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Os dois congelamentos de preços no Brasil

The two price freezes in Brazil

RESUMO

Este trabalho compara o Plano Cruzado com o Plano Bresser. Ambos foram congelamentos de preços baseados na teoria da inflação inercial. No entanto, enquanto o Plano Cruzado pretendia acabar com a inflação, o Plano Bresser era um plano emergencial destinado a enfrentar a profunda crise financeira e econômica deixada pela falência do Cruzado. 1t alcançou este objetivo. Quanto à inflação, os autores do plano esperavam que a taxa de inflação voltasse para cerca de 10% em dezembro de 1987; a taxa real de inflação neste mês foi de 14%.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; plano cruzado; plano Bresser

ABSTRACT

This paper compares the Cruzado Plan with the Bresser Plan. Both were price freezes based on the theory of inertial inflation. However, while the Cruzado Plan intended to end with inflation, the Bresser Plan was an emergency plan aimed to cope with the deep financial and economic crisis left by the failure of the Cruzado. It achieved this objective. As to inflation, the authors of the plan expected that the rate of inflation would be back to around 10 percent in December 1987; the actual rate of inflation in this month was 14 percent.

Keywords:
Inflation; stabilization; cruzado plan; Bresser plan

A inflação no Brasil é crônica. Durante os anos 70 a inflação esteve em torno de 50 por cento ao ano; em 1979 elevou-se para 100 por cento e nesse nível permaneceu por três anos; em 1983, elevou-se para 200 por cento, mantendo esse nível pelos três anos seguintes; 1986 foi o ano do Plano Cruzado; seu fracasso levou a inflação para um novo patamar de aproximadamente 600 por cento, que só não se concretizou em 1987 devido ao segundo congelamento de preços que ficou conhecido pelo nome de Plano Bresser. Assim, taxas de inflação muito altas e crescentes, embora relativamente estáveis por determinados períodos - 5, 10 e atualmente quase 20 por cento ao mês - caracterizaram os anos 80. Estas taxas de inflação ocorreram juntamente com recessão devido aos esforços de ajustamento em 1981, 1983 e, até certo ponto, 1987. Neste ano provavelmente o Brasil atingirá novos recordes inflacionários, enquanto a economia mergulha novamente na recessão.

A aceleração da inflação nos últimos anos ocorreu enquanto a economia brasileira enfrenta a mais séria crise econômica de sua história industrial. A renda per capita está estagnada desde 1980. A taxa de investimento caiu de 22/23 nos anos 70 para 16/17 por cento do PIB nos anos recentes. Um desequilíbrio financeiro estrutural do setor público, cujo componente básico é uma enorme dívida pública externa, está por trás da crise econômica. A aceleração da inflação no Brasil e seus altos níveis atuais são um sintoma dessa crise, e são uma consequência indireta da crise fiscal do Estado brasileiro.

Nesta conferência discutirei a inflação no Brasil, as causas diretas que a conduziram e mantiveram em tais níveis elevados. Farei uma breve análise da teoria da inflação inercial - um novo paradigma teórico originalmente desenvolvido por um grupo de economistas brasileiros no início dos anos 80. E finalmente irei comparar os dois choques heterodoxos - o Plano Cruzado e o Plano Bresser -, que, em 1986 e 1987, respectivamente, congelaram os preços de acordo com a teoria da inflação inercial. Enfatizarei então que, embora aparentemente semelhantes, os dois planos são muito diferentes em termos de seus objetivos, das características que prevaleciam quando cada um foi implantado e dos resultados alcançados.

1.

Observando o comportamento dos agregados monetários nas últimas duas décadas, veremos que a oferta de moeda se elevou sistematicamente menos que a taxa de inflação e não provocou nem a redução da taxa de juros nem excesso de demanda. Desta forma, a teoria monetarista sobre a inflação não ajuda a explicar nem a aceleração nem a manutenção do nível de inflação no Brasil. O mesmo aplica-se à explicação baseada no déficit público (definida como Necessidades de Financiamento do Setor Público - conceito operacional), como pode ser visto na Tabela 1. Em 1983 ele foi drasticamente reduzido, enquanto a inflação elevou-se. O déficit público, ou, mais precisamente, o desequilíbrio financeiro estrutural do setor público, é a causa básica da crise da economia brasileira e está por trás do alto nível de inflação vigente no país, embora seja uma explicação direta pobre para a inflação no Brasil.

Tabela 1:
Inflação e déficit público

No início dos anos 80, o fracasso das velhas teorias para explicar de forma adequada a inflação no Brasil motivou o desenvolvimento de uma nova teoria. A teoria estrutural latino-americana desenvolvida nos anos 50 foi um primeiro passo. Ela enfatizava o caráter crônico e endógeno da inflação nos países da América Latina, mas não podia explicar as altas taxas de inflação no Brasil. Tal como as teorias monetarista e keynesiana, explicava parcialmente a aceleração da inflação, mas não sua persistente manutenção em níveis tão elevados. Em 1963, temos um segundo passo importante na teoria estruturalista da inflação com o livro A Inflação Brasileira, de Ignácio Rangel. Este foi o primeiro economista a fazer uma análise ampla e convincente do caráter endógeno da oferta monetária, antecipando em sete anos a contribuição muito conhecida de Kaldor sobre o assunto (1970). Era uma crítica maior à teoria monetarista da inflação, postulando que a expansão da oferta de moeda era mais uma consequência do que uma causa da inflação. A teoria estruturalista da inflação, entretanto, bem como as outras teorias não foram capazes de explicar as altas taxas de inflação vigentes no Brasil.

2.

No início dos anos 80 um grande esforço intelectual no Brasil foi feito no sentido de desenvolver um novo paradigma sobre a inflação. O resultado foi a teoria da inflação inercial, uma teoria neo-estruturalista da inflação, baseada mais no conflito distributivo do que nas expectativas, e na clara separação entre fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação.

Essa separação parece hoje óbvia, mas não o era alguns anos atrás. Se olharmos para os artigos e livros - texto sobre inflação anteriores a 1983 não encontraremos nada sobre isso. As teorias anteriores tentaram explicar apenas a aceleração inflacionária. Os modelos começam sempre pelo seguinte pressuposto: os preços são estáveis, a taxa de inflação é zero, e então algo acontece e a inflação se inicia. “Vamos assumir que a inflação seja zero”, dizem as teorias, e então, num dado momento, temos um excesso de demanda, ou a oferta monetária aumenta mais rápido que o produto nacional, ou os trabalhadores organizados conseguem elevar seus salários acima do aumento da produtividade, ou os monopólios e oligopólios aumentam suas margens de lucro, ou o governo decide desvalorizar a moeda nacional, ou corrigir os preços das empresas estatais que por alguma razão estão defasados - e, neste momento, a inflação se acelera.

Mas, no Brasil, no começo dos anos 80 - e ainda hoje - é necessário começar de um outro pressuposto. Da suposição, por exemplo, de que a inflação está num nível de 200 por cento ao ano, ou 10 por cento ao mês, ou qualquer outro nível elevado. E, a partir deste pressuposto, perguntamo-nos o que explica o nível de inflação e o que o leva a mudar.

A teoria da inflação inercial irá explicar ambos os fenômenos. É um engano pensar que esta é apenas uma teoria explicando “o componente inercial” da inflação. É também uma teoria que tenta explicar os fatores aceleradores da inflação, os choques de oferta e demanda, que podem ser endógenos ou exógenos, mas que são certamente fatores de aceleração inflacionária muito mais poderosos quando esta encontra-se relativamente estabilizada em níveis elevados.

Isto não significa que a teoria da inflação inercial se aplique somente a economias com inflação alta. E possível distinguir fatores aceleradores e mantenedores da inflação nos Estados Unidos, por exemplo, onde a inflação é de aproximadamente 4 por cento ao ano. Pode-se também relacionar suas causas com o conflito distributivo. Mas a taxa de inflação é tão baixa que a distinção não é relevante, ou melhor, muito menos relevante.

A ideia do conflito distributivo é essencial para a teoria da inflação inercial. Ela pretende ter o status de uma proposição alternativa à ideia das expectativas presente nas teorias keynesiana e monetarista. Isto não significa que os inercialistas não levem em consideração as expectativas. Uma vez que a Economia Política - o nome clássico da nossa ciência - é uma ciência social, ela trata com pessoas e, desta forma, com expectativas. A teoria inercialista apenas sustenta que as expectativas inflacionárias se baseiam essencialmente na inflação passada. A suposição básica é que; face ao conflito distributivo que caracteriza as economias capitalistas, cada agente econômico - cada indivíduo, cada firma, cada grupo econômico e social - tenta permanentemente manter - e se possível elevar - sua participação na renda através da administração de seus preços.

Se a inflação estiver, por exemplo, num nível de 10 por cento ao mês, cada agente econômico elevará seus preços em 10 por cento ao mês. Mas eles não farão isto no mesmo momento. Farão sequencialmente um após o outro. Suponhamos que haja somente três agentes na economia. O primeiro elevará seus preços em ·10 por cento no primeiro dia do mês, o segundo no décimo e o terceiro no vigésimo dia do mês, sempre em 10 por cento; e então é a vez do primeiro agente econômico elevar novamente seus preços em 10 por cento. Eles estão elevando seus preços sequencialmente, porque estão repassando os aumentos de custos para os preços e porque não coordenam suas ações. Ninguém pode dizer quem começou o processo. A inflação é um problema antigo e crônico neste modelo de economia. Seu caráter inercial, baseado no conflito distributivo, mantém - na num patamar de 10 por cento ao mês.

É o mesmo conflito distributivo que explica a aceleração da inflação inercial. Se um desses três agentes econômicos puder elevar seus preços em 12 em vez de 10 por cento - não interessando se devido à pressão de demanda ou de custo - os outros dois agentes terão de fazer o mesmo para evitar perdas, ou, em outras palavras, para manter sua participação na renda.

3.

Hoje todas essas ideias parecem totalmente óbvias, mas não o eram no início dos anos 80, quando a teoria da inflação inercial estava sendo desenvolvida. Nessa época, os economistas monetaristas acreditavam que para controlar as altas taxas de inflação no Brasil a única solução seria reduzir o déficit público e a oferta monetária, e, portanto, limitar a demanda agregada pública e privada. As grandes recessões de 1981 e 1983 foram arquitetadas utilizando-se tal base teórica. Devido às recessões e às desvalorizações da moeda local, o balanço de pagamentos foi ajustado e formaram-se grandes superávits comerciais. De fato, como salientaram Antonio Barros de Castro e Pires de Souza, esses superávits foram também uma consequência dos enormes investimentos dos anos 70 (1985). Mas, contrariamente à teoria ortodoxa, a inflação não cedeu. Em função das desvalorizações cambiais feitas no começo do ano de 1983, a taxa de inflação dobrou.

Tanto na aceleração como na manutenção do nível de inflação brasileira na primeira metade dos anos 80 a moeda desempenhou um papel passivo. A elevação da oferta monetária sempre correu atrás da taxa de inflação. A oferta monetária subiu para manter a liquidez do sistema econômico. Se o nível de inflação fosse de 10 por cento ao mês, caso a oferta monetária nominal permanecesse constante, a oferta monetária real declinaria quase 10 por cento a cada mês. Isto levaria a economia à recessão.

4.

A consequência necessária deste tipo de teoria sobre inflação é que os instrumentos convencionais - monetarista ou keynesiano - para combater a inflação não funcionarão enquanto prevalecerem altos níveis de inflação inercial. A política básica para controlar tal inflação terá de ser administrativa.

Nessas circunstâncias, restam duas alternativas de política administrativa para o formulador de política econômica: uma gradual, baseada em controles de preços, visando uma taxa declinante de inflação, ou um congelamento de preços, um choque heterodoxo. Nakano e eu apresentamos essa alternativa num artigo publicado em julho de 1984. Chamamos o congelamento de “uma política heroica de controle administrativo de preços e desindexação total da economia” (1984a: 104). Um pouco mais tarde, Francisco Lopes, cuja contribuição para o desenvolvimento da teoria da inflação inercial é essencial, propôs formalmente o congelamento, denominando - o de “choque heterodoxo” (1984). Quase que ao mesmo tempo, dois economistas jovens e muito brilhantes, André Lara Resende (1984Lara Resende, André e Pérsio Arida (1984) “Inertial Inflation and Monetary Reform in Brazil”. Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, mimeo. Apresentado num seminário patrocinado pelo Institute of International Economics, Washington, dez. 1984, publicado em Arida (org.) (1986). ) e Pérsio Arida (1984Arida, Pérsio (1984) “Economic Stabilization in Brazil”, Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, dez., mimeo. ), propuseram a total indexação da economia, inclusive o dinheiro. Esta foi uma alternativa muito interessante e sofisticada para o choque heterodoxo, baseada igualmente na suposição da vigência de uma inflação tipicamente inercial. Sua implementação, entretanto, era complicada e arriscada.

O novo governo democrático que assumiu em março de 1985 herdou uma alta taxa de inflação, em torno de 11 por cento ao mês, mas não estava pronto para fazer um congelamento total como estavam propondo os inercialistas. Em vez disso, o novo ministro da Fazenda decidiu por um congelamento parcial. Era economicamente absurdo. O governo congelou os preços e as tarifas das empresas estatais e de algumas grandes empresas privadas oligopolistas, enquanto os demais preços permaneceram livres. Era impossível manter tal política por um longo período. Esta reduziria a taxa de inflação somente por poucos meses. Fernando Dall’Acqua e eu escrevemos um artigo durante o congelamento parcial, utilizando como instrumento a teoria da inflação inercial, no qual prevíamos que as medidas corretivas, que necessariamente se imporiam quando o congelamento se tornasse insuportável, levariam a inflação a um nível mais elevado que antes (1985). De fato, no mês anterior ao congelamento parcial a inflação estava em 12 por cento; foi reduzida para aproximadamente 7 por cento durante os quatro meses de congelamento (abril a julho); e em setembro de 1985, exatamente no dia em que o artigo estava sendo publicado, o governo anunciou para agosto uma taxa de inflação acima de 12 por cento. Foi uma demonstração significativa da capacidade preditiva da teoria inercial.

Finalmente, em 28 de fevereiro de 1986, quando a inflação estava nitidamente iniciando um novo período de aceleração, o governo implementou o Plano Cruzado, o qual foi elaborado por alguns dos economistas que haviam participado do desenvolvimento da teoria da inflação inercial (André Lara Resende, Edmar Bacha, Francisco Lopes, Pérsio Arida). Desta forma, estava tecnicamente muito bem planejado. Beneficiou-se da experiência do Plano Austral, que foi implementado na Argentina meses antes baseado na mesma teoria. Quando a decisão foi tomada, as autoridades econômicas estavam conscientes da dimensão do déficit público e conheciam bem as consequências internas devastadoras da dívida externa, mas a impressão que temos hoje é que eles subestimaram estes dois problemas. Além disso, ao elaborar o plano, dois enganos foram cometidos: uma expectativa irrealista de “inflação zero” e um aumento de 8 por cento nos salários reais no dia do congelamento, embora a elevação dos salários reais em 1985 já estivesse causando pressões altistas sobre a taxa de inflação.

Esses problemas, entretanto, poderiam ter sido corrigidos nos meses seguintes. Os quatro economistas acima mencionados e Fernão Bracher, então presidente do Banco Central, de fato tentaram, o quanto puderam, reprimir o excesso de demanda que começou em abril de 1985. As demais autoridades econômicas tentaram também, em grau menor, introduzir as correções necessárias ao plano. Mas não obtiveram o apoio político necessário, inclusive do presidente, que estava totalmente maravilhado - e, desta forma, imobilizado - pelo sucesso político e econômico do Plano Cruzado. Em maio, por exemplo, o ministro da Fazenda anunciou que estava planejando o início da liberação dos preços, e o presidente imediatamente proibiu qualquer autoridade econômica de sequer mencionar essa ideia. Em julho, a força do “Cruzadinho” - um empréstimo compulsório visando reduzir a demanda agregada e cortar o déficit público - foi severamente limitada por uma decisão pessoal do presidente.

Durante os primeiros meses o Plano Cruzado foi muito bem-sucedido no controle da inflação. Mas, como sabemos agora, foi, afinal, um fracasso, um grande fracasso, não somente porque foi incapaz de erradicar a inflação, mas também porque provocou grandes distorções e uma acentuada crise econômica e financeira. A economia brasileira antes do Cruzado estava totalmente indexada. Desta forma, era capaz de conviver com taxas altas, mas quase estáveis de inflação. Com o Cruzado, o sistema de indexação foi eliminado. Quando a inflação reapareceu em dezembro de 1986, a interdição legal da indexação provocou uma crise financeira. Nunca o número de insolvências e falências foi tão grande no Brasil.

5.

Em meio a essa crise, fui indicado para ministro da Fazenda do Brasil, em abril de 1987. A inflação estava se acelerando a cada mês, e chegou a 26 por cento em junho. No dia 12 desse mês fui responsável pelo segundo congelamento de preços da economia brasileira: o Plano Bresser, ao qual me referirei como Plano de 1987. Era novamente um choque heterodoxo, e tal como o Plano Cruzado, baseado na teoria da inflação inercial. Mas era um tipo muito diferente de política econômica. Diferente em termos de: 1) objetivos; 2) características; 3) condições vigentes quando de sua implementação; 4) seus resultados. É interessante fazer uma comparação entre os dois planos. A Tabela 2 apresenta a inflação em 1986 e 1987, mas é ilusório basear a comparação nos resultados em termos de taxa de inflação.

Tabela: 2
Inflação em 1986 e 1987 (%)

Vejamos em primeiro lugar os objetivos. O objetivo do Plano Cruzado era eliminar a inflação, era atingir uma taxa zero de inflação. As declarações das autoridades ligadas ao plano são muito claras a esse respeito. E esta foi a principal razão por que não conseguiram corrigir os desequilíbrios nos preços relativos presentes no dia do congelamento. No caso do Plano de 1987 o objetivo era somente deter a inflação, não a eliminar, evitando o nítido perigo de uma hiperinflação. Nós sabíamos muito bem que um congelamento de emergência feito sem fixar a taxa de câmbio, sem desindexar a economia, numa situação em que os preços relativos estavam em desequilíbrio, não acabaria nunca com a inflação. De acordo com as previsões dos dois economistas que junto comigo estavam mais diretamente envolvidos na definição do plano - Yoshiaki Nakano e Francisco Lopes -, a inflação retornaria para cerca de 10 por cento em dezembro de 1987.

De fato, tínhamos um objetivo nítido. Pretendíamos, com o congelamento e com a desvalorização do cruzado, superar a profunda crise econômica e financeira que a sitiada economia brasileira estava enfrentando no segundo trimestre de 1987. E este objetivo foi basicamente atingido. Não havia intenção de “resolver definitivamente” a crise de longo prazo da economia brasileira - um tipo de fantasia muito comum durante o Plano Cruzado - mas o objetivo de superar a aguda crise momentânea era o essencial para o Plano de 1987.

Em segundo lugar, as condições da economia no início de 1986 eram muito diferentes das vigentes no segundo trimestre de 1987. O processo de crescimento iniciado em 1984 ainda continuava em 1986. O PIB elevou-se 8 por cento em 1985. O balanço de pagamentos estava em boa forma. O superávit comercial estava em torno de 1 bilhão de dólares por mês; a conta corrente estava equilibrada. Investimentos, lucros, ordenados e salários estavam se elevando. Os dois desequilíbrios principais em termos de fluxo - a dívida externa é um desequilíbrio em estoque ou termos estruturais - eram o déficit público e o fato de que os salários reais estavam se elevando mais rapidamente do que a produtividade, pressionando a inflação para cima.

Em contraste, em abril de 1987 estávamos, provavelmente, na mais profunda crise financeira e econômica que o Brasil havia experimentado. Na semana em que assumi o Ministério da Fazenda, falei com Celso Furtado, eminente economista brasileiro, e Olavo Setúbal, dirigente de banco e político, os quais disseram que o Brasil não enfrentava uma crise de tais proporções desde 1931, pelo menos. Não era apenas a inflação que estava subindo descontroladamente, os salários estavam mais de 20 por cento abaixo do pico de novembro de 1986, o investimento havia entrado em colapso, a economia estava caminhando para a recessão, e as firmas de pequeno e médio portes estavam quebrando uma atrás da outra. Finalmente a situação do balanço de pagamentos havia se tornado deplorável (ver Tabela 3). O superávit comercial mensal de 1 bilhão de dólares havia se convertido em déficit, e as reservas internacionais, que estavam em torno de 2 bilhões de dólares somente, tendiam a desaparecer apesar da moratória declarada em fevereiro sobre os juros relativos à dívida de médio e longo prazos devida aos bancos privados. De fato, no dia em que tomei posse, o Banco Central estimou que, perdurando tal tendência, as reservas brasileiras estariam esgotadas em agosto.

Tabela 3:
Balança comercial em 1986 e 1987 (US$ milhões)

Desta forma, o objetivo básico do Plano de 1987 era restabelecer o equilíbrio global da economia. Para isso era necessário: 1) conter a aceleração da inflação e reduzi-la; 2) interromper a queda dos salários e recuperá - los parcialmente; 3) evitar a recessão; 4) reverter a crise financeira; 5) reequilibrar o balanço de pagamentos. E todos esses objetivos foram atingidos. Os salários pararam de cair e se recuperaram de forma moderada (ver Tabela 6). As vendas no varejo, e, após setembro, as vendas industriais, se elevaram de forma limitada, mas efetiva, evitando a recessão e o aumento do desempenho (ver Tabela 4). A demanda agregada foi cuidadosamente administrada para evitar o problema de excesso de demanda do Plano Cruzado, bem como a recessão. A onda de falências terminou. A conta corrente externa equilibrou-se. A inflação foi drasticamente reduzida, e então começou a elevar-se a uma taxa um pouco mais alta que o esperado. Em dezembro, em vez de uma taxa de 10 por cento - que poderia ser explicada pelo não congelamento da taxa de câmbio e pelo objetivo de restabelecer o equilíbrio dos preços relativos, particularmente através da elevação dos preços públicos - a inflação estava em 14 por cento. O que talvez explique esta diferença, além de uma eventual subestimação das distorções nos preços relativos no dia do congelamento, foram os aumentos salariais a partir de setembro e a falta de confiança dos empresários na determinação do governo em cortar o déficit público.

Tabela 4:
Produção industrial em 1986 e 1987 (índice: janeiro 1986 = 100)

6.

Em terceiro lugar, as características do Plano de 1987 eram muito diferentes das do Plano Cruzado. Primeiro, o Plano de 1987 foi um plano de emergência, enquanto o Plano Cruzado não. Segundo, o Plano Cruzado foi introduzido com uma reforma monetária, ao contrário do Plano de 1987, dados os seus objetivos mais modestos. Terceiro, o Plano Cruzado baseava-se numa total desindexação da economia, enquanto o Plano de 1987 manteve e completou o sistema de indexação existente, porque se supunha que a inflação não seria eliminada e porque a prioridade era dada para o restabelecimento do equilíbrio global da economia - um equilíbrio em que o sistema de indexação, numa situação inflacionária, é essencial. Quarto, dado o nível muito baixo das reservas internacionais, a taxa de câmbio não foi congelada. Pelo contrário, uma desvalorização real da taxa de câmbio foi assegurada a fim de restabelecer o equilíbrio do balanço de pagamentos. Quinto, enquanto o congelamento no Plano Cruzado não tinha data predeterminada para terminar, no Plano de 1987 o congelamento foi definido e cumprido num prazo limite de três meses. Finalmente, enquanto para muitas pessoas o Plano Cruzado parecia ser “a resposta heterodoxa completa e final para a política econômica ortodoxa”, estava muito claro para nós que o Plano de 1987 era somente uma medida de emergência, dada a inflação inercial e a crise financeira, e que teríamos que recorrer imediatamente após o congelamento às políticas fiscais e monetária convencionais - que eu discordo de chamar, indiscriminadamente, de “ortodoxas” - para assegurar o equilíbrio macroeconômico da economia.

A decisão de não tentarmos a desindexação da economia surpreendeu muitos economistas porque, durante o Plano Cruzado, era comum ouvir o argumento de que “a causa da inflação inercial é a indexação da economia”. Como então seria possível controlar a inflação inercial sem desindexar a economia? A resposta para essa questão é simples. O fator mantenedor da inflação inercial é de fato a capacidade de cada agente econômico repassar os aumentos de custos aos preços. A indexação formal ou informal é o mecanismo que garante esse processo de transmissão. Mas isto não significa que a causa de altas taxas de inflação seja a indexação. Se a inflação for mensalmente próxima de zero, a indexação manterá a inflação nesse nível; se for em torno de 10 ou 20 por cento ao mês, a indexação também manterá a inflação nesse patamar. Dessa forma, se os preços estiverem congelados e a inflação for imediatamente reduzida a um nível próximo de zero, o fato de a indexação não ter sido eliminada não irá acelerar a inflação novamente; irá mantê-la em seu novo patamar próximo de zero.

A indexação formal representa com certeza um perigo permanente, pois os preços tornam-se rígidos para baixo, e assim qualquer pequeno choque de demanda ou oferta irá provocar uma aceleração automática da inflação, uma vez que reduções compensadoras em outros preços - devido a aumento de produtividade, por exemplo -, serão muito mais difíceis de se materializarem. Mas, como o Plano de 1987 era um plano de emergência e sabíamos que a inflação se manteria devido à necessidade de reequilibrar os preços relativos depois do choque, decidimos não eliminar a indexação formal.

7.

Era mais importante naquele momento restabelecer o equilíbrio geral da economia, assegurando uma taxa razoável de lucro nos diferentes setores, do que refrear artificialmente a inflação durante um certo período às custas de profundas distorções econômicas. Quando decidi pelo congelamento, eu sabia que os preços relativos estavam totalmente desequilibrados; que alguns preços estavam extremamente baixos e outros extremamente altos; que algumas firmas estavam obtendo grandes lucros enquanto outras, grandes prejuízos. Minha prioridade foi para o restabelecimento do equilíbrio micro e macroeconômico da economia em relação ao atingimento do controle completo da inflação.

Eu tinha muito claros em minha mente os desequilíbrios nos preços relativos que prevaleceram durante o Plano Cruzado e a profunda crise que seguiu seu fracasso. A crise financeira era particularmente séria. O número de concordatas e falências no primeiro semestre de 1987 não tem paralelo na história do Brasil (ver Tabela 5). Elas foram essencialmente uma consequência da aceleração da inflação enquanto o sistema de indexação total fora eliminado. Era fundamental não repetir o mesmo engano. Dez dias depois do Plano Cruzado, escrevi uma coluna na Folha de S. Paulo dizendo que se o governo não fosse bem-sucedido em equilibrar os preços relativos, se insistisse em manter a inflação abaixo de zero às custas de manter as distorções nos preços relativos, o plano fracassaria (1986). Hoje não há dúvida de que, além do excesso de demanda, a outra causa do fracasso do Plano Cruzado foi o fato de que os preços relativos se mantiveram em desequilíbrio. De fato, as distorções dos preços relativos aumentaram em 1986, ao invés de diminuírem.

Tabela 5:
Insolvências e falências em 1986 e 1987 (em São Paulo)

Dessa forma, depois do congelamento de 1987 deu-se prioridade para o restabelecimento do equilíbrio dos preços relativos. As distorções em 12 de junho de 1987 eram muito maiores do que em 28 de fevereiro de 1986. Assim sendo, as correções teriam de ser relativamente grandes. E essas correções certamente acelerariam a inflação, porque teriam de ser dirigidas somente para cima. Com certeza, no dia do congelamento havia preços “atrás” e preços “na frente”. Assim, a política correta seria elevar alguns preços e baixar outros. Mas isto é praticamente impossível porque não há como identificar os preços acima do nível de equilíbrio. Os empresários nunca sabem que seus preços estão altos. Eles apenas protestam fortemente quando seus preços estão baixos, abaixo do nível do equilíbrio. Estava claro, portanto, que a inflação se aceleraria novamente depois do congelamento. Nossa esperança era que se estabilizasse, mais ou menos em dezembro, em torno de 10 por cento. Este seria o custo do reequilíbrio dos preços relativos. Um custo que teria que ser pago.

O mesmo tipo de raciocínio - prioridade para o reequilíbrio dos preços relativos - estava por trás da decisão de não congelar a taxa de câmbio. As mididesvalorizações nos dias subsequentes foram certamente fatores aceleradores da inflação. Mas não tínhamos outra alternativa, dado o baixo nível das reservas brasileiras. Enquanto estavam em torno de 7,1 bilhões de dólares no dia do Plano Cruzado, as reservas estavam próximas de 3 bilhões de dólares - e com tendência declinante - em junho de 1987. O que de fato foi considerado foi diminuírem-se as minidesvalorizações diárias do cruzado. Mas mesmo isto era impossível. Quando insisti em diminuir as minidesvalorizações, o diretor do setor externo do Banco Central - um economista muito competente - respondeu que isso era muito perigoso; que ele só o faria se fosse autorizado a começar a vender as pequenas reservas brasileiras de ouro. Neste ponto, eu desisti. Concordei em manter as minidesvalorizações segundo a taxa de inflação efetiva, e não segundo uma taxa projetada de inflação mais baixa.

8.

Além de tentar restabelecer o equilíbrio microeconômico da economia através da correção dos preços relativos, estávamos também preocupados com o equilíbrio macroeconômico. No projeto e na administração do Plano de 1987 sempre tivemos em mente o fracasso do Plano Cruzado em controlar a demanda agregada. Estávamos determinados a não repetir o mesmo engano. Neste sentido, a política salarial era fundamental. Uma das razões básicas do fracasso no Plano Cruzado foi o aumento do salário real no dia do congelamento e nos meses seguintes. Desta forma, mantivemo-nos cautelosos no tocante à política salarial, tão cautelosos que fomos mal compreendidos. Nosso objetivo era conter a acentuada queda dos salários reais dos últimos cinco meses e recuperar parcialmente as perdas. A redução tinha sido acima de 20 por cento do pico de novembro de 1986. Uma vez que este pico tinha-se provado incompatível com o equilíbrio macroeconômico, visávamos uma recuperação em torno de 10 por cento. Para atingir este objetivo, dado (1) que em 30 de junho os assalariados receberiam os últimos 20 por cento do gatilho, (2) que nesse mês a inflação baixaria de cerca de 25 por cento para menos de 5 por cento em julho (de fato a inflação de junho foi de 26 por cento e a de julho, 3 por cento), e (3) que os trabalhadores tendiam a gastar os salários recebidos no final de cada mês no mês seguinte, decidimos que a inflação de junho não deveria ser considerada no novo sistema de indexação dos salários. Estávamos certos de que os salários reais iriam parar de baixar e começariam a se elevar. Isto de fato aconteceu, como todas as séries de dados sobre salário real no Brasil, inclusive os coletados pelo SEADE/DIEESE, demonstraram mais tarde (ver Tabela 6). Naquele momento, entretanto, eu consegui sustentar meus argumentos apenas teoricamente. E estes nem sempre foram entendidos pelos trabalhadores, jornalistas, juízes federais do trabalho e muitos economistas. Além do mais, todos eles recebem salários ou ordenados. Em consequência, os trabalhadores protestaram contra o “arrocho salarial” e pressionaram pela recuperação dos salários reais, confundindo as perdas que sofreram entre novembro de 1986 e junho de 1987 com o Plano de 1987. Esta reação dos trabalhadores foi uma das causas da aceleração da inflação a um nível acima do esperado.

Tabela 6:
Salário médio real em 1986 e 1987 (Índice: Janeiro De 1986 = 100)

A pressão dos trabalhadores para elevar os salários reais, no entanto, não foi a única razão de por que a inflação em dezembro atingiu 14, em vez dos 10 por cento previstos. A inabilidade do governo em controlar salários e ordenados dos funcionários públicos e empregados das empresas estatais foi certamente uma causa dessa disparidade. Depois do aumento que os empregados do Banco do Brasil receberam em setembro, o setor privado seguiu o exemplo concedendo generosos aumentos salariais nominais para seus funcionários em outubro e novembro. Tornou-se evidente então que o populismo não é um defeito somente dos políticos. Os empresários também estão prontos para elevar os salários nominais se conseguirem repassar para os preços as elevações nos custos.

Entretanto, há uma razão maior para a aceleração da inflação a um nível acima do previsto. Já em agosto o setor privado perdeu a confiança na determinação do governo de controlar o déficit público. A estratégia básica do Plano de Controle Macroeconômico publicado em julho para superar a crise de longo prazo da economia brasileira - uma crise que mantém a renda per capita estagnada desde 1980 - era recuperar a capacidade de poupança do Estado, era combater o déficit público. Segundo a teoria da inflação inercial, a relação entre déficit público e inflação tende a ser indireta. Só é direta quando conduz ao excesso de demanda. Os empresários, as pessoas em geral, entretanto, influenciadas pelas teorias convencionais da inflação, estabelecem uma relação direta entre déficit público e inflação. Desta forma, quando em agosto a imprensa começou a dizer que o governo não conseguiria cortar o déficit público para 3 por cento do PIB como definido no Plano de Controle Macroeconômico, os empresários perderam a confiança na política econômica e começaram a elevar seus preços mais que o estritamente necessário, ou, em outras palavras, começaram a elevar suas margens de lucro. A consequência foi a aceleração da inflação. Em setembro o enorme aumento salarial concedido aos funcionários do Banco do Brasil e, em outubro, aos funcionários públicos e militares confirmou as visões de que a meta do déficit público não seria atingida. Foi em outubro que decidi deixar o governo, uma decisão que finalmente consegui tomar em dezembro.

9.

O fator básico por trás da crise estrutural que caracteriza a economia brasileira nos anos 80 é o desequilíbrio financeiro do setor público. O Estado está virtualmente quebrado, falido no Brasil. A crise fiscal do Estado não possui somente um aspecto “de fluxo” - o déficit público, o acentuado declínio de sua capacidade de poupança - mas também um caráter “de estoque”: a dívida pública interna e particularmente a externa. Mais de 80 por cento da enorme dívida externa brasileira constituem dívida pública. Só os juros dessa parte da dívida representam 2,3 por cento do PIB.

As origens do desequilíbrio estrutural das finanças públicas podem ser encontradas: 1) na política de “crescimento com dívida” dos anos 70; 2) na elevação da taxa de juro internacional no final dos anos 70; 3) na pressão para desvalorizar a moeda local para enfrentar os problemas do balanço de pagamentos; 4) nos subsídios e incentivos para o setor privado nos anos 70 (quando as finanças públicas ainda eram sadias) e mantidos ao longo dos anos 80 (o que significa que o encargo do processo de ajustamento recaiu quase que inteiramente sobre o setor público); 5) na prática de controlar as tarifas das empresas estatais visando controlar a inflação; 6) no declínio na carga fiscal devido à aceleração inflacionária. A causa básica, embora indireta, da aceleração da inflação desde o final dos anos 70 é a crise fiscal do Estado, cujo principal aspecto é a dívida pública externa.

A renda per capita está praticamente estagnada no Brasil desde 1980; a renda per capita na América Latina estava em 1987 no mesmo nível de 1976. O fato básico comum por trás da crise estrutural é a dívida externa transformada em crise fiscal. A inflação se acelerava no Brasil sempre que era necessário desvalorizar a moeda, ou, mais genericamente, quando, após um período de controle artificial, alguns preços, particularmente os públicos, a “inflação corretiva” - a correção dos preços relativos - tornava-se inevitável. Em outras palavras, a inflação se acelerava no Brasil sempre que a dívida externa e a crise fiscal do Estado exigiam mudanças ou correções dos preços relativos.

Quando decidi pelo choque emergencial de preços de 12 de junho, estava convencido de que seria provavelmente necessário um novo choque mais tarde para efetivamente controlar a inflação. Mais ou menos em outubro essa necessidade tornou-se evidente. Mas estava também muito claro para mim que um novo choque de preços seria sem sentido-seria de fato um sinal de irresponsabilidade-se não fosse acompanhado de dois outros “choques”: um choque da dívida externa e um choque fiscal.

Em outras palavras, um choque de preços ainda é a melhor alternativa para controlar a inflação inercial. Mas irá fracassar se as causas básicas por trás da aceleração inflacionária não forem enfrentadas ao mesmo tempo. No Brasil estas causas são estruturais, têm um caráter de estoque: o desequilíbrio financeiro do Estado, cujo componente básico é a dívida pública externa. Desta forma, tornam-se necessárias as soluções heroicas, radicais, e que envolvem coragem e vontade política.

Não é suficiente combater o déficit público cortando-se as despesas correntes do Estado, demitindo-se funcionários públicos ociosos, como sugerem todos os dias muitas análises convencionais (e conservadoras) na imprensa brasileira. Dramaticamente, ou o Brasil, numa forma bem radical, é capaz de: 1) reduzir sua dívida externa, beneficiando-se da existência de um desconto nos mercados secundários e utilizando sua capacidade de tomar decisões unilaterais; 2) elevar sua carga fiscal líquida, aumentando impostos e eliminando subsídios e incentivos; 3) reduzir as despesas correntes; ou então o país não irá acabar com a inflação e a estagnação econômica. O Brasil enfrenta hoje a mais séria crise econômica de sua história industrial. Uma crise estrutural baseada numa dívida externa que não pode ser desvalorizada pela inflação. Nunca, nos últimos cem anos, a renda per capita permaneceu estagnada por tantos anos. Há pouca esperança de que esta crise seja solucionada pelo mercado, segundo a dinâmica do ciclo econômico. É por isso que são necessárias medidas econômicas heroicas, que somente um estadista - um homem com visão e coragem - é capaz de tomar.

Mas, para declarar um novo choque de preços e acabar com a inflação, além de reduzir dramaticamente a dívida externa e o déficit público, é necessário um terceiro elemento: um pacto social.

Sempre fui muito cético quanto a um pacto social no Brasil, porque primeiro é necessário um pacto político - um acordo mais amplo entre as principais forças políticas no país com relação, além dos salários, a reformas sociais. Na Espanha, por exemplo, os trabalhadores apenas concordaram em firmar um pacto social, limitando seus aumentos salariais, depois de definido um pacto político e depois que obtiveram a garantia de reformas sociais mínimas. Mas, de qualquer maneira, está totalmente claro hoje que ou temos um pacto social no Brasil, ou será impossível controlar a inflação. Quando o Plano Cruzado foi implementado, percebi que um tipo de pacto social estava implícito, dado o enorme apoio popular que obteve. Mas um pacto social implícito não é o suficiente; é necessário um pacto explícito. O Plano Cruzado fracassou em grande parte porque não houve um pacto social explícito e os trabalhadores conseguiram elevar seus salários reais e nominais. No Plano de 1987 os trabalhadores afinal conseguiram elevar somente os salários nominais, mas, de qualquer maneira esta foi uma causa básica da aceleração da inflação, uma vez que os salários reais só não se elevaram depois de outubro porque a inflação prosseguiu ou pelo menos acelerou-se simultaneamente à elevação dos salários nominais.

O Plano Cruzado e o Plano de 1987, assim como o Plano Austral argentino de 1985, não conseguiram controlar a inflação, ao passo que o choque de preços de 1985 em Israel foi bem-sucedido. Isto aconteceu porque Israel não tinha uma dívida externa como o Brasil ou a Argentina, e porque conseguiu controlar o déficit público de forma muito mais eficaz; uma terceira razão básica porque o choque heterodoxo em Israel foi bem-sucedido foi o pacto político e social que os israelenses conseguiram firmar.

Na última semana como ministro da Fazenda, tive uma conversa muito interessante com Shimon Perez, então em visita ao Brasil, uma conversa que fortaleceu a decisão de me demitir. Ele era o primeiro - ministro de Israel no momento do choque, quando a inflação estava em torno de mil por cento ao ano. Nessa posição - e não como ministro da Fazenda - ele assumiu pessoalmente a responsabilidade de conseguir um pacto político e social - envolvendo os trabalhadores, empresários e governo. Cada parte teria de fazer um sacrifício. Os trabalhadores aceitaram uma queda em seu salários; os empresários, um controle de preços e uma política de renda; o governo, uma redução do déficit público. As negociações dentro do governo, entre os ministros, estavam muito difíceis. Depois de 29 horas de discussões, com a presença do primeiro - ministro, o orçamento foi finalmente reduzido conforme. necessário. A decisão de me demitir foi fortalecida naquele momento, porque estava então muito claro para mim que um pacto político e social semelhante no Brasil seria impossível com o presidente José Sarney como chefe de Estado. Tinha consciência de que Israel, em contraste com o Brasil e a Argentina, contava com um fator muito favorável para ajudar no congelamento de preços: ao invés de transferidor ele é um absorvedor líquido dos recursos reais externos. Mas, de qualquer forma, ficou claro, no caso de Israel, que o sucesso no controle da inflação não foi somente o resultado de uma melhor situação em relação à dívida externa, uma combinação competente de políticas econômicas heterodoxas e convencionais, mas também o resultado de uma liderança política eficaz.

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  • 1
    JEL Classification: E31; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1988
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