e as empresas públicas absorveram um montante excessivo de créditos externos. Atualmente, o déficit fiscal e a inflação alta são os principais problemas a serem resolvidos.

A falta de transparência das contas públicas inibe o controle da necessidade de financiamento do governo no Brasil. De fato, as finanças do Tesouro Nacional são normalmente equilibradas ex-ante, mas as despesas não-orçamentárias tornam-nas negativas. Esses pagamentos resultam de muitos anos de intervenção direta do governo na economia. Da mesma forma, as empresas estatais ocuparam espaços do setor privado assim como de atividades tradicionais do setor público. O desenvolvimento de muitos orçamentos paralelos através de instituições oficiais tornou a programação fiscal ineficaz. Os atrasados e as garantias de dívidas cruzadas envolvendo o governo federal e os governos locais e suas empresas impedem qualquer tentativa séria de administrar e reduzir o déficit público.

O texto começa por descrever a cobertura do orçamento federal, que é o instrumento por excelência das políticas alocativas, distributivas e de estabilização. A seção seguinte examina a dependência financeira mútua - governo e estatais - das transferências inter-orçamentárias. As diversas experiências e tentativas recentes de saneamento são descritas na sequência. Finalmente, o desempenho do Banco Central, hoje um mero agente financeiro do Tesouro, é apresentado como um exemplo típico da necessidade de reestruturar o setor público no Brasil.

1. O ORÇAMENTO FISCAL

O orçamento fiscal estima a receita e a despesa do governo federal. De acordo com a recente unificação orçamentária, as estimativas do fluxo de recursos relacionado a atividades não-orçamentárias tais como crédito rural, crédito à exportação e à recuperação financeira das empresas estatais foram incorporadas ao Orçamento das Operações Oficiais de Crédito (OOOC). O déficit incorrido nessas atividades é somado às necessidades de financiamento do governo federal.

Essa unificação tornou-se possível em virtude de consolidações orçamentárias anteriores. A criação da Secretaria para o Controle das Empresas Estatais (SEST) em 1979, por exemplo, foi um passo importante dado nessa direção. A consolidação orçamentária avançou ainda com a criação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), no Ministério da Fazenda, ao centralizar a partir de 1986 o fluxo de caixa do governo federal.

A despesa com bens e serviços não excede um terço dos desembolsos totais do governo, que montam a 10% do PIB - exclui sistema previdenciário até 1988. Aproximadamente 33% dos gastos do governo são destinados a transferências constitucionais aos estados e municípios (receitas compartilhadas). O serviço da dívida e os subsídios explícitos (agricultura e exportação) consomem mais um terço das despesas. Por outro lado, a receita federal não excede 6% do PIB; e, assim, o déficit fiscal estrutural é da ordem de 4% do PIB.

O subsídio direto ao setor privado é definido como o resultado negativo das operações de fundos e programas especiais consolidadas no Orçamento das Operações Oficiais de Crédito. Metade dos desembolsos do OOOC é distribuída como empréstimos aos setores agrícola, industrial e exportador. Os desembolsos para os estados e municípios e para as empresas públicas estaduais e federais compõem a outra metade.

As transferências inter-orçamentárias para a complementação de tarifas e preços defasados do segmento empresarial do governo federal - Siderbrás, Eletrobrás, Rede Ferroviária Federal, etc., também são um subsídio, e figuram como tal no Orçamento Fiscal. Além dessas despesas, o governo nacional transfere recursos de capital ao setor público empresarial (SEST). A rigor, as transferências do Tesouro para a capitalização dessas empresas não deveriam ser enquadradas na categoria de subsídio. Essas despesas, contudo, normalmente adquirem as características de um subsídio quando cobrem prejuízos acumulados.

Pela Constituição de 1988, os membros do Congresso têm uma estreita margem de manobra para alterar o Orçamento Fiscal. De acordo com o artigo 166, parágrafo 3~, inciso II, as emendas aos projetos apresentados pelo Executivo só podem ser aprovadas se o Legislativo especificar os “recursos necessários”. Aumentos de impostos ou na dívida pública não estão incluídos entre esses recursos. E, no que diz respeito às despesas, as provisões para gastos com pessoal, serviço da dívida e transferências de receitas aos estados e municípios não podem ser alteradas. Os membros do Congresso, portanto, só podem alterar pagamentos de despesas com bens e serviços, com financiamento apropriado nas mesmas rubricas. Nesse sentido, o Congresso está de mãos fortemente atadas às prioridades do Executivo, que detém a iniciativa da proposta orçamentária.

Existem áreas de conflito entre a administração e o Congresso. Recentemente, o Executivo foi acusado de cometer injustiça em sua exigência de pagamento de atrasados dos governos estaduais com as autoridades monetárias. Para contornar suas dificuldades financeiras, os governadores pretendem obter, por meio de uma resolução do Senado, autorização para prorrogar as dívidas de seus estados. De fato, o artigo 52, inciso VII da Constituição confere ao Senado autoridade para determinar as condições e os limites de endividamento das três esferas de governo, o que é contraditório com suas determinações mencionadas no parágrafo anterior.

Nos últimos anos o governo federal perdeu receita fiscal e teve de aumentar as transferências inter-governamentais. Além do mais, ele respaldou as dívidas das empresas públicas e dos governos estaduais. São múltiplas as alternativas para manter o setor público como um todo sob controle. Na verdade, as três esferas de governo e suas empresas estatais têm um volume de desembolsos que alcança 100% do PIB, quando se considera a soma das receitas e despesas dos três níveis de governo, incluindo a previdência social e as empresas públicas. Portanto, do ponto de vista global, não faz muito sentido concentrar a redução do déficit em certos impostos, ou tipos de despesas, apenas do orçamento federal. O ônus do ajustamento deveria recair sobre todas as instâncias de governo.

2. TRANSFERÊNCIAS INTER-ORÇAMENTÁRIAS

Um montante significativo das transferências inter-orçamentárias não é explicitado, na medida em que deriva de acordos administrativos entre várias instâncias do setor público. Em 1986, 1987 e 1988, a necessidade de financiamento do setor público no conceito “operacional” - exclui a correção monetária ou cambial da dívida e sua amortização - alcançou, respectivamente, 3,6%, 5,5% e 4,0% do PIB. São três os orçamentos públicos que responderam pela maior parte do déficit - governo federal, estados e municípios e empresas estatais (Tabela 1).

Tabela 1:
Necessidade de financiamento do setor público consolidado (conceito operacional) %do PIB

O resultado final das necessidades de financiamento de cada um dos órgãos de governo independe das despesas a eles assignadas, e de sua natureza: corrente ou de capital. Das receitas federais, que se aproximam de 10% do PIB, cerca de dois terços são deduzidos para cobrir transferências explícitas: transferências inter-governamentais (partilha de receita definida pela Constituição), interpessoais (juros e subsídios) e inter-orçamentárias. A receita federal líquida não ultrapassa neste caso 3,5%, 4,2% e 4,0% do PIB, respectivamente, em 1986, 1987 e 1988 (Tabela 2, item III). Deduzidos os pagamentos de compras de bens e serviços, obtém-se p déficit da União (Tabela 2, item V). Pode-se adicionar um montante de renda real devido aos pagamentos em atraso (“float”) e à criação de base monetária. Assim, as necessidades de financiamento do governo federal ficam reduzidas a 1,1%, l,2% e 2,4%, respectivamente, naqueles períodos (Tabela 2, item VII).

Tabela 2:
Necessidade de financiamento orçamento fiscal 1986-1988 % do PIB

Outro item que impede a transparência da necessidade de financiamento do governo federal são as transferências de capital às empresas públicas. A natureza desses pagamentos é diferente de outras transferências orçamentárias, tais como subsídios para cobrir prejuízos operacionais e capitalização (conversão de dívida em investimento) resultantes de operações de saneamento de empresas públicas. A maior parte dessas transferências são adiantamentos do Tesouro Nacional para cobrir encargos financeiros da dívida externa das empresas públicas (Tabela 2, item VIII e Tabela 3, item VIII).

Tabela 3:
Necessidade de financiamento das empresas estatais % do PIB

O encargo financeiro das empresas públicas, que alcançou 2,0%, 2,9% e 1,8% do PIB em 1986, 1987 e 1988, respectivamente, não foi totalmente pago com seus recursos próprios - provenientes de tarifas ou de transferências orçamentárias correntes (ver Tabela 3, item II, linha 2). As transferências de capital do Orçamento da União servem precisamente ao propósito de cobrir parte (aproximadamente a metade) dessas despesas. Muitas empresas públicas altamente endividadas desistiram de negociar com seus credores. Em vista dos seus frequentes atrasos financeiros, bancos federais se tornaram intermediários dos empréstimos externos que eram garantidos pelo Tesouro Nacional. Assim, o Orçamento Fiscal transferiu 0,9%, 2,0% e l ,2% do PIB para empresas públicas em 1986, 1987 e 1988, respectivamente (Tabela 2, item VIII e Tabela 3, item VIII).

O montante total da necessidade de financiamento do governo federal e das empresas públicas depende, portanto, da natureza e da magnitude dessas transferências. Se os encargos financeiros das empresas públicas não forem transferidos para o Tesouro Nacional, o déficit das empresas cresce, já que as transferências de capital são excluídas de sua receita corrente. Nesse caso, essas transferências teriam a natureza de uma transferência de capital sob a forma de novos empréstimos, e seriam deduzidas do déficit federal - como se pode verificar nas tabelas. Alternativamente, se a cobertura dos encargos financeiros das empresas públicas pelo Tesouro Nacional se tornar permanente, as transferências de capital se convertem em transferências correntes. Neste caso, o montante transferido deveria somar-se às receitas correntes das empresas públicas e às despesas do governo federal. Como consequência, a necessidade de financiamento das empresas públicas se reduziria, enquanto a do governo federal aumentaria - em 1988 o déficit da União ajustado chegaria a 3,7% do PIB e das empresas públicas - 0,4% do PIB (Tabela 2, item IX e Tabela 3 Item IX).

A transferência do custo financeiro das empresas públicas para o governo federal não modifica o resultado do déficit global do setor público, embora altere sua composição. Contudo, o ponto a ser destacado é que essa interdependência orçamentária gera desperdício administrativo e distorce os instrumentos de política fiscal e monetária. No âmbito das empresas a cobertura indireta das despesas financeiras desestimula critérios de minimização de custos e maximização de lucros. Por outro lado, a assunção desses encargos pelo Tesouro Nacional é realizada precariamente pelo Banco Central.

Os erros de previsão que resultam desses procedimentos são enormes. Primeiro, há dificuldade de implementar metas orçamentárias. Segundo, o elevado grau de interação financeira acaba por prejudicar as restrições do déficit fiscal e o controle da expansão monetária. Portanto, seria conveniente consolidar os atrasados financeiros considerados incobráveis, e transferi-los, de uma vez por todas, para o Tesouro Nacional. Devidamente recuperadas, as empresas públicas poderiam voltar a operar em condições de mercado, ou até ser privatizadas. A consolidação da dívida no Tesouro Nacional facilitaria seu reescalonamento com os credores internos e externos.

3. EXPERIÊNCIAS DE SANEAMENTO

O montante de subsídios explícitos e de incentivos fiscais no Orçamento Fiscal é compatível com o que se observa na maioria dos países avançados. Os subsídios à produção e ao consumo podem ser eliminados, ou alterados, durante a discussão e aprovação anual do orçamento. Da mesma forma, os benefícios fiscais dirigidos a pessoas, empresas, setores ou regiões, por meio de legislação, são também objeto de revisão, ano a ano, no decorrer do processo orçamentário. Se forem transparentes, essas pressões sobre as despesas públicas não são preocupantes.

A complexidade orçamentária entre várias unidades do setor público, contudo, não pode ser examinada minuciosamente no decorrer do processo orçamentário. Não adianta muito o governo federal apresentar, por exemplo, um orçamento equilibrado, se os prefeitos, os governadores e os dirigentes das empresas públicas, apoiados nas mais variadas justificativas, desrespeitam sistematicamente as políticas de preços, salários e de crédito propostas pelo governo federal.

Ainda não foi feito um diagnóstico global da complexidade orçamentária, das alternativas disponíveis para correção e do seu impacto financeiro sobre as finanças da União. Entre os mecanismos de recuperação empresarial existentes incluem-se a injeção de dinheiro novo, a conversão de dívida em investimento e a “amortização” de prejuízos anteriores. Uma operação de saneamento financeiro, por si só, não altera o fluxo das despesas públicas; mas, a simples mudança dos lançamentos contábeis, na medida em que estes alteram direitos e obrigações, revela a natureza, o montante e o detentor das dívidas contraídas no passado. Esse é o primeiro passo na recuperação das empresas altamente endividadas.

A) BANERJ

Convém examinar alguns casos de recuperação financeira levados a cabo recentemente. O Banco do Estado do Rio de Janeiro (BANERJ) terminou o ano de 1987 com prejuízo e ativos líquidos negativos. Em 31 de dezembro de 1987 a dívida acumulada do BANERJ com o Banco Central, resultante de estouro no limite de utilização de reservas, alcançava o montante de Cz$ 170 bilhões (US$ 2,5 bilhões). Naquela época, foi montada uma operação de saneamento, cujos intervenientes foram o Banco Central, o Banco do Brasil e o Tesouro do Estado do Rio de Janeiro.

O governo federal tornou-se responsável por uma parcela das obrigações em atraso do BANERJ com o Banco Central, por meio de um repasse de crédito do Banco do Brasil, e o restante foi perdoado pela autoridade monetária. A dívida refinanciada correspondia a atrasados financeiros que o governo do estado tinha com sua principal instituição de crédito; a contrapartida dessa dívida havia sido investida predominantemente na Companhia Metropolitana do Rio de Janeiro (Metrô). A dívida perdoada era uma contrapartida de prejuízos operacionais acumulados durante períodos administrativos anteriores. A operação de saneamento possibilitou assim ao BANERJ liquidar sua dívida com o Banco Central e transferir seus créditos com o Metrô para o estado do Rio de Janeiro.

b) SIDERBRÁS

Em janeiro de 1987 outro plano de saneamento foi aprovado na Companhia Siderúrgica Brasileira (sistema Siderbrás), para sua filiada Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa). No caso da Cosipa, foram adotadas as seguintes medidas:

  1. (a) assunção pela Siderbrás dos atrasados financeiros da Cosipa resultantes de compra de matérias-primas, no montante de Cz$ 18,8 bilhões (US$ 1,2 bilhão);

  2. (b)“amortização” lançamento à conta de lucros e perdas de uma parcela dos prejuízos anteriores da Cosipa, considerados irrecuperáveis em condições normais de operação, no montante de Cz$ 13,8 bilhões (US$ 880 milhões); e

  3. (c) injeção de recursos financeiros pela Siderbrás no fluxo de caixa da Cosipa, no montante de Cz$ 11,3 bilhões (US$ 720 milhões).

O plano de saneamento da Cosipa envolveu, assim, tanto a conversão de dívidas contraídas no passado como a injeção de recursos novos para financiar seu capital de giro e, também, a apropriação de prejuízos considerados irrecuperáveis. A complexidade dessa operação se revela através das múltiplas ligações orçamentárias:

  1. (a) a Siderbrás capitalizou a Cosipa por meio da conversão de dívida em investimento e da injeção de capital com recursos do Banco Central. Simultaneamente, a Cosipa foi “descapitalizada”, tendo seus ativos reduzidos pela apropriação de prejuízos anteriores;

  2. (b) o Banco Central capitalizou a Siderbrás por meio de troca de garantias. O Banco Central assumiu, ainda, a dívida da Siderbrás, e cancelou o empréstimo que lhe havia dado em troca de ações da Cosipa; e

  3. (c) o Tesouro Nacional capitalizou o Banco Central também por meio de uma troca de garantias. Ele assumiu a dívida da Siderbrás e aumentou seus empréstimos à autoridade monetária, em troca de ações da Cosipa. Simultaneamente, o Tesouro Nacional lançou o cancelamento do empréstimo da Siderbrás numa conta de passivo não exigível (fundo perdido).

C) ELETROBRÁS

O ônus causado pelo alto endividamento e a consequente desordem contábil se refletem claramente no balanço das Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás), a holding responsável pela coordenação técnica, financeira e administrativa do setor de energia elétrica. Apesar de as tarifas terem aumentado 25% acima da inflação durante 1987, a Eletrobrás apresentou um resultado financeiro negativo, devido à defasagem temporal das tarifas e a uma elevada rela­ção capital de terceiros-capital próprio. O resultado anual apresentou um pre­juízo de Cr$ 5, 7 bilhões (US$ 140 milhões). Esse número, contudo, não reflete fielmente as dificuldades financeiras da Eletrobrás.

A Eletrobrás deixou de contar com um fonte adicional de receita quando suas subsidiárias (empresas de energia elétrica estaduais das regiões Sul e Sudeste), baseadas na decisão de seus respectivos governadores, interromperam o pagamento da equalização inter-regional. Essa carência de receita acabou afetando as empresas às quais os recursos tinham sido destinados, principalmente do Norte e do Nordeste. Essas empresas são agora obrigadas a cancelar os pagamentos relativos ao suprimento de energia fornecido pela empresa geradora do sistema - a Eletrobrás. Portanto, formou-se um círculo vicioso, o qual se manifesta nas inadimplências acumuladas: em 1987, um total de Cz$ 110 bilhões (US$ 2, 7 bilhões).

Outra dificuldade da Eletrobrás encontra-se no desequilíbrio estrutural de sua conta de ativo-passivo. Em dezembro de 1987 suas obrigações correntes e de longo prazo alcançavam o montante de Cz$ 2.003 bilhões (US$ 28,0 bilhões). Mas seus ativos líquidos (disponível e circulante) não excediam Cz$ 830 bilhões (US$ 11,5 bilhões). As receitas operacionais do sistema montavam a Cz$ 160 bilhões nesse ano, e para cobrir seus encargos financeiros reais (juros menos inflação), seriam necessários aproximadamente Cz$ 200 bilhões.

Os ônus financeiros não pagos são transferidos para contas especiais no lado do ativo do balanço patrimonial. De fato, os “ativos diferidos” acumulados da Eletrobrás já totalizam Cz$ 562 bilhões. E mais, os investimentos atuais em ativos fixos ainda não em operação (inclui plantas nucleares) atingem Cz$ 641 bilhões. Portanto, se essas contas pendentes e diferidas forem consideradas irrecuperáveis, significaria que o valor da empresa é altamente negativo! (ver Tabela 4).

Tabela 4:
Eletrobrás Balanço consolidado (dezembro/1987)

Metade da dívida da Eletrobrás é externa e metade, interna. A dívida interna é composta de empréstimos bancários (a maioria com bancos oficiais), adiantamentos para as empresas filiadas, empréstimos compulsórios (FND), bônus especiais (quotas de contribuição) e “financiamento” concedido por fornecedores. No lado do ativo a Eletrobrás tem créditos não voluntários (atrasados) com distribuidoras de energia elétrica, compromissos de financiamento de entidades internacionais e do governo federal.

4. AS CONTAS DO BANCO CENTRAL

A partir de 1988, o Banco Central deixou legalmente de desembolsar suprimentos automáticos de fundos para o Tesouro Nacional, com o objetivo de cobrir despesas não previstas no Orçamento Fiscal. Não obstante, as autoridades monetárias continuam a depender excessivamente do desempenho financeiro das operações do Tesouro, particularmente aquelas ligadas ao setor externo. O Banco Central centraliza as operações com moeda estrangeira de natureza comercial e financeira do setor privado, e administra os compromissos financeiros externos do governo federal.

O balanço do Banco Central (BACEN) indica que mais da metade de suas obrigações é representada por compromissos com o setor externo. Esses compromissos têm origem nos depósitos de “Projetos” de renegociação da dívida externa em 1982-1983.1 1 No pacote de renegociação, o Projeto 1 se refere ao “dinheiro novo”; o Projeto 2 ao reescalonamento do principal da dívida bancária de médio e longo prazo; e os Projetos 3 e 4 ao reescalonamento de empréstimos comerciais e interbancários, respectivamente. As empresas públicas e privadas depositam cruzados no Banco Central, para cobrir os encargos de sua dívida externa. O BACEN pode repassar, ou não, esses depósitos aos credores, dependendo da disponibilidade de moeda estrangeira.

Da mesma forma, os compromissos externos do BACEN são a contrapartida de adiantamentos do Tesouro Nacional a empresas públicas. Esses adiantamentos correspondem à incapacidade dessas empresas de cumprir seus compromissos financeiros internacionais. No processo, as contas externas do BACEN se transformaram em uma fonte expressiva de obrigações não-monetárias, que financia empréstimos ao governo federal, às empresas públicas e aos estados e municípios, de acordo com prioridades definidas mais ou menos ao sabor das circunstâncias.

Uma dificuldade inerente a essas obrigações ligadas ao setor externo é seu impacto sobre a oferta de moeda, assim como sobre o déficit fiscal. Na programação monetária, um dos itens menos previsíveis, e um dos mais relevantes para o controle da base monetária, é o fluxo líquido dos depósitos de “Projetos”. Quando os mutuários no Brasil deixam de cumprir suas obrigações internacionais, o BACEN é obrigado a fazer adiantamentos nominais ao Tesouro Nacional, para cumprir os procedimentos contábeis. O impacto monetário desse diferimento é neutro, mas as inadimplências afetam as metas de política monetária.

A programação monetária é um demonstrativo do fluxo de caixa da fonte e uso dos recursos do BACEN. Na programação duas contas ressaltam em importância: operações com títulos do Tesouro e operações de financiamento externas. A política monetária deveria ser, em princípio, independente do Tesouro Nacional; o governo federal administra a dívida mobiliária interna, vendendo títulos no mercado primário, tanto para o BACEN quanto para o setor privado, enquanto o BACEN regularia a liquidez através da compra e venda de títulos no mercado secundário. Contudo, devido à presença marcante do BACEN nos leilões primários, na condição de cliente preferencial do Tesouro, já que metade da dívida mobiliária atual está na carteira do banco, é difícil imaginá-lo numa posição passiva, no que diz respeito à formação das taxas de juro.

Além do mais, a condução da política monetária sofre as consequências do impacto financeiro das operações do setor externo. Convém dividi-las, para clareza de exposição, em contas em moeda estrangeira e contas financeiras. As primeiras refletem o saldo líquido das atividades comerciais (bens e serviços não fatores) do país em moeda forte. Se, por exemplo, os pagamentos externos estão equilibrados, o impacto monetário das contas em moeda é zero. Uma parcela significativa das contas financeiras no Brasil, contudo, se relaciona apenas indiretamente com o desempenho do setor externo.

Essas contas, como foi dito acima, foram abertas para centralizar internamente a renegociação da dívida externa, e para criar um “hedge” para dívidas externas privadas contraídas em moeda estrangeira. A fonte de recursos para essas contas são depósitos em cruzados no Banco Central, relativos a amortizações e juros sobre a dívida externa com bancos comerciais, instituições internacionais e agências oficiais. O destino desses recursos, por outro lado, são empréstimos e adiantamentos realizados pelo BACEN.

O impacto monetário das contas financeiras pode ser neutro, quando os tomadores de empréstimos efetuam pagamentos nas datas predeterminadas, e o Banco Central reempresta o dinheiro de acordo com sua programação. Porém, o vínculo contratual entre o tomador final e o credor externo é tênue, ou não existe. De fato, a autoridade monetária age, nesse caso, como uma instituição de crédito, ou seja, como um agente repassador de financiamento. Portanto, o seu fluxo de caixa não é independente do andamento dos negócios. O BACEN nessas circunstâncias desempenha as funções de banco de desenvolvimento (repasses para investimento em infraestrutura), banco comercial (financiamentos à exportação e importação) e banco de investimento (créditos industriais).

Assim como é necessário recuperar as empresas públicas para aumentar a transparência e a funcionalidade das contas do governo, o Banco Central também deve passar por uma operação de saneamento para se tornar independente do Tesouro Nacional e ser capaz de levar a cabo sua tarefa específica - o controle da oferta monetária. Livre de seus atuais compromissos financeiros de natureza parafiscal, as autoridades monetárias poderiam se concentrar exclusivamente na determinação dos fatores condicionantes da base monetária.2 2 Na programação monetária de um Banco Central independente a variação da base monetária dependeria com preponderância das Operações com Títulos do Tesouro no mercado aberto. Desse modo, seria mínima a participação do banco nos leilões primários de títulos públicos, e o resultado líquido das Operações do Setor Externo não impactaria fortemente a base monetária (a situação atual é exposta esquematicamente no Quadro 1A).

Por definição, o passivo da autoridade monetária é representado principalmente pela base monetária (papel-moeda em circulação mais encaixes bancários). Nesse caso, com um montante de títulos públicos em sua carteira, de saldo aproximadamente igual às obrigações monetárias, o Banco Central teria condições de controlar a oferta de moeda. Todavia, o montante do passivo não-monetário do Banco Central no Brasil (Obrigações Externas e Internas) é cerca de treze vezes maior do que o da moeda primária (Base Monetária). Os adiantamentos ao Tesouro Nacional por um lado, e a transferência de responsabilidade pelo pagamento da dívida externa ao BACEN por outro, incharam o passivo do banco. Atualmente pequenas variações nessas contas têm um impacto enorme sobre a base monetária. Portanto, a variação da oferta de meios de pagamento não pode ser controlada com eficácia, a menos que a magnitude das contas não-monetárias do Banco Central seja significativamente reduzida.3 3 As contas do balanço patrimonial do BACEN estão descritas de maneira sintética no Quadro 1B.

Uma reestruturação de ativos e passivos entre o governo federal e o Banco Central deixaria expressos os canais de comunicação entre tomadores finais de empréstimos e credores externos. Ao retirar o BACEN da sua função espúria de agente financeiro, a maior parte de suas obrigações não-monetárias seria transferida ao Tesouro Nacional; esse passivo seria então “securitizado “, e transformado em dívida fundada.4 4 Dívidas reconhecidas explicitamente no Orçamento Fiscal. Haveria, de fato, pouca mudança nas estatísticas atuais da dívida pública global, que registra ao mesmo tempo obrigações do governo federal e do Banco Central. Mas, e isso é importante, a autoridade monetária teria pouco a ver com o refinanciamento do setor público.5 5 Deve-se reconhecer que uma parcela significativa dos ativos do Banco Central não existe mais. De fa­to, renovações de empréstimos, desembolsos e garantias honrados no passado foram em grande medida aplicados no financiamento de déficits orçamentários e na cobertura de prejuízos de empresas estatais.

Quadro 1:
Banco Central Programação Monetária (A)

CONCLUSÕES

O Brasil, e muitos outros países latino-americanos, têm um setor público inchado, que resultou de políticas expansionistas financiadas por meio do endividamento externo, até o final da década de 70 e início da de 80. Resultou disso uma complexa interdependência de contas públicas que reduz hoje a eficácia das políticas fiscal e monetária. O orçamento do Tesouro Nacional pode até ser equilibrado, já que cobre apenas a administração direta. Contudo, um grande montante de financiamento bancário para empresas públicas, estados e municípios também é provido pela União com recursos não orçamentários. Portanto, a recuperação financeira das empresas públicas e tesouros locais altamente endividados é uma precondição para que o Banco Central deixe de agir como emprestador em última instância, e possa controlar as emissões de dinheiro. Para recuperar as suas funções e os seus instrumentos tradicionais o governo federal deverá descentralizar recursos e obrigações de modo a minimizar as transferências inter-orçamentárias.

  • 1
    No pacote de renegociação, o Projeto 1 se refere ao “dinheiro novo”; o Projeto 2 ao reescalonamento do principal da dívida bancária de médio e longo prazo; e os Projetos 3 e 4 ao reescalonamento de empréstimos comerciais e interbancários, respectivamente.
  • 2
    Na programação monetária de um Banco Central independente a variação da base monetária dependeria com preponderância das Operações com Títulos do Tesouro no mercado aberto. Desse modo, seria mínima a participação do banco nos leilões primários de títulos públicos, e o resultado líquido das Operações do Setor Externo não impactaria fortemente a base monetária (a situação atual é exposta esquematicamente no Quadro 1A).
  • 3
    As contas do balanço patrimonial do BACEN estão descritas de maneira sintética no Quadro 1B.
  • 4
    Dívidas reconhecidas explicitamente no Orçamento Fiscal.
  • 5
    Deve-se reconhecer que uma parcela significativa dos ativos do Banco Central não existe mais. De fa­to, renovações de empréstimos, desembolsos e garantias honrados no passado foram em grande medida aplicados no financiamento de déficits orçamentários e na cobertura de prejuízos de empresas estatais.
  • 6
    Compromissos em moeda estrangeira (Depósitos Registrados em Moedas Estrangeiras (DRME), obrigações com membros do Clube de Paris, FMI, etc.).
  • 7
    Títulos de emissão própria, depósitos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e relativos a exportações.
  • *
    Tradução de Otacílio Fernando Nunes Jr., com revisão do autor.
  • 8
    JEL Classification: H11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1991
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