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Sobre a crise do Estado brasileiro

About the crisis of the Brazilian State

RESUMO

No centro da atual crise da economia e da sociedade brasileira está a crise do Estado. Para entender essa crise, este trabalho faz uma revisão da natureza e do papel do Estado brasileiro no presente e no passado. O artigo argumenta que no capitalismo periférico, como o brasileiro, o Estado tem desempenhado papéis diferentes e produzido efeitos diferentes em relação ao Estado dos países desenvolvidos. Aqui o Estado não é apenas um componente essencial e fundamental do processo de acumulação do capital, mas tem dificuldade em desempenhar o papel de árbitro dos conflitos de classes e da competição entre diferentes grupos de interesse. Entre outras coisas, a natureza do Estado brasileiro produziu e reproduziu desigualdades crescentes e heterogeneidade estrutural.

PALAVRAS-CHAVE:
Papel do governo; privatização

ABSTRACT

In the center of the present crisis of the Brazilian economy and society is the crisis of the State. To understand this crisis, this paper makes a revision of the nature and the role of the Brazilian State in the present and in the past. The paper argues that in peripheral capitalism, like Brazilian, the State has played different roles and has produced different effects as compared to the State of developed countries. Here the State is not only an essential and fundamental component of the process of capital accumulation but has difficulty playing the role of arbiter of class conflicts and competition between different interest groups. Among other things, the nature of the Brazilian State has produced and reproduced increasing inequality and structural heterogeneity.

KEYWORDS:
Role of government; privatization

I

Com regularidade crônica, o pensamento conservador repõe, a cada crise econômica e/ou política, desde os anos 40, a necessidade de desestatização da economia e da sociedade brasileiras. Com a mesma regularidade, entretanto, ultrapassado o momento da crise, as forças conservadoras seguiram pilotando um processo continuado de expansão da presença do Estado no comando de nosso desenvolvimento capitalista.

Com autêntica obstinação o pensamento progressista defendeu, por outro lado e de forma continuada, desde os anos 50, a necessidade da intervenção estatal para a obtenção de um desenvolvimento equitativo, desconhecendo quase sempre algumas raízes históricas conservadoras de suas teses, e confundindo, muitas vezes, o avanço da presença do Estado com o cumprimento de seus objetivos, em geral desconsiderados pelo intervencionismo estatal.

Essa complexa troca de cabeças, segundo nosso entender, impediu, no passado, a modernização das teorias e projetos progressistas, e hoje dificulta enormemente a compreensão da crise vivida pelo país e o desenho de seus caminhos de superação.

Desde o final da década de 70 acumulam-se os sintomas de uma crise que, econômica e política, solapou as bases de sustentação do regime e erodiu a capacidade gestora do Estado. A desaceleração do ritmo de crescimento que a economia brasileira mantinha desde os anos 40 desembocou, como é sabido, numa recessão e numa aceleração inflacionária sem precedentes na história brasileira, atingindo em cheio a capacidade de reprodução do regime autoritário e atrofiando, de forma progressiva, os mecanismos estatais de decisão e sustentação de políticas de longo prazo.

De tal maneira que o próprio projeto político liberalizante dos anos 78-79 teve que redesenhar sua estratégia, atropelada quando a crise atingiu a capacidade estatal de gestão macroeconômica do curto prazo, com o início do segundo “delfinato”, mas sobretudo a partir da inflexão ortodoxa e “estabilizadora” da política econômica, ocorrido no segundo semestre de 1980. Um ano depois, o “episódio” do Riocentro, atingindo o epicentro do controle militar dos processos decisórios, afastou, com o general Golbery, a última peça do esforço de controlar planejadamente o processo de liberalização política.

Desenhada estruturalmente e assumida conscientemente, como mecanismo de ajuste do balanço de pagamentos, a recessão evolui, desde então, para uma crise financeira do Estado, empurrando um processo acelerado de entropia que desde o governo Figueiredo foi visto como uma crise de ingovernabilidade acompanhada da inevitável “desarticulação” administrativa do Estado.

Já encerrado o ciclo militar, no encaminhamento da transição democrática, o Plano Cruzado fez esquecer, por algum tempo, a natureza frágil, pactuada e conservadora do governo emerso das negociações que, em 1984, contornaram o impulso assustador do movimento pelas diretas, reacendendo em alguns a ilusão de que o governo recuperara sua capacidade de mando e gestão econômica, rearticulada em torno de um projeto de crescimento com equidade. Por um instante, a transição passava a um segundo plano, ofuscada pela possibilidade, enfim, de realização do sonho progressista: crescimento com equidade, comandado por um Estado forte, centralista e, certamente, tecnocrático. O “distributivismo por cima”, contudo, supunha reformas inalcançáveis pela via tecnocrática. O plano faliu, e a estratégia de democratização parece atrelar-se, hoje, aos descaminhos de uma conjuntura econômica aparentemente desgovernada. Uma vez mais, cresce a consciência da desarticulação administrativa, a perda do fôlego de longo prazo, o sentimento generalizado de ingovernabilidade acompanhado, como não poderia deixar de ser, por uma deslegitimização progressiva do governo, e, de repente, da própria transição democrática.

Repôs-se, assim, após o Cruzado, a trajetória crítica, colocando em xeque a transição democrática e os caminhos futuros do capitalismo brasileiro. Como antes e como sempre, nas propostas políticas econômicas que pretendem evitar o caos, reaparece em toda a sua plenitude a questão do Estado.

Assim, por um lado, com o pensamento e as forças conservadoras que veem na desestatização - proposta de maneira vaga e indefinida - o caminho para a superação da crise. Enquanto, pelo outro, os progressistas, sobretudo depois do fracasso do Plano Cruzado, enfrentam-se com a perda dos seus referendais paradigmáticos tradicionais, a um profundo “déficit projetual”. Nesse vácuo, germina ainda imprecisa a ideia de que se faz imprescindível uma reforma do Estado. Paradoxalmente, na hora da verdade, posta por uma crise sem precedentes, uns propõem desfazer-se do Estado que eles mesmos construíram. Os outros, muitas vezes crendo sua uma obra que foi conservadora, propõem reaproximar o Estado de seu modelo ideal, pondo-nos frente a uma dura verdade: a de que as forças e o pensamento progressista pouco aprofundaram em sua reflexão sobre o Estado.

Nesse momento, ainda que sob o fogo cruzado do debate ideológico, parece oportuna uma revisão mais cautelosa sobre a natureza e o papel passado e presente do Estado brasileiro. Sobretudo porque consideramos que ele é de fato o epicentro da crise e o é na medida em que condensa, em sua desarticulação e impotência atuais, contradições embutidas em seu compromisso fundante que foram dribladas, através de décadas, pela possibilidade de crescimento econômico continuado e exercício autoritário incontestável do poder. Nele se encontram as crises econômica e política que estamos vivendo. Ambas têm raízes antigas, profundamente assentadas no travejamento estrutural de um Estado que se viabilizou em nosso país, nos anos 20, assumindo sua forma centralista autoritária nos anos 30 e alcançando seu “pleno” sucesso desenvolvimentista a partir dos anos 50. Um Estado que assumiu o seu formato institucional e consolidou suas bases sociais de apoio através de um longo percurso ou ciclo - iniciado com o fim da Primeira Guerra Mundial e com a ruptura da hegemonia inglesa e do padrão ouro - durante o qual assumiu papel decisivo nos processos de industrialização e modernização da sociedade brasileira. Mas o fez condensando uma aliança extremamente heterogênea, o que o obrigou a uma gestão conservadora e centralista - quase sempre autoritária - dos conflitos políticos e a um “intervencionismo” econômico cuja especificidade teve muito a ver com o fato de que a partir daquela ruptura inicial, o Estado brasileiro adquirisse autonomia potencial na determinação arbitrária do valor interno do seu dinheiro e, como consequência, das várias taxas de lucro possíveis para os diversos capitais individuais ou blocos de capitais. Sendo essa capacidade de arbítrio decisiva para que o Estado pudesse pilotar um compromisso que foi tão amplo, que lhe impôs uma intervenção econômica e uma regulação social extensa e casuística responsável pelo que chamamos de “acumulação politizada”. Politizada, por responder em sua trajetória e em suas impotências muito mais do que às regras de mercado, às determinações de um Estado cuja ação, entretanto, esteve sempre submetida a limites impostos por uma luta política extremamente limitada mas intensa entre interesses de capitais e blocos de poder regional, incapazes de impor, através de uma clara supremacia, a hierarquização política da heterogeneidade socioeconômica.

Por isso, se a crise atual representa, em nosso entender, um momento de máxima condensação dos conflitos que moveram um longo ciclo político-econômico de nossa história, ela também concentra, em si, como anúncio e como impasse, as contradições que fizeram nosso desenvolvimento tão iníquo e politicamente instável. E é porque elas continuam vigentes que acreditamos que o desdobramento da crise será lento e doloroso, passando pela reestruturação de relações sociais inscritas na estrutura constitutiva do capitalismo industrial brasileiro, e envolvendo a necessidade imperiosa de reorganizar os próprios compromissos políticos que sustentaram o sucesso e a entropia do ciclo desenvolvimentista. Nessa hora, associados à luta pela democratização e pela reforma do Estado, estão em jogo contratos e dinheiro, e sobretudo a redefinição das regras de valorização do capital que vigiram no país durante mais de meio século. Regras que sendo de natureza predominantemente política e definição estatal, só mudarão como resultado de uma luta feroz, onde cada interesse deverá valer-se por si mesmo, apesar de, paradoxalmente, contar como seu principal recurso de poder, com a fatia de que dispõe no interior do Estado. Daquele mesmo Estado de que quase todos, retoricamente, querem se desfazer. Por isso, a profundidade e o grau de incerteza desta crise, cuja superação envolverá reformas institucionais, mas sobretudo a rediscussão do pacto fundante do Estado desenvolvimentista. O que poderá ou não ser compatível com um regime democrático, mas certamente recolocará o papel econômico do Estado.

II

A presença do Estado no desenvolvimento capitalista brasileiro cumpriu funções e produziu efeitos distintos dos ocorridos nos capitalismos cêntricos a despeito da coincidência cronológica das “crises” e da similitude formal das “intervenções”. Aqui, o Estado transformou-se em componente essencial e indispensável no processo de valorização de um capital, cujo trajeto de acumulação alterou a própria tendência histórica à equalização e à concentração, inscritas na forma em que a lei do valor opera na maioria dos países centrais.

Essa tendência “normal” no capitalismo cêntrico tem levado, em todas as suas etapas, a uma desigualdade bipolar dos dominantes e dominados, dos grandes capitais e dos capitais dispersos. Mas tem preservado, contraditória e conflitivamente, a igualação das condições de reprodução em cada um desses estratos. A novidade trazida pelo monopolismo foi o aparecimento do Estado como agente mantenedor da bipolaridade, assegurando a equalização entre os iguais, pela via da homogeneização da taxa de lucro no polo dominante monopolista, e sua diferenciação da taxa do setor não monopolizado garantindo uma taxa média para todo o sistema. Um Estado moderno, pois, que arbitra, organizando a igualdade dos grandes capitais, por oposição aos capitais dispersos e simultaneamente assegura a reprodução dos dominados.

Daí, a verdade parcial dos que, sublinhando um aspecto, falaram de uma nova etapa do desenvolvimento capitalista, a monopolista de Estado; e dos que, sublinhando o outro, destacaram a dimensão protetora do bem-estar social, nos Estados modernos do capitalismo desenvolvido.

Já no caso do capitalismo periférico e, do brasileiro em particular, o que estamos querendo demonstrar é que a valorização se plasma numa direção oposta, “desigualizadora” e, só parcialmente, concentradora. Tendência que, não sendo bipolarizante, passa pela reprodução e, quando não, pelo agravamento da heterogeneidade estrutural dos vários estratos ou segmentos econômicos e sociais e de cada um de seus espaços regionais. Aqui, o Estado aparece desde o início, atuando numa direção distinta, na medida em que, tratando como iguais capitais que são desiguais, produz e fortalece a desigualdade, agenciando um desdobramento peculiar da lei do valor, onde, reprodução e acumulação convivem com uma desigualdade assegurada pela ação estatal.

No polo dominado, também, ao contrário dos países centrais, o Estado periférico e, no caso, o brasileiro, não propicia as condições de reprodução social da totalidade da força de trabalho nem assume a responsabilidade pelos “marginalizados”. Nesse sentido, em vez do Estado de bem-estar social, o que temos é uma combinação permanente e alternada de paternalismo e repressão. O que, se bem não impede que toda a população tenda a estar imersa no “mercado capitalista”, o faça como consumidora marginal dos seus produtos materiais e culturais, incluída aí a aspiração ao bem-estar e ao conforto, próprios de um capitalismo desenvolvido. Mas nunca na condição de população trabalhadora, com todas as suas implicações socioeconômicas, nem na condição cidadã, com todas as suas implicações político-ideológicas.

Dessa forma, por trás das similitudes formais, que aproximam o Estado moderno dos países cêntricos e periféricos, aninham-se diferenças significativas, ligadas ao tipo de papel cumprido, tanto no movimento de acumulação do capital quanto na reorganização periódica da estrutura de dominação. Entretanto, é importante sublinhar que essas diferenças não se explicam, abstratamente, a partir de requerimentos postos por fases ou etapas de um desenvolvimento capitalista linear. Ficam visíveis, na análise do caso brasileiro, os conflitos políticos reais entre interesses de classe e frações que vão impondo conteúdo e forma ao envolvimento, do Estado na regulação e no próprio processo de valorização.

Assim, se lá como aqui o Estado cumpre uma função arbitral, o faz, como o dissemos, de maneira completamente distinta, num caso do outro. Nos países centrais essa arbitragem foi viabilizada historicamente através de uma institucionalidade estatal que condensou o conflito das classes e a competição dos capitais filtrados através de um sistema político que logrou intermediar os conflitos e sucessivos compromissos resguardando uma certa capacidade operacional autonômica às burocracias de Estado. Já no Estado desenvolvimentista, aquela arbitragem foi sempre mais difícil, na medida em que os conflitos entre forças altamente heterogêneas e com escassa “representatividade” social deslocaram-se diretamente para dentro do aparelho do Estado, usando sua institucionalidade e o poder de suas burocracias como argamassa de seus compromissos. Donde, por isso mesmo, esses acordos jamais lograram desempatar a luta entre as várias frações e capitais individuais a favor dos mais fortes economicamente. O tratamento “igual dos desiguais”, impôs, na verdade, uma batalha constante pelo controle da capacidade de arbítrio monetário e jurídico do Estado. Nesse sentido, aliás, em termos mais rigorosos, não houve nem mesmo um tratamento permanentemente igual dos desiguais. Houve, na verdade, uma luta constante e, como resultado, foram tratados “igualmente”, de forma transitória, os vitoriosos de cada turno, dando lugar a uma luta interminável e, como consequência, a uma instabilidade financeira e jurídico-político-econômica.

Nesse quadro, recuar do intervencionismo “protetor” seria a tragédia da dissolução do sistema, e avançar apareceu sempre como a única solução, ainda quando isso implicasse uma valorização heterodoxamente politizada do capital. Uma valorização que, por causa dos sucessivos “loteamentos” e consequente ampliação do aparelho e funções do Estado, permitiu o convívio e a sobrevivência de frações e órbitas financeiras mercantis altamente especulativas, e de frações industriais e agrárias de baixa produtividade. Sendo que nesse processo, à diferença dos países centrais, os derrotados e os vários setores dominados da “sociedade civil” jamais tiveram algum poder de veto sobre as decisões dos vitoriosos. A própria forma de participação estatal impelia à centralização e ao autoritarismo.

III

Do ponto de vista dinâmico, o movimento de reprodução e acumulação desse capital, passando pelo Estado, levou no longo prazo a conflitos que lhe imprimiram uma direção simultânea de crescimento e entropia. Assim, se a “fuga para a frente” propiciou a centralização estabilizante e a industrialização, ao mesmo tempo desencadeou uma dinâmica cíclica com crises políticas periódicas que afetavam a capacidade do Estado de estabilizar o compromisso fundamental em torno da intocabilidade dos interesses condominiados. Esses ciclos e crises, de muito maior intensidade política do que econômica, são compreensíveis a partir de uma dupla determinação.

De um lado, estava o poder discricionário do Estado sobre o valor do dinheiro e das normas, o qual, permitindo-lhe que, através de sua política econômica, desvalorizasse de forma arbitrária patrimônios e capitais - em função apenas de uma correlação de forças, alterável em cada momento -, dissolvia a possibilidade de “perspectivas futuras constantes”, condição básica de qualquer investimento de porte médio e longo prazo de maturação. Donde a contraface do “enorme” poder estatal fosse uma expectativa constante, por parte da maioria dos agentes econômicos, de uma perda arbitrária de valor e lucratividade dos seus capitais. Como consequência, politizara-se a competição econômica, tendendo a transformar a concorrência de mercado em luta por alguma fatia do poder estatal. Por aí, a progressiva fragmentação do aparelho e balcanização do poder do Estado, mas também, a perenização de um comportamento defensivo-especulativo, dos vários agentes econômico-financeiros, o qual, extrapolando situações circunstanciais, transformava-se em fenômeno estrutural. A aversão ao risco e a necessidade de investimentos promovidos e subsidiados vão de par com a tão comentada falta do “espírito conquistador” de grande parte da burguesia empresarial.

Por outro lado, estava a obrigação estatal de financiar, ou executar diretamente, gastos e investimentos ampliados, o que lhe impunha definir e sustentar as novas fronteiras de expansão da acumulação. Tarefa que aconteceu pavimentando, num primeiro momento, as condições da industrialização, e alavancando, logo depois, os ciclos próprios de sua consolidação e expansão. Mas, como consequência, todas as desacelerações provocadas, seja pelos constrangimentos externos, seja pelo descenso no ciclo do capital industrial, afetaram o seu volume de recursos e a sua capacidade de gastos, desacelerando automaticamente os capitais e empreendimentos dependentes de seu gasto ou de seus subsídios. Nesses momentos, cresciam as expectativas negativas acompanhando a luta dentro do Estado, provocando a sua transitória paralisia e, como decorrência, uma inevitável crise financeira, lastreada invariavelmente, por uma aceleração e por uma crise política quase sempre associada à fuga dos penalizados em direção a alternativas populistas inflacionárias. Como solução, aparecem então os recorrentes planos de estabilização, por trás dos quais rearranjaram-se, quase sempre, os mesmos compromissos fundamentais, reformulando-se o sistema financeiro e redefinindo-se as novas regras da futura gestão estatal. A partir daí, alcançando um novo patamar inflacionário, estava viabilizando um outro surto de crescimento, durante o qual, como é óbvio, estabilizavam-se as expectativas de curto prazo diminuindo o número dos penalizados e ampliando espaço para os novos capitais.

Donde, nesse peculiar processo de acumulação, o Estado fosse tão brutalmente sensível a todas as desacelerações do crescimento. Sem nenhum mecanismo simplório, poderíamos dizer que, neste contexto, toda e qualquer perspectiva de estagnação gerava automática instabilização política, ao descontrolar as expectativas, desativar os investimentos, multiplicar os conflitos, acelerar a inflação e paralisar a fragmentada máquina de um poder estatal cada vez mais balcanizado.

Numa primeira fase, até os anos 50, o Estado se mostrava hipersensível a qualquer afecção do setor externo, na medida em que não tinham sido ainda montados os núcleos mais importantes da industrialização pesada que, portanto, não se configurara um ciclo interno ligado à acumulação privada de capital. A partir de então, às restrições internas se agrega o ciclo industrial, e todas as desacelerações industriais, reais ou previstas, estiveram acompanhadas de crise político-institucionais financeiras. A instabilidade crônica das instituições e o caráter periódico de suas crises recortam, assim, uma espécie de interciclos políticos sobre o ciclo longo, definido, como vimos, pelas recentralizações impostas pelos vários compromissos assumidos politicamente pelas heterogêneas frações da classe dominante.

Nesse sentido, entende-se como foi que o mesmo impulso que levou à hipercentralização e ao crescimento conduziu à fragmentação e periódicas paralisias do aparelho do Estado, e à instabilização crônica das expectativas micro e macroeconômicas. Entende-se, também, como a contraface contraditória da industrialização e do desenvolvimento, nesse caso, tenha sido a monopolização desigual do capital, a manutenção de ondas explosivas de valorização especulativa e a atrofia de uma burguesia “nacional”. Esta, dividida e esfalfada na luta pelo controle de alguma fatia do poder estatal, sempre teve, a partir da experiência do Estado Novo, na bandeira da desestativação e na mobilização controlada das populações urbanas, o seu argumento ideológico e o seu instrumento de “chantagem” mais eficaz nos períodos de derrota ou marginação das “vantagens” estatais.

Nessa contradição esconde-se, em nosso entender, o segredo da acumulação capitalista e do Estado desenvolvimentista brasileiro, impulsionados em seu movimento por uma tendência de longo prazo que, viabilizando o desenvolvimento como solução obrigada de compromisso, apontava, contudo, numa direção entrópica, que, germinando a cada crise, conduziu ao impasse em que estamos envolvidos. Nele alcança seu limite e eficácia possível do compromisso desenvolvimentista, e da estratégia de “fuga para a frente”, responsáveis por uma “lei de valorização” que, se teve no Estado seu momento decisivo, nele também tem, logicamente, o epicentro e a maior incógnita da crise atual.

O próprio fato de que, nessa conjuntura, a luta pela desestatização apareça associada a uma defesa, pela classe dominante, das virtudes democráticas, parece estar sinalizando um novo patamar histórico, ou, segundo nossa hipótese, o fim de um longo ciclo político-econômico nas regras de valorização - postas e repostas, politicamente, desde o início do século - de um capital que, hoje, para expandir-se necessita revê-las, refazendo os compromissos que se sustentaram e, quem sabe, implodindo o próprio Estado desenvolvimentista.

Fica difícil, entretanto, saber até que ponto as várias frações nacionais e regionais da classe dominante conseguirão desvencilhar-se desse Estado, ou, pelo menos, estabilizá-lo, definindo as regras de seu tratamento “igual aos desiguais”.

O que parece certo é que a crise atual tem uma profundidade e complexidade até aqui desconhecidas, e que o projeto desestatizante apresenta-se hoje com uma força que não teve, em 1945, 55 ou 65, momentos anteriores em que foi proposta pelas frações penalizadas e, logo depois, abandonada quando vitoriosas, já controlavam o poder que haviam criticado. E se o projeto desestatizante apresenta-se com essa força é porque, também, a centralização estatizante alcançou uma dimensão insuspeitável, levando a um limite máximo o perigo representado pelo seu poder discricionário. Numa fase recessiva, como a que vivemos, onde o ciclo industrial aparece associado a uma crise econômico-financeira internacional, somam-se, às restrições internas, o congelamento do financiamento externo, obstáculos centrais à retomada do crescimento. Nesse momento, como nas crises anteriores, descontrolou-se o sistema financeiro, só que agora a inflação atingiu níveis despropositados, somando à incapacidade de gastos e investimento estatal a aceleração das expectativas negativas e dos comportamentos defensivo-especulativos. Donde, desgoverna-se a iniciativa do Estado, que paralisado pela balcanização interna do seu poder, vê-se obrigado a uma sinuosidade e a uma incoerência crescentes, explicitadas nos “casuísmos” legais, no seu envolvimento direto, como copromotor da “ciranda financeira” e, com ela, da especulação improdutiva e da inflação. Nesse quadro, a solução aparente apontaria para o velho recurso que, com maior dose de autoritarismo, talvez permitisse sustentar a arbitragem de um novo compromisso, o qual, revertendo as expectativas e suavizando a intensidade dos conflitos, permitiria uma retomada do crescimento tendo no Estado, uma vez mais, o seu polo aglutinador e promotor. Mas essa solução, bem-sucedida em todas as crises posteriores aos anos 20, hoje aparece politicamente inviável.

As recentralizações estatizantes e desenvolvimentistas, como movimento de “fuga” ao conflito, já não têm onde encontrar instâncias superiores de arbitragem e aval das regras de reprodução desigual. Desde sua origem, esse padrão de “acumulação politizada” teve nos militares, como vimos, o recurso potencial ao qual recorriam, em última instância, as frações penalizadas. Em 1964 e, em particular, em 1968, a sustentação do compromisso impôs a solução limite: fez-se indispensável a gestão militar direta do pacto ali reafirmado. Usava-se, assim, no comando deste que foi o movimento mais profundo de centralização, quem fora, até então, o árbitro em última instância. E, com isso, depois do ciclo expansivo ocorrido entre 1968 e 1974, na desaceleração e em particular na retração de 1977 ao renascer o conflito e refragmentar-se o Estado, as próprias Forças Armadas viram sua unidade ameaçada por um processo igual de divisão interna. Sua crescente parcialidade, no apoio explícito ou implícito a uma política econômica que não apenas favorecia determinados setores, mas também produzia os seus próprios parceiros ilegais, erodiu sua legitimidade frente às regiões desfavorecidas, às grandes massas urbanas e às órbitas prejudicadas do capital. O período Geisel foi sintomático nesse sentido: tentando impor um novo movimento de centralização estatizante, já não encontrou os apoios sociais e políticos de outrora. Fracassou, e seu intento acelerou, apesar da aparência em contrário, a divisão interna dos militares, que acrescida nos anos seguintes, acabou levando-nos à impotência.

Assim mesmo, foi lenta a decomposição da coalização governante, uma vez que a completa falta de alternativa dentro dos horizontes estabelecidos pelas regras básicas do acordo comum impedia que o regime fosse, uma vez mais, substituído. Afinal, gastara-se a última carta, e os militares, primeiros porta-vozes da proposta centralizadora, não encontravam mais solução na “fuga para a frente” às contradições não enfrentadas, em suas raízes, de uma acumulação que teve que respeitar a heterogeneidade.

Nesse quadro, seguir em frente significaria a quebra das Forças Armadas ou a passagem a um regime totalitário, soluções igualmente inaceitáveis nos termos do pacto que impôs a própria intervenção militar. Mais inaceitável ou inviável, como é óbvio, seria uma solução que passasse pelo avanço da ação estatal na direção de um planejamento estrutural global. Nesse caso, estaríamos no caminho do socialismo com que muitos sonharam na década de 50, alcançado por uma mágica intraestatal.

Assim, posto frente a uma recessão e a uma inflação sem precedentes, balcanizado internamente, com sua elite civil e militar imobilizadas pelas divisões, choca-se, no limite, com os próprios supostos de sua força: a intocabilidade da terra e dos grupos financeiros privados; a permissividade para a sua valorização especulativa; a proteção de certas improdutividades; a autonomia decisória do capital estrangeiro; a incontrolabilidade dos fluxos de financiamento externo; e, finalmente, a sua própria e natural falta de autonomia frente a esses vários interesses. O Estado desenvolvimentista alcançou, enfim, o limite da eficácia possível de sua intervenção.

Impôs-se, dessa forma, como necessidade da própria tendência “positiva” que nos trouxe à crise atual, mesmo sem doutrina ou programa, o que foi sempre a proposta e o instrumento de pressão e chantagem dos prejudicados, o horror do pensamento conservador dos anos 20 e do positivismo militar, desde sempre: descentralizar, desestatizar e democratizar, para crescer.

Essa necessidade tendencial, entretanto, não desfaz automaticamente uma realidade estrutural consolidada através do tempo e embutida na ação e na própria institucionalidade do Estado e da economia. Por isso, o núcleo do conflito político e da luta ideológica gira, hoje, com toda razão em torno à “questão do Estado”. O que surpreende, a essa altura, é a fragilidade do discurso ideológico conservador quando propõe, como solução à crise econômica, uma “desestatização” que desconhece a importância histórica decisiva do “gigantismo estatal” para a proteção dos interesses dominantes e a manutenção de uma ordem pouco competitiva, porém estável. Como surpreende também o irrealismo do discurso progressista, quando, incapaz de compreender os limites histórico-estruturais impostos à ação estatal, propõe, uma vez mais, como solução à crise, uma racionalização administrativa e uma intervenção arbitral do Estado incompatíveis com os compromissos e a institucionalidade que resultaram do seu longo envolvimento nos processos de valorização de capitais individuais pouco monopolizados e de compatibilização de interesses grupais pouco homogêneos.

Mais além do nevoeiro ideológico, entretanto, a realidade dura e crua dos fatos, impostos por uma estrutura construída durante sessenta anos de centralização continuada, aponta para um quebra-cabeças de difícil solução: como desvencilhar-se de um Estado de que todos dependem economicamente, numa luta em que o principal instrumento de poder de cada um é a própria fatia do Estado que controlam?

Sendo previsível que sejam mantidos os parâmetros estruturais, ainda por um longo tempo, a mera aceitação de regras iguais e democráticas significará, inevitavelmente, a manutenção do conflito em uma situação aberta e com participação popular, com uma alta probabilidade de que isso conduza ao estilhaçamento do Estado que aí está. Numa situação limite, não seria aventurada uma tendência à centralização do capital, em todas as suas formas, a qual liquidaria, inevitavelmente, os interesses secundários e mais frágeis, destruindo os suportes políticos do compromisso, nascidos nos anos 20. Dadas as tendências mundiais, é de supor-se que por esse caminho abririam-se as portas a um definitivo processo de internacionalização das órbitas agrária, mercantil e financeira do sistema econômico brasileiro. Finalmente, a homogeneização dos “verdadeiramente dominantes”. Muito mais difícil é prever o que ocorreria com os dominados. A sua participação em um sistema político aberto coloca pela primeira vez, na história brasileira, o desafio da convivência democrática com as reivindicações e os conflitos postos pela presença popular na cena política. A forma pela qual for equacionado esse problema pesará decisivamente na determinação da natureza desse Estado futuro, em claro processo de gestação na crise atual.

IV

A releitura teórica do passado não é capaz de exaurir as incertezas futuras. Ainda menos quando nos encontramos envoltos numa crise de tamanhas proporções. Nesse momento, mais do que nunca, tornam-se incontroláveis as expectativas coletivas, e os fatores econômicos, sociais e políticos fazem-se e refazem-se, com enorme velocidade e segundo recortes, que agrupam interesses extremamente variáveis e inorgânicos. Adensa-se o peso da força material dos grupos de interesse e das vontades políticas de cada setor ou região na imposição de uma solução que nascerá, inevitavelmente, de prolongada luta sem leis nem fronteiras, que não sejam as impostas pelo próprio desdobramento do conflito. Agora, mais do que nunca, como diria Gramsci, estamos enfrentando um “processo de desenvolvimento, que tem por autores os homens e a vontade e a capacidade dos homens”. Agigantam-se, pois, a força, a vontade e as expectativas como fatores determinantes de uma trajetória, frente à qual a teoria encerra sua tarefa, reconhecendo sua importância.

O único que parece possível dizer, numa hipótese que em amplas linhas resume o pensamento exposto é que, claramente, esgotou-se a possibilidade de seguir equacionando o conflito entre as várias frações da classe dominante e, dessa, com os diversos setores dominados, na forma de um compromisso cujas contradições empurram o desenvolvimento e a centralização estatizante como solução e anúncio da próxima crise. Esgotou-se um ciclo que, a partir dos anos 20, tendo no estatismo e na centralização sua face manifesta, manteve um ritmo regular na sucessão de um tempo político que organizou-se de forma igualmente centralizante (ainda que movido, como é óbvio, por outras forças e segundo uma outra lógica) entre 1830 e 1870, e abriu-se num movimento de descentralização do poder movido pela dinâmica de uma acumulação capitalista agroexportadora, regionalizada e oligarquizada, a partir dali, até o momento da Primeira Guerra Mundial.

A hipótese aponta, assim, para uma descentralização necessária do poder. Mas, à diferença daquele tempo, hoje, a complexidade dos interesses e o grau de concentração real do poder dificultam qualquer sonho liberal-federativo. O mais provável é que a batalha pela democratização encubra longo período de luta e incerteza, onde se estarão definindo as regras da gestão política e econômica do novo ciclo de crescimento industrial, que ocorrerá inevitavelmente, aproveitando as fronteiras abertas pelos novos horizontes tecnológicos. Nesse período de crise e reformas, entretanto, deverão ser solucionados os problemas postos pelos poderes discricionários do centralismo estatista. No caminho, já dissemos, não é improvável um estilhaçamento do poder do Estado, como antessala de um movimento de monopolização internacionalizada, o beneficiário provável do próximo surto de crescimento econômico.

Se estiver correta nossa hipótese, o mais provável é que ecoe, com mais eficácia hoje do que no final do século passado, aqui como alhures, a profecia formulada por Nietzche: “. . . cedo irromperá com ainda maior energia o grito de combate, ( ... ) o menos de Estado possível”.

  • 1
    JEL Classification: H11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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