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As enfermeiras da força expedicionária brasileira e a divulgação de seu retorno ao lar

Resumos

Este é um estudo histórico-social, cujo objetivo foi analisar os elementos simbólicos que expressam a divisão hierarquizante entre o masculino e o feminino, contidos em reportagens jornalísticas, publicadas sobre o retorno ao lar de enfermeiras que atuaram junto ao Serviço de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, e discutir os efeitos simbólicos advindos dessas reportagens. As fontes históricas do estudo, constituídas por documentos fotográficos, escritos e orais, foram classificadas e analisadas à luz da Teoria do Mundo Social de Pierre Bourdieu e dos estudos de Michelle Perrot sobre a História das Mulheres. A pesquisa revelou que o modo em que foram veiculadas as reportagens jornalísticas, sobre a chegada dessas enfermeiras ao Brasil, representou a reprodução de estratégia simbólica no sentido de fazer valer os interesses político-sociais da época, e que trazia em seu bojo as ideias sobre a divisão hierarquizante do mundo social em masculino e feminino.

história da enfermagem; enfermagem militar; II guerra mundial


This historical-social study aimed to examine the symbolic elements that express the hierarchizing division between the male and female, contained in newspaper reports published about the return home of the nurses who worked in the Brazilian Expeditionary Force's Health Service, and to discuss the symbolic effects these reports produced. The historical sources of the study, consisting of photographic, written and oral documents, were classified and analyzed in the light of Pierre Bourdieu's Social Theory and Michelle Perrot's studies on Women's History. The research revealed that the way the news reports about the arrival of these nurses to Brazil were disseminated represented the reproduction of a symbolic strategy to enforce political and social interests in force, and that contained the ideas about the hierarchizing division of the social world into male and female.

history of nursing; military nursing; world war II


Este es un estudio histórico social , cuyo objetivo fue analizar los elementos simbólicos que expresan la división jerárquica entre lo masculino y lo femenino, contenidos en reportajes periodísticos, publicados sobre el retorno al hogar de enfermeras que actuaron junto al Servicio de Salud de la Fuerza Expedicionaria Brasileña, y discutir los efectos simbólicos provenientes de esos reportajes. Las fuentes históricas del estudio, constituidas por documentos fotográficos, documentos y relatos orales, fueron clasificadas y analizadas bajo el marco de la Teoría del Mundo Social de Pierre Bourdieu y de los estudios de Michelle Perrot sobre la Historia de las Mujeres. La investigación reveló que el modo en que fueron publicados los reportajes periodísticos, sobre la llegada de esas enfermeras a Brasil, representó la reproducción de una estrategia simbólica en el sentido de hacer valer los intereses político-sociales de la época, y que contenían en su esencia las ideas sobre la división jerárquica del mundo social entre lo masculino y lo femenino.

historia de la enfermería; enfermería militar; segunda guerra mundial


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ARTIGO ORIGINAL

As enfermeiras da força expedicionária brasileira e a divulgação de seu retorno ao lar

Alexandre Barbosa de OliveiraI; Tânia Cristina Franco SantosII; Ieda de Alencar BarreiraIII; Antonio José de Almeida FilhoII

IEscola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil: Doutorando em Enfermagem, e-mail: alexbaroli@yahoo.com.br

IIEscola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil: Professor Adjunto, e-mail: taniacristinafsc@terra.com.br, ajafilho@terra.com.br

IIIEscola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil: Professor Titular aposentado, e-mail: iedabarreira@openlink.com.br

RESUMO

Este é um estudo histórico-social, cujo objetivo foi analisar os elementos simbólicos que expressam a divisão hierarquizante entre o masculino e o feminino, contidos em reportagens jornalísticas, publicadas sobre o retorno ao lar de enfermeiras que atuaram junto ao Serviço de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, e discutir os efeitos simbólicos advindos dessas reportagens. As fontes históricas do estudo, constituídas por documentos fotográficos, escritos e orais, foram classificadas e analisadas à luz da Teoria do Mundo Social de Pierre Bourdieu e dos estudos de Michelle Perrot sobre a História das Mulheres. A pesquisa revelou que o modo em que foram veiculadas as reportagens jornalísticas, sobre a chegada dessas enfermeiras ao Brasil, representou a reprodução de estratégia simbólica no sentido de fazer valer os interesses político-sociais da época, e que trazia em seu bojo as ideias sobre a divisão hierarquizante do mundo social em masculino e feminino.

Descritores: história da enfermagem; enfermagem militar; II guerra mundial

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente estudo teve como objeto os efeitos simbólicos advindos da anunciação jornalística do retorno ao lar de enfermeiras que atuaram no Serviço de Saúde da Força Expedicionária Brasileira (FEB), durante a Segunda Guerra Mundial. Elegeu-se o ano 1945 como recorte temporal por corresponder ao momento em que termina a guerra e esse grupo de enfermeiras é desmobilizado por força de aviso ministerial(1).

Essas mulheres representam o primeiro grupamento feminino de enfermagem que se incorporou oficial e historicamente às fileiras do Exército Brasileiro. Para se manterem nesse campo, inúmeras foram as lutas que esse grupo travou no sentido de se fazer ver e se fazer crer como "enfermeiras militares", desde sua mobilização, iniciada em 1943, até a sua desmobilização, em 1945. Boa parte desses embates decorreu da dominância masculina que elas experimentaram nos campos militar, político e social. Ademais, com o término da guerra avultaram-se os efeitos dessa dominação, pois, após terem participado do efetivo de oficiais do Exército Brasileiro, trabalhando nos hospitais de campanha na Itália, dele foram excluídas sem explicações(2-3).

Parte dessa idéia pode ser confirmada pelo teor de algumas reportagens jornalísticas acerca do retorno da guerra de enfermeiras brasileiras aos seus lares, reportagens essas que, estratégica e veladamente, mostravam certa necessidade de reocupação dos espaços privados por elas no pós-guerra. Assim, a priori, a chegada à Pátria dessas "heroínas" ficou sendo consagrada, simbolicamente, como o retorno das mães, das donas de casa, das esposas devotas, cabendo-lhes, agora, a retomada de suas funções no universo feminino.

Outras reportagens defendiam, ambiguamente, a necessidade de essas enfermeiras continuarem utilizando os seus uniformes mesmo após o término da guerra, e incitavam estrategicamente a opinião dos leitores de que era dever do Estado e direito delas a permanência regular nos quartéis.

Diante do exposto, foram elaborados os seguintes objetivos: analisar os elementos simbólicos, que expressam a divisão hierarquizante entre o masculino e o feminino, contidos em reportagens jornalísticas, publicadas sobre o retorno ao lar de enfermeiras que atuaram junto ao Serviço de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, e discutir os efeitos simbólicos advindos dessas reportagens.

A contribuição deste artigo aos estudos publicados sobre a temática se evidencia pelo aprofundamento da discussão sobre a hierarquização dos espaços e práticas sociais, implícitas na divisão social do trabalho, mediante a valorização de atributos femininos, os quais reafirmam a repartição dos papéis sexuais no cotidiano da mulher e da enfermeira, através do cuidado maternal, silencioso, carinhoso e abnegado.

ASPECTOS METODOLÓGICOS E TEÓRICOS

Trata-se de estudo de cunho histórico-social, voltado mais especificamente para o campo da História da Enfermagem Militar Brasileira, desenvolvido sob a perspectiva da micro-história, com abordagem dialética. Utilizou-se, como fontes primárias preferenciais, duas reportagens oriundas dos jornais A Noite e Tribuna Popular, as quais noticiaram a chegada de algumas Enfermeiras da FEB ao Brasil, agentes essas identificadas neste estudo como Enfermeiras Febianas. Em especial, usou-se de uma fotografia que serviu para ilustrar a matéria publicada nesse primeiro jornal. Ambas as reportagens foram inicial e parcialmente encontradas no diário pessoal da Enfermeira Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero e, mais tarde, foram revistas no acervo microfilmado da Coordenadoria de Publicações Seriadas, da Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).

Além das fontes primárias supramencionadas, utilizou-se também alguns documentos escritos, e entrevistas com duas ex-Enfermeiras Febianas, realizadas entre os meses de setembro e outubro de 2006, na cidade do Rio de Janeiro. Essas enfermeiras assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, cederam por escrito os direitos autorais de suas entrevistas, e autorizaram o arquivamento das mesmas no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery (UFRJ), com o objetivo de serem úteis à realização de futuras pesquisas.

Como fontes secundárias, foram usadas aquelas que tratavam da História do Brasil, da História da Enfermagem Militar Brasileira e da História das Mulheres, com ênfase nos estudos feitos por Michelle Perrot.

Para o tratamento metodológico das fontes, adotou-se os procedimentos de seleção, ordenação e classificação daquelas que tivessem maior aderência à temática. Para tal, usou-se como critério aquelas publicadas em 1945, ano do término da Segunda Guerra Mundial, e cujo assunto reportasse o regresso das enfermeiras brasileiras a seus lares, e que, ainda, agrupassem elementos dialéticos para o desenvolvimento do estudo. Outros procedimentos foram a triangulação das fontes primárias e secundárias com o contexto histórico-social de sua produção, além da utilização das técnicas e métodos de análise fotográfica, documental e de história oral temática. Esse último buscou contemplar cuidado atento ao conteúdo obtido das entrevistas, no que diz respeito ao seu uso e à preservação da imagem das entrevistadas.

Para subsidiar a análise e a discussão traçadas, foram eleitos os conceitos de campo, habitus, capital simbólico, poder simbólico, luta simbólica e dominação masculina, da Teoria do Mundo Social, desenvolvida por Pierre Bourdieu. E, como apoio adicional, buscou-se potencializar as visões e interpretações da autoria deste estudo com as ideias de Michelle Perrot. Através dessa "conjugação", conseguiu-se, aqui, envolver as análises distintas de gênero desenvolvidas tanto por Bourdieu quanto por Perrot, apesar das diferenças teórico-metodológicas que configuram suas pesquisas. Entretanto, tal exercício visou a complementariedade de seus argumentos na tentativa de melhor elucidar as nuances de poder e de dominação que demarcaram as publicações jornalísticas que trataram do retorno das enfermeiras da FEB ao Brasil, após o término da Segunda Guerra Mundial.

Vale ressaltar que este estudo foi desenvolvido segundo as recomendações propostas pelo Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução 196/9, sendo que os aspectos ético-legais foram cuidadosamente considerados, recebendo parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Hospital-Escola São Francisco de Assis, sob Protocolo n.077/06, em 26/9/2006.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O pós-guerra e o retorno das Enfermeiras Febianas ao lar

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Governo Vargas criou e organizou a Força Expedicionária Brasileira, que contou com a participação de 25.334 cidadãos brasileiros para fazerem parte do apoio militar prestado pelo Brasil aos Estados Unidos da América no esforço de guerra contra o poder nazifascista.

Para atender o discurso de que não faltaria apoio de saúde durante o combate àqueles que iriam se aliar à FEB, o Governo, dentre outras medidas, criou o Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército, em dezembro de 1943(4). Logo após a criação desse Quadro, voluntárias de todas as partes do país, solteiras, viúvas e casadas, e com os cursos mais diversos na área de Enfermagem, foram convocadas para realizarem o Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército(5), oportunidade em que foram praticamente treinadas às pressas. Dentre as inúmeras voluntárias que realizaram o curso, 67 mulheres foram selecionadas para seguir para o front. Cabe salientar que, durante o processo de pesquisa, não foi possível acessar fontes que definissem o número exato de mulheres que chegaram a participar do referido curso.

De certo modo, a atuação desse primeiro grupamento de enfermeiras militares no espaço público nacional e internacional, à época, reatualizou ideológica, estetica, e, por certo, recortadamente as posições ocupadas pelas mulheres nos cenários de guerra, mesmo porque perdurava a ideia de que, via de regra, os homens deveriam ser destinados para as frentes de batalha, e as mulheres, geralmente, ficariam em casa para os cuidados aos filhos e, por extensão, empregadas na garantia do adequado funcionamento da sociedade civil. Assim, a criação do Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército Brasileiro, no contexto da Segunda Guerra Mundial, trouxe em seu bojo aparente revisão de posições possíveis de mulheres no universo masculino, uma vez que viabilizou sua inclusão em espaços públicos fora do padrão corrente de feminilidade.

Depois de terem atuado nos hospitais de campanha norte-americanos, montados na Itália, as Enfermeiras Febianas foram desmobilizadas logo após o término do conflito. Nesse ínterim, alguns jornais passaram a reportar o retorno delas aos seus lares. Sobre as circunstâncias que envolveram essa situação, uma das depoentes pronunciou o seguinte:

[...] Quando nós chegamos aqui no Brasil, nós já viemos desmobilizadas. Nós já viemos da Itália desmobilizadas... Nós só fizemos entregar o material que tinha que entregar e tchau, tchau! Vai embora pra casa! Apresentamo-nos na Diretoria de Saúde, e demos baixa.

Com relação a esse ato sofrido por elas, o conceito de poder simbólico pode ser aplicado à ação que o Governo exerceu através do Exército Brasileiro, uma vez que a utilização lídima desse poder trouxe embutida violência simbólica para o grupo de enfermeiras, ao ter abstraído, quase que abruptamente, o sentimento de pertença delas àquela corporação. Nesse sentido, como indica o depoimento, a desmobilização definiu, de forma impactante, perda para o grupo, relativa à privação de posições que eram legitimamente ocupadas, a qual acabou por abarcar prejuízos de ordem social, financeira, moral e simbólica para essas mulheres.

Logo depois da chegada ao Brasil, as Enfermeiras Febianas tiveram que se apresentar à Diretoria de Saúde, no Palácio Duque de Caxias (Rio de Janeiro), a fim de serem tomadas algumas medidas administrativas relacionadas às suas baixas. Por ocasião dessa apresentação, uma das enfermeiras assim expressou:

[...] me apresentei na Diretoria de Saúde no Rio de Janeiro. Era o general Souza Ferreira, diretor de Saúde no Rio de Janeiro. Este não me deu a menor atenção! Ele estava escrevendo no gabinete. Nem levantou os olhos, mal me cumprimentou, e disse assim: "Apresente-se à 3ª Seção! Será desligada!". Eu, nessa hora, tive vontade até de chorar! Eu não esperava discurso. Mas esperava um aperto de mão com a mão direita e um abraço de agradecimento... Encerrou, encerrou... Eles não deram satisfação!

Dessa forma, esboçou-se, aqui, a ideia de que a desmobilização das Enfermeiras Febianas trouxe embutida a consolidação de processo de exclusão dessas mulheres do campo do Exército Brasileiro, uma vez que, ideologicamente, enfermeiras de guerra mobilizadas não seriam mais necessárias em um novo mundo de paz.

Alguns reflexos desse processo de exclusão e, por conseguinte, de esquecimento (des-historicização), podem ser notados, inclusive, na forma com que a imprensa noticiou o retorno daquelas enfermeiras(3). Sobre isso, destaca-se o fragmento a seguir que registra a percepção de uma delas acerca das notícias veiculadas pela mídia, no que diz respeito à chegada das enfermeiras ao Brasil.

Ignorou! Não deram destaque... Uma notinha ou outra é o que saía. Pouquíssimas entrevistas! Não houve um movimento... Uma entrevista aqui, outra ali, uma notinha...

Ao se levar em consideração que a mídia brasileira foi partícipe direta e importante sobre a reprodução da atuação dessas enfermeiras na guerra, desde sua aparição antes do embarque ao front, arrisca-se, aqui, afirmar que o retorno das Enfermeiras Febianas foi expressivamente noticiado pela imprensa escrita da época. Não tanto em termos quantitativos, como indica o trecho acima, mas sim em termos qualitativos e, por extensão, simbólicos.

A título de exemplificação, menciona-se, dentre as reportagens produzidas, aquela que fez constar uma fotografia na capa do Jornal A Noite, do dia 11 de junho de 1945(6), que serviu para ilustrar uma matéria sobre a chegada recente de duas enfermeiras ao Brasil, com o título: "Viram a guerra no que ela tem de mais cruel". Essa imagem fotográfica, ao ter sido estampada na primeira página do Jornal A Noite, cristalizou e sacralizou uma cena do cotidiano doméstico da Enfermeira Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero, logo após o seu retorno do front. Ela acompanhava a seguinte legenda: "A senhorita Virgínia Portocarrero em (suposto) flagrante, quando servia o almoço ao seu sobrinho Carlos Alberto Portocarrero".

A articulação da imagem fotográfica com a matéria que a acompanhava, bem como com a sua legenda, leva a que se identifique uma estratégia simbólica no sentido de conclamar aquelas mulheres para a retomada das atividades relativas ao universo feminino.

Sob a esfera simbólica, o ato registrado na foto, de servir o almoço a uma criança, evocou características e atividades intrínsecas à natureza feminina, as quais evidenciam a divisão hierarquizante do mundo social em masculino e feminino. Desse modo, entende-se que a dominação masculina dispensa explicação aqui, pois a ordem social ratifica-a na natureza e na distribuição das atividades bem como na ocupação dos espaços. Assim, essa ordem buscava reservar a casa para as mulheres e os espaços públicos aos homens.

Além disso, a dominação masculina se inscreve nas rotinas da divisão do trabalho ou nos rituais privados mediante as condutas de marginalização impostas às mulheres, através de sua exclusão de lugares públicos e, consequentemente, de sua exclusão de tarefas mais nobres(7). Essa regularização de ordem física e social coloca o homem na condição de "senhor do privado e da família que eles governam e representam, delegando às mulheres a gestão do cotidiano"(8).

Essa enunciação, portanto, traz à tona o conhecimento e o reconhecimento prático da fronteira entre os dominantes e os dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os dominados contribuem assumindo, muitas vezes, a forma de emoções corporais ou de paixões e de sentimentos. Nesse sentido, a fotografia expõe a expressão do corpo socializado e docilizado, trazendo embutida a lógica do dever social da mulher.

Apesar do arrefecimento da censura no Brasil, a partir de fevereiro de 1945, quando o Departamento de Imprensa e Propaganda passou a deixar de intervir como outrora, tudo leva a crer que o Jornal A Noite, no qual foi publicada a reportagem em tela, fazia ainda parte da tática doutrinária do Estado Novo que, em seu âmago, objetivava a homogeneização cultural do povo(9-10).

Da análise dessa fonte, vislumbram-se possíveis vestígios da posição ideológica do Estado acerca da divisão dos gêneros, uma vez que ele buscava ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do patriarcado privado como as de um patriarcado público, inscrito em todas as instituições encarregadas de gerir e regulamentar a existência cotidiana da unidade doméstica.

Entende-se que o retorno ao lar daquelas "heroínas", que se lançaram numa frente de tamanho impacto como fora a Segunda Guerra Mundial, mostrou-se consagrado simbolicamente como o retorno das mães, das donas de casa, das esposas devotas, cabendo-lhes, nesse momento, a retomada das funções advindas do universo feminino. Sobre tal espectro, tem-se o simbolismo que envolveu a atuação de Ana Ferreira Justina Néri, na Guerra do Paraguai (1864-1870), que, após o término do conflito, foi cognominada "mãe dos brasileiros" pelo Instituto Histórico e Geográfico(11). Dessa forma, as guerras reiteram as representações mais tradicionais e simbólicas das diferenças entre os sexos.

Ainda, na reportagem que acompanhou a fotografia selecionada, destaca-se o seguinte recorte: "Com o término da guerra na Europa, começam a regressar ao nosso país muitas das enfermeiras que se inscreveram para acompanhar a FEB até o front italiano. Tudo que se disser delas, da sua ação silenciosa e inestimável no interior dos hospitais de campo, sempre prontas a atender aos feridos, não importa".

O teor do trecho acima, publicado numa matéria jornalística que informava aos leitores sobre a chegada das enfermeiras do front, exalta, ainda que discretamente, o apreço de sua atuação no atendimento aos soldados feridos. Contudo, no final do trecho destacado, revela-se certa ambiguidade no sentido de orientar os leitores a atribuir "pouca importância" aos comentários alusivos que viessem a ser feitos sobre as enfermeiras, o que leva a entender que tal colocação refletiu a necessidade de, em primeira análise, resguardar a imagem das "enfermeiras de guerra" pelo autor da matéria jornalística. Entretanto, a expressão "não importa" adquire, no conjunto textual, caráter quase que dissimulado, uma vez que pode ter sentido interpretativo dual, e até negativo. Nessa vertente, como suposto por um dos correspondentes de guerra que cobriu a atuação na FEB na Europa, "em tempo de guerra já é muito não se mentir, dizer qualquer verdade é impensável!"(12).

A outra publicação jornalística, selecionada para compor este estudo, ocupou a capa do Jornal Tribuna Popular, do Distrito Federal, do dia 12 julho de 1945, com o seguinte subtítulo "O povo quer ver as enfermeiras fardadas!"(13). Essa reportagem ratifica alguns dos elementos ora abordados, ao tempo em que revela novos enfoques, os quais colocavam em maior evidência o caráter meritório da atuação das Enfermeiras Febianas no front, o que pode ser verificado na transcrição parcial da referida matéria.

"As enfermeiras do Brasil compreendem que a guerra teve um sentido, que seu esforço não se perdeu, e que foram combatentes pela liberdade, e que por isso contribuíram para as primeiras liberdades do nosso povo [...] Elas vão voltando aos seus lares [...] Podem orgulhar-se de que lutaram pela Pátria contra o fascismo, e o povo quer vê-las fardadas. A farda que elas souberam conquistar, socorrendo os feridos, animando os pracinhas nas neves da Itália. O povo quer vê-las protegidas pelo Estado. A farda distingue os heróis da Pátria. É a medalha maior do combatente. São as queridas enfermeiras do povo que lutaram pelo povo e de quem não se pode tirar o seu uniforme de guerra. A FEB é um exército de época difícil. Não só o pracinha deve usar a sua gloriosa farda nas datas cívicas, mas também as enfermeiras. Elas fazem parte do exército que venceu o fascismo".

A atenção conferida por parte da imprensa da época favoreceu, de certa maneira, o estabelecimento de relações sociais que conferiram às enfermeiras, mesmo que simbolicamente, o poder de se fazerem crer incluídas pelo Estado, de se fazerem ver aceitas pelo povo e, portanto, reconhecidas pelo capital simbólico angariado por sua atuação na guerra. Dessa forma, o texto supracitado buscou legitimar sua participação no conflito, ao tempo em que corroborou a tentativa de consagração no campo do Exército ao ter reivindicado para elas o direito de continuarem a usar os seus uniformes.

Há que se considerar que essa matéria provinha de um jornal de posicionamento comunista, o qual possuía ampla tiragem diária, e que os comunistas, à época, defendiam amplamente o fim do Estado Novo e se mostravam contrários aos modos de atuação do Exército. Assim, apoiados em fontes que auxiliaram na constatação de que cada vez mais a imprensa burlava a censura nessa época, entende-se que a matéria em tela consistiu em resistência à forma na qual se esquadrinhava socialmente a representação da atuação das Enfermeiras Febianas na Segunda Guerra(14).

Ademais, há que se considerar que a mídia do contexto estadonovista impunha-se como instrumento de veiculação de convicções pré-moldadas, que acabavam por (re)estruturar novos padrões de ordenação do mundo social. Ela, em algumas instâncias, funcionava como vetor fundamental do processo de integração nacional, a fim de direcionar o pensamento do povo para as "benevolências" que o regime pretendia. Em contrapartida, posicionamentos contrários eram tomados em resistência a uma ditadura que, em meados de 1945, pouco se sustentava(15).

Vislumbra-se, nessa mesma reportagem, a existência de traços que demarcam certa estratégia política e ideológica de condução da opinião dos leitores por parte do jornalista que, aparentemente, ia contra o posicionamento do Governo acerca das possibilidades de atuação de mulheres nos espaços públicos.

Assim, da análise dos elementos distintos contidos nas duas reportagens selecionadas, infere-se, aqui, que alguns discursos direcionaram (social e politicamente) aquelas mulheres para sua manutenção nos espaços privados, e outros para a sua consagração nos espaços públicos. Por isso, concorda-se com Perrot, quando afirma que "[...] as fronteiras entre o privado e o público tendem a mudar com o tempo, mesmo porque nem todo espaço privado é feminino e nem todo espaço público é masculino [...]"(16).

Enfim, entre o público e o privado e, por extensão e respectivamente, entre os homens e as mulheres, entre o político e o pessoal, e entre os campos de batalha e os cenários domésticos as divisões tendem a se quebrar e recompor uma paisagem, que remodela os espaços sociais através do aparecimento de lutas e resistências que fazem deslocar as fronteiras (in)visíveis entre os sexos.

Essa perspectiva ganha privilégios, por exemplo, em tempos de guerra, onde a discussão sobre relações de gênero ganha especial vulto, uma vez que as interfaces da dominação masculina se projetam em outros cenários. Aliás, as guerras, ao trazerem certa desorganização nas vidas civil e militar, leva ao envolvimento de situações excepcionais em que as fronteiras entre os gêneros se confundem e, em certas ocasiões, chegam até a se inverter.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As fontes que foram selecionadas, ordenadas e classificadas, tematicamente, orientaram a autoria deste estudo para uma abordagem capaz de apreender a dimensão propriamente simbólica da dominação masculina e de suas propriedades distintivas nos espaços público e privado.

Por isso, justifica-se o envolvimento com os estudos sobre gênero dos franceses Pierre Boudieu e Michelle Perrot,a fim de prevenir, nas abordagens e interpretações, provável dissimetria sexual do discurso filosófico(17), e acredita-se que se conseguiu reproduzir as visões no masculino e no feminino acerca da versão histórica aqui analisada.

A problematização da dicotomia privado/público, verificada neste estudo, constituiu-se em um terreno profícuo para se entender a divisão sexual dos espaços que as Enfermeiras Febianas passaram a ocupar no pós-guerra imediato. Desse modo, ao se aplicar a distinção entre o privado e o público às representações que envolveram o discurso das reportagens jornalísticas, buscou-se esclarecer alguns efeitos simbólicos que, conjunturalmente, foram reproduzidos no mundo social.

Por fim, entende-se, aqui, que os efeitos simbólicos advindos de reportagens jornalísticas que divulgaram o retorno de Enfermeiras Febianas ao Brasil foram, em boa parte, resultado do modo em que se representou a identidade daquelas enfermeiras no mundo social. Nesse sentido, tais reportagens representaram a reprodução de estratégias simbólicas no sentido de fazer valer os interesses políticos e sociais da época. E, por extensão, elas traziam em seu bojo as ideias preconcebidas sobre a divisão hierarquizante do mundo social em masculino e feminino.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ministério da Guerra (BR). Aviso Ministerial nº 217-185 (reservado), de 6 de julho de 1945. Dispõe sobre a dissolução da Força Expedicionária Brasileira e dá outras providências. Rio de Janeiro (DF): Ministério da Guerra; 1945.
  • 2. Bernardes MMR, Lopes GT, Santos TCF. O cotidiano das enfermeiras do Exército na Força Expedicionária Brasileira (FEB) no Teatro de Operações da 2Ş Guerra Mundial, na Itália (1941-1945). Rev Latino-am Enfermagem 2005 maio-junho; 13(3):314-21.
  • 3. Oliveira AB, Santos TCF. Entre ganhos e perdas simbólicas: A (des)mobilização das enfermeiras que atuaram na Segunda Guerra Mundial. Esc Anna Nery Rev Enferm 2007 set; 11(3):423-8.
  • 4
    Ministério da Guerra (BR). Decreto-Lei nº 6.097, de 13 de dezembro de 1943. Dispõe sobre a criação do Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro (DF): Ministério da Guerra; 1943.
  • 5
    Ministério da Guerra (BR). Portaria nº 5.855, de 3 de janeiro de 1944. Dispõe sobre a criação do Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército. Rio de Janeiro (DF): Ministério da Guerra; 1944.
  • 6. Viram a guerra no que ela tem de mais cruel. Jornal A Noite 1945 Jun 11.
  • 7. Bourdieu P. A dominação masculina. 3Ş ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.
  • 8. Perrot M. Mulheres públicas. São Paulo (SP): UNESP; 1998.
  • 9. Henn LG . Os correspondentes de guerra e a cobertura jornalística da Força Expedicionária Brasileira. Rev História Unisinos 2006 maio/agosto; 10(2):173-94.
  • 10. Oliveira LL. Vargas, os intelectuais e as raízes da ordem. In: D´Araujo MC. As instituições brasileiras na era Vargas. Rio de Janeiro (RJ): EdUERJ/FGV; 1999. p.83-96.
  • 11. Cardoso MMVN. Anna Nery: A trajetória de uma heroína [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 1996.
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  • 13. O povo quer ver as enfermeiras fardadas. Jornal Tribuna Popular 1945 Jul 12.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    03 Ago 2009
  • Recebido
    19 Jan 2009
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