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A EXPERIÊNCIA DE MOÇAMBIQUE NA GESTÃO DE CALAMIDADES E RECUPERAÇÃO PÓS-DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS (2019-2023)

Resumo

Depois da ocorrência dos ciclones Idai e Kenneth, e apesar do nível de pobreza em que Moçambique se encontra, tem estado a recuperar-se a um ritmo aceitável, com ajuda de doadores e parceiros internacionais. Assim, Moçambique constitui um exemplo em matéria de recuperação pós-desastres socioambientais ou está longe disso? No primeiro caso, a que se deveria esse contraste? Em contexto de ocorrência de eventos climáticos extremos, uma sólida gestão financeira é determinante para uma boa prevenção, uma boa mitigação e uma rápida recuperação. Ciente disso, o país tem vindo a organizar-se em termos de criação de instituições vocacionadas, gestão de emergências e adoção de legislação correspondente. Contudo, o país vem falhando na componente de gestão financeira. O objetivo deste artigo é aferir até que ponto a experiência de Moçambique pode servir de exemplo na região e no mundo, tendo em conta que existem outros países que também são vítimas de eventos climáticos extremos. Quanto aos objetivos específicos, pretende-se analisar e discutir de que modo a gestão e a recuperação pós-desastres socioambientais são realizadas pelas autoridades moçambicanas e se estão alinhadas às práticas e aos padrões internacionais, de modo que se possa comparar com outros países, nas mesmas circunstâncias. A metodologia de pesquisa utilizada foi qualitativa, sendo exploratória quanto aos objetivos. Quanto aos procedimentos técnicos, lançou-se mão de pesquisa bibliográfica e documental, desenvolvida com base em livros, artigos científicos, relatórios, estudos, textos e legislação. O método de procedimento da pesquisa foi o comparativo. Concluiu-se que Moçambique pode até ter experiências para partilhar, mas ainda deve trilhar um longo caminho para se tornar referência.

Palavras-chave:
gestão de calamidades; prevenção; recuperação pós-desastres

Abstract

After the occurrence of cyclones Idai and Kenneth, and despite the level of poverty in which Mozambique finds itself, it has been recovering at an acceptable pace with the help of donors and international partners. Therefore, is Mozambique an example in terms of post-socio-environmental disasters or is it far from it? In the first case, what is this contrast due to? In the context of the occurrence of extreme weather events, solid financial management is crucial for good prevention, good mitigation and a fast recovery. Aware of this, the country has been organizing itself in terms of creating institutions dedicated to emergency management and adopting the corresponding legislation. However, the country has been failing in the financial management component. The objective of this article is to assess to what extent the experience of Mozambique can serve as an example in the region and in the world, taking into account that there are other countries that are also victims of extreme climate events. As for the specific objectives, it is intended to analyze and discuss how the management and recovery after socioenvironmental disasters are conducted by the Mozambican authorities, and whether they are aligned with international practices and standards, so that it can be compared with other countries in the same circumstances. The research methodology was qualitative, being exploratory as to the objectives. As for the technical procedures, bibliographic and documentary research was used, developed based on books, papers, reports, studies, and legislation. The research procedure method was comparative. We conclude that Mozambique may even have experiences to share, but it still has a long way to go to become a reference.

Keywords:
disaster management; post-disaster recovery; prevention

Resumen

Tras los ciclones Idai y Kenneth, y a pesar del nivel de pobreza en que se encuentra, Mozambique se ha ido recuperando a un ritmo aceptable, con la ayuda de donantes y socios internacionales. Así, ¿es Mozambique un ejemplo en materia de recuperación post-desastres socioambientales o está lejos de serlo? En el primer supuesto, ¿a qué se debe ese contraste? En el contexto de los fenómenos climáticos extremos, una buena gestión financiera es crucial para una buena prevención, mitigación y rápida recuperación. Además, consciente de esa realidad, el país se ha ido organizando en términos de creación de instituciones específicas, gestión de emergencias y adopción de la legislación correspondiente. Sin embargo, el país en algunos supuestos se ha equivocado en términos de gestión financiera. El objetivo de este artículo es evaluar hasta que punto la experiencia de Mozambique puede servir de ejemplo para la región y el mundo, teniendo en cuenta que otros países también son víctimas de fenómenos climáticos extremos. En cuanto a los objetivos específicos, se trata de analizar y debatir cómo las autoridades mozambiqueñas llevan a cabo la gestión y recuperación post-desastre socio-ambiental y si ésta se ajusta a las prácticas y estándares internacionales, de forma que pueda compararse con otros países en las mismas circunstancias. La metodología de investigación utilizada fue cualitativa y exploratoria en cuanto a los objetivos. En cuanto a los procedimientos técnicos, se utilizó la investigación bibliográfica y documental, basada en libros, artículos científicos, informes, estudios, textos y legislación. El método de investigación fue comparativo. Se llegó a la conclusión de que Mozambique seguramente puede tener experiencias que compartir, no obstante le queda mucho camino por recorrer para convertirse en una referencia.

Palabras clave
gestión de calamidades; prevención; recuperación post-desastres

Introdução

Situado na costa oriental de África, Moçambique constitui uma espécie de porta de entrada para eventos atmosféricos extremos formados ao largo do Oceano Índico, atravessando, depois, o canal de Moçambique. Por essa razão, o país não só se viu obrigado a adotar políticas e estratégias de prevenção e mitigação de riscos de desastres socioambientais, como passou a focar sua atenção na reconstrução e na recuperação de prejuízos materiais sofridos.

O objetivo desta pesquisa é aferir se a experiência de Moçambique na gestão e na recuperação pós-desastres socioambientais serve de exemplo na região e no mundo, haja vista que existem outros países que vivenciam as mesmas situações.

Quanto aos objetivos específicos, pretende-se analisar e discutir de que maneira a gestão e a recuperação pós-desastres socioambientais são conduzidas pelas autoridades moçambicanas, verificando se estas estão alinhadas às práticas e aos padrões internacionais, de modo que seja possível comparar com outros países, nas mesmas circunstâncias.

Para alcançar esse intuito, faz-se uma breve retrospetiva sobre os principais desastres socioambientais ocorridos no país desde o período da pós-independência e de como foram geridos, bem como as experiências adquiridas com esse processo.

As mudanças climáticas são apontadas como o principal responsável pelo agravamento da ocorrência de desastres socioambientais por todo o planeta. Muito recentemente, Moçambique foi assolado por dois grandes ciclones, Idai e Kenneth, cujos efeitos ainda se fazem sentir, juntando-se à pobreza e ao terrorismo no norte do país. Em janeiro e fevereiro de 2023, o país voltou a ser alvo de mais um ciclone, dessa vez o Freddy. Com esse ciclone, Moçambique demonstrou os primeiros indícios de fragilidade na capacidade de prevenção e mitigação. As causas serão estudadas ao longo deste artigo.

A pesquisa considera que a gestão e a recuperação de desastres socioambientais em Moçambique são realizadas em um contexto de pobreza e que a ocorrência de eventos naturais extremos só vem a agravar o cenário económico precário do país. Além disso, este artigo trará uma pequena abordagem sobre como a recuperação dos desastres socioambientais é feita em Moçambique, discutindo a respeito do que é recuperável e do que não é.

1 Desastre socioambiental

De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um desastre socioambiental ocorre quando um evento físico muito perigoso provoca, direta ou indiretamente, danos à propriedade ou faz um grande número de vítimas, ou ambas. Desastre socioambiental é uma grave perturbação do funcionamento normal de uma comunidade ou sociedade causada por um fenómeno de origem natural ( MOÇAMBIQUE, 2020MOÇAMBIQUE. Presidência da República. Lei n. 10/2020. Lei de Gestão e Redução do Risco de Desastres. Boletim da República: Publicação Oficial da República de Moçambique, I série, n. 162, p. 1.163-1.172, 24 ago. 2020. Imprensa Nacional de Moçambique, E. P., 2020. Disponível em: https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz197255.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz19725...
). Porém, esses fenómenos são atualmente entendidos como tendo sido antes precedidos por uma intervenção humana e prejudicial na natureza.

Esses eventos geralmente ocorrem sem aviso prévio e podem ter impacto significativo na vida das pessoas afetadas. Alguns exemplos comuns de desastres socioambientais incluem terremotos, furacões, enchentes, incêndios florestais, tempestades e secas prolongadas. Esses eventos podem ser causados por uma variedade de fatores naturais, incluindo atividade sísmica, tempestades, mudanças climáticas, erupções vulcânicas, entre outros processos naturais.

A gestão adequada dos desastres socioambientais envolve a preparação para esses eventos, a mitigação de seus efeitos e a resposta rápida e eficaz a partir de sua ocorrência.

A gestão adequada desses eventos pode ajudar a reduzir a perda de vidas, minimizar danos às propriedades e infraestruturas e limitar o impacto ambiental, além de preparar as comunidades para enfrentar esse tipo de problema, fornecendo informações e orientações sobre como se organizar e responder a emergências. Isso inclui a implementação de planos de emergência, treinamento de equipas de resposta de emergência e a construção de infraestruturas resistentes a desastres.

2 Recuperação pós-desastre

A Lei n. 10/2020 define recuperação pós-desastre como um conjunto de ações de médio e longo prazo para restauração sustentável de infraestruturas destruídas ou danificadas, em razão da ocorrência de fenómeno de origem natural ( MOÇAMBIQUE, 2020MOÇAMBIQUE. Presidência da República. Lei n. 10/2020. Lei de Gestão e Redução do Risco de Desastres. Boletim da República: Publicação Oficial da República de Moçambique, I série, n. 162, p. 1.163-1.172, 24 ago. 2020. Imprensa Nacional de Moçambique, E. P., 2020. Disponível em: https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz197255.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz19725...
).

Esse processo envolve a reconstrução das infraestruturas e áreas afetadas, bem como a recuperação dos meios de subsistência, a reabilitação de serviços básicos e a restauração da segurança e do bem-estar das pessoas afetadas.

A recuperação pós-desastre é um processo complexo e, por vezes, demorado, que pode levar anos ou até mesmo décadas para ser concluído, dependendo da magnitude do desastre. Entretanto, constitui uma oportunidade para melhorar a resiliência das comunidades afetadas, por meio da implementação de medidas preventivas e da construção de infraestruturas mais resistentes a desastres.

3 Gestão de calamidades ou desastres socioambientais

A Lei n. 10/2020 considera que a gestão de calamidades ou desastres socioambientais envolve a organização, a planificação e o manejo de recursos e responsabilidades para lidar com uma emergência ( MOÇAMBIQUE, 2020MOÇAMBIQUE. Presidência da República. Lei n. 10/2020. Lei de Gestão e Redução do Risco de Desastres. Boletim da República: Publicação Oficial da República de Moçambique, I série, n. 162, p. 1.163-1.172, 24 ago. 2020. Imprensa Nacional de Moçambique, E. P., 2020. Disponível em: https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz197255.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://faolex.fao.org/docs/pdf/moz19725...
).

O gerenciamento de calamidades ou desastres socioambientais envolve várias etapas importantes para minimizar os impactos negativos sobre a população e os bens materiais, com destaque para prevenção, preparação, resposta e recuperação.

3.1 Prevenção

Conjunto de medidas padronizadas que visam proteger pessoas e bens em caso de ocorrência de um evento extremo. A prevenção é a melhor maneira de gerir as calamidades ou os desastres socioambientais por meio de medidas de segurança e prevenção antes que ocorra o desastre, incluindo a identificação de áreas de risco e a implementação de medidas para reduzir a vulnerabilidade, como a construção de barreiras de contenção e a criação de rotas de evacuação, bem como sistemas de alerta precoce, treinamento e educação para a população.

3.2 Preparação

A preparação é outra etapa importante na gestão de calamidades ou desastres socioambientais. Envolve a criação de planos de contingência e a realização de exercícios de simulação para testar a eficácia desses planos. As autoridades devem estar preparadas para coordenar as operações de socorro e mobilizar os recursos necessários para a resposta.

3.3 Resposta

É importante que as autoridades atuem rapidamente a fim de proteger a população e minimizar os danos, garantindo a evacuação de áreas de risco, o fornecimento de abrigo e a assistência médica, bem como a distribuição de alimentos e água potável e a coordenação das operações de busca e salvamento.

3.4 Recuperação

A fase de recuperação é a etapa final na gestão de calamidades ou desastres socioambientais e envolve a restauração da infraestrutura danificada, a assistência às pessoas afetadas e a implementação de medidas para evitar futuros desastres.

A gestão de calamidades ou desastres socioambientais requer, portanto, uma abordagem multidisciplinar e coordenada, o que envolve a participação de todas as partes interessadas, possibilitando a construção de experiências, sendo entendida como conhecimento ou aprendizado obtido por meio da prática ou vivência (VIVÊNCIA, [-@]).

4 Principais desastres socioambientais da pós-independência em Moçambique

Em Moçambique, a época chuvosa ocorre entre novembro e março, e tem sido nesse período meteorológico que as intensas chuvas se intercalam com a ocorrência de ciclones que se formam no Oceano Índico e atingem diferentes pontos da costa moçambicana.

O efeito combinado de chuvas, ventos fortes e inundações tem criado situações de verdadeiros desastres socioambientais de diferentes dimensões e intensidades.

Nos últimos 50 anos, a bacia hidrográfica do rio Limpopo, em Moçambique, tem sido assolada por grandes cheias. Em 1977, no baixo Limpopo, precisamente nas regiões de Chókwè e Xai-Xai, ocorreu uma cheia devastadora que causou inúmeras mortes e enormes danos materiais. Outras cheias ocorreram, respectivamente, em 1981, 1988 e 1996, ainda que em menores dimensões ( MANANE; VAZ; VIVEROS, 2019MANANE, J. VAZ, Á. C.; VIVEROS, C. Avaliação do risco de cheias: uma aplicação à planície do rio Limpopo em Moçambique. In: SILUSBA, 14, 16 a 20 set. 2019, Praia, Cabo Verde. Anais […]. Disponível em: https://www.aprh.pt/14silusba/docs/14SILUSBA_88.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.aprh.pt/14silusba/docs/14SIL...
).

Contudo, o principal desastre socioambiental de que Moçambique tem memória remonta às cheias de 2000. Com efeito, a partir de novembro de 1999 até o fim de janeiro do ano seguinte, fortes chuvas, que vinham caindo na vizinha África Sul, encheram os leitos dos rios Incomáti, Umbelúzi e Limpopo, os quais rapidamente inundaram vastas áreas das províncias do sul de Moçambique. Em plena época chuvosa, já no fim de fevereiro de 2000, o ciclone Elline, formado no oceano Índico, abateu-se sobre a costa moçambicana, precisamente na mesma zona onde já se registavam inundações, alagando vastas áreas rurais, vilas e algumas zonas urbanas, naquilo que constituiu, até então, o pior desastre socioambiental em um século no país.

Como consequência das cheias de 2000, houve 500.000 pessoas deslocadas, graves danos materiais em habitações, infraestruturas agrícolas, edifícios públicos, escolas, hospitais, sistemas de abastecimento de água e energia elétrica, rede rodoviária, linhas férreas e telecomunicações ( MILLER, 2002MILLER, J. Moçambique – cheias 1999-2000. Actividade de doação para o reassentamento da população após as cheias em Moçambique. Usaid, jul. 2002. Disponível em: https://sarpn.org/documents/d0000811/P907-Mozambique_floods_1999-2000_USAID_072002_P.pdf. Acesso em: 18 jul. 2022.
https://sarpn.org/documents/d0000811/P90...
).

A partir das cheias de 2000, o então Instituto Nacional de Gestão de Calamidades Naturais (INGC) adotou a terminologia “cheias recorrentes” para designar a ocorrência cíclica desses fenómenos combinados com depressões tropicais. Assim, o INGC assinala que as três maiores cheias registadas em Moçambique ocorreram no século XXI : as primeiras, no sul do país, no biênio 2000/2001; depois, no centro do país, em 2007/2008, e por último, novamente no sul do país, no ano de 2013 ( GFDRR, 2014GFDRR. Moçambique: a recuperação de cheias recorrentes 2000-2013. Estudo do caso para o quadro de recuperação de desastres. Série de Estudos de Caso Nacionais. Guião para o quadro de recuperação de desastres, ago. 2014. Disponível em: https://www.gfdrr.org/sites/default/files/publication/report-mocambique-recuperacao-cheias-recorrentes-2014_0.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.gfdrr.org/sites/default/file...
). As cheias de 2013 tiveram muita semelhança com as de 2000, embora com impacto destrutivo relativamente menor.

Seguiram-se um pequeno interregno e uma aparente acalmia. A partir de 2019, houve um notável recrudescimento de formação de depressões tropicais (ciclones) que atingiram a costa moçambicana.

A temporada 2018/2019 testemunhou um recorde de ciclones formados no Oceano Índico, alguns dos quais atingiram a costa moçambicana 1 1 A temporada de ciclones no sudoeste do oceano Índico de 2018/2019 foi a mais cara e ativa já registada desde o início dos registos oficiais, em 1967. Além disso, foi a temporada de ciclones mais mortal registada no sudoeste do oceano Índico, ultrapassando a temporada de 1891-1892, na qual o ciclone de 1892 nas Ilhas Maurícias devastou todo o local (TEMPORADA…, 2023). . Por essa razão, o INGD, que substituiu o INGC depois da ocorrência dos fatídicos ciclones Idai e Kenneth, em 2019, passou a designar de época ciclónica o período meteorológico que vai de novembro a março/abril.

O avolumar dos desastres socioambientais em Moçambique permitiu a reestruturação e a solidificação de sua estrutura de gestão de calamidades, incluindo uma legislação correspondente, em crescendo.

O país passou a receber muita ajuda material e financeira para fazer face à assistência humanitária, bem como para a recuperação pós-desastres socioambientais. Como resultado, começaram a surgir atos de corrupção, má gestão e desvio de fundos.

Por exemplo, muito recentemente o Banco Mundial, um dos principais doadores de Moçambique para área de assistência humanitária, teve mesmo de dar um ultimato ao INGD para reposição de cerca de 32,5 milhões 2 2 O equivalente a 507.812,50 USD. de meticais que lhe haviam sido alocados, cujo uso não foi devidamente justificado. Consequentemente, o Banco Mundial suspendeu a ajuda financeira ao INGD. Nas últimas cheias, ocorridas em janeiro de 2023 em Boane-Maputo, o INGD mostrou fragilidades na capacidade de resposta para socorrer as vítimas.

Em fevereiro e março de 2023, o país foi assolado pelo ciclone Freddy, que teve um recorde de duração de mais de um mês 3 3 Freddy é um ciclone tropical mais duradouro, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial. O ciclone desenvolveu-se na costa norte da Austrália, no início de fevereiro, e depois viajou milhares de quilômetros pelo sul do oceano Índico, afetando Maurício e La Réunion, antes de chegar a Madagáscar, duas semanas depois, e em seguida a Moçambique, em 24 de fevereiro. Ele atingiu o centro de Moçambique pela segunda vez no domingo, 12 de março, arrancando telhados de edifícios e causando inundações generalizadas ao redor do porto de Quelimane, antes de se mover para o interior em direção ao Malawi com chuvas torrenciais que causaram deslizamentos de terra ( CARDOSO, 2023). em duas investidas (províncias de Inhambane e Zambézia), a partir do canal de Moçambique.

Depois da ocorrência do ciclone Freddy, veio ao de cima a incapacidade das autoridades nacionais em termos de prevenção, mitigação e recuperação dos prejuízos causados pela intempérie. Fica claro que essa incapacidade adveio do facto de os parceiros e doadores internacionais não terem comparticipado com a ajuda habitual em meios humanos, materiais e, sobretudo, financeiros.

5 Os ciclones Idai e Kenneth: uma espada de Dâmocles?

Na noite entre os dias 14 e 15 de março de 2019, a região central de Moçambique, em particular a cidade da Beira e as regiões vizinhas, foi devastada por um ciclone baptizado de Idai. De acordo com Ndapassoa ( 2020NDAPASSOA, A. M.; MATOS, P. A. O ciclone Idai e os desafios da ajuda humanitária em Moçambique. Revista Veredas de Direito, Belo Horizonte, v. 17, n. 38, p. 167-188, 2020. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1819. Acesso em: 19 jul. 2022.
http://revista.domhelder.edu.br/index.ph...
), o ciclone foi de intensidade 4 na escala de Saffir-Simpson, com ventos de mais de 240 km/h, acompanhados por chuvas intensas (200 mm/24h).

O balanço da passagem ciclónica resultou em mais de 600 vítimas mortais, 1.600 feridos e 1,5 milhão de pessoas afetadas, das quais 750 mil necessitaram de assistência humanitária urgente. Os vultosos prejuízos materiais provocaram um estado de calamidade natural e humanitária ( NDAPASSOA, 2020NDAPASSOA, A. M.; MATOS, P. A. O ciclone Idai e os desafios da ajuda humanitária em Moçambique. Revista Veredas de Direito, Belo Horizonte, v. 17, n. 38, p. 167-188, 2020. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1819. Acesso em: 19 jul. 2022.
http://revista.domhelder.edu.br/index.ph...
)

Cerca de um mês depois, em 25 de abril de 2019, o ciclone Kenneth abateu-se sobre a costa moçambicana, mais concretamente na zona norte, entre os distritos de Macomia e Mocímboa da Praia, na província de Cabo Delgado.

Formado no Oceano Índico, depois de Idai, o ciclone Kenneth foi um dos mais devastadores, com ventos a rondar os 220 km/h e chuvas torrenciais que afetaram não apenas a região norte de Moçambique, mas também os vizinhos Madagáscar, Seychelles, Comores, Tanzânia e Malawi. Até então, foi o pior ciclone que se abateu sobre o continente africano ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

O rescaldo da passagem do ciclone Kenneth pela região norte de Moçambique saldou-se em mais de 199.836 pessoas afetadas, entre mortos e feridos, deslocados e necessitados de assistência humanitária urgente. O prejuízo geral causado pela passagem do referido ciclone foi estimado em cerca US$ 188 milhões ( NAÇÕES…, 2019NAÇÕES UNIDAS MOÇAMBIQUE. Office for the Coordination of Humanitarian Affairs: Urgent Humanitarian Priorities – OCHA, 2019. Disponível em: https://reliefweb.int/report/mozambique/mozambique-urgent-humanitarian-prioritie. Acesso em: 19 jul. 2022.
https://reliefweb.int/report/mozambique/...
).

Outros ciclones seguiram-se com uma frequência assustadora: em dezembro de 2020, o ciclone Chalane e, em janeiro de 2021, o ciclone Eloise fustigaram a região central de Moçambique com ventos fortes e chuvas torrenciais. Em março de 2021, o ciclone Guambe, embora de relativa fraca intensidade, atingiu a costa moçambicana. Já em março de 2022, o ciclone Gombe atingiu a zona centro/norte de Moçambique, precisamente nas províncias de Nampula, Zambézia e Tete, classificado com a categoria 3 na escala de Saffir-Simpson, com ventos de 150-185 km/h e chuvas intensas (200 mm/24h), tendo causado cheias e uma situação de calamidade natural ( NAÇÕES…, 2022NAÇÕES UNIDAS MOÇAMBIQUE. Ciclone Tropical Gombe: atualização n. 1. Office for the Coordination of Humanitarian Affairs – OCHA, 12 mar. 2022. Disponível em: https://mozambique.un.org/sites/default/files/2022-03/20220312_Flash_Update_%231_DRAFT_Gombe.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://mozambique.un.org/sites/default/...
).

Moçambique tem uma costa de quase 2.800 km, aproximadamente 20,5 milhões de pessoas, ou seja, mais de 60% da população vive na zona costeira. Em muitos lugares, isso consiste em terras baixas com praias arenosas, estuários e mangais. A sobrevivência e a vida quotidiana nessas áreas dependem, em grande medida, dos recursos locais, como a agricultura e a pesca, alimentadas pela chuva, ao passo que a infraestrutura é fraca ou mesmo inexistente. Essas condições significam uma alta vulnerabilidade das pessoas aos ciclones tropicais e ao aumento do nível do mar (INGC, ( 2009INGC. Estudo sobre o impacto das alterações climáticas no risco de calamidades em Moçambique. Relatório Síntese. Segunda versão. INGC, maio 2009. Disponível em: https://biblioteca.biofund.org.mz/wp-content/uploads/2019/01/1548337662-INGC_Segunda_Versao_Alteracoes_Climaticas_Low.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://biblioteca.biofund.org.mz/wp-con...
).

Em virtude de sua localização geográfica e das mudanças climáticas, Moçambique passou a constituir uma espécie de porta de entrada do continente para esses fenómenos naturais, quando se direcionam à região austral do continente ( NDAPASSOA, 2020NDAPASSOA, A. M.; MATOS, P. A. O ciclone Idai e os desafios da ajuda humanitária em Moçambique. Revista Veredas de Direito, Belo Horizonte, v. 17, n. 38, p. 167-188, 2020. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1819. Acesso em: 19 jul. 2022.
http://revista.domhelder.edu.br/index.ph...
).

Moçambique não tem apenas os desastres socioambientais, derivados de mudanças climáticas, como seu infortúnio. Nos últimos tempos, o país anunciou a descoberta de enormes jazigos de gás natural e petróleo, cuja exploração poderá tirar o país da pobreza. No entanto, em razão das mudanças climáticas, as Nações Unidas têm-se desdobrado em concertações para reduzir, senão mesmo abolir, o uso de combustíveis fósseis. Assim, as mudanças climáticas e a descoberta de novos recursos naturais fazem de Moçambique um país de contrastes: não será uma espada de Dâmocles?

6 Gestão de calamidades naturais em contexto de pobreza

Moçambique tornou-se independente de Portugal em 1975, e logo passou por uma guerra civil que durou 16 anos. Durante aquele período, o país conheceu seus piores indicadores económicos, que o deixaram em uma situação de quase falência económica.

Atualmente, Moçambique tem uma população de 32.163.045 habitantes e uma densidade populacional moderada de 40 pessoas por km 2. Ocupa a posição 129 pelo PIB nominal. A dívida nacional, em 2020, foi de US$ 16.697 milhões (119,02% de relação dívida/PIB), e a dívida pública per capita é de US$ 534 por habitante. Em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o país acumulou 0,446 pontos em 2021, ocupando a 185ª posição na tabela de 189 países ( LISTA…, 2023LISTA de países por Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_p...
). Moçambique está na 133ª colocação do ranking Doing Business ( COUNTRY…, 2023COUNTRY Ranking by Ease of Doing Business. Take-Profit.ORG, Your Forex Market Guide. Disponível em: https://archive.doingbusiness.org/en/rankings. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://archive.doingbusiness.org/en/ran...
).

Segundo Castel-Branco ( 2010CASTEL-BRANCO, N. Introdução. In: BRITO, L. et al. Pobreza, desigualdade e vulnerabilidade em Moçambique. Maputo: IESE, Maputo, 2010, p. 11-18. Disponível em: https://www.iese.ac.mz/lib/publication/livros/pobreza/IESE_Pobreza.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.iese.ac.mz/lib/publication/l...
, p. 14):

Em economia aberta, os termos de troca internacionais e as transferências internacionais entre economias, empresas e cidadãos afetam as dinâmicas da pobreza tanto ou mais do que a desigualdade interna na distribuição do rendimento. Aliás, Moçambique é um bom exemplo deste problema, pois os elevados índices de ajuda externa, a entrada das transferências privadas de cidadãos não residentes (US$ 82 milhões em 2008) e a saída dos rendimentos dos grandes projetos minerais e energéticos (US$ 680 milhões em 2008) devem jogar um papel fundamental na explicação do crescimento económico, da diferenciação e desigualdade, da distribuição e dos níveis de consumo .

A abordagem do problema da pobreza de Moçambique torna-se bem mais difícil e complexa quando se acrescentam os problemas da dívida pública insustentável, do índice de corrupção galopante e, ainda, os conflitos gerados pela exploração dos recursos naturais recém-descobertos.

De algumas décadas para cá, o discurso político tem proclamado a erradicação da pobreza absoluta como a principal meta a ser alcançada. Para o efeito, nos vários ciclos governativos, têm-se delineado planos de desenvolvimentos de médio e longo prazo, isso em nível interno.

No nível externo, o país, como membro das Comunidades de Desenvolvimento Regional (União Africana) e sub-regional (SADC), também participa nos planos de desenvolvimento em parceria com outros países-membros. Ainda no nível internacional, Moçambique esteve envolvido nos chamados objetivos do milénio, os quais, como se sabe, não foram alcançados. Atualmente, fala-se em desenvolvimento sustentável e traçam-se novas metas.

Como se pode constatar, são tantos os esforços para o combate e a redução da pobreza em Moçambique, daí que a eclosão de eventos climáticos extremos constitui um sério revés. Nos últimos 20 anos, as elevadas frequência, alternância e intensidade de eventos climáticos extremos passou a constituir uma ameaça crescente ao desenvolvimento nacional (CONSELHO…, ( 2017CONSELHO de Ministros. Plano Director para a redução do risco de desastres 2017-2030. Aprovado pela 36ª sessão ordinária do Conselho de Ministros, 17 out. 2017. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/PDRRD_BROCHURA_FINAL_IMpressao.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
).

Contudo, apesar de todas as contrariedades, a realidade demonstra que o país tem conseguido gerir os prejuízos resultantes de eventos climatéricos. A que se deve tal contraste? Em primeiro lugar, deve-se analisar como o país tem se organizado para enfrentar e gerir a ocorrência cíclica de eventos climáticos extremos e quais mecanismos têm sido acionados para sua mitigação e gestão.

Com o objetivo de dar uma resposta rápida e eficiente a situações de calamidades naturais, o Decreto Presidencial n. 44/80 determinou a criação do Departamento de Prevenção e Combate às Calamidades Naturais (DPCCN), integrando-o à então Comissão Nacional do Plano ( MOÇAMBIQUE, 1999MOÇAMBIQUE. Presidência da República. Decreto Presidencial n. 38/99. Maputo, 10 jun. 1999. Disponível em: https://www.informea.org/sites/default/files/legislation/moz21993.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.informea.org/sites/default/f...
).

Em 1999, por meio do Decreto Presidencial n. 4/99, extinguiu-se o DPCCN e, em seu lugar, o Decreto Presidencial n. 38/99 criou o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), uma “instituição pública, dotada de personalidade jurídica autonomia administrativa e financeira, tendo como objetivo a direção e a coordenação da gestão de calamidades nomeadamente, em ações de prevenção e socorro às vítimas em áreas de risco ou afetadas pelas calamidades” ( MOÇAMBIQUE, 1999MOÇAMBIQUE. Presidência da República. Decreto Presidencial n. 38/99. Maputo, 10 jun. 1999. Disponível em: https://www.informea.org/sites/default/files/legislation/moz21993.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.informea.org/sites/default/f...
), p. 7). O INGC passou a se subordinar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação até 2005, ano em que foi transferido para o Ministério da Administração Estatal.

A criação do INGC veio responder a essa preocupação, revestindo-se de uma vertente antropocêntrica, isto é, colocando a proteção da vida das pessoas e seus haveres no centro de suas atenções. A vocação do INGC não é apenas salvar vidas e bens, mas, também, precaver-se de novos desastres socioambientais. Esse desiderato passa, naturalmente, por um estudo profundo das condições geográficas e naturais do país, de modo a planificar o processo de gestão de futuros eventuais desastres. A partir do ano 2000, o país passou a adotar uma abordagem proactiva, no sentido de reduzir a vulnerabilidade das comunidades locais, da economia e das infraestruturas ( CONSELHO…, 2017CONSELHO de Ministros. Plano Director para a redução do risco de desastres 2017-2030. Aprovado pela 36ª sessão ordinária do Conselho de Ministros, 17 out. 2017. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/PDRRD_BROCHURA_FINAL_IMpressao.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
).

Foi nesse contexto que se realizaram estudos exaustivos em algumas regiões do país propensas à ocorrência de eventos climáticos extremos, em particular as cheias. Assim, por exemplo, fizeram-se análises sobre a gestão de riscos naturais na região do baixo Limpopo, na província de Gaza, tomando como base o facto de que a educação das populações para a redução da vulnerabilidade parte do conhecimento da realidade do local.

O estudo em referência serviu para a formação de comités de gestão de calamidades, cada qual composto por 18 pessoas. Esses comités buscaram contribuir para a redução da vulnerabilidade das populações e a diminuição das consequências negativas das inundações, a partir das ações de prevenção e mitigação ( DGEDGE, CHEMANA, 2018DGEDGE, G.; CHEMANA, C. Os comités locais de gestão do risco de calamidades e a educação sobre inundações no baixo Limpopo, Moçambique. Territorium, Coimbra, v. 2, n. 25, p. 123-132, 2018. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/territorium/article/view/1647-7723_25-2_10/4848. HTTPS://DOI.ORG/10.14195/1647-7723_25-2_10. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://impactum-journals.uc.pt/territor...
).

Um estudo semelhante sobre a resposta às mudanças climáticas em Moçambique, centrado nas bacias dos rios Zambeze, Púngue e Limpopo, foi conduzido pela consultora Georg Petersen e pelo INGD, abordando a vertente água. Nessa ótica, procedeu-se ao mapeamento e à avaliação do risco de cheias, bem como à proteção contra as cheias e às medidas de mitigação ( PERETSEN, 2012PERETSEN, G. Respondendo às mudanças climáticas em Moçambique. Tema 5, Água. Maputo: INGC, 2012. Disponível em: https://hydro-at.poyry.com/zambezi/download/Theme%205%20Water%20PT.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://hydro-at.poyry.com/zambezi/downl...
).

No mesmo diapasão, e pela mesma consultora, foram conduzidos outros estudos abordando vertentes como a água, a seca e as cargas pluviométricas em Moçambique. Para o caso das cheias, o estudo produziu recomendações que consistem na adoção do conceito “ living with floods”, ou seja:

  1. a)

    construção de pequenos diques, aterros elevados para habitações e proteção das comunidades;

  2. b)

    conservação das bacias a montante;

  3. c)

    desenvolvimento de políticas de exploração;

  4. d)

    edificação de descarregadores de superfície e pequenas barragens para a retenção de cheias;

  5. e)

    adaptação da operação de grandes barragens;

  6. f)

    desenvolvimento de sistemas de previsão e alerta;

  7. g)

    preparação das populações ( PERETSEN, 2012PERETSEN, G. Respondendo às mudanças climáticas em Moçambique. Tema 5, Água. Maputo: INGC, 2012. Disponível em: https://hydro-at.poyry.com/zambezi/download/Theme%205%20Water%20PT.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://hydro-at.poyry.com/zambezi/downl...
    ).

A debilidade e a vulnerabilidade de Moçambique começaram a tornar-se evidentes à medida que a exposição aos riscos das mudanças climáticas aumentava, uma vez que tudo dependia da capacidade adaptativa do país, que viu aumentar exponencialmente as perdas económicas devidas aos desastres climáticos ( VAN LOGCHEM; QUEFACE, 2012VAN LOGCHEM, B.; QUEFACE, A. J (eds.). Respondendo às mudanças climáticas em Moçambique: relatório síntese. Maputo: INGC, 2012. ). Foi nesse contexto que o governo moçambicano, por meio do INGC e seus parceiros, realizou uma pesquisa de âmbito nacional intitulada Respondig to climate change in Mozambique Phases I e II.

No fim da primeira fase, que ocorreu entre 2008 e 2009, elaborou-se um relatório circunstanciado – SREX – sobre mudanças climáticas, o que ampliou sua definição e colocou esses eventos extremos no topo das preocupações ( VAN LOGCHEM; QUEFACE 2012VAN LOGCHEM, B.; QUEFACE, A. J (eds.). Respondendo às mudanças climáticas em Moçambique: relatório síntese. Maputo: INGC, 2012. ).

Esse estudo, que foi o primeiro a aplicar modelos de mudanças climáticas em Moçambique, fornece uma visão significativa sobre como as mudanças climáticas poderiam impactar os planos nacionais de investimentos e de redução da pobreza nos próximos cinco ou dez anos, ameaçando grandes porções do litoral, onde o desenvolvimento e o assentamento populacional estão localizados.

O estudo mostrou, ainda, que em Moçambique as mudanças climáticas e o risco de desastres socioambientais estão correlacionados, já que a maioria dos impactos das mudanças climáticas é sentida na forma de agravamento do risco, da propagação, da intensidade e da frequência da ocorrência dos desastres socioambientais.

A segunda fase da pesquisa aconteceu de 2009 a 2012 e concentrou-se na identificação de soluções científicas para os potenciais impactos das mudanças climáticas. Para o efeito, foram adoptados três pilares:

  1. a)

    O pilar estratégico analisou como os moçambicanos precisam se preparar para os impactos das mudanças climáticas até 2030, a partir de uma perspectiva de risco de desastres e quais acções e financiamentos serão necessário para alcançar esse objectivo.

  2. b)

    O pilar de capacitação identificou os meios mais eficazes de criar habilidades e bases de informação necessárias para pesquisa, educação e formulação de políticas científicas.

  3. c)

    O pilar de implementação, por sua vez, identificou medidas de adaptação e custos para áreas específicas de alto risco de desastres, áreas de alto impacto, organizadas em torno de cinco temas: proteção costeira; alerta antecipada; água; agricultura; e cidades e sector privado.

Durante a segunda fase da pesquisa, realizaram-se estudos detalhados em 11 cidades costeiras consideradas de alto risco de vulnerabilidade, bem como ao longo de todo o perímetro da costa moçambicana ( VAN LOGCHEM; QUEFACE 2012VAN LOGCHEM, B.; QUEFACE, A. J (eds.). Respondendo às mudanças climáticas em Moçambique: relatório síntese. Maputo: INGC, 2012. ).

Como resultado desse exercício, destacam-se os seguintes aspetos:

  1. 1.

    Determinaram-se medidas prioritárias de adaptação e custeio para as 11 cidades costeiras consideradas de alto risco. Estas vão desde as opções de gestão costeira, passando pela definição de áreas seguras, até às medidas de engenharia.

  2. 2.

    Calculou-se uma lógica económica de adaptação para as cidades de Maputo, Beira e Quelimane (incluindo perda líquida evitada até 2030, caso medidas de adaptação forem implementadas, despesa de capital necessária nos próximos cinco anos para implementar as carteiras de adaptação identificadas e as propostas de seguros para transferência de risco), culminando em uma estratégia de adaptação da cidade para o período 2010-2015.

  3. 3.

    Elaborou-se e compilou-se um plano de negócios completo, com custeio e estruturas legais, para o Centro de Conhecimento sobre Mudanças Climáticas, contendo quatro objetivos principais: pesquisa, assessoria, conscientização/divulgação e treinamento.

  4. 4.

    Criou-se um sistema de apoio à decisão hídrica de alerta antecipado, desenvolvido para toda a bacia de Zambeze, cobrindo 1,4 milhão de km² (quase o dobro do tamanho de Moçambique), para simular os impactos das mudanças induzidas pelo clima e novos desenvolvimentos de recursos hídricos (como projetos de irrigação e barragens) na infraestrutura a jusante e na disponibilidade de água. Esse sistema é expansível para outras bacias hidrográficas.

  5. 5.

    Realizou-se um mapeamento antecipado das mudanças nas áreas de inundação e risco resultantes das mudanças climáticas para os rios Zambeze, Limpopo e Púnguè.

  6. 6.

    Realizaram-se análises de inundações urbanas e propuseram-se soluções detalhadas, com custeio, para um local de alto risco em Maputo. Isso é expansível para outros locais de alto risco.

Contudo, ainda não está claro como tem se dado o uso dos resultados desses estudos para os sistemas de gestão e planificação, sobretudo, por exemplo, no que tange ao uso da terra e por que motivo ainda há pessoas em áreas consideradas de risco de inundação.

Outro estudo, mais abrangente, consistiu na análise de riscos climáticos em todo o território moçambicano, baseando-se nos registos de pluviosidade com dados de 36 anos (Chirps), de 1981 a 2017; registo de temperatura de 1981 a 2015; e análise de dados de satélite do índice de vegetação, de 1981 a 2015 ( MOÇAMBIQUE, 2017MOÇAMBIQUE. Análise de riscos climáticos – VAM – Food Security Analysis, WFP, 2017. Disponível em: https://docs.wfp.org/api/documents/WFP-0000129989/download/. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://docs.wfp.org/api/documents/WFP-0...
).

O estudo tinha os seguintes objetivos:

  1. a)

    Contribuir para a produção de evidências e compreender o impacto de mudanças climáticas na segurança alimentar.

  2. b)

    Auxiliar na capacitação técnica e na partilha de conhecimento.

  3. c)

    Informar os decisores e encorajar investimentos.

  4. d)

    Melhorar políticas, planos e investimentos.

Com base no estudo em referência, foi possível proceder à:

  1. a)

    identificação e o desenho de modelos de adaptação às alterações climáticas;

  2. b)

    conscientização sobre mudança climática/aumento de conhecimento, microsseguro, opções de diversificação de formas de vida;

  3. c)

    monitoria da segurança alimentar e dos sistemas de aviso prévio, por meio da identificação de formas de vida e áreas que são particularmente vulneráveis a riscos climáticos específicos;

  4. d)

    preparação e resposta de emergência a eventos relacionado ao El Niño, identificando populações mais vulneráveis aos impactos desse fenômeno, a fim de orientar a definição de prioridades nas potenciais respostas a emergências;

  5. e)

    elaboração de mapa de formas de vida por província de Moçambique;

  6. f)

    classificação de resiliência de diferentes formas de vida aos riscos climáticos;

  7. g)

    elaboração de uma estratégia nacional com metas a alcançar até 2030 para mitigar os crescentes riscos de desastres das mudanças climáticas; e

  8. h)

    avaliação de impactos de futuros riscos climáticos sobre formas de vida e segurança alimentar ( CONSELHO…, 2017CONSELHO de Ministros. Plano Director para a redução do risco de desastres 2017-2030. Aprovado pela 36ª sessão ordinária do Conselho de Ministros, 17 out. 2017. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/PDRRD_BROCHURA_FINAL_IMpressao.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
    ).

A gestão de desastres socioambientais requer um sistema integrado de mecanismos e instituições robustas que funcionem com base em normas e regras bem definidas. No caso em análise, uma legislação, em crescendo, foi sendo aprovada à medida que os relatórios de estudos e pesquisas apontassem como necessária. Essa evolução da legislação destaca-se a seguir:

  1. a)

    Lei n. 16/91 (Lei de Águas) e o respetivo regulamento (Decreto n. 29/2017, de 14 de julho), que estabelece os recursos hídricos que pertencem ao domínio público, os princípios de gestão de águas e a necessidade de inventariação de todos os recursos hídricos existentes no país para sua correta gestão.

  2. b)

    Lei n. 19/97 (Lei de Terras) e o respetivo regulamento (Decreto n. 66/98, de 8 de dezembro), como um instrumento regulador do direito de uso e aproveitamento de terra, de modo que esse importante recurso seja valorizado e contribua para o desenvolvimento da economia nacional.

  3. c)

    Lei n. 20/97 (Lei do Ambiente) e o respetivo regulamento (Decreto n. 54/2015, de 31 de dezembro), que estabelece as bases legais para utilização e gestão corretas do ambiente e seus componentes, com vistas à materialização de um sistema de desenvolvimento sustentável no país.

  4. d)

    Lei n. 02/2002, que cria o sistema de administração financeira do Estado, e o respetivo regulamento (Decreto n. 17/2002, de 27 de junho), que estabelece e harmoniza regras e procedimentos de programação, gestão e controle do erário público para seu uso eficaz e eficiente.

  5. e)

    Lei n. 8/2003 (lei dos organismos locais do Estado) e o respetivo regulamento (Decreto n. 11/2005, de 10 de junho), que estabelece a organização, as competências e o funcionamento de províncias, distritos, postos administrativos e localidades como órgãos do Estado desconcentrados, seguindo uma abordagem territorial. A lei designa o nível distrital como a principal unidade territorial para a organização e o funcionamento da administração local e a base para o planeamento dos desenvolvimentos económico, social e cultural.

  6. f)

    Lei n. 19/2007 (lei do ordenamento do território) e o respetivo regulamento (Decreto n. 23/2008, de 1º de julho), que regula as relações entre os diversos níveis da Administração Pública, das relações desta com os demais sujeitos públicos e privados, representantes dos diferentes interesses económicos, sociais e culturais, incluindo as comunidades locais.

  7. g)

    Lei n. 7/2008, que fixa o regime jurídico da promoção e proteção dos direitos da criança em Moçambique.

  8. h)

    Lei n. 15/2014 (lei da gestão de calamidades) e o respetivo regulamento (Decreto n. 07/2016 de 1º de março), que estabelece o regime jurídico da gestão de calamidades, compreendendo a prevenção, a mitigação dos efeitos destruidores das calamidades, o desenvolvimento de ações de socorro e assistência, bem como das ações de reconstrução e recuperação das áreas afetadas.

  9. i)

    Lei n. 10/2020 (lei da gestão e redução do risco de desastres e eventos extremos) e o respetivo regulamento (Decreto n. 76/2020 de 1º de setembro), que estabelece o regime jurídico de gestão e redução do risco de desastres, compreendendo a redução do risco, a gestão de desastres, a recuperação sustentável para a construção da resiliência humana, infraestrutural e dos ecossistemas, bem como a adaptação às mudanças climáticas.

  10. j)

    Decreto Presidencial n. 01/2015, que cria o Ministério do Género, Criança e Acção Social.

  11. k)

    Decreto n. 45/2006, que aprova o regulamento para a prevenção da poluição e a proteção do ambiente marinho e costeiro.

  12. l)

    Decreto n. 60/2006, que aprova o regulamento do solo urbano aplicável às cidades e às vilas legalmente existentes e nos assentamentos humanos ou aglomerados populacionais organizados por um plano de urbanização.

  13. m)

    Decreto n. 78/2019, que aprova o regulamento sobre os diques de proteção contra as cheias e inundações.

  14. n)

    Resolução n. 12/98, sobre a intervenção organizada e integrada que garante a assistência social e outro tipo de apoio social a indivíduos, grupos sociais e famílias em situação de pobreza e exclusão social.

A aprovação dessa legislação, por si só, não significa ainda uma mais-valia, pois vozes mais críticas questionam como é que o país assegura a implementação de todos esses instrumentos legais e qual é o resultado de sua aplicação na gestão de calamidades. Questiona-se, ainda, o fato de, mesmo diante de todos esses instrumentos legais, qual é a razão de o Estado não ter incluído o componente financeiro nesses pacotes, uma vez que é sabido que a exploração de recursos naturais, como gás e carvão, já geram receitas ao país.

A falta de respostas a essas e outras questões similares reflete fragilidades na aplicação de políticas socioeconómicas e de uma boa governação.

7 Recuperação pós-desastres socioambientais em contexto de pobreza

Conforme já referido, uma das maiores preocupações do governo moçambicano foi garantir que a ocorrência de eventos climáticos extremos não pusesse em causa os planos de desenvolvimento nacional previamente traçados.

Foi assim que, em 2006, o Governo aprovou o Plano Diretor de Prevenção e Mitigação das Calamidades Naturais (PDPMCN) para um período de 10 anos (2006-2016), e, posteriormente, reajustado esse prazo por mais 13 anos (2017-2030), a fim de alinhá-lo aos principais instrumentos que orientam as ações que concorrem para a redução do risco de desastres em escalas global e local, nomeadamente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o Quadro de Sendai 4 4 O Quadro de Sendai para Redução de Risco de Desastres 2015-2030 foi adotado na Terceira Conferência Mundial das Nações Unidas em Sendai, Japão, em 18 de março de 2015. É o resultado de consultas às partes interessadas iniciadas em março de 2012 e de negociações intergovernamentais decorridas de julho de 2014 a março de 2015, apoiadas pelo Escritório das Nações Unidas para Redução de Riscos de Desastres, a pedido da Assembleia Geral da ONU. O Quadro de Sendai é o instrumento sucessor do Quadro de Acção Hyogo (HFA) 2005-2015: Construindo a resiliência das nações e comunidades a desastres. para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030 ( CONSELHO, 2017CONSELHO de Ministros. Plano Director para a redução do risco de desastres 2017-2030. Aprovado pela 36ª sessão ordinária do Conselho de Ministros, 17 out. 2017. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/PDRRD_BROCHURA_FINAL_IMpressao.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
).

A visão do Plano Diretor para a Redução do Risco de Desastres 2017-2030 é de privilegiar “a população, os seus meios de vida e saúde e as infraestruturas públicas e privadas resilientes aos eventos extremos e aos efeitos das mudanças climáticas e com uma cultura consolidada de prevenção, prontidão, resposta e recuperação” ( CONSELHO…, 2017CONSELHO de Ministros. Plano Director para a redução do risco de desastres 2017-2030. Aprovado pela 36ª sessão ordinária do Conselho de Ministros, 17 out. 2017. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/PDRRD_BROCHURA_FINAL_IMpressao.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
, p. 7, grifo nosso).

Apesar de se constatar mudança paulatina da vertente de prevenção e gestão de calamidades naturais para a vertente de recuperação, facto que, aliás, ditou a necessidade de reformulação do INGC para de Instituto Nacional de Gestão de Desastres socioambientais (INGD) 5 5 Por meio do Decreto Presidencial n. 41/2020, criou-se o Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres abreviadamente designado por INGD como a entidade Coordenadora de Gestão e Redução do Risco de Desastres, revogando o Decreto n. 38/99, de 10 de junho, que cria o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC). , a questão de prevenção de calamidades ainda goza de primazia.

Na verdade, o INGD é resultado de um processo evolutivo de transformação institucional que teve início em 1980, com a criação do DPCCN. Os planos e programas de gestão de calamidades tiveram de abraçar novas matrizes, que não apenas colocam o ser humano e seus haveres no centro das atenções, mas também todo um conjunto de novas visões do século XXI, por exemplo, o entrelaçamento do desenvolvimento sustentável com os direitos humanos.

Foi necessário consolidar e aprofundar a tese segundo a qual o recrudescimento de fenómenos climáticos extremos tem a ver, sobretudo, com o comportamento humano. Desse modo, torna-se imperioso parar de pensar que a ocorrência de eventos climáticos extremos é um fenómeno meramente natural ou fruto do acaso. É necessário considerá-lo como efeito boomerang entre a ação do homem contra a natureza, e a resposta/reação desta, na forma de eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes e intensos em escala global ( GLOBAL…, 2021GLOBAL Climate Risk Index 2021. Who suffers most from extreme weather events? Weather-related loss events in 2019 and 2000 to 2019. Germanwatch, 2021. Disponível em: https://www.germanwatch.org/en/19777. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.germanwatch.org/en/19777...
).

Tendo em conta as assimetrias que muitas vezes eram cometidas no processo de salvamento e ajuda às vítimas de desastres socioambientais e mudanças climáticas, o plano estratégico do INGC estabeleceu como principais objetivos ( INGC, 2016INGC. Plano Estratégico do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades 2016-2020. INGC a caminho das Mudanças nas Relações de Género. Maputo, 2016. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploads/2020/11/Plano-Estrategico-de-Genero-INGC-2016-2020-1.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/wp-content/uploa...
, p. 7):

  • Garantir a participação e o acesso equitativo de mulheres e homens em todo o processo de redução de risco de desastres e adaptação as mudanças climáticas.

  • Fortalecer a capacidade da equipa do INGC, sectores-chave e parceiros para responder adequadamente às necessidades socioeconómica dos grupos considerados vulneráveis na avaliação das vulnerabilidades, planificação da resposta, tendo como referência o plano de contingência e o balanço da época chuvosa e ciclónica.

  • Produzir documentos orientadores sobre o acesso equitativo aos recursos por mulheres e homens para todos os sectores e parceiros intervenientes no período de recuperação, reconstrução e reabilitação.

  • Reforçar as sessões de sensibilização com os homens para discutir a importância da participação das mulheres em todos os processos de prevenção, redução do risco de calamidades – mitigação e recuperação;

  • Fortalecer a coordenação da melhoria dos serviços de proteção social aos grupos vulneráveis nas ações de redução do risco de desastres e adaptação as mudanças climáticas.

Com esses objetivos, o INGC pretendeu não apenas corrigir as assimetrias entre homens e mulheres, mas, também, respeitar e valorizar o princípio constitucional da universalidade e igualdade previsto no art. 35 da Constituição da República de Moçambique de 2004 ( MOÇAMBIQUE, 2004MOÇAMBIQUE. Assembleia da República aprova a Constituição da República de Moçambique (CRM). Boletim da República, I série, n. 51, 22 dez. 2004. Disponível em: https://www.masa.gov.mz/wp-content/uploads/2018/01/Constituicao_republica_mocambique.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.masa.gov.mz/wp-content/uploa...
).

No que diz respeito ao processo de transição da componente gestão de calamidades naturais para a de redução de riscos e recuperação pós-desastres, salienta-se o facto de o INGD constituir uma espécie de instituição de viragem e ter sido projetado como resposta aos novos desafios impostos pelas mudanças climáticas no país e no mundo.

Com efeito, diferentemente do INGC, que tinha uma atuação mais “defensiva”, embora proactiva, o INGD nasceu sob o signo da robustez, ao contemplar uma estrutura mais sólida, voltada aos grandes desafios futuros. 6 6 O INGD tem a seguinte estrutura: cinco divisões: prevenção e mitigação; desenvolvimento das zonas áridas e semiáridas; coordenação da reconstrução pós-desastres; planificação e cooperação; administração e finanças. Um centro nacional operativo de emergência; duas unidades nacionais: de proteção civil; gestão do fundo e redução do risco de desastres; três gabinetes: auditoria e controlo interno; comunicação e imagem e salvaguardas sociais e ambientais; e dois departamentos: recursos humanos e aquisições.

Foi por essa razão que, na nova estrutura do INGD, as questões de prevenção e mitigação foram elevadas à categoria institucional de divisão, em parceria com as de coordenação da reconstrução pós-desastres.

Assim, a divisão de prevenção e mitigação tem, entre outras, as seguintes competências ( INGD, 2020INGD. Atribuições e competências das divisões. INGD, 2020. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/?page_id=2427. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/?page_id=2427...
):

  1. a)

    Implementar políticas e estratégias de prevenção e mitigação do risco de desastres.

  2. b)

    Assegurar assistência humanitária e rápida recuperação das vítimas dos desastres.

  3. c)

    Garantir a inclusão de matérias sobre gestão do risco de desastres no sistema de ensino em todos os níveis.

  4. d)

    Criar, equipar e capacitar os comités locais de gestão do risco de desastres.

  5. e)

    Realizar formação e capacitação, em vários níveis, em gestão de risco de desastres.

  6. f)

    Realizar outras atividades que lhe sejam superiormente determinadas nos termos da legislação aplicável.

Pelas funções dessa divisão, consegue-se perceber que, em casos de ocorrência de desastres socioambientais, a estratégia do governo moçambicano consiste em assegurar não apenas a assistência humanitária eficaz, mas, também, uma rápida recuperação do modo de vida das vítimas dos desastres socioambientais. Com isso, garante-se que os desastres socioambientais tenham menos impacto nos planos de desenvolvimento nacional previamente traçados.

Quanto à divisão de coordenação da reconstrução pós-desastres, pode-se dizer que esta apresenta as seguintes competências ( INGD, 2020INGD. Atribuições e competências das divisões. INGD, 2020. Disponível em: https://www.ingd.gov.mz/?page_id=2427. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.ingd.gov.mz/?page_id=2427...
).

  1. a)

    Garantir o reassentamento e a rápida reposição de infraestruturas e serviços sociais básicos pós-desastres.

  2. b)

    Assegurar o planeamento e o uso de terra nas zonas de risco de desastres.

  3. c)

    Promover a construção de infraestruturas resistentes aos fenómenos naturais.

  4. d)

    Realizar outras atividades que lhe sejam superiormente determinadas nos termos da legislação aplicável.

Em sua estrutura, o INGD prevê uma divisão de planificação e cooperação justamente para, entre outras funções, realizar a coordenação multissectorial de elaboração dos planos de contingência e do processo de atualização do Plano Diretor para a Redução do Risco de Desastres e promover acordos de cooperação entre o INGD e outros parceiros e agentes económicos.

Em termos de gestão de calamidades, mitigação e prevenção, são matérias de tratamento diferenciado com os de reconstrução e recuperação. Em regra, os primeiros realizam-se antes ou durante os desastres, e os últimos, somente após sua ocorrência.

No entanto, a atribuição de competências de prevenção, mitigação, reconstrução e recuperação à mesma divisão do INGD revelou-se contraproducente. Foi por essa razão que, após a ocorrência do ciclone Idai, decidiu-se criar o Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclones (Grepoc) 7 7 O Grepoc foi criado pelo Decreto n. 26/2019, e suas competências foram ampliadas pelo Decreto n. 45/2019. , cuja sede se localiza na cidade da Beira. A função desse gabinete é supervisionar a planificação, a implementação, a monitoria e a avaliação, bem como a recuperação e a reconstrução pós-ciclones nas províncias afetadas 8 8 Após a devastação causada pelo ciclone Idai no centro de Moçambique, o Governo criou, em 11 de abril de 2019, o Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclone Idai (Grepoc), sob o Decreto n. 26/2019, para supervisionar a planificação, a implementação, a monitoria e avaliação, a recuperação e a reconstrução nas províncias afetadas. Em 22 de maio de 2019, o mandato do Grepoc foi estendido por meio do Decreto n. 45/2019, para incluir a recuperação e a reconstrução de áreas afetadas pelo ciclone Kenneth no norte de Moçambique. O Grepoc tem sua sede na Beira, capital de Sofala – a província mais afetada, além de subescritórios em Maputo e Pemba (GREPOC, 2023). .

Ao criar o Grepoc, a visão do governo moçambicano foi a de que esse gabinete fosse dotado de uma estrutura reduzida, porém, mais flexível e autónoma para, em tempo real, poder conceber e produzir um programa de reconstrução pós-calamidades com ações concretas de curto, médio e longo prazo.

Depois da ocorrência dos ciclones Idai e Kenneth, o governo moçambicano, por meio do Grepoc, realizou uma avaliação pós-desastre em parceria global, que incluiu o Banco Mundial, o Sistema das Nações Unidas e a União Europeia (UE), utilizando a internacionalmente reconhecida Metodologia de Avaliação das Necessidades Pós-Desastre ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

O PDNA foi realizado em Moçambique entre 16 de abril e 2 de maio de 2019, seguindo a metodologia-padrão desenvolvida pelo Sistema das Nações Unidas, pelo Banco Mundial e pela União Europeia, que integra uma coleção de métodos analíticos, ferramentas e técnicas para avaliações pós-desastre e planeamento de reconstrução. A avaliação baseou-se em dados primários e secundários fornecidos pelo governo de Moçambique e parceiros de desenvolvimento, bem como em entrevistas e visitas de campo às áreas afetadas.

Para a realização do PDNA, o governo moçambicano contou com o apoio do Banco Mundial, da Comissão Europeia, do Banco Africano de Desenvolvimento, do Gabinete do Coordenador Residente da ONU, UNDP, FAO, PAM, Unfpa, Unicef, OMS, UN-Habitat, OIT, OIM, ONU Mulheres, Unaids, Usaid etc., além de parceiros nacionais, tais como CTA, o sector empresarial da Beira representado pela Associação Comercial da Beira (ACB).

Para o caso específico do ciclone Idai, logo após sua ocorrência, o governo moçambicano elaborou um programa de reconstrução da cidade da Beira e de infraestruturas danificadas pelas cheias de março de 2019, designado Programa de Reconstrução e Recuperação Pós-Ciclones (Prepoc). O Prepoc foi elaborado a partir das principais conclusões e recomendações do PDNA e foi complementado por um processo de consultas ao Governo, parceiros e sociedade civil, a fim de colher um quadro comum para reconstrução e recuperação do país, sobretudo as zonas afetadas pelos ciclones.

O Prepoc define, portanto, a visão, os princípios e os objetivos estratégicos para a recuperação de Moçambique nos próximos cinco anos em resposta aos ciclones Idai e Kenneth. Ele apresenta os arranjos institucionais e de coordenação, as modalidades de planeamento e implementação, as necessidades de recuperação entre os sectores, os mecanismos de financiamento e gestão financeira, bem como a estrutura de monitoração e avaliação.

Com esse importante passo, estavam finalmente criadas as bases para a separação das componentes, a prevenção e a mitigação da reconstrução e da recuperação, ficando aquelas sob a alçada do INGD, e estas, a cargo do Grepoc.

Em seguida, o governo moçambicano organizou, na cidade da Beira, uma conferência internacional de doadores para angariar os 3,2 milhões de dólares necessários para a reconstrução das zonas afetadas pelos dois ciclones. O evento ocorreu em 31 de maio de 2019, e os doadores prometeram desembolsar 1,2 milhão de dólares, tendo estes sido já assegurados.

Em síntese, os ciclones Idai e Kenneth motivaram a elaboração do PDNA em março de 2019 e, no mês seguinte, a criação do Grepoc. Com base no PDNA, elaborou-se o Prepoc, sendo que ambos serviram de base para a realização da conferência internacional de doadores para a reconstrução das zonas afetadas pelos dois ciclones.

8 Desafios da recuperação pós-desastres socioambientais em Moçambique: o recuperável e o irrecuperável

8.1 O recuperável

O PDNA identificou a pobreza multidimensional como impacto humano dos ciclones. Nessa sequência, o PDNA estimou que a pobreza multidimensional em Moçambique, em 2019, era de 46,5% e com tendência de a desigualdade aumentar. Apresentava indicadores de mudança brusca de acesso a saúde, educação e habitação de um universo de 1,5 milhão de pessoas que foram diretamente afetadas apenas pelo ciclone Idai. Como grupos vulneráveis, o PDNA identificou:

  • Mulheres: com características como baixos níveis de escolaridade, altos riscos para saúde materna, gravidez precoce, casamentos prematuros e violência baseada no género, o PDNA considera haver uma possibilidade significativa de feminização da pobreza em Moçambique ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
    ). Todavia, há que ter algum cuidado na abordagem dessa questão, visto que, em termos estatísticos, em Moçambique, as mulheres são a maioria em relação aos homens, e o parâmetro da feminização da pobreza pode (não) proceder.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedew), de 1979, expressa preocupação com o facto de, em situações de pobreza, as mulheres terem acesso mais restrito a alimentação, saúde, educação, capacitação e oportunidades de emprego, além de menor acesso à satisfação de outras necessidades na comparação com os homens.

Daí que, por meio dessa Convenção, as Nações Unidas mostram-se determinadas a aplicar os princípios enunciados na Declaração sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher 9 9 Proclamada pela Assembleia Geral na Resolução n. 2.263 (XXII), de 7 de novembro de 1967. . Tal desiderato é reforçado no protocolo da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos relativos aos Direitos da Mulher em África (Protocolo de Maputo, 2003), que, em seu art. 15, estabelece o direito à segurança alimentar, o que, entre outras coisas, significa assegurar o acesso à água potável, às fontes de energia doméstica, à terra e aos meios de produção alimentar.

  • Crianças: constituem mais de metade da população de Moçambique e estão entre as mais carenciadas no mundo. Estima-se que 6,1 milhões de famílias sejam chefiadas por crianças (entre 12 e 14 anos). De acordo com dados do PDNA ( 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
    ), há cerca de 2 milhões de órfãos e crianças vulneráveis.

A legislação moçambicana prevê uma lei sobre os direitos da criança – a Lei n. 7/2008 –, que visa reforçar, estender, promover e proteger os direitos da criança. Inspirada na Constituição de Moçambique e nos instrumentos internacionais sobre os direitos da criança, essa lei define uma política de atendimento que deve ser concretizada por meio de um conjunto de ações articuladas entre os organismos governamentais e instituições não governamentais credenciadas. As ações contemplam a orientação e o apoio sociofamiliar, a integração familiar e o acolhimento em instituições de proteção. Segundo os arts. 1, 66-70 da Lei n. 7/2008, tais ações buscam preservar, sempre que possível, os vínculos e as relações familiares, além de assegurar a não separação de irmãos.

  • Idosos: eles têm como segurança a terceira prioridade em abrigos temporários. Estão em situação de insegurança alimentar, em razão da falta de uma renda ou pensão, dependendo, muitas vezes, de familiares ou amigos ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
    ).

  • Pessoas com deficiência: em Moçambique, entre 2% e 5% da população total e 14% das crianças de 2 a 9 anos são portadoras de deficiência. Cerca de 70% das crianças com deficiência vivem em áreas rurais, sendo, por isso, muito provável que em contexto humanitário sejam negligenciadas ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
    ).

Para os casos dos idosos e pessoas com deficiência, o governo de Moçambique aprovou a Resolução n. 12/98, de 9 e abril, que salvaguarda uma intervenção organizada e integrada, visando garantir a assistência social e outro tipo de apoio social a indivíduos, grupos sociais e famílias em situação de pobreza, de modo a tornarem-se aptos a participar no desenvolvimento do país ( NDAPASSOA, 2021NDAPASSOA, A. M. Regimes políticos e direitos humanos em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: perspetiva comparada. Curitiba: CRV, 2021. ).

  • Pessoas vivendo com o HIV: o PDNA considera que, nos momentos de crise em consequência de desastres socioambientais, as pessoas pertencentes a esse grupo veem-se forçadas a interromper o tratamento antirretroviral (Tarv), haja vista a destruição da rede de saúde e a rotura de estoque de medicamentos. Em caso de desastres socioambientais, a pandemia de HIV/Sida representa uma dupla preocupação. Com efeito, a deslocação forçada de grandes massas populacionais e seu reassentamento em centros de acomodação favorece um clima de promiscuidade. Nesses casos, os índices de transmissão de HIV/Sida sobem vertiginosamente, havendo necessidade de adotar medidas cautelares especiais para sua contenção.

O PDNA apontou, por ordem de prioridade, os sectores de habitação, transporte e segurança alimentar como os que têm maior necessidade de reconstrução, sendo de curto prazo no que se refere às intervenções para enfrentar a crise, logo depois da ocorrência dos ciclones Idai, ou seja, 2019-2020; de médio prazo, referente aos dois anos subsequentes, podendo estender-se até quatro anos, e de longo prazo no que se refere aos cinco anos em diante ( PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

Para efeitos de reconstrução, o PDNA apontou como estratégias de reconstrução:

  1. 1.

    Seguir um único programa de reconstrução pós-desastres, que inclua ações sectoriais e locais.

  2. 2.

    Usar experiências internacionais de processos de reconstrução pós-desastres socioambientais.

  3. 3.

    Reconstruir com materiais resilientes a futuros desastres socioambientais.

  4. 4.

    Priorizar a defesa da vida, o rápido restabelecimento da atividade económica e produtiva e a proteção social das pessoas vulneráveis.

  5. 5.

    Assegurar o respeito pelos planos de zoneamento do território, interditar a construção em zonas de risco, melhorar as condições de vida dos bairros periféricos, provendo abertura de ruas, drenagem e saneamento, incluindo infraestruturas de amortecimento de cheias e plataformas de abrigo (PDNA, 2019PDNA. Mozambique Cyclone Idai. Post Disaster Needs Assessment. Conference Version, May 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/documents/publication/wcms_704473.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
    ). Para a componente reconstrução e recuperação, o Prepoc traçou objetivos de acordo com indicadores, princípios e estratégias desenhadas pelo PDNA, ou seja, seguir um único programa de reconstrução pós-desastres para todo o país e concentrar a assistência humanitária às vítimas dos ciclones por grupos vulneráveis prioritários. De igual modo, o Prepoc prioriza:

    1. a)

      a recuperação de serviços sociais e administrativos;

    2. b)

      o reassentamento da população, incluindo serviços básicos;

    3. c)

      a melhoria contínua da segurança alimentar;

    4. d)

      a redução de exposição a riscos;

    5. e)

      o incentivo à constituição de pequenas e médias empresas e contribuição para criação de emprego; e

    6. f)

      o equilíbrio entre reconstrução de infraestruturas e recuperação social e produtiva (GOVERNO…, 2019GOVERNO elabora programa de recuperação pós-calamidades, Prepoc. Portal do Governo de Moçambique, 3 abr. 2019. Disponível em: https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Imprensa/Noticias/Governo-elabora-programa-de-recuperacaoo-pos-calamidades-PREPOC. Acesso em: 31 jul. 2023.
      https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/I...
      ).

Um aspeto importante da reconstrução e da recuperação é, sem dúvida, a questão do financiamento. Todos os projetos e as obras de reconstrução constantes do Prepoc necessitam de dinheiro. Ele foi disponibilizado por doadores e parceiros externos, mas também contou com pequenas contribuições internas.

Os parceiros externos foram os mesmos que coparticiparam da elaboração do PDNA, ou seja, as Nações Unidas, por meio de PNUD, Unicef, FAO, PAM, Unfpa, OMS, UN-Habitat, OIT, OIM, ONU Mulheres, Unaids, Usaid, Banco Mundial, União Europeia e Banco Africano para do Desenvolvimento, ao passo que os parceiros internos foram o CTA e a ACB.

Também houve comparticipações substanciais de doadores singulares, tais como países amigos e ONGs internacionais que atuam na área da assistência humanitária.

Uma das condições que os doadores e parceiros impõem para o desembolso de dinheiro tanto para a assistência humanitária como para a elaboração do Prepoc é o da transparência na gestão financeira, bem como uma rigorosa prestação de contas sobre o uso dos fundos desembolsados.

Por isso, o Prepoc dá particular atenção à gestão financeira das contribuições e doações de parceiros internacionais e locais, como meio de continuar a merecer a confiança dos parceiros e doadores. Assim, o programa de reconstrução e recuperação utilizará os instrumentos de orçamentação e gestão financeira do país, o Sistema Eletrónico de Gestão Financeira e Administrativa do Estado (e-Sistafe), suportado pela base de dados de Ajuda ao Desenvolvimento de Moçambique (Odamoz), para o rastreio de dados de financiamento de doadores para harmonizar a cooperação para o desenvolvimento no país com padrões internacionais, por exemplo, codificação do sector OCDE/DAC ( GOVERNO…, 2019GOVERNO elabora programa de recuperação pós-calamidades, Prepoc. Portal do Governo de Moçambique, 3 abr. 2019. Disponível em: https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Imprensa/Noticias/Governo-elabora-programa-de-recuperacaoo-pos-calamidades-PREPOC. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/I...
).

São esses os mecanismos que o governo moçambicano, por meio do Grepoc, utiliza tanto para a prevenção e a mitigação de riscos e eventos climáticos externos quanto para a reconstrução e a recuperação de danos e prejuízos causados pelos desastres socioambientais.

Nos pouco mais de quatro anos de existência do Grepoc e do INGD, há aspetos que levantam inquietações e precisam ser melhorados, sobretudo com relação aos seguintes fatores:

  • execução de programas e projetos de recuperação pós-desastres socioambientais de maneira mais célere, de modo que as obras sejam entregues em tempo útil;

  • organização de concursos para seleção de empreiteiros conduzidos de maneira transparente;

  • execução de programas e projetos de recuperação de infraestruturas destruídas pelos ciclones Idai e Kenneth, em coordenação e inclusão das comunidades locais;

  • melhoria na execução de programas de parceria, interação e capacitação dos artesãos nas comunidades locais, de modo a dotá-los de conhecimentos e arte necessários para a construção de infraestruturas resilientes;

  • melhoria na gestão financeira de fundos doados, evitando, tanto quanto possível, atos de corrupção, desvios de aplicação, organização excessiva de eventos e viagens; e

  • melhoria continua da transparência na gestão dos fundos doados, com vistas a resgatar a confiança dos parceiros e doadores internacionais.

Essas sugestões resultam de uma reflexão depois de comparar a atuação dos órgãos de gestão de calamidades e desastres socioambientais em países propensos a desastres socioambientais, tais como Paquistão, Laos, Nepal e Zimbabwe ( PAKISTAN, 2007PAKISTAN. The Government of Pakistan. National Disaster Risk Management Framework of Pakistan. Pakistan, 2007. Disponível em: https://reliefweb.int/attachments/c7bfd268-020c-36d7-885d-acb684bbe54d/NDRMFP.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://reliefweb.int/attachments/c7bfd2...
; LAO PDR, 2009LAO PDR. Legal Preparedness for Responding to Disasters and Communicable Disease Emergencies: Study Report. LAO PDR, 2009. Disponível em: https://disasterlaw.ifrc.org/sites/default/files/media/disaster_law/2020-09/IDRL_Red-Cross-Report-Laos_v27-ENG.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://disasterlaw.ifrc.org/sites/defau...
; LAO PDR, 2019LAO PDR. Disaster Risk Reduction In LAO PDR: status report 2019. LAO PDR, 2019. Disponível em: https://reliefweb.int/attachments/11ee7862-c016-37c0-81e0-06504dad05f5/68230_3laopdrdrmstatusreport.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://reliefweb.int/attachments/11ee78...
, NEPAL, 2013NEPAL. The Government of Nepal. Ministry of Home Affairs. National Disaster Response Framework of Nepal. Nepal, 2013. Disponível em: http://drrportal.gov.np/uploads/document/113.pdf. Acesso em: 31 jul. 2023.
http://drrportal.gov.np/uploads/document...
; ZIMBABWE, 2004ZIMBABWE. Disaster Risk Reduction Efforts in Zimbabwe. Zimbabwe, 2004. Disponível em: http://dpanther.fiu.edu/sobek/FI13022752/00001. Acesso em: 31 jul. 2023.
http://dpanther.fiu.edu/sobek/FI13022752...
).

8.2 O irrecuperável

Os danos e prejuízos causados em infraestruturas físicas são passíveis de recuperação, seja por meio de reabilitação ou de reconstrução. Há, no entanto, uma componente de prejuízos que, dada sua natureza, é de difícil recuperação. O termo “irrecuperável” pode parecer inadequado ou exagerado, mas seu uso se justifica pelo fato de a difícil tarefa de recuperar o tecido social nas zonas afetadas pelos desastres socioambientais se sobrepor à já hercúlea tarefa de reabilitar as vítimas dos vários conflitos armados que assolaram o país no período pós-independência e que justificaram a criação de um ministério 10 10 O Ministério do Género, Criança e Acção Social foi criado por meio do Decreto Presidencial n. 01/2015, com competência para elaborar propostas de leis, estratégias, programas e planos de desenvolvimento nas áreas de género, criança e ação social, bem como proceder a sua divulgação. para essa área.

No caso das vítimas dos desastres socioambientais, maior atenção vai para a recuperação do trauma coletivo resultante da eclosão do desastre. As pessoas, que perderam tudo em um ápice, tornam-se dependentes em praticamente tudo, necessitando, portanto, de um forte apoio psicológico para se refazerem dos efeitos do trauma sofrido, o que, na maioria dos casos, não tem sido possível satisfazer, haja vista a exiguidade de meios humanos e de uma cultura de uso desses meios.

Há casos de membros duma mesma família que, em virtude do desastre socioambiental, ficaram separados, desconhecendo-se o paradeiro de alguns deles. As crianças que se tornaram órfãs e chefes de família precocemente são o resultado desse tipo de situação.

Como consequência, a reunificação e o reassentamento de famílias afetadas nas zonas rurais pobres apontam novas desagregações, em busca de melhores condições de vida, tanto nas zonas rurais como nas zonas urbanas. Nesse último caso, os números de mendicidade e marginalidade têm estado a aumentar vertiginosamente por causa desse fenómeno.

O governo moçambicano tem a missão de apostar na recuperação psicológica das vítimas dos desastres socioambientais e dos conflitos armados, para que estas possam ultrapassar o trauma por que passaram e reintegrar-se à sociedade como pessoas válidas e capazes de trabalhar de acordo com sua condição física.

Conclusão

As mudanças climáticas e os desastres socioambientais não são fenómenos recentes. Com seu recrudescimento nos últimos anos, cresceram também os sinais de alerta. Países de todo o mundo iniciaram e intensificaram estudos mais profundos sobre como responder a esses fenómenos.

O mérito de Moçambique, até o momento, foi ter conseguido ser bom aluno e aprender com a transversalidade da ciência da assistência humanitária com países mais desenvolvidos e experientes nessa matéria, em curto espaço de tempo.

A visão do Plano Diretor para a Redução do Risco de Desastres 2017-2030 é a conjunção de uma cultura consolidada de prevenção, prontidão, resposta e recuperação. Em outras palavras, à medida que o país foi sendo alvo, de maneira cíclica, de eventos climáticos extremos, também se tomou consciência de que o mal veio para ficar e que é necessário conviver com ele e transformá-lo em algo menor.

A gestão de calamidades e a recuperação pós-desastres socioambientais poderiam estar em um estágio melhor, porém, o país precisa não apenas consolidar as instituições criadas para lidar com os fenómenos naturais, mas torná-las mais robustas, profissionais, isentas e transparentes.

Essas instituições têm de ser capazes de fazer todo um trabalho que resulte no abandono definitivo, por parte das populações, das zonas de risco, da sua reintegração em novos centros de reassentamento e com recomendação expressa de produzir para reduzir ou mesmo eliminar a dependência para sua sobrevivência.

As novas infraestruturas erguidas no âmbito da recuperação pós-desastres devem ser o mais resilientes possível para evitar que se entre em um ciclo vicioso de destruição-reconstrução.

É preciso adotar modelos de gestão financeira transparentes que deixem os doadores e parceiros confortáveis, o que implica, inter alia, fazer das comunidades e suas necessidades o foco e a prioridade de sua atuação, a razão de sua existência. Todas as despesas e os gastos com meios e equipamentos de trabalho, viagens e eventos não devem suplantar aquelas destinadas aos programas de assistência humanitária e recuperação pós-desastres.

Por outro lado, o país tem de saber gerir da melhor maneira possível suas receitas, sobretudo aquelas provenientes da exploração dos recursos minerais, para que em pouco tempo seja capaz de contribuir nos programas de assistência humanitária.

Moçambique deverá ser capaz de combinar e harmonizar os diversos programas de cariz reconstrutiva/recuperativa em programas de desenvolvimento. O país deve deixar de estar em uma situação de total dependência financeira de parceiros e doadores. Se os problemas são de Moçambique, a solução não pode provir apenas de parceiros e doadores.

Conclui-se que, em matéria de gestão de calamidades e recuperação de desastres socioambientais, Moçambique pode até ter experiências para partilhar, mas ainda deve trilhar um longo caminho para se tornar referência na região e no mundo.

Referências

  • Como citar este artigo (ABNT):

    NDAPASSOA, A. M. A experiência de Moçambique na gestão de calamidades e recuperação pós-desastres socioambientais (2019-2023). Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202565, 2023. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2565. Acesso em: dia mês. ano.
  • 1
    A temporada de ciclones no sudoeste do oceano Índico de 2018/2019 foi a mais cara e ativa já registada desde o início dos registos oficiais, em 1967. Além disso, foi a temporada de ciclones mais mortal registada no sudoeste do oceano Índico, ultrapassando a temporada de 1891-1892, na qual o ciclone de 1892 nas Ilhas Maurícias devastou todo o local (TEMPORADA…, 2023TEMPORADA de ciclones no Índico Sudoeste de 2018-2019. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Temporada_de_ciclones_no_%C3%8Dndico_Sudoeste_de_2018-2019. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Temporada_...
    ).
  • 2
    O equivalente a 507.812,50 USD.
  • 3
    Freddy é um ciclone tropical mais duradouro, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial. O ciclone desenvolveu-se na costa norte da Austrália, no início de fevereiro, e depois viajou milhares de quilômetros pelo sul do oceano Índico, afetando Maurício e La Réunion, antes de chegar a Madagáscar, duas semanas depois, e em seguida a Moçambique, em 24 de fevereiro. Ele atingiu o centro de Moçambique pela segunda vez no domingo, 12 de março, arrancando telhados de edifícios e causando inundações generalizadas ao redor do porto de Quelimane, antes de se mover para o interior em direção ao Malawi com chuvas torrenciais que causaram deslizamentos de terra ( CARDOSO, 2023CARDOSO, H. R. ONU apoia resposta ao ciclone Freddy. Nações Unidas Moçambique, 15 mar. 2023. Disponível em: https://mozambique.un.org/pt/223253-onu-apoia-resposta-ao-ciclone-freddy. Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://mozambique.un.org/pt/223253-onu-...
    ).
  • 4
    O Quadro de Sendai para Redução de Risco de Desastres 2015-2030 foi adotado na Terceira Conferência Mundial das Nações Unidas em Sendai, Japão, em 18 de março de 2015. É o resultado de consultas às partes interessadas iniciadas em março de 2012 e de negociações intergovernamentais decorridas de julho de 2014 a março de 2015, apoiadas pelo Escritório das Nações Unidas para Redução de Riscos de Desastres, a pedido da Assembleia Geral da ONU. O Quadro de Sendai é o instrumento sucessor do Quadro de Acção Hyogo (HFA) 2005-2015: Construindo a resiliência das nações e comunidades a desastres.
  • 5
    Por meio do Decreto Presidencial n. 41/2020, criou-se o Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres abreviadamente designado por INGD como a entidade Coordenadora de Gestão e Redução do Risco de Desastres, revogando o Decreto n. 38/99, de 10 de junho, que cria o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC).
  • 6
    O INGD tem a seguinte estrutura: cinco divisões: prevenção e mitigação; desenvolvimento das zonas áridas e semiáridas; coordenação da reconstrução pós-desastres; planificação e cooperação; administração e finanças. Um centro nacional operativo de emergência; duas unidades nacionais: de proteção civil; gestão do fundo e redução do risco de desastres; três gabinetes: auditoria e controlo interno; comunicação e imagem e salvaguardas sociais e ambientais; e dois departamentos: recursos humanos e aquisições.
  • 7
    O Grepoc foi criado pelo Decreto n. 26/2019, e suas competências foram ampliadas pelo Decreto n. 45/2019.
  • 8
    Após a devastação causada pelo ciclone Idai no centro de Moçambique, o Governo criou, em 11 de abril de 2019, o Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclone Idai (Grepoc), sob o Decreto n. 26/2019, para supervisionar a planificação, a implementação, a monitoria e avaliação, a recuperação e a reconstrução nas províncias afetadas. Em 22 de maio de 2019, o mandato do Grepoc foi estendido por meio do Decreto n. 45/2019, para incluir a recuperação e a reconstrução de áreas afetadas pelo ciclone Kenneth no norte de Moçambique. O Grepoc tem sua sede na Beira, capital de Sofala – a província mais afetada, além de subescritórios em Maputo e Pemba (GREPOC, 2023GREPOC. Bem vindos ao website do Grepoc. Grepoc.org, 2023. Disponível em: https://www.grepoc.org.mz/poc/. Acesso em: 31 jul. 2023.
    https://www.grepoc.org.mz/poc/...
    ).
  • 9
    Proclamada pela Assembleia Geral na Resolução n. 2.263 (XXII), de 7 de novembro de 1967.
  • 10
    O Ministério do Género, Criança e Acção Social foi criado por meio do Decreto Presidencial n. 01/2015, com competência para elaborar propostas de leis, estratégias, programas e planos de desenvolvimento nas áreas de género, criança e ação social, bem como proceder a sua divulgação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
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