Em artigo publicado na revista Nature, Amber Dance relata o caso de um editor da revista Frontiers in Health Services que, após ter enviado 150 solicitações de pareceres, obteve apenas quatro pareceres e somente um era de qualidade suficiente para que pudesse ser aproveitado pela comissão editorial do periódico. Nas palavras do autor, ele estava necessitando desesperadamente de um herói (Dance, 2023DANCE, Amber. 2023. Peer review needs a radical rethink. Nature, n. 614, pp. 581-583.: 581). Quem acha o relato exagerado desconhece a realidade dos editores de revistas científicas. Em recente reunião dos editores de periódicos da área de humanas da SciELO Brasil, constatou-se que para a maioria dos presentes era comum ter que mobilizar cerca de dez pareceristas para conseguir ao menos dois pareceres consistentes que efetivamente contribuíssem para a tomada de decisão editorial. Quando se confronta essa informação com outra estatística conhecida dos editores de revistas científicas, de acordo com a qual apenas um décimo dos autores de artigos científicos aceita fazer regularmente pareceres para artigos alheios, fica evidente que a conta não fecha. As consequências são o aumento indecente dos prazos entre a submissão de um artigo e sua aprovação ou rejeição com os pareceres comprobatórios, e as inescapáveis crises de ansiedade tanto dos autores, que acham que seus textos foram esquecidos, quanto dos editores, que ficam cada vez mais angustiados com a impossibilidade de responder rapidamente às expectativas neles depositadas na esperança de uma resposta rápida.
Integrei o Conselho de Redação da Lua Nova em 1994, quando era editado o número 93 da revista e assumi a edição a partir do número 97, em 2016. Desde então foram 22 números editados em pouco mais de sete anos, totalizando 203 artigos. Esse é o último número de Lua Nova em que figuro como editor-chefe, pois a partir do próximo número a revista passará a ser editada por Natália Nóbrega de Mello, que muito generosamente aceitou essa missão.
Este número da revista se inicia com um artigo de Leonardo Avritzer, intitulado “Esfera pública sem mediação? Habermas, anti-iluminismo e democracia”, no qual ele estabelece um diálogo com Habermas, a partir de uma releitura que o autor alemão realizou do seu próprio trabalho de seis décadas atrás, e o confronta com o pensamento do israelense Zeev Sternhell para aplicar a discussão ao Brasil. O que está em jogo é o debate atual sobre a crise da democracia e o impacto das redes sociais na concepção de esfera pública.
No segundo artigo, intitulado “José Guilherme Merquior e os marxistas brasileiros: diálogos e conflitos”, Álvaro Bianchi reconstrói o diálogo intelectual do crítico e diplomata José Guilherme Merquior com marxistas brasileiros, vários dos quais pertenciam a uma geração intelectual comum e partilhavam com o autor uma mesma estrutura de sociabilidade. Em seguida, Bruna da Penha de Mendonça Coelho dialoga, no artigo “Materialismo histórico e dialético: entre aproximações e tensões”, com os pressupostos valorativos e metodológicos do materialismo histórico e dialético.
No quarto artigo, “O que os ‘arquivos do imperialismo’ nos ensinam sobre o fenômeno da deserção de atletas cubanos durante a Guerra Fria”, Renato Beschizza Valentin realiza uma reconstrução histórica do fenômeno da deserção de atletas cubanos durante a Guerra Fria a partir dos documentos secretos dos serviços de inteligência do governo dos Estados Unidos, recentemente colocados à disposição nos acervos digitais da Central Intelligence Agency (CIA) e dos National Archives.
No artigo seguinte, “Do frágil consenso ao radical dissenso: rupturas nas disputas por direitos e fissura no processo democrático (1990-2020)”, Otávio Dias de Souza Ferreira investiga como, desde o início da redemocratização, houve continuidades e mudanças nas disputas envolvendo o vocabulário e práticas na temática de direitos humanos, impactando no próprio desenvolvimento do regime democrático e dos esforços de inclusão na política.
No sexto artigo, “Paisagens da morte e a covid-19 nas Américas: as respostas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em torno da vulnerabilidade-morte”, Claudia Marconi, Rafael de Souza Nascimento Miranda e Isabela Agostinelli dos Santos argumentam sobre como, nas duas maiores democracias das Américas, o Brasil e os Estados Unidos, a crise de covid-19 permite desvendar a engrenagem conceitual articulada e denominada de binômio vulneralidade-morte que desafia os limites de uma teoria da justiça internacional.
Em seguida, no artigo “Territórios em disputa: comentários sobre o contralaudo elaborado sobre a terra indígena Potrero Guaçu”, João Marcos Francisco Sampaio e Jayme Benvenuto Lima Júnior buscam compreender os dilemas e as fricções nas relações disciplinares que se estabelecem em processos judiciais de demarcação de terras indígenas.
No oitavo artigo, “Teoria vivida (como psicose): objetivismo, subjetivismo e esquizofrenia”, Gabriel Peters explora a relevância da teoria social para a fenomenologia da psicopatologia ao argumentar que a relação entre os poderes de ação do indivíduo e os poderes condicionantes da sociedade não constitui apenas uma questão teórica das ciências sociais, mas um problema existencial que se impõe, na prática, a todo ser humano.
Por fim, o número se encerra com o artigo “Da reinvenção, à reprodução do ativismo cívico: os movimentos sociais antiausteridade em Portugal no Facebook”, no qual João Carlos Sousa apresenta um estudo sobre a forma como o Facebook foi apropriado entre os movimentos sociais antiausteridade em Portugal.
Todos os artigos foram enviados por seus autores ao sistema de submissão da SciELO e receberam avaliação positiva dos nossos pareceristas, aos quais muito agradecemos.
Bibliografia
- DANCE, Amber. 2023. Peer review needs a radical rethink. Nature, n. 614, pp. 581-583.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023