Acessibilidade / Reportar erro

Democracia, amizade, serenidade: Aristóteles entre Vaz, Weil e Bobbio1 1 Este texto recebeu apoio do Programa de Incentivo à Internacionalização (PIPRINT) da PUC-SP. Edital 11915/2022.

Democracy, friendship, serenity: Aristotle among Vaz, Weil and Bobbio

Resumo

O artigo propõe uma interlocução de três pensadores contemporâneos do campo da filosofia política sobre o conceito de democracia, Lima Vaz (1921-2002), Eric Weil (1904-1977) e Norberto Bobbio (1909-2004), confrontado com a concepção aristotélica da amizade política sustentada pela benevolência (eúnoia) e pela concórdia (homónoia) entre todos os cidadãos. A reflexão final sobre a serenidade, definida por Bobbio como a “mais impolítica das virtudes”, inscreve o presente artigo nas homenagens a Antonio José Romera Valverde pela sua longa e fecunda carreira acadêmica.

Palavras-chave:
Democracia; Dignidade humana; Discussão; Amizade política; Serenidade

Abstract

The article proposes a dialogue between three contemporary thinkers in the field of political philosophy on the concept of democracy, Lima Vaz (1921-2002), Eric Weil (1904-1977) and Norberto Bobbio (1909-2004), confronted with the Aristotelian conception of political friendship sustained by benevolence (eúnoia) and concord (homónoia) among all citizens. The final reflection on serenity, defined by Bobbio as the “most impolite of virtues”, inscribes this article as a tribute to Antonio José Romera Valverde for his long and fruitful academic career.

Keywords:
Democracy; Human dignity; Discussion; Political friendship; Serenity

Introdução

Pensar “a democracia em um mundo de tensões”2 2 Evocamos aqui, como se verá, o título de um dos textos de Eric Weil, que nos serviremos na reflexão sobre democracia. não é tarefa para iniciantes. É provável que somente o filósofo possa compreender, isto é, prender juntos todos os aspectos, exigências, limites e possibilidades dessa polivalente realidade política, desde a sua origem resistente às simplificações, permanentemente sujeita a interpretações equivocadas e até mesmo arbitrárias. Parafraseando Aristóteles: a democracia se diz de muitas maneiras!

Eis porque, apenas iniciantes na filosofia, nos demos o direito de escolher entre nossos antepassados filosóficos os que nos pudessem ajudar a refletir sobre o vínculo, em grande medida surpreendente para nós, que se pode estabelecer entre o multifacetado sistema de governo chamado democracia, e duas virtudes ou quase virtudes3 3 Com efeito, no início do assim chamado “tratado da amizade” da Ética Nicomaquéia, Aristóteles afirma que a amizade ou é um tipo de virtude ou é conexa à virtude (VIII, 1, 1155 a1-2). : a amizade e a serenidade. Com efeito, no início do assim chamado “tratado da amizade” da Ética Nicomaquéia, Aristóteles afirma que a amizade ou é um tipo de virtude ou é conexa à virtude (VIII, 1, 1155 a1-2). Portanto, a primeira é extraída da antiga acepção aristotélica, que considera a “vida em comum dos homens segundo as estruturas essenciais dessa vida” (Weil, 1990WEIL, E. Filosofia política. Trad. M. Perine, 2ª ed. revista. São Paulo: Edições Loyola, 1990., p. 17). A segunda “virtude” é fisgada de um Elogio da serenidade, escrito por Norberto Bobbio para um Pequeno dicionário das virtudes, no qual a serenidade é definida como a “mais impolítica das virtudes” (Bobbio, 2014, p. 36).

Democracia e dignidade humana

Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) publicou quatro textos sobre o tema da democracia. Dois editoriais intitulados “Ética e Política” e “Democracia e Sociedade”, e dois artigos, “Democracia e Dignidade Humana” e “Ética e Justiça: a filosofia do agir humano”, publicados na Revista Síntese. Os dois editoriais, como o próprio filósofo explicou em entrevista aos Cadernos de Filosofia Alemã 2, foram produzidos por ocasião do problema da transição democrática brasileira e as teses básicas ali contidas se tornaram depois mais elaboradas no texto “Democracia e Dignidade Humana”. Esses textos são inspirados na Politologia Clássica, como também em Hegel, e procuram analisar a sociedade humana em três níveis: o social, o político e o democrático.

O contexto no qual os textos foram redigidos refletem o ideário democrático como projeto, portanto, entre o período da redemocratização (1985) e os 10 anos posteriores à Constituição de 1988, particularmente no artigo “Ética e Justiça: filosofia do agir humano”. O artigo que mais explicita a ideia de democracia é “Democracia e dignidade humana”. Ele tem como premissa um problema clássico da filosofia política: comprovar a proposição segundo a qual a democracia, no plano político, é a expressão mais adequada da dignidade humana. Em outras palavras, Lima Vaz procura pensar a junção desses dois termos que estão em níveis conceptuais diferentes, sendo a “democracia” um conceito político e a “dignidade humana” um conceito ético.

A relação entre os dois termos está no nível ontológico, já que o ser humano é constituído ontologicamente por uma dignidade. Essa dignidade é uma prerrogativa moral do ser humano na organização democrática e isso implica uma articulação ontológica entre Moral e Política. Essa articulação era muito bem estabelecida no pensamento clássico. Não foi sem razão que “Aristóteles articulou organicamente Ética e Política como ciências de uma práxis que se constitui, no seu desdobramento único, como práxis individual ou ética e práxis social ou política” (Lima Vaz, 1993, p. 265), mas na modernidade, a partir de Maquiavel, há uma cisão entre essas áreas ou até uma inversão que

Se na Idade Média a técnica foi relegada ao plano inferior das atividades humanas, à aurora da Modernidade a técnica será a quintessência do conhecimento aplicado, uma redução precisa da teoria adequada ao universo pragmático. E se sua realização dependeu de alturas intelectuais excelentes, o Renascimento produziu gigantes. Neste ponto, Maquiavel é um avatar do intelectual moderno. A sua altitude teórica, soerguida do chão da prática política e do esforço espiritual, diz ele, adveio de "tudo o que me ensinaram uma longa experiência e o estudo contínuo das coisas do mundo". O que já apontava para a possibilidade da investidura da política como técnica, disposta ao alcance de todos (Valverde, 1998VALVERDE, A. J. R. Maquiavel: a política como técnica. Hypnos, São Paulo, v. 4, p. 37-46, 1998., p. 38).

Nos tempos modernos ocorre uma descontinuidade então vigente entre a Ética e a Política, insurgindo uma nítida distinção e até oposição entre as duas áreas, colocando, de um lado, o agir do indivíduo movido pelo individualismo na busca pelos seus interesses e necessidades4 4 Cf. MORAIS, M. dos R. Sociedade democrática: lócus da realização humana. p.173. in: OLIVEIRA, C. M. R. de; ROCHA, M. A. (Orgs.). O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 de Henrique Cláudio de Lima Vaz [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. e, com isso, instaurando uma competição calculista no interior da sociedade, onde cada indivíduo deve “buscar o melhor lugar e tentar excluir os concorrentes” (Weil, 1990WEIL, E. Filosofia política. Trad. M. Perine, 2ª ed. revista. São Paulo: Edições Loyola, 1990., p. 133). Por outro lado, o agir político se configura voltado para a disputa pelo poder, em que se percebe toda a forma de conflito entre as partes utilizando de todos os meios para se alcançá-lo, ou seja, “a ideia do político como técnica racionalmente otimizada do exercício do poder” (Lima Vaz, 1983, p. 5). O problema entre Democracia e Dignidade Humana procede de uma concepção antropológica (essência) situada na base ontológica da relação em Ética e Política (manifestação).

A estrutura do universo ético e político clássico, coroado por uma teoria da justiça como forma mais alta do agir ético, desaba na modernidade e surge uma crise na qual o indivíduo se vê só e sem direção para o seu agir. Isso porque no sentido individual o ser humano perdeu tanto o télos da ação moral quanto o meio para alcançá-lo por meio da virtude, e no sentido social, do mesmo modo se perdeu o télos da ação política e o meio de alcançá-la com a ideia de justiça. Assim, “Resta-lhe, então, estabelecer o seu Eu-sou essa autonomia como fundamento último do seu agir e encontrar a forma política na qual Eu-sou essa autonomia se reencontram intactos na aparente alienação da vida social” (Lima Vaz, 1988, p. 12). Essa forma vem a ser a democracia na acepção moderna e surge nesse contexto o termo dignidade do homem como autonomia do indivíduo.

Na democracia antiga o problema era focado sobre a melhor forma de governo e a articulação não se dava em torno do indivíduo e do poder, mas entre a relação das virtudes dos cidadãos e a ordem da comunidade (Lima Vaz, 1988, p.14). Portanto, não se procurava justificar a democracia a partir da essência do ser humano, mas a partir da virtude da justiça, de modo que o exercício do poder era ocupado pelo problema da lei justa. Então, a articulação entre democracia e dignidade humana se dá na modernidade.

O termo dignidade humana tem a sua aparição no limiar da modernidade a partir do século XVI, encontra a sua expressão acabada nos teóricos do Direito Natural moderno nos séculos XVII e XVIII e surge vinculado ao campo político. Não se trata de uma qualidade ontológica intrínseca ao ser humano, mas título jurídico que advém em razão da autonomia e liberdade. A noção de dignidade humana é, pois, o signo da passagem de uma sociedade na qual predominava o vínculo social da dependência pessoal, característico da sociedade tradicional (nela é dada a primazia às virtudes da lealdade e do serviço), ao tipo de sociedade na qual predomina o vínculo social da dependência jurídica ou legal, característico da sociedade moderna, que supõe, exatamente, a independência pessoal do indivíduo, sujeito jurídico de direitos e deveres (Lima Vaz, 1988, 17). Portanto, o termo “dignidade humana” está no campo jurídico-político e a sua articulação com a democracia exige o recurso à filosofia. Para isso, é importante recuperar os termos no campo da ética. É o que faz Lima Vaz ao articular em três momentos lógico-dialéticos da sociedade humana, o social, o político e o democrático.

Em primeiro lugar, o nível do social, da satisfação das necessidades: a sociedade se forma, inicialmente, “para satisfazer às necessidades básicas do indivíduo” (Lima Vaz, 1997, p. 101) e nesse nível “o social assim entendido equaliza os indivíduos na sua relação para com a natureza como fonte de recursos e na universal interdependência que os prende nas malhas do sistema econômico” (Lima Vaz, 1988, p. 18). Trata-se de um nível no qual a “sociedade é a organização de uma luta violenta contra a natureza, constitutiva do plano das necessidades” (Perine, 1990PERINE, M. Ética e Política: irredutibilidade e interação de relações assimétricas. Síntese, Belo Horizonte, v. 17, n. 48, p. 35-46, jan./mar. 1990., p. 39).

Em segundo lugar vem o nível político, “quando a evolução da sociedade avança até o ponto em que é conduzida a substituir o poder despótico pelo poder consensual, mediante a lei, quer dizer, quando a lei torna-se o ‘soberano’ na cidade. [...] o político é propriamente o nível em que se realiza o Estado de direito” (Lima Vaz, 1997, p. 101). Nesse nível há uma suprassunção da igualdade abstrata, do nível do social, marcada pelas diferenças naturais dos indivíduos que são equalizadas na sua universal dependência da natureza e dos vínculos aos sistemas econômicos, na igualdade concreta, “aquela na qual as diferenças naturais e adquiridas (culturais) são equalizadas na isonomia ou na igualdade perante a lei. Essa igualdade nos faz transpor o limiar do político propriamente dito” (Lima Vaz, 1988, p. 19). O nível político tem a justiça como matriz conceptual e como problema a melhor forma de governo. Na democracia moderna procura-se pensar se ela é a forma mais elevada a que se pode alçar a comunidade política. Ele deverá se mostrar como a resposta mais adequada, mas com um desafio permanente de conciliar a justiça com a racionalidade administrativa e com a eficácia do poder executivo. Segundo Lima Vaz, só o Estado capaz de educar o cidadão para prática da justiça poderá vencer esse desafio.

Em terceiro lugar vem o nível do democrático, em que “a participação dos cidadãos não é mais apenas uma participação em nível de consensualidade, para que a lei tenha as características da isonomia (igual para todos) e da eunomia e a virtude fundamental, segundo Platão, Aristóteles e Hegel, é a justiça”. Na democracia, “a participação política deve fazer apelo a algo de mais profundo e mais íntimo no cidadão: sua consciência moral” (Lima Vaz, 1997, p. 101). A ideia de justiça passa para a ideia de liberdade participante.

Lima Vaz afirma que não há democracia sem uma mobilização da consciência moral dos cidadãos como responsáveis na participação política e do político. Toda democracia representativa tem na sua constituição um componente ético na escolha dos representantes, caso contrário ela imediatamente se degrada em plutocracia, populismo. A democracia se define, portanto, como possibilidade de discussão racional e razoável como pressuposto das formas institucionais e legais. A ideia de democracia pode ser considerada como o ápice do edifício conceptual do político, no qual convergem as linhas da Ética e da Política.

No nível do social e político a dimensão ética, no sentido estrito, tem o papel regulador da ação, porque toda ação está relacionada à consciência moral, mas não enquanto especificativa da ação, porque no primeiro caso ela se volta para a satisfação das necessidades e, no segundo, para o reconhecimento do direito segundo a lei.

No nível do democrático a ação do indivíduo na comunidade política, sendo política, é propriamente especificada pelo ético, pois é uma resposta da consciência moral do cidadão ao apelo da sua consciência política, apelo a conferir uma explícita intencionalidade moral ao ato político. Portanto, pode-se afirmar que, se o problema fundamental da comunidade política é o problema da justiça nas leis no corpo político e na sua constituição, “o problema fundamental da comunidade democrática é o da justiça na alma ou na consciência moral do cidadão, como disposição permanente ou virtuosa de empenhar participativamente sua liberdade nas tarefas do bem comum e, primeiramente, na tarefa fundamental da livre discussão em torno do mais razoável que será, concretamente, o mais justo” (Lima Vaz, 1988, p. 20).

Assim, a democracia não é um ideal teórico da razão pura, mas um alvo concreto a ser perseguido pela razão política, ou seja, não é uma ideia utópica. Foi no interior das grandes crises do século passado que se tornou ainda mais evidente o caráter moral da democracia que impõe, em primeiro lugar, uma justa e razoável solução para o problema da satisfação das necessidades (nível social), que é a forma mais elementar de igualdade do ser humano ante a natureza. Em seguida, o dever moral da igualdade política como direito ao reconhecimento no universo da lei, que proporciona a participação de modo livre, requisito da democracia. Em terceiro lugar, esse empenho livre é necessário para que a democracia se estabeleça institucionalmente como melhor regime político. Isso se houver na representação a dialética da identidade na diferença, em que o representante e os representados nas suas diferenças encontram a identidade numa responsabilidade moral (Lima Vaz, 1988, p. 20).

A democracia como expressão da dignidade humana, segundo a proposta de Lima Vaz, só pensável a partir da explicitação das exigências éticas intrinsecamente presentes à ação política.

“Nesse sentido, e somente nesse, a democracia, na sua ideia, pode ser considerada expressão da dignidade humana. É a expressão adequada, no campo político, da essencial dignidade do homem, que reside no seu ser moral” (Lima Vaz, 1988, p. 21).

No caso específico do Brasil, Lima Vaz observa que se trata de uma sociedade ainda mergulhada, de maneira muito acentuada, na solução do problema do primeiro nível de constituição da sociedade, que é o nível do social, ou do atendimento das necessidades.

“De modo que uma sociedade em que há́ uma desigualdade social tão grande, em que há́ um tão grande teor de miséria absoluta entre seus membros, não tem condições de ser uma sociedade plenamente democrática” (Lima Vaz, 1997, p. 102).

Porque o nível social acaba por predominar sobre os níveis políticos e democráticos, não acontecendo, desse modo, a dialética desses três níveis.

Limites da democracia

Eric Weil (1904-1977), publicou dois textos sobre a democracia num momento particularmente carregado de expectativas nas democracias ocidentais modernas: em 1950, “Limites da democracia” (Weil, 2019), e em 1951, em volume que reuniu as contribuições a um simpósio preparado pela UNESCO, uma reflexão sobre “Democracia em um mundo de tensões” (Weil, 2018)

Definida como um sistema político em vista do progresso material e moral dos cidadãos, a democracia tem como pressuposto fundamental a razoabilidade do ser humano, o que significa que os problemas da vida social “podem ser formulados e resolvidos em termos científicos e, portanto, com o acordo de todos os homens razoáveis” (Weil, 2018WEIL, E. A democracia em um mundo de tensões. Revista Argumentos (UFC), ano 10, n. 19, p. 214-226, jan./jun. 2018., 216). Isso indica que “a democracia só pode ser realizada se todos os valores de todos os grupos estiverem sujeitos à discussão universal”. De onde se segue que

“não haverá democracia se o sistema político excluir uma parte do povo da discussão acerca dos fins e dos meios e quando essa parte for determinada por características consideradas não passíveis de modificação pela razão dos seus membros (Weil, 2018WEIL, E. A democracia em um mundo de tensões. Revista Argumentos (UFC), ano 10, n. 19, p. 214-226, jan./jun. 2018., p. 217).

O pressuposto da democracia acima enunciado é um postulado antropológico, que “não pode ser comprovado nem refutado pela experiência”. Entretanto, “ao sistematizar a experiência, comunica à ação uma certa direção, logo, a ação não é mais determinada só por suas condições, mas também por seus escopos” (Weil, 2018WEIL, E. A democracia em um mundo de tensões. Revista Argumentos (UFC), ano 10, n. 19, p. 214-226, jan./jun. 2018., p. 221). Portanto, na democracia “o direito de todo cidadão de participar de uma discussão aberta, sem recurso à violência, que visa à elaboração de decisões destinadas a favorecer o bem comum, levando em conta, na medida do possível, quer os desejos dos cidadãos, quer as condições sociais e políticas (externas) prevalecentes”, põe explicitamente um segundo problema, a saber, “o problema de delimitar os direitos de oposição e de crítica” (Weil, 2018, p. 224). Evidentemente, a democracia deve permitir a expressão de todas as opiniões, assim como é evidente que ela “pode e deve se opor a qualquer organização que esteja pronta para usar a violência para assumir o poder e para se manter nele”. O que está em questão aqui é o direito e o dever da democracia de “não deixar indefesa a liberdade de discussão” (Weil, 2018, p. 225).

Os dois problemas acima brevemente enunciados apontam para o limite fundamental da democracia. Como um sistema de livre discussão em evolução, da qual todos os cidadãos podem sempre participar, “a democracia se impõe um limite, o mais estrito de todos, porque é o da liberdade que quer se manter como liberdade” (Weil, 2019WEIL, E. Limites da democracia. Revista Argumentos (UFC), ano 11, n. 21, p. 253-259, jan./jun. 2019., p. 256). O que se exige da liberdade que pretenda se manter como liberdade é que ela

“jamais recorra à violência para impor suas concepções nem aja em favor de uma forma de Estado fundada sobre o emprego da violência; pede-se que não persiga imediatamente seu interesse pessoal, mas que se convença do princípio segundo o qual toda vantagem é real, inclusive para ele pessoalmente, apenas quando o for também para todos os outros cidadãos e que um fim alcançado contra o interesse de uma parte da nação é uma vitória perniciosa que contribui para a destruição da comunidade nacional, que leva à revolta dos excluídos, à ditadura, à anarquia” (Weil, 2019WEIL, E. Limites da democracia. Revista Argumentos (UFC), ano 11, n. 21, p. 253-259, jan./jun. 2019., p. 257).

Portando, de uma liberdade que queira se manter como liberdade, se exige

“Renunciar à violência e à mentira, não reduzir ninguém a uma situação na qual a violência apareça como o único meio para poder viver feliz e dignamente, pensar no universal, eis o que a democracia pede aos seus cidadãos.” (Id. ibid.).

Esse é o limite fundamental desse “sistema de governo concebido em vista da educação do povo para a democracia” (Id. ibid.). Rigorosamente falando, “a democracia plenamente realizada não existe: ela está sempre por se realizar” (Weil, 2019WEIL, E. Limites da democracia. Revista Argumentos (UFC), ano 11, n. 21, p. 253-259, jan./jun. 2019., p. 259).

Qual democracia?

Em conferência de 1951, intitulada Qual democracia?5 5 A conferência Quale democrazia? foi pronunciada em Brescia, no dia 27 de maio de 1959, no ciclo Incontri di cultura, promovido por alguns intelectuais brescianos católicos e leigos, que se reuniam em torno do advogado e político bresciano Stefano Bazoli (1901-1981). O texto foi originalmente publicado em: BAZOLI, S. (Ed.), Prospettive di cultura 1959 (Incontri di cultura, Brescia, Quaderno 1. Primavera 1959), Tip. delle Industrie Grafiche Bresciane, Brescia s.d. (1959), p. 89-108, e recentemente reeditado pela Editrice Morcelliana (2009), com apresentação de Francesca Bazoli e Posfácio de Mario Bussi. Cito a partir da tradução: Qual democracia? Prefácio de Celso Lafer, trad. M. Perine, São Paulo: Edições Loyola, 2010. , Norberto Bobbio parte da situação da Itália do pós-guerra e da constatação de que a reconstrução do país depois do fascismo fora guiada pela ideia demasiado esquematizada de que a democracia é o autogoverno do povo. Entretanto, ao responder à pergunta pela democracia na Itália de então, Bobbio desenvolve uma reflexão que ainda se revela atualíssima, a começar pela constatação de que a democracia como autogoverno do povo “é um mito que a história desmente continuamente” (Bobbio, 2010, p. 23), porque em todas as democracias as classes políticas ou classes dirigentes ou as elites permanecem. Portanto, o que distingue os regimes democráticos é o modo pelo qual as elites emergem, governam e caem.

Três aspectos distinguem o regime democrático do autocrático: 1) o modo de formação da classe dirigente: o princípio de legitimidade do poder é regido pelo princípio eletivo e não hereditário; 2) o consenso eletivo que se repete periodicamente, porque “no regime democrático o poder da classe dirigente não foi transferido a ela, mas apenas concedido, e é sempre revogável” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 25); e 3) a classe política se caracteriza pela mobilidade contínua ou pela alternância no poder.

Bobbio entende que existem remédios para os males da democracia, mas que só podem atuar a longo prazo. O tratamento é longo porque existem dificuldades intrínsecas à própria forma do regime democrático:

“A democracia é certamente a mais perfeita das formas de governo, ou pelo menos a mais perfeita entre as que os homens foram capazes de imaginar e, pelo menos parte, de realizar; mas justamente porque é a mais perfeita é também a mais difícil” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 35).

A razão disso é porque ela “se propõe a tarefa de conciliar duas coisas contrastantes, que são a liberdade e o poder” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 35). A conciliação da eficiência e legitimidade do poder com a vocação do ser humano à liberdade é o calcanhar de Aquiles da democracia. Segundo Bobbio, a fórmula do regime democrático poder ser a seguinte:

“fazer de modo que a liberdade concedida aos cidadãos individuais não seja tão ampla a ponto de tornar impossível a unidade do poder, por um lado, e, por outro lado, que a unidade do poder não seja tão compacta a ponto de tornar impossível a expansão da liberdade” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 36).

Outro aspecto a considerar é que, ao falar de democracia, muito frequentemente,

“não nos referimos a certas instituições, mas a certo ideal a ser perseguido, não aos meios ou aos procedimentos empregados, mas ao fim que com aqueles procedimentos se quer alcançar. Desse modo o regime democrático é caracterizado não tanto pelas instituições de que se vale quanto pelos valores fundamentais que o inspiram e aos quais tende” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 38).

Ora, o fim que se busca num regime democrático é a igualdade. “Assim, podemos definir a democracia, não mais com relação aos meios, mas relativamente ao fim, como o regime que visa a realizar, tanto quanto possível, a igualdade entre os homens” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 38).

Nesse sentido, para Bobbio, ser democrático significa, em primeiro lugar, crer “que a igualdade entre os homens seja um ideal nobre, em segundo lugar [...] que uma diminuição das desigualdades sociais (e dentro de certos limites também das naturais) seja, por obra do homem, possível” (Bobbio, 2010, p. 39). Se o que pode nos mover à vida política, apesar das desilusões, “é a consciência de que a política não é apenas intriga e espírito de domínio”, então, é possível continuar acreditando que ela também sirva à justiça. A democracia, portanto, é uma forma de fé, “se democracia significa igualdade” (Bobbio, 2010, p. 40).

Bobbio conclui sua conferência afirmando que nossa época histórica tem diante de si a extraordinária tarefa de realizar a democracia em todo o mundo habitado. Para ele não há ideal mais nobre, não há fé mais combativa e criadora do que esta, porque o que dá sentido ao imenso trabalho de séculos de luta é que a história humana caminha na direção de uma sempre maior igualdade entre os homens, as classes, as nações e as raças. Para Bobbio, “o sentido da história é a igualdade entre os homens” (Bobbio, 2010, p. 40). A humanidade pode hoje dar um passo decisivo na direção dessa tarefa, porque o desenvolvimento técnico assumiu dimensões que nos põem diante da seguinte alternativa: ou a destruição ou a democracia universal. Entretanto,

“basta pôr os termos da alternativa para compreender que é uma alternativa apenas aparente. Ninguém pode querer, de fato, a primeira solução”. O que se quer é uma “democracia como ideal de igualdade e tarefa de justiça” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 41).

A amizade política como esteio da cidade

No livro V da Nicomaquéia, dedicado à virtude da justiça, Aristóteles desenvolve um pequeno excurso sobre a justiça política (1134 a24 - 1135 a15), que se refere aos que são livres e iguais e vivem em comum para alcançar a autossuficiência. Entretanto, para Aristóteles, “o fim da pólis não está suficientemente determinado quando se considera a pólis como uma mera aliança para defender-se dos perigos externos ou como mera comunidade de comércio econômico [...] Mas para Aristóteles o fim da boa pólis, ao contrário, é o bem viver de todos, o modo de vida comum, pleno e autárquico no qual todos realizam a eudaimonia” (Wolf, 2010WOLF, U. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. Trad. de Enio P. Giachini, São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 107). Eis porque, logo no início do livro VIII, ele afirma que as cidades se mantêm unidas pela amizade entre os cidadãos, ressaltando que sem a amizade a justiça não é suficiente para manter a unidade da cidade. Eis o texto:

A amizade, ao que parece, mantém unidade a cidade, e até os legisladores se preocupam mais com a amizade do que com a justiça; de fato, considera-se que a concórdia seja algo semelhante à amizade e os legisladores buscam sobretudo esta, dado que é acima de tudo a discórdia que eles buscam afastar como uma inimiga. E enquanto entre os amigos não há necessidade de justiça, os justos, ao contrário, têm necessidade de amizade, e o mais elevado nível de justiça parece consistir num sentimento semelhante à amizade. Entretanto, note-se bem, a amizade não é apenas algo necessário, mas é também algo moralmente belo (1155 a25-29)6 6 As traduções do texto da Ética Nicomaquéia foram feitas a partir da edição e tradução de Arianna Fermani (Fermani, 2008). .

Não pretendemos seguir o longo desenvolvimento da concepção aristotélica da amizade propriamente política, exposta entre o capítulo 11 do livro VIII e o capítulo 2 do livro IX (1161 a10 - 1165 a35). Para os fins desta reflexão, interessa-nos apresentar brevemente dois conceitos fundamentais relacionados com a amizade política, apresentados nos capítulos 4-6 do livro IX, consagrados à discussão do que Aristóteles chama de sentimentos amistosos (tà phililà). Segundo Gauthier-Jolif, o termo grego tem um sentido menos determinado, e se refere às “coisas da amizade”, quer se trate de uma atitude amigável, das marcas ou dos testemunhos de amizade, que são, ao mesmo tempo, os efeitos e o critério da amizade, numa palavra, dos sentimentos de amizade (Gauthier/Jolif, 1970b, p. 725 ss.). Entre esses sentimentos, destacam-se os conceitos de benevolência (eúnoia) e de concórdia (homónoia).

A benevolência, exposta no capítulo 5 (1166 b-30 - 1167 a20), se assemelha a um sentimento de amizade, embora não se trate de amizade, entre outras razões, porque pode ser experimentada inclusive por pessoas que não conhecemos e porque pode surgir improvisamente. Ela, contudo, constitui um ponto de partida da amizade. Segundo Aristóteles, metaforicamente falando, a benevolência representa uma amizade inativa ou estática que, se perdurar no tempo, pode gerar uma familiaridade (sunétheian) e se transformar em amizade. Em geral, conclui Aristóteles, o verdadeiro móvel da benevolência é a virtude, a honestidade, e ela nasce quando se revela aos nossos olhos a beleza moral, a coragem ou alguma das qualidades morais (Gauthier/Jolif, 1970aGAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y. L’Étique à Nicomaque, Introduction, traduction et commentaire, 2ème éd. avec une Introduction nouvelle, Tome I, Traduction. Louvain: Publications Universitaires; Paris: Béatrice-Nauwelaerts, 1970a., p. 259).

O capítulo 6 é dedicado à concórdia (1167 a21 - b16). O termo pertence ao vocabulário político e, portanto, Aristóteles transpõe para o plano moral um conceito político. Esse sentimento amigável não implica uma identidade de opinião ou de visões sobre diferentes questões, pois ela pode ocorrer entre pessoas que não se conhecem. Entretanto, diz-se que há concórdia na cidade quando os cidadãos coincidem sobre seus próprios interesses, fazem as mesmas escolhas e põem em prática o que decidiram juntos, particularmente no que se refere às coisas importantes e as que dizem respeito às partes em causa ou a todos os cidadãos. Portanto, fica claro que a concórdia se configura como uma amizade política, porque se refere ao útil e às coisas de que se pode fazer amigavelmente um uso comum. Esse sentimento amigável se instaura entre pessoas honestas, que permanecem firmes em seus propósitos, desejam as coisas justas e úteis não apenas para si, mas para o interesse comum7 7 Segundo Ursula Wolf, a concórdia entre os cidadãos é “o plus que dá consistência à comunidade política, para além dos meros contratos. [...] Ter boas intenções e um sentimento comum forma, portanto, para Aristóteles, liames efetivos com o bem-estar comum, que - pelo menos numa boa pólis - ultrapassam uma mera comunidade que tem em vista objetivos exteriores...” (Wolf, 2010, p. 234). .

Conclusão: elogio da serenidade

Convidado para falar num ciclo de conferências intitulado “Pequeno dicionário das virtudes”, em Milão, em 1983, Norberto Bobbio escolheu a virtude da mitezza, para a sua conferência. O texto foi publicado em 1994, junto a outros ensaios, no volume Elogio della mitezza e altri scritti morali, reeditado em 2014, com acréscimos de contribuições de amigos e estudiosos para uma semana de reflexões sobre a obra, realizada em Turim, em 2010, no encerramento das comemorações do centenário no nascimento de Bobbio8 8 Milano: Il Saggiatore, 2014. . Segundo Marco Revelli, cuja contribuição intitulada “La politica della mitezza” encerra a reedição do volume, o Elogio della mitezza

é considerado, por sólidas razões, um dos textos que marcam uma virada no percurso intelectual de Norberto Bobbio, trazendo à tona - em torno à metade dos anos noventa - as características progressivamente dominantes do ‘pensador moral’ com relação às do ‘filósofo do direito’ e do ‘teórico da política’, que tinham caracterizado sua longa elaboração cultural precedente (Bobbio, 2014, p. 241).

Após longa hesitação, escolhemos sereno e serenidade para traduzir os vocábulos mite e mitezza, cientes de que as traduções em nossa língua não cobrem todo o campo semântico, com suas nuances, dos vocábulos mite e mitezza porque, segundo Bobbio, “são palavras que somente o italiano herdou do latim” (Bobbio, 2014BOBBIO, N. Elogio della mitezza e altri scritti morali. Milano: Il Saggiatore, 2014., p. 34). Evidentemente, há certa dose de arbitrariedade na escolha. Entretanto, para os fins da presente reflexão, parece-nos que são os vocábulos mais adequados. As razões da escolha aproximam-se grandemente das razões que levaram Bobbio a escolher a virtude da serenidade (mitezza) para compor o “Pequeno dicionário das virtudes”.

Primeiramente, porque “a serenidade (mitezza) não é uma virtude política, pelo contrário, é a mais impolítica das virtudes”; na verdade, ela é “nada menos que a outra face da política”, e foi por isso que Bobbio se interessou particularmente por ela, dado que “não se pode cultivar a filosofia política sem buscar compreender o que está além da política, sem penetrar, justamente, na esfera do não-político, sem estabelecer os limites entre o político e o não-político” (Bobbio, 2014, p. 36). Em seguida, porque os possuidores dessa virtude nos levam a pensar

“que a cidade ideal não seja aquela fantástica e descrita até nos mínimos detalhes pelos utopistas, onde reina uma justiça tão rígida e severa a ponto de se tornar insuportável, mas aquela na qual a gentileza dos costumes tenha se tornado uma prática universal” (Id., p. 41).

Mas, o(a) benévolo(a) leitor(a) poderá se perguntar: por que concluir com um elogio da serenidade uma reflexão sobre a democracia como “a expressão adequada, no campo político, da essencial dignidade do homem, que reside no seu ser moral” (Lima Vaz, 1988, p. 21); esse sistema de governo que “se impõe um limite, o mais estrito de todos, porque é o da liberdade que quer se manter como liberdade” (Weil, 2019WEIL, E. Limites da democracia. Revista Argumentos (UFC), ano 11, n. 21, p. 253-259, jan./jun. 2019., p. 256), e que se apresenta hoje como um “ideal de igualdade e tarefa de justiça” (Bobbio, 2010BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 41)? Ou ainda: o que tem a ver a serenidade com os sentimentos amistosos de benevolência e concórdia, que fazem com que entre os amigos não haja necessidade de justiça, enquanto, ao contrário, os justos têm necessidade de amizade, e o mais elevado nível de justiça parece consistir num sentimento semelhante à amizade” (Ética Nicomaquéia 1155 a25-29)?

Por três razões fundamentais. Primeiro, porque a compreensão de democracia expressa pelos três autores a que recorremos no início revela, na verdade, a outra face do político, aquela que, segundo Bobbio, não pode ser cultivada sem “buscar compreender o que está além da política, sem penetrar, justamente, na esfera do não-político, sem estabelecer os limites entre o político e o não-político” (Bobbio, 2014, p. 36). Por essa razão, a escolha da serenidade é uma escolha histórica, como

“reação à sociedade violenta na qual somos obrigados a viver”, dado que Bobbio identifica “o sereno com o não-violento, a serenidade com a recusa de exercer a violência contra quem quer que seja. Virtude não política, portanto, a serenidade. Ou, definitivamente, no mundo ensanguentado dos ódios de grandes (e pequenos) poderosos, a antítese da política” (Bobbio, 2014, p. 42).

Em segundo lugar, porque a fenomenologia das relações sociais não hostis na Grécia do seu tempo, realizada por Aristóteles no “tratado da amizade” da Ética Nicomaquéia, ao catalogar entre os sentimentos amistosos de benevolência e concórdia no âmbito do que ele chama de amizade política, junto às “amizades perfeitas de indivíduos virtuosos do mesmo grau e nível social, até as relações comerciais entre vendedores e compradores no mercado, ou a daqueles grupos de pessoas que se juntam para viajar, com vistas ao prazer e à proteção recíproca” (Natali, 2007NATALI, C. Guida ad Aristotele: logica, física, cosmologia, psicologia, metafisica, ética, politica, poetica, retorica, a cura di E. Berti, 4ª ed. Roma-Bari: Laterza, 2007. p. 278), não é a formulação de um devaneio, mas a tentativa de compreender no discurso a atitude do “homem que se opõe à violência no plano da violência”, ou, o que é o mesmo, do “homem age sobre a realidade em sua totalidade para submetê-la a seu discurso” (Weil, 2012WEIL, E. Lógica da filosofia. Trad. L. C. de Malimpensa. São Paulo: É Realizações Editora, 2012., p. 555). Os sentimentos amistosos de benevolência e concórdia constituem o esteio de uma sociedade democrática na qual o homem da ação realiza a dignidade do seu ser humano, que reside no seu ser moral, que se concretiza no exercício da liberdade que quer se manter como liberdade e, portanto, que se rege pelo ideal de igualdade e pela tarefa da justiça.

Finalmente, mas não por último, porque a presente reflexão pretende ser uma homenagem à longa e fecunda carreira acadêmica do colega e mestre Antonio Valverde. A convivência com ele, dentro e fora da academia, nos permitiu reconhecer nele a impolítica virtude da serenidade, o que nos permite concluir esta homenagem com palavras de Norberto Bobbio, que expressam, no caráter do homenageado, aquilo que Aristóteles, na Ética Nicomaquéia, chamou de virtude, a saber, “um estado habitual que orienta a escolha, consistindo numa mediania relativamente a nós, determinado racionalmente e como o determinaria o indivíduo sábio” (1106 b 36 - 1107 a 1-2). Escreve Bobbio:

“O sereno é espirituoso porque está intimamente convencido de que o mundo por ele sonhado será melhor do que aquele no qual é obrigado a viver, e o prefigura na sua ação cotidiana, exercitando justamente a virtude da Serenidade, mesmo sabendo que este mundo não existe aqui e agora, e talvez não existirá nunca” (Bobbio, 2014BOBBIO, N. Elogio della mitezza e altri scritti morali. Milano: Il Saggiatore, 2014., p. 39).

Referências

  • BOBBIO, N. Elogio della mitezza e altri scritti morali. Milano: Il Saggiatore, 2014.
  • BOBBIO, N. Qual democracia? Trad. de M. Perine, Prefácio de Celso Lafer. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
  • FERMANI, A. Aristotele. Le tre etiche. Saggio introdutivo, traduzione, note e apparati. Prezentazione di M. Migliori. Milano: Bompinai, 2008.
  • GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y. L’Étique à Nicomaque, Introduction, traduction et commentaire, 2ème éd. avec une Introduction nouvelle, Tome I, Traduction. Louvain: Publications Universitaires; Paris: Béatrice-Nauwelaerts, 1970a.
  • GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y. L’Étique à Nicomaque, Introduction, traduction et commentaire, 2ème éd. avec une Introduction nouvelle, Tome II, Commentaire, Deuxième partie, livres VI-X. Louvain: Publications Universitaires; Paris: Béatrice-Nauwelaerts, 1970b.
  • LIMA VAZ, H. C. de. Democracia e dignidade humana. Revista Síntese Nova Fase, v. 15, n. 44, p. 11-25, set./dez. 1988.
  • LIMA VAZ, H. C. de. Democracia e sociedade. Revista Síntese Nova Fase, v. 11, n. 33, p. 5-19, jan./abr. 1985.
  • LIMA VAZ, H. C. de. Ética e Justiça: Filosofia do agir humano. Revista Síntese, v. 23, n. 75, p. 437-454, out./dez. 1996.
  • LIMA VAZ, H. C. de. Ética e política. Revista Síntese Nova Fase, v. 10, n. 29, p. 5-10, set./dez. 1983.
  • LIMA VAZ, H. C. de. Filosofia como forma de ação (Entrevista). Cadernos de Filosofia Alemã 2, São Paulo, p. 77-102, 1997.
  • NATALI, C. Guida ad Aristotele: logica, física, cosmologia, psicologia, metafisica, ética, politica, poetica, retorica, a cura di E. Berti, 4ª ed. Roma-Bari: Laterza, 2007.
  • OLIVEIRA, C. M. R. de; ROCHA, M. A. (Orgs.). O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 de Henrique Cláudio de Lima Vaz [recuso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
  • PERINE, M. Ética e Política: irredutibilidade e interação de relações assimétricas. Síntese, Belo Horizonte, v. 17, n. 48, p. 35-46, jan./mar. 1990.
  • VALVERDE, A. J. R. Maquiavel: a política como técnica. Hypnos, São Paulo, v. 4, p. 37-46, 1998.
  • WEIL, E. Filosofia política. Trad. M. Perine, 2ª ed. revista. São Paulo: Edições Loyola, 1990.
  • WEIL, E. Lógica da filosofia. Trad. L. C. de Malimpensa. São Paulo: É Realizações Editora, 2012.
  • WEIL, E. A democracia em um mundo de tensões. Revista Argumentos (UFC), ano 10, n. 19, p. 214-226, jan./jun. 2018.
  • WEIL, E. Limites da democracia. Revista Argumentos (UFC), ano 11, n. 21, p. 253-259, jan./jun. 2019.
  • WOLF, U. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. Trad. de Enio P. Giachini, São Paulo: Edições Loyola, 2010.
  • 1
    Este texto recebeu apoio do Programa de Incentivo à Internacionalização (PIPRINT) da PUC-SP. Edital 11915/2022.
  • 2
    Evocamos aqui, como se verá, o título de um dos textos de Eric Weil, que nos serviremos na reflexão sobre democracia.
  • 3
    Com efeito, no início do assim chamado “tratado da amizade” da Ética Nicomaquéia, Aristóteles afirma que a amizade ou é um tipo de virtude ou é conexa à virtude (VIII, 1, 1155 a1-2).
  • 4
    Cf. MORAIS, M. dos R. Sociedade democrática: lócus da realização humana. p.173. in: OLIVEIRA, C. M. R. de; ROCHA, M. A. (Orgs.). O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 de Henrique Cláudio de Lima Vaz [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
  • 5
    A conferência Quale democrazia? foi pronunciada em Brescia, no dia 27 de maio de 1959, no ciclo Incontri di cultura, promovido por alguns intelectuais brescianos católicos e leigos, que se reuniam em torno do advogado e político bresciano Stefano Bazoli (1901-1981). O texto foi originalmente publicado em: BAZOLI, S. (Ed.), Prospettive di cultura 1959 (Incontri di cultura, Brescia, Quaderno 1. Primavera 1959), Tip. delle Industrie Grafiche Bresciane, Brescia s.d. (1959), p. 89-108, e recentemente reeditado pela Editrice Morcelliana (2009), com apresentação de Francesca Bazoli e Posfácio de Mario Bussi. Cito a partir da tradução: Qual democracia? Prefácio de Celso Lafer, trad. M. Perine, São Paulo: Edições Loyola, 2010.
  • 6
    As traduções do texto da Ética Nicomaquéia foram feitas a partir da edição e tradução de Arianna Fermani (Fermani, 2008FERMANI, A. Aristotele. Le tre etiche. Saggio introdutivo, traduzione, note e apparati. Prezentazione di M. Migliori. Milano: Bompinai, 2008.).
  • 7
    Segundo Ursula Wolf, a concórdia entre os cidadãos é “o plus que dá consistência à comunidade política, para além dos meros contratos. [...] Ter boas intenções e um sentimento comum forma, portanto, para Aristóteles, liames efetivos com o bem-estar comum, que - pelo menos numa boa pólis - ultrapassam uma mera comunidade que tem em vista objetivos exteriores...” (Wolf, 2010, p. 234).
  • 8
    Milano: Il Saggiatore, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2023
  • Aceito
    09 Nov 2023
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia Rua Imaculada Conceição, nº 1155, Bairro Prado Velho., CEP: 80215-901 , Tel: +55 (41) 3271-1701 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: revistas.pucpress@pucpr.br