Resumo
O artigo reconstrói o diálogo intelectual do crítico e diplomata José Guilherme Merquior com marxistas brasileiros, vários dos quais pertenciam a uma geração intelectual comum e partilhavam com o autor uma mesma estrutura de sociabilidade. Destacam-se as ásperas polêmicas nas páginas da imprensa brasileira e troca de ideias na revista Presença, no final dos anos 1980 e início da década de 1990. Argumenta-se que o diálogo de Merquior com o marxismo foi, principalmente, uma conversa crítica, nem sempre explícita, com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, com os quais partilhou um terreno comum, caracterizado filosoficamente pela crítica ao irracionalismo e ao dogmatismo e, politicamente, pela defesa da Democracia.
Palavras-chaves:
Irracionalismo; Democracia; Liberalismo, Marxismo, José Guilherme Merquior
Abstract
The article reconstructs the intellectual dialogue of the critic and diplomat José Guilherme Merquior with Brazilian Marxists, some of whom belong to a common intellectual generation and share the same structure of sociability. Here are highlighted the harsh controversies in the pages of the Brazilian press and the exchange of ideas in the journal Presença in the late 1980s and early 1990s. It is argued that Merquior’s dialogue with Marxism was mainly a critical conversation, not always explicit, with his friends Leandro Konder and Carlos Nelson Coutinho. With them, Merquior had a common intellectual ground, philosophically characterized by the criticism of irrationalism and dogmatism and, politically, by the defense of democracy.
Keywords:
Irrationalism; Democracy; Liberalism; Marxism; José Guilherme Merquior
Introdução
O diálogo de José Guilherme Merquior (1941-1991) com o marxismo foi duradouro, contínuo e se estendeu até seus últimos meses de vida. Frequentemente o diplomata foi apresentado como um adversário do marxismo. A imagem não é completamente inadequada, é parcial, e se encontra assentada na recepção que seu livro O marxismo ocidental (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .) recebeu em alguns círculos e nas ácidas polêmicas que se sucederam nas páginas dos suplementos culturais dos grandes jornais. A percepção é muito diferente, entretanto, quando se reconstrói o intercâmbio que Merquior manteve com um grupo intelectual do qual fazia parte e que possuía uma forte marca geracional, tendo na cidade do Rio de Janeiro a sede de sua sociabilidade1 1 Sobre os conceitos de geração intelectual e estrutura de sociabilidade, ver: Sirinelli (1986, 1989). . A hipótese principal deste artigo é que o confronto de Merquior com o marxismo foi, principalmente, uma conversa crítica com seus amigos Leandro Konder (1936-2014) e Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) no interior deste grupo. Com estes, o futuro diplomata manteve uma relação fraterna que se estendeu até o fim de sua breve existência. Isso não impediu, entretanto, que emergissem desacordos e mesmo polêmicas públicas em contextos fortemente marcados pela conjuntura política e o debate intelectual mais amplo.
Estética e livros italianos
Frequentemente grupos intelectuais são constituídos em torno de um indivíduo que exerce a função de agregação. Neste grupo de jovens intelectuais cariocas, Leandro Konder, um pouco mais velho do que os demais, parece ter sido o pivô. Em sua biografia, Konder conta que seu contato epistolar com Carlos Nelson Coutinho começou em 1962, quando este encaminhou para a revista Estudos Sociais um artigo sobre Jean-Paul Sartre. O artigo enfrentou resistências por parte de Jacob Gorender e Mario Alves, os quais, à época, expressavam na revista uma visão mais ortodoxa do marxismo. A contribuição, entretanto, foi bem recebida por Armênio Guedes, futuro líder dos renovadores pecebistas, e publicada em uma seção intitulada “Problemas e debates”, especialmente criada para abrigar o incômodo texto (Konder, 2008KONDER, Leandro. 2008. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Coutinho, 1963COUTINHO, Carlos Nelson. 1963. Do existencialismo à dialética: a trajetória de Sartre. Estudos Sociais, v. 5, n. 18, pp. 148-176.).
Carlos Nelson Coutinho contou de um modo um pouco diferente esse contato epistolar, o qual teria ocorrido antes de enviar o artigo para a revista Estudos Sociais. Um amigo comum teria feito chegar a Konder um ensaio que Coutinho havia escrito sobre a Dialética, no qual combinava as ideias de Lukács e Sartre e que, segundo seu autor “é indiscutivelmente um besteirol, mas um besteirol engraçado”. Konder teria então lhe encaminhado uma carta, na qual alertava o jovem Coutinho a respeito das leituras heterodoxas que este fazia (Coutinho, 2011COUTINHO, Carlos Nelson. 2011. Conversa com um “marxista convicto e confesso”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2011. p. 165-191., p. 167, 1961COUTINHO, Carlos Nelson. 1961. Problemática atual da dialética. Ângulos, v. 9, n. 17, p. 25-47.). Provavelmente se encontraram logo depois. Desde pelo menos 1961, Coutinho, residente em Salvador, viajava ao Rio de Janeiro uma ou duas vezes por ano e nessas viagens consolidou seu vínculo com Konder. Foi numa dessas visitas que o futuro tradutor de Gramsci adquiriu na Livraria Leonardo da Vinci uma edição argentina de El materialismo histórico y la filosofia de Benedetto Croce, de Antonio Gramsci, e a edição francesa de Histoire et conscience de classe, de György Lukács (Coutinho, 2011COUTINHO, Carlos Nelson. 2011. Conversa com um “marxista convicto e confesso”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2011. p. 165-191.).
Merquior e Konder se encontraram casualmente, segundo este último, mais ou menos na mesma época, durante um festival de cinema soviético que teve lugar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Konder, 2008KONDER, Leandro. 2008. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Provavelmente se tratava do festival de cinema russo, que ocorreu naquele espaço na segunda quinzena de novembro de 1961 (MAM, 1961MAM vai mostrar ao Brasil como a URSS seguiu no rumo das estrelas: o cinema. 1961. Jornal do Brasil, p. 4, 31 out. 1961.). O jovem crítico, muito jovem mesmo, já era conhecido por seus artigos na imprensa carioca. Nessa primeira conversa com Konder, citou um texto “muito ruim, que fora publicado havia poucas semanas por um crítico literário”. Konder respondeu: “O Merquior escreveu um artigo devastador, arrasando o artigo desse paspalhão”. “Sou eu”, replicou o jovem autor (Konder, 2008KONDER, Leandro. 2008. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 57). Nasceu aí uma relação intensa, destinada a durar.
Poucos anos depois, Konder redigiu a orelha do primeiro livro de Merquior, Razão do poema, publicado em 1965, quando seu autor tinha apenas 23 anos. Nela, o editor da revista Estudos Sociais profetizou: “na medida em que seu racionalismo o impelir para a frente, teremos sempre muito o que aprender com ele” (Konder, 2013KONDER, Leandro. 2013. Apresentação. In: MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações, 2013. pp. 15-17., p. 17). Mais tarde, afirmou ter apresentado a obra de Lukács a Merquior e, modestamente, disse nunca ter apresentado ao amigo outro autor que ele já não conhecesse. Contou, também, que o futuro diplomata muitas vezes lhe deu “ótimas indicações de leitura” (Konder, 2008KONDER, Leandro. 2008. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 58).
O impacto de Lukács sobre o jovem Merquior foi profundo, como se pode ver nesse primeiro livro. Não é a única fonte de inspiração, mas é certamente a mais marcante. Com o filósofo húngaro, o jovem crítico literário partilhava um compromisso com a razão que o levava a declarar-se logo na advertência introdutória um “racionalista - embora firmemente convencido de que o único racionalismo consequente é o que se propõe, não a violentar o mundo em nome de seus esquemas, mas a apreender em seus conceitos, sem nunca render-se ao ininteligível, sem jamais declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais obscura e mais contraditória” (Merquior, 2013MERQUIOR, José Guilherme. 2013b. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações ., p. 19-20). A marca da teoria estética lukacsiana aparecia fortemente no ensaio mais longo e pretencioso do livro Crítica, razão e lírica, dedicado justamente a “Leandro Konder, amigo” (Merquior, 2013MERQUIOR, José Guilherme. 2013b. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações ., p. 180). Nesse ensaio, a razão recebia a missão de subordinar “o sentimento, a sensação e a fantasia na poesia” (Merquior, 2013MERQUIOR, José Guilherme. 2013b. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações ., p. 182), para, desse modo, permitir que a lírica se torna-se “crítica social […], proposta militante de valores novos e de formação coletiva” (Merquior, 2013MERQUIOR, José Guilherme. 2013b. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações ., p. 196). Não é de se estranhar, portanto, o entusiasmo que Konder demonstrou perante o texto: “Pessoalmente, em virtude da minha posição filosófica, identifico-me mais com a visão de mundo do ensaio que me foi dedicado”, escreveu na orelha do livro (Konder, 2013KONDER, Leandro. 2013. Apresentação. In: MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações, 2013. pp. 15-17., p. 16).
Não foi possível estabelecer quando Coutinho e Merquior se encontraram pela primeira vez, mas isso certamente não deve ter sido mais tarde do que 1965, quando o baiano se mudou definitivamente para o Rio de Janeiro. Konder, conhecido pela personalidade afável, deve ter sido quem os apresentou. Segundo Coutinho, Ferreira Gullar também frequentava esse grupo (Coutinho, 2011COUTINHO, Carlos Nelson. 2011. Conversa com um “marxista convicto e confesso”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2011. p. 165-191., p. 170). Nenhum dos membros desse pequeno círculo de amigos ocupava posto acadêmico. Eram jornalistas, escritores e tradutores, “todos mui burgueses”, afirmou Merquior, embora alguns fossem filhos de “pais marxistas ou simpatizantes”2 2 A referência era obviamente a Leandro, filho de Valério Konder, um comunista da velha guarda. . Ainda de acordo com o crítico, as relações familiares não impediam que esses filhos insultassem o stalinismo, zombassem do realismo socialista e questionassem a política do Comintern (Merquior, 1983MERQUIOR, José Guilherme. 1983. Cultura marxista: o elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 196-199.).
A crítica cultural parece ter ocupado as preocupações centrais do grupo. Em um ensaio de cunho autobiográfico, Merquior afirmou que, para o grupo de intelectuais que integrava com seus amigos, o marxismo significava duas coisas no início dos anos 1960: “estética e livros em italiano” (Merquior, 1983MERQUIOR, José Guilherme. 1983. Cultura marxista: o elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 196-199., p. 196). Lukács ocupava ali um lugar de destaque. Mesmo no pensamento de Carlos Nelson Coutinho, a influência mais marcante naqueles anos parece ter sido o húngaro, como se deixa entrever nos seus escritos juvenis. O próprio Coutinho comentou rapidamente a respeito em uma entrevista que fez a Leandro Konder, na qual os papéis se invertiam: “Eu era mais fanaticamente lukacsiano do que o Leandro. Ele já tinha algumas aberturas para Gramsci, para Benjamin” (Konder; Coutinho, 2005KONDER, Leandro; COUTINHO, Carlos Nelson. 2005. Entrevista. Leandro Konder. Margem Esquerda, n. 5, p. 11-29., p. 18). As trocas intelectuais eram intensas no grupo. Merquior foi responsável por ter recomendado a leitura de Benjamin a Coutinho, que nunca gostou muito das ideias do alemão, e a Konder, que chegou a escrever um livro a respeito dele (Konder; Coutinho, 2005KONDER, Leandro; COUTINHO, Carlos Nelson. 2005. Entrevista. Leandro Konder. Margem Esquerda, n. 5, p. 11-29., p. 16; Konder, 1988KONDER, Leandro. 1988. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Campus.). O crítico foi, também, o primeiro autor brasileiro a publicar um livro sobre a Escola de Frankfurt, obra que influenciou a recepção delas neste país (Merquior, 2017MERQUIOR, José Guilherme. 2017. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin: ensaio crítico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt. São Paulo: É Realizações .). Sobre os efeitos desse livro na recepção das ideias da escola de Frankfurt no Brasil, ver: Duarte (2009DUARTE, Rodrigo. 2009. Sobre la recepción de la teoría crítica en Brasil: el caso Merquior. Constelaciones: Revista de Teoria Crítica, v. 1, n. 1, p.-36-50.).
No firmamento de Merquior, a luz que Lukács emanava logo perdeu intensidade. No final dos anos 1960, é possível perceber certo distanciamento. Não era, entretanto, uma hostilidade; não renegou Lukács e muito menos sua estética, mas o crítico parece ter encontrado em outros autores ideias mais fecundas, ou ao menos mais compatíveis com seu projeto intelectual. Importante nesse processo foi seu Doutorado na França, na Sorbonne, à época em que servia como diplomata na Europa. Foi nessa ocasião que Merquior entrou em contato com Claude Lévi-Strauss e participou por quatro anos do seminário de Antropologia Social que este organizou sob os auspícios do Collège de France e da École Pratique de Hautes Études. Nesse contexto acadêmico, Merquior apresentou, em 1969, um ensaio sobre a teoria estética de Lévi-Strauss, surpreendente até mesmo para seu mestre. Mais tarde, esse ensaio, escrito originalmente em francês, foi traduzido e publicado em português (Merquior, 2013aMERQUIOR, José Guilherme. 2013a. A estética de Lévi-Strauss. São Paulo: É Realizações.)3 3 O interesse pelas ideias de Lévi-Strauss pode ser percebido já no ensaio “Estética e antropologia”, escrito em 1964 e parte do livro Razão do poema (Merquior, 2013, p. 241-286). A editora É Realizações, a qual detém o espólio bibliográfico de José Guilherme Merquior, acaba de publicar um livro inédito, escrito originalmente em francês quando ele era aluno de Claude Lévi-Strauss (Merquior, 2022). Nesse livro, Merquior se interroga sobre a ética subjacente à Antropologia de seu mestre. Este artigo já havia sido submetido à revista Lua Nova quando o livro foi lançado, razão pela qual é aqui apenas mencionado. .
Neste ensaio, Merquior exaltou a reorientação que o “estruturalismo autêntico” teria imprimido às ciências humanas. Para a teoria estética, o estruturalismo teria contribuído decisivamente para trazer “um novo equilíbrio ao duplo reconhecimento da abertura da arte sobre o real e da especificidade e autonomia da função estética” (Merquior, 2013aMERQUIOR, José Guilherme. 2013a. A estética de Lévi-Strauss. São Paulo: É Realizações.). Essa ênfase na autonomia da função estética já indica a distância que Merquior tomava de Lukács, que não era citado no texto, e de Adorno, explicitamente criticado. Não se tratava de uma recusa a compreender a relação entre a arte e a vida social, mas de uma problematização dessa relação, evitando subordinar a forma ao sentido. Assim, se as referências anteriores cediam lugar a outras, é possível dizer que os problemas de sua investigação estética permaneciam os mesmos.
Democracia e hegemonia
No início dos anos 1980, em uma conjuntura política fortemente marcada pela crise da Ditadura Militar e pela chamada transição democrática, as preocupações estéticas de Merquior ainda se manifestavam, mas, ao lado destas e com cada vez mais frequência, apareceram os temas da política e daquilo que chamou de “crítica das ideologias”. Essas novas preocupações se tornaram evidentes nos ensaios que escreveu entre 1979 e 1981, posteriormente reunidos em As ideias e as formas. Nestes, já era possível perceber uma reflexão em curso sobre o marxismo ocidental (Merquior, 1981bMERQUIOR, José Guilherme. 1981b. Habermas ou a salvação pelo diálogo: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 165-174.; 1981cMERQUIOR, José Guilherme. 1981c. História de uma classe de inconsciência: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 155-164). Também é possível identificar uma certa maneira de defini-lo. Para o crítico, o culturalismo do marxismo ocidental estava associado à “vontade de elaborar uma cultura antinômica, uma cultura de oposição e ruptura com a sociedade liberal-burguesa” (Merquior, 1981cMERQUIOR, José Guilherme. 1981c. História de uma classe de inconsciência: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 155-164, p. 161). Era esse o aspecto mais importante e aquele contra o qual Merquior erguia sua crítica.
O crescente engajamento político levou Merquior a confrontar seu amigo Carlos Nelson, o qual, com a publicação de um ensaio sobre a Democracia como valor universal, havia assumido uma posição chave nos debates políticos que tinham lugar na esquerda (Coutinho, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. 1980. A democracia como valor universal: notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1980.). Foi contra esse ensaio de Coutinho que Merquior disparou em um artigo publicado no Jornal do Brasil, em 1980. O diplomata afirmava não ser possível compatibilizar Democracia e leninismo, questionando todo o projeto político-intelectual defendido por seu amigo: “Se Carlos Nelson Coutinho tivesse defendido sua concepção da democracia como valor universal só com a ajuda de seu querido Gramsci, sua tarefa teria ficado bem mais fácil. Mas com a de Lenin, realmente não dá pé” (Merquior, 1981dMERQUIOR, José Guilherme. 1981d. Marxismo e democracia: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 232-240., p. 236). Afirmou não entender por que Coutinho tentava “em vão democratizar a imagem do leninismo” (Merquior, 1981dMERQUIOR, José Guilherme. 1981d. Marxismo e democracia: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 232-240., p. 237)4 4 Na verdade, Merquior tinha uma hipótese explicativa. Esse “mistério” estava “ligado a esses surdos combates internos, a essas obscuras guerras de religião, que constituem a história dos partidos comunistas e de suas respectivas intelligentsias” (Merquior, 1981d, p. 237). Acertou na mosca. Quase 20 anos mais tarde, Carlos Nelson Coutinho escreveu a respeito dessa hipótese: “Sou obrigado a reconhecer hoje, tantos anos depois, que Merquior tinha boa dose de razão […]. Em 1979, quando escrevi A democracia como valor universal, ainda era militante do PCB e acreditava em sua renovação” (Coutinho, 2000, p. 11). , mas sequer Gramsci teria permitido a Coutinho ir muito longe. Merquior argumentava que, para o sardo, “a hegemonia é mais uma influência social do que um poder político” (Merquior, 1981dMERQUIOR, José Guilherme. 1981d. Marxismo e democracia: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 232-240., p. 238). Segundo o crítico, concebida por Coutinho como a realização de um consenso abrangente, a hegemonia dificilmente poderia ser compatibilizada com o pluralismo, como pretendia o autor de A democracia como valor universal. É que a democracia pressuporia não o consenso, segundo Merquior, mas a irredutibilidade do conflito político e sua institucionalização. Por esse motivo, o “único consenso de que a verdadeira democracia necessita é, naturalmente, um acordo sobre as regras do jogo - um pacto nomocrático, que consagre a soberania da lei e do estado de direito” (Merquior, 1981d, p. 239MERQUIOR, José Guilherme. 1981d. Marxismo e democracia: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 232-240.).
Em O marxismo ocidental, Merquior (2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .) desenvolveu o alcance de suas polêmicas com o marxismo, retomando e aprofundando as ideias gestadas nos anos precedentes. Neste livro, Kolakowski (1978KOLAKOWSKI, Leszek. 1978. Main currents of Marxism: its rise, growth, and dissolution. Oxford: Clarendon Press.), Aron (1969ARON, Raymond. 1969. Marxism and the existentialists. New York: Harper & Row.) e Gellner (1979GELLNER, Ernest. 1979. Spectacles and Predicaments. Cambridge; New York: Cambridge University.) eram as referências mais destacadas. No “Prefácio”, Merquior disse ter se engajado para a realização do livro em “inúmeras e vigorosas trocas de ideias” com esses autores, além de Konder, Coutinho e outros mais (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 21). Para Merquior, o marxismo ocidental teria como traços comuns uma epistemologia humanista, uma atenção voltada à análise das superestruturas e uma Kulturkritik, este o aspecto mais destacado pelo autor, “uma teoria da crise da cultura, uma condenação formal e apaixonada da civilização burguesa” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 23).
Georgy Lukács, Ernst Bloch, Karl Korsh e Antonio Gramsci seriam os pais fundadores desse marxismo ocidental5 5 No livro, entretanto, a ênfase recai exclusivamente sobre Lukács e Gramsci. , mas se o retorno a Hegel e a ênfase na cultura eram as características principais desse marxismo ocidental, então era a Lukács que caberia o papel de criador (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .)6 6 A bibliografia de Lukács é extensa no livro de Merquior, mas predominam as traduções para o inglês. As eventuais referências neste artigo às obras de Lukács são feitas utilizando as mesmas edições citadas em O marxismo ocidental. . De acordo com Merquior, já nas primeiras reflexões estéticas do filósofo húngaro, em particular na coletânea A alma e as formas, publicada originalmente em 1911, o sonho de uma idade de ouro, identificada com o restabelecimento da comunidade acalentado por Novalis era visto com simpatia (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .)7 7 No ensaio sobre Novalis, Lukács afirmou que este teria dito que nada existiria de mau no mundo e “tudo nos deixaria cada vez mais perto de outra era de ouro”, mas não há nesse ensaio nexo evidente entre essa era de ouro e a ideia de comunidade (Lukács, 1974, p. 52). . Em A teoria do romance, de 1916, a atenção dada aos “grandes russos” - Tolstoi e Dostoievski - no último capítulo do livro, culminando a argumentação, evidenciava um compromisso utópico e uma aposta na “promessa de redenção humana” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 92)8 8 De acordo com Lukács, “em Tolstoi, insinuações de um avanço para uma nova época são visíveis; mas permanecem polêmicos, nostálgicos e abstratos. É nas palavras de Dostoiévski que este novo mundo, distante de qualquer luta contra o que realmente existe, é desenhado pela primeira vez simplesmente como uma realidade vista” (Lukács, 1971b, p. 152). . Apesar dessas prefigurações, a obra fundadora da Kulturkritik marxista seria História e consciência de classe, de 1922, chamada por Merquior de “a bíblia do movimento”, um livro que o próprio Lukács renegaria mais tarde, considerando-o expressão de um “anticapitalismo romântico” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 24; para a autocrítica, ver: Lukács (1971aLUKÁCS, György. 1971a. History and class consciousness; studies in Marxist dialectics. Cambridge, Mass.: MIT Press.).
Em História e consciência de classe, Lukács afirmou a totalidade como a “categoria fundamental da realidade”, ponto destacado por Merquior (2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 100). O crítico também enfatizava que para o húngaro, a totalidade como práxis era autoativada, ou seja, um sujeito, mas esse “sujeito-totalidade” requeria, em seu caminho para a liberdade, a subordinação consciente de si ao Partido Comunista (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .)9 9 Segundo Lukács: “Não é a primazia dos motivos econômicos na explicação histórica que constitui a diferença decisiva entre o marxismo e o pensamento burguês, mas o ponto de vista da totalidade” (Lukács, 1971a, p. 27). E o “desejo consciente pelo reino da liberdade só pode significar dar conscientemente os passos que realmente levarão a ela. […] Implica a subordinação consciente de si mesmo àquela vontade coletiva que está destinada a trazer à existência a liberdade real e que hoje está dando seriamente os primeiros passos árduos, incertos e tateantes em direção a ela. Essa vontade coletiva consciente é o Partido Comunista” (Lukács, 1971a, p. 315). . Merquior não deixou por menos: em Lukács, “a apoteose da totalidade acaba sendo uma ruidosa hipóstase do partido leninista (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 103). Embora considerasse que Lukács tinha pretendido fornecer uma justificação ideológica para a revolução bolchevique, Merquior achou por bem destacar a distância que separava o húngaro de Lenin. Para Lukács, a ênfase não estaria na organização e sim na ideologia, ou, de modo mais preciso, na cultura. A legitimação filosófica da revolução bolchevique apresentada pelo autor de História e consciência de classe teria sido oferecida como um “comunismo-cultura” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 106) e, desse modo, era apresentada uma “versão do leninismo aceitável (altamente aceitável) pela mentalidade característica da intelligentsia humanística do nosso tempo” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 113).
Ao lado de Lukács, Gramsci ocuparia um lugar de destaque entre os pais fundadores do marxismo ocidental, segundo Merquior. Esse lugar, entretanto, era contraditório com o próprio argumento do crítico. Embora certamente seja possível encontrar na obra do sardo uma recusa do economicismo e uma revalorização da análise das superestruturas, ele estava muito longe de partilhar aquela Kulturkritik e o utopismo que marcaram tão fortemente o jovem Lukács e outras vertentes do marxismo ocidental. Merquior estava ciente da ausência de um pendor romântico no pensamento de Gramsci e dos problemas que isso trazia para seu argumento: “Falta visivelmente a seu pensamento um dos principais ingredientes do marxismo ocidental: o elemento Kulturkritik. Seu gosto pelo futurismo e pelo americanismo trai uma óptica produtivista e tecnológica próxima da visão de Sorel” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 135).
No capítulo dedicado a Gramsci, nem Aron, nem Gellner eram importantes para o argumento. Ambos parecem não ter dado atenção ao sardo. Kolakowski, por sua vez, lhe dedicou um capítulo pouco inspirado no terceiro volume de sua trilogia, o qual não foi citado por Merquior (Kolakowski, 1978KOLAKOWSKI, Leszek. 1978. Main currents of Marxism: its rise, growth, and dissolution. Oxford: Clarendon Press.). As fontes da reflexão de Merquior sobre Gramsci eram outras, principalmente inglesas e norte-americanas10 10 Além de Anderson (1976b), Merquior citou Adamson (1980), Boggs (1976), Femia (1981), Levy (1987) e Mouffe (1979), além de alguns poucos italianos. As obras desses autores sobreviveram muito mal ao tempo, não incorporaram os ganhos analíticos decorrentes da edição crítica dos Quaderni del carcere, publicada em 1975 sob responsabilidade de Valentino Gerratana, e hoje raramente são citados nos estudos gramscianos. . O que caracterizava essa literatura, além do uso das precárias edições norte-americanas dos escritos de Gramsci, é o escasso diálogo com a literatura italiana e mesmo com a literatura francesa sobre o tema11 11 Trata-se das seleções e traduções de Q. Hoare e G. N. Smith (Gramsci, 1971; 1977b). Além de tardias, estas edições não traziam sequer a totalidade dos textos presentes na chamada edição temática, publicada sob a direção de Felice Platone e Palmiro Togliatti pela editora Einaudi a partir dos anos 1950. Ficavam, portanto, aquém das edições argentina e brasileira, já publicadas. . Embora listasse nas referências a edição crítica dos Quaderni del carcere (Gramsci, 1977aGRAMSCI, Antonio. 1977a. Quaderni del carcere: edizione a cura di Valentino Gerratana. Torino: Enaudi.), Merquior, assim como seus interlocutores anglo-saxões, utilizou as edições inglesas, muito incompletas e com as notas rearranjadas tematicamente. Isso o induziu a cometer erros de periodização semelhantes aos que Perry Anderson (1976bANDERSON, Perry. 1976b. The Antinomies of Antonio Gramsci. New Left Review, n. 100, pp. 5-78.) cometeu em seu ensaio sobre Gramsci12 12 Cf. p. ex. a seguinte afirmação: “Os cadernos foram começados em 1929. Em 1935, a doença forçou Gramsci a deixar de escrever. As notas mais antigas são, primordialmente, uma reação à vitória do fascismo. No começo da década de 1930, elas se tornam mais teóricas, menos imediatamente políticas. Finalmente, aí pelos últimos dois anos, o foco recai na cultura italiana e nas questões linguísticas” (Merquior, 2018, p. 12). Para a crítica aos erros interpretativos de Anderson, ver: Francioni (1984) e Thomas (2011). . Merquior também seguiu Anderson, ao considerar que a teoria da hegemonia aproximava o sardo de Karl Kautsky (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .; Anderson, 1976bANDERSON, Perry. 1976b. The Antinomies of Antonio Gramsci. New Left Review, n. 100, pp. 5-78.) e na afirmação a respeito do “idealismo” de Gramsci (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .; Anderson, 1976bANDERSON, Perry. 1976b. The Antinomies of Antonio Gramsci. New Left Review, n. 100, pp. 5-78.). Ainda assim, o diplomata considerou “proveitosa […] a sua leitura [de Gramsci], se comparada à dos tratados acadêmicos do marxismo ocidental” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 121), principalmente suas “análises de desenvolvimentos concretos políticos e ideológicos” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 123). Coutinho, entretanto, reclamou. Segundo ele, apesar dos elogios, Merquior havia transformado o autor dos Quaderni em um “brilhante ‘sociólogo histórico’” (Coutinho, 1999COUTINHO, Carlos Nelson. 1999. Gramsci : um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 302)13 13 De acordo com Merquior, “Gramsci, dentre os fundadores do marxismo ocidental, mostrou inclinação para a sociologia histórica - mas a própria natureza de suas análises aproximou-o mais da tradição historista de Weber ou Croce que das preocupações historicistas de Hegel e Marx” (Merquior, 2018, p. 140). .
A presença de Gramsci no livro de Merquior enfraquecia seu argumento sobre a Kulturkritik. Tendo localizado, assim como Perry Anderson, o nascimento do marxismo ocidental na publicação de História e consciência de classe, tornava-se praticamente impossível evitar a referência a Gramsci como parte de uma revolta contra o marxismo oficial, mas, ao contrário de Anderson, o objetivo de Merquior não era contrapor uma vertente à outra. O diálogo crítico com Coutinho parece ter sido mais relevante para definir o lugar de destaque que Merquior atribuiu a Gramsci na obra O marxismo ocidental. Esta hipótese encontra suporte em uma entrevista concedida após a publicação desse livro, na qual Merquior colocou aquilo que denominou de “tendências neo-gramscianas” ao lado do marxismo analítico como as únicas vertentes marxistas que teriam condições de sobreviver à crise que anunciava. As razões para essa sobrevida residiriam, segundo Merquior, no fato de que essas tendências “arquivam tudo o que pudesse haver de demasiadamente isolacionista, intransigente, dogmático e sectário em postulações marxistas anteriores”. Na entrevista, o diplomata se referiu a Coutinho como “meu caro amigo e principal neo-gramsciano brasileiro” (Singer; Merquior, 1987SINGER, André; MERQUIOR, José Guilherme. 1987. O marxismo está morto: entrevista com José Guilherme Merquior. Folha de S.Paulo, 30 ago. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3MByiZo . Acesso em: 11 abr. 2023.
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).
Se, na arquitetura do livro, o capítulo sobre Gramsci destoava do argumento principal do autor, se justificava na medida em que lhe permitia retomar a crítica às teses dos “neo-gramscianos”. Para o diplomata, apesar desses autores, entre os quais Coutinho, explicitamente citado, afirmarem que Gramsci teria ido “além de Lenin” ou mesmo se afastado dele, sua revisão do leninismo não o teria conduzido a formular “uma concepção explicitamente pluralista do poder político” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 135)14 14 Apesar da ausência de uma concepção pluralista do poder político, Gramsci teria se mostrado preocupado, segundo Merquior, “com a ampliação do ‘eleitorado’ comunista” e por essa razão teria inspirado as correntes eurocomunistas e as ideias da “democracia de massas” de Pietro Ingrao (Merquior, 2018, p. 135). Segundo Coutinho, em Gramsci, as “colocações básicas de Lenin, assim, são conservadas (no que têm de essencial) e elevadas a nível superior”, ele “assimilou e enriqueceu a teoria lenineana” (Coutinho, 1981, p. 66 e 126). . A afirmação remetia de modo quase literal às suas conclusões no debate com Coutinho sobre a democracia como valor universal e reforçava o engajamento de Merquior com uma concepção liberal de democracia. Neste ponto, o argumento do crítico parece ter assumido um tom muito mais político e conjuntural do que seria de se esperar.
O impacto do livro nos meios culturais foi enorme. Sua publicação era anunciada há mais de um ano nas páginas dos suplementos culturais dos grandes jornais, e com destaque no caderno Idéias, do Jornal do Brasil. Quando o livro foi finalmente lançado pela editora Nova Fronteira, este jornal abriu duas páginas de comentários. Na ocasião, Konder publicou um artigo que começava relembrando sua amizade por Merquior, a qual teria “sobrevivido a múltiplas divergências”. De acordo com o filósofo, teria reconhecido no livro “velhos pontos de controvérsias nas minhas relações com Merquior”. Estes iriam das diferentes avaliações a respeito da obra de Hegel e ao apreço que Konder manifestava pela ideia de “absoluto” -“um poderoso antídoto contra a mediocridade do relativismo positivista”-, até a valorização da dimensão crítica do pensamento de Marx, levada a cabo pelos marxistas ocidentais. Para o resenhista, a concepção de marxismo ocidental apresentada por Merquior era artificial, o que explicaria o incômodo lugar ocupado por Gramsci em sua narrativa. Apesar de não concordar com seu amigo e considerar que os caminhos do marxismo no Ocidente eram mais “ricos em sua diversidade do que a esquematização merquioriana admite”, Konder reconhecia que esse marxismo apresentava “lacunas, deficiências, furos” (Konder, 1987KONDER, Leandro. 1987. Minhas discordâncias. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 7, 14 mar. 1987., p. 5).
Teoria, prática e farpas
Nem todos, entretanto, reagiram a O marxismo ocidental com o mesmo espírito de Konder e um debate cheio de farpas teve lugar. Herio Saboga aproveitou a oportunidade concedida pelo Jornal do Brasil e acusou Merquior de fazer concessões à “mídia internacional reaganeana” e de ter produzido um “marxismo ‘para inglês ver’”, no qual o marxismo latino-americano - “Fidel Castro, Ernesto Guevara e Camilo Torres” - não teria lugar. Também recusou a crítica de Merquior à ausência de uma teoria marxiana da “sociedade comunista”, afirmando que “Marx tinha mais o que fazer do que elocubrar a futura sociedade comunista, já que seu principal propósito sempre foi sua estrutura presente” (Saboga, 1987bSABOGA, Herio. 1987b. Marxismo acidental. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 14 mar. 1987., p. 4). Mais agressivo foi Carlos Henrique Escobar, que chamou Merquior de “intelectual orgânico da ditadura militar”, cujos livros se caracterizariam por um “combate feroz ao comunismo e a qualquer tentativa de renovação do pensamento e da cultura”. De acordo com Escobar, era “impossível encontrar em qualquer um de seus ensaios [de Merquior] qualquer coisa que não seja a reprodução de uma ideia já conhecida” (Escobar, 1987ESCOBAR, Carlos Enrique. 1987. Prós e contras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 14 mar. 1987., p. 4).
Merquior respondeu Saboga afirmando que ele “devia ao menos ler as primeiras páginas do livro” para descobrir que seu objeto era “um movimento de filósofos dentro do marxismo contemporâneo” e que, portanto, não faria sentido incluir Castro, Guevara e Torres, os quais não seriam filósofos. O livro tratava-se de um comentário a esse movimento, o qual teria “uma visão profundamente negativa da modernidade” (Trigo; Merquior, 1987TRIGO, Luciano; MERQUIOR, José Guilherme. 1987. Um crítico da “Kulturkritik”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 1, 6 abr., p. 1). A exceção, reconhecida por Merquior, certamente ecoando a crítica de Konder, era Gramsci, o qual faria parte do livro “porque é tão convencional integrá-lo no elenco do marxismo ocidental que, como eu gosto muito dele, lhe dedico um capítulo, mas para dizer o tempo todo que ele está de fora dessa caracterização”. Escobar recebeu palavras ainda mais duras: “não só é um pigmeu intelectual, como um leviano”, “destoa pelo seu absoluto primitivismo” (Trigo; Merquior, 1987TRIGO, Luciano; MERQUIOR, José Guilherme. 1987. Um crítico da “Kulturkritik”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 1, 6 abr., p. 1).
A réplica de Saboga insistiu em seus argumentos e trouxe mais uma vez à discussão o estranho lugar ocupado por Gramsci no livro de Merquior. O resenhista disse não entender por que Merquior justificou na entrevista ter incluído um capítulo sobre o sardo, sem se dar conta de que o crítico respondia à questão posta por seu amigo Konder. Saboga, um acadêmico profissional, acrescentou mais uma acusação contra Merquior, que não o era: o diplomata seguiria “vagamente a moda acadêmica” e promoveria o “deslocamento de questões teóricas do marxismo da esfera da política para a acadêmica” (SABOGA, 1987SABOGA, Herio. 1987a. A filosofice de Merquior. Jornal do Brasil, p. 11.a, p. 11). Na tréplica, Merquior voltou ao tema da ausência em Marx de uma reflexão sobre a sociedade comunista, uma crítica que também havia sido feita por marxistas como Perry Anderson, para quem “o legado do pensamento institucional no marxismo sempre foi muito fraco”. Desta vez, explicitou as consequências políticas dessa ausência: “É que na experiência histórica dos nossos tempos, o desprezo pelo institucional geralmente serviu de álibi para a alegre confecção de verdadeiras monstruosidades institucionais como no chamado socialismo do estado modelo Bolchevique” (Merquior, 1987bMERQUIOR, José Guilherme. 1987b. De Marx a Brucutu. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 10., p. 10).
A polêmica continuou nos meses seguintes e assumiu um tom ainda mais belicoso com artigo de Emir Sader publicado na revista Senhor. De acordo com Sader, a acusação de irracionalismo, jogada à cara do marxismo ocidental por Merquior, não se justificaria e sequer encontraria amparo no livro que este havia publicado. Para o resenhista, O marxismo ocidental não passava de “uma exposição acadêmica sobre uma plêiade de autores marxistas”, com muitas “páginas que se assemelham a notas de curso acadêmico, recheadas de citações e autores, de inegável qualidade e inquestionável falta de originalidade” (Sader, 1987bSADER, Emir. 1987b. A moeda falsa da crítica. Senhor, pp. 65-66., p. 65-66). Além da falta de originalidade com relação àquilo que Perry Anderson (1976aANDERSON, Perry. 1976a. Considerations on Western Marxism. London: NLB.) teria dito dez anos antes em seu livro sobre o marxismo ocidental, Sader acusava Merquior de não dar o devido valor à história: “Falta a historiografia e falta a abordagem histórica, que enquadra as aventuras do marxismo ocidental no mar real das oscilações com que a evolução do século fez navegar os principais teóricos das últimas décadas” (Sader, 1987bSADER, Emir. 1987b. A moeda falsa da crítica. Senhor, pp. 65-66., p. 66). Sem a história, seria impossível compreender os destinos e as opções dos autores que Merquior submeteu ao escrutínio, fazendo com que seus itinerários parecessem “derivar de problemáticas exclusivamente teóricas, sem nada a ver com as derrotas revolucionárias do primeiro pós-guerra, com a ascensão de Stálin e do nazismo, com os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, o eurocomunismo, o maoísmo, 1968, as revoluções na periferia do capitalismo, entre outros eventos fundamentais” (Sader, 1987bSADER, Emir. 1987b. A moeda falsa da crítica. Senhor, pp. 65-66., p. 66). Esgotados os argumentos, Sader tocou em um ponto sensível: a benevolência de Merquior com os “governantes de turno”, do general João Figueiredo a José Sarney, a qual contrastaria com a “implacabilidade” que o “rigoroso crítico” demonstrou “contra os que denunciam essa total desvinculação entre teoria e prática” (Sader, 1987b, p. 66SADER, Emir. 1987b. A moeda falsa da crítica. Senhor, pp. 65-66.).
A resposta de Merquior na Folha de S.Paulo foi violenta, desqualificando seu resenhista: “desconheço as credenciais intelectuais do sr. Sader. Pelo visto trata-se de uma autoridade discreta, cuja obra permanece oculta do público e seus pares” (Merquior, 1987cMERQUIOR, José Guilherme. 1987c. O não-saber de Sader. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A-64.). O crítico também insistiu em seu argumento, destacando os traços de irracionalismo presentes no marxismo ocidental, à exceção de Gramsci. Depois de afirmar que conhecia pessoalmente Perry Anderson, bem como sua obra, e que este havia publicado seu livro sobre o estruturalismo, Merquior aproveitou para esclarecer a diferença entre sua abordagem do marxismo ocidental e aquela do editor da New Left Review. De acordo com o crítico brasileiro, o principal argumento de seu colega inglês era que os autores do chamado marxismo ocidental eram “teóricos divorciados da práxis revolucionária” (Merquior, 1987cMERQUIOR, José Guilherme. 1987c. O não-saber de Sader. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A-64.). Mas Anderson não teria tematizado “a relação entre esse teoretismo alienado e a ‘Kulturkritic’” e, desse modo, não teria atribuído “nenhum relevo à rejeição neo-romântica pelos arraiais do moderno humanismo dos valores da cultura moderna” (Merquior, 1987cMERQUIOR, José Guilherme. 1987c. O não-saber de Sader. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A-64.). Merquior, entretanto, evitou neste artigo comentar a respeito de sua colaboração com o regime militar.
Na tréplica, publicada logo depois no mesmo jornal, Sader voltou à carga. O professor da Universidade de São Paulo (USP) criticou o uso de argumentos de autoridade por parte de Merquior, descreveu sua trajetória como exilado e docente de instituições de ensino superior e reiterou seus argumentos, enfatizando que o problema maior da crítica do diplomata estaria na “desvinculação entre teoria e prática política” (Sader, 1987cSADER, Emir. 1987c. Merquior, de chique a brega. Folha de S.Paulo, p. A-42.). O argumento de Sader tinha uma dupla finalidade. Por um lado, lhe permitia contestar a ausência de uma análise histórica na crítica de Merquior ao marxismo ocidental. Por outro, tornava possível atacar o próprio Merquior e mais uma vez lembrar que sua “carreira diplomática deslanchou, sintomaticamente, em consonância com o movimento de 1964”, uma trajetória que teria deixado “marcas profundamente autoritárias na forma de fazer e receber críticas” (Sader, 1987cSADER, Emir. 1987c. Merquior, de chique a brega. Folha de S.Paulo, p. A-42.).
Para a história da circulação e tradução das ideias políticas, a passagem mais interessante do artigo de Sader é aquela na qual comenta que foi o próprio Perry Anderson quem lhe sugeriu que o livro de Merquior mereceria “uma dura crítica” (Sader, 1987SADER, Emir. 1987d. The Workers’ Party in Brazil. New Left Review, n. I/165, pp. 93-102.c). Embora não existam outras evidências de que isso realmente ocorreu, é provável que assim tenha sido. Emir Sader participou no final dos anos 1960 da breve mas importante experiência da revista Teoria e Prática, a qual foi fundada, como ele próprio recordou, sob a influência da visita de Perry Anderson à USP (Sader, 2005SADER, Emir. 2005. Nós que amávamos tanto o capital: fragmentos para a história de uma geração. Sociologias, n. 5, p. 150-177.). O contato entre ambos se estendeu no tempo e perdura até os dias de hoje. Embora a colaboração de Sader com a New Left Review seja ocasional, em 1987, a revista publicou um artigo seu sobre o Partido dos Trabalhadores (Sader, 1987dSADER, Emir. 1987d. The Workers’ Party in Brazil. New Left Review, n. I/165, pp. 93-102.). Embora não exista uma crítica direta de Anderson ao livro de Merquior, Sader assumiu a empreitada sugerida pelo amigo e confrontou o diplomata, contrapondo a este os comentários sobre o marxismo ocidental feitos pelo editor da New Left Review. O argumento do professor da USP se tornava assim paradoxal: depois de acusar Merquior de reproduzir as ideias de Anderson sobre o marxismo ocidental, Sader usava essas mesmas ideias contra o diplomata brasileiro.
A polêmica continuou nas páginas dos jornais, mas já dizia muito pouco sobre as ideias. Na resposta a Sader, Merquior se dedicou a falar de sua biografia. Contou ter iniciado sua carreira diplomática no governo João Goulart sob a proteção do chanceler João Augusto de Araújo Castro e de ser publicamente ligado a dois arautos da política externa independente: Afonso Arinos de Melo Franco e Francisco San Thiago Dantas. Refutou, também, que tenha sido um “funcionário do regime” militar e ghost-writer do chefe da Casa Civil do Governo Figueiredo, João Leitão de Abreu. Terminou seu artigo afirmando que “às vezes os próprios intelectuais são os maiores inimigos da inteligência” (Merquior, 1987aMERQUIOR, José Guilherme. 1987a. A nudez intelectual de Sader. Folha de S.Paulo, p. A-42.). Sader contra-atacou no Jornal do Brasil, referindo-se a Merquior, cujo sobrenome só era citado no título, como “José, o outro”, aludindo sarcasticamente ao “governante de turno e colega da Academia Brasileira de Letras”, o presidente Sarney. O professor da USP incluía o diplomata no restrito grupo de intelectuais brasileiros que ao invés de terem escolhido o caminho da resistência, do exílio ou da luta contra a ditadura militar, “optaram pelo mais fácil caminho da ascensão individual, do coqueteio com o poder”. De acordo com o resenhista, o livro de Merquior não teria coerência, “porque na verdade não é dirigido ao debate e à reflexão crítica independente, mas voltada para tirar diploma com os de cima, de fervoroso adversário das ideologias populares” (Sader, 1987aSADER, Emir. 1987a. A ignorância ilustrada de Merquior. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 11.).
Diálogo e tolerância
Os argumentos de Sader não convenceram Rubem Barbosa Filho, o qual publicou na revista Presença uma extensa resenha do livro de Merquior15 15 Sobre a revista Presença, ver a tese de Camila Góes (2021), a quem agradeço a indicação desta resenha e da réplica de Merquior. . A revista havia sido fundada em 1983 por um grupo de intelectuais que tinham por objetivo renovar a política do Partido Comunista Brasileiro recuperando a tradição democrática de sua “Declaração de Março de 1958”16 16 Sobre a Declaração de Março e seus efeitos na renovação do PCB, ver: Santos (1988). . Em seu manifesto inaugural, o velho comunista Armênio Guedes definia aquela que para os editores era a única originalidade da revista: “a da tolerância e da generosidade democráticas, qualidades quase sempre ausentes em nosso país” (Guedes, 1983GUEDES, Armênio. 1983. Apresentação. Presença, n. 1, pp. 7-10., p. 7). Tanto Carlos Nelson Coutinho como Leandro Konder, este último com mais frequência, contribuíram com a revista, a qual era fortemente influenciada pelas ideias de Antonio Gramsci.17 17 De acordo com o levantamento de Camila Góes, Leandro Konder publicou treze artigos na revista entre 1983 e 1990, o que o tornava o segundo autor mais publicado nela. Carlos Nelson Coutinho publicou menos de seis artigos e por isso não fez parte do inventário (cf.: Góes, 2021, Tabela 3, p. 276).
Para Barbosa Filho, Sader não teria percebido que o livro de Merquior estava construído sobre uma hipótese específica decorrente de uma definição peculiar da modernidade e do moderno. Resumidamente, para Merquior, o marxismo ocidental não teria sido capaz de “elaborar uma adequada reflexão sobre a sociedade moderna” e, por essa razão, estaria marcado por um “aguçado ethos antimoderno e anti-industrial, responsável tanto pelo pessimismo quanto pelo angustiado messianismo dos vários pensadores” (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 122). Esse ethos encontraria suas raízes no próprio Marx, o qual estaria dividido entre uma simpatia pelo industrialismo e uma antipatia romântica pela sociedade moderna.
Barbosa Filho procurou enfrentar esse diagnóstico mobilizando o livro de Marshall Berman (1986BERMAN, Marshall. 1986. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras.), publicado havia pouco tempo em português e recebido uma entusiasmada acolhida pelo público brasileiro18 18 Sobre a recepção desse livro no Brasil ver: Ridenti (2010). . O resenhista argumentou que o pensamento marxiano carregava consigo “um radical compromisso com a modernidade que se quer mais ampla do que aquela construída pela burguesia e sustentada pelo pensamento liberal” (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 224). Seguindo a trilha de Antonio Gramsci, Barbosa Filho procurou compatibilizar uma perspectiva humanista, presente segundo ele em Marx, com a recusa de uma atitude antirracionalista que não encontrava no pensamento do autor de Das Kapital. Modernidade, ciência e razão poderiam coexistir pacificamente no âmbito do marxismo, desde que este deixasse de ser um economicismo e permitisse a reconciliação entre “uma abordagem científica e possibilidade de transformação social (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 126).
Depois de livrar Marx da acusação de irracionalismo, Barbosa Filho procurou demonstrar as incoerências do diagnóstico merquiorano: ao menos quatro expoentes desse marxismo ocidental - Gramsci, Benjamin, Althusser e Habermas - estariam muito longe de serem antimodernos, ou, ao menos, seriam ambíguos a respeito. Haveria, portanto, um problema de “consistência interna” no argumento de Merquior, o qual teria reconhecido em seu livro essas ambiguidades, mas não chegado às conclusões necessárias (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131.). A inconsistência demonstrada pelo autor de O marxismo ocidental seria decorrente da apressada homogeneização que fez de autores muito diferentes entre si e de uma reflexão pouco atenta à “contextualização histórica” (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 129).
De acordo com Barbosa Filho, uma contextualização adequada teria permitido perceber o marxismo ocidental como um componente de “um período histórico profundamente conturbado e contraditório da história ocidental”, ao mesmo tempo em que permitiria “visualizar o angustiado diálogo com tendências do pensamento liberal” (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 129). Aquele pessimismo que Merquior havia identificado no marxismo, o qual seria fundamento da Kulturkritik, não seria muito diferente daquele que se encontraria presente também em Weber, Michels, Durkheim, Ortega y Gasset, Arendt, Mosca e Pareto. A crise teórica que teria permitido o desenvolvimento do marxismo ocidental seria, desse modo, uma crise de toda a intelligentsia europeia, a liberal incluída.
Conceber a “crise” desse modo seria importante, segundo Barbosa Filho, para compreender os desafios da esquerda no Brasil. Para o resenhista, a “luta conjunta de intelectuais liberais e de esquerda pela questão democrática” era o caminho para a “modernidade possível” em nosso país. Ele escrevia em um momento no qual o trabalho da Assembleia Constituinte avançava, culminando a transição democrática, e seu texto ecoava fortemente o programa político da revista que nessa altura tinha vários de seus membros alinhados com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Temeroso dos efeitos que o livro de Merquior poderia produzir sobre a intelectualidade em uma conjuntura tão acirrada e advogando uma aliança entre socialistas e liberais, Barbosa Filho concluía acidamente, afirmando que a crítica de Merquior ao marxismo ocidental dava “munição ao conservadorismo” (Barbosa Filho, 1987BARBOSA FILHO, Rubem. 1987. Merquior e a coruja. Presença, n. 10, pp. 121-131., p. 131).
Apesar da aguda estocada nos parágrafos finais do artigo de Barbosa Filho, Merquior respondeu de modo cordato na edição seguinte da revista Presença. O diplomata disse responder a seu resenhista “com especial prazer” e escreveu que o texto publicado era a “melhor crítica brasileira que o livro recebeu até aqui”. Nas palavras de Merquior, Barbosa Filho teria sido atento ao cerne do argumento de seu livro, “a equação entre o grosso do marxismo ocidental e a Kulturkritik, com consequências irracionalistas” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 115).
Merquior respondeu seu resenhista defendendo os argumentos contidos no livro e esclarecendo alguns pontos importantes. A acusação de irracionalismo atirada à face dos marxistas ocidentais não diria respeito à autoimagem destes e sim ao seu “desempenho analítico” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 117). Era justamente esse desempenho, que oscilaria entre a hostilidade e a incompreensão da modernidade, o que permitiria destacar as tendências irracionalistas presentes em autores tão diferentes entre si. A operação de “homogeneização” não caberia, portanto, mas poderia ser devolvida, segundo Merquior, ao resenhista, o qual teria identificado o Kulturpessimismus dos frankfurtianos em autores tão diferentes como Durkheim, Weber e os demais citados por Barbosa Filho. Não apenas o liberalismo de alguns desses autores seria questionável, como a experiência histórica na qual emergiram suas ideias eram muito distintas entre si (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., pp. 120-121).
Merquior ainda voltou a seu argumento a respeito de Marx, enfatizando que, embora este não fosse um pensador romântico e não possuísse uma mentalidade completamente antimoderna, “é inegável a presença, no seu pensamento, de um forte veio refratário ao sistema institucional da modernidade” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 124). O problema seria, para Merquior, que “esse vírus ideológico vira uma verdadeira epidemia antimoderna nas principais obras do MO [marxismo ocidental]” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 125). O recurso a Berman não salvaria a defesa que Barbosa Filho teria feito de Marx e do marxismo ocidental. A equação “marxismo = modernismo”, defendida por Berman, estaria sustentada em uma concepção futurista da modernidade, vista como “uma jubilosa destruição criadora, uma avalanche tecnológica e sensorial” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 127). Em Berman, entretanto, essa modernidade viria carregada não do otimismo histórico marxiano, mas do niilismo do modernismo. As consequências desse argumento eram inaceitáveis para Merquior.
O diplomata encerrou seu artigo se defendendo da estocada final de seu resenhista. Argumentou que o marxismo ocidental nunca havia demonstrado grande apreço pela democracia, de modo que não via como a crítica deste poderia dar “munição ao conservadorismo” e afirmou que até Habermas, o único a “levantar a questão da democracia” era “evidentemente, Gramsci” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 128). A propósito, Merquior relembrou sua polêmica com Carlos Nelson Coutinho, afirmando que, mesmo em Gramsci, a visão democrática era “basicamente insuficiente e insatisfatória”, e completou afirmando que seu amigo teria reconhecido essa insuficiência em seus escritos mais recentes compreendendo que “a teoria da hegemonia precisa ser reforçada por uma dose de pluralismo liberal”. Arrematou: “depois de ter ultrapassado Lênin, com a ajuda de Gramsci, Carlos Nelson, nosso melhor ensaísta político marxista, acaba de ultrapassar o próprio Gramsci, numa perspectiva democrática que muito deve à renovação do pensamento liberal” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 128).
Merquior concluiu seu artigo pedindo a seu interlocutor que não o empurrasse para a direita: “Não é nela que estou, nem para ela vou” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 128). Também afirmou que não partilhava de nenhuma posição com “conotações autoritárias”, uma clara referência às acusações que recebera de outros resenhistas: “No Brasil da transição, quem ainda precisa, e muito, de autocrítica em matéria de autoritarismo, não são exatamente os liberais de minha espécie” (Merquior, 1988MERQUIOR, José Guilherme. 1988. Marxismo e modernidade. Presença, n. 11, pp. 115-128., p. 128).
A última batalha
O último confronto de Merquior com os marxistas ocorreu poucos meses antes de sua morte. Por ocasião do lançamento de seu livro Crítica: 1964-1989 (Merquior, 1990aMERQUIOR, José Guilherme. 1990a. Crítica: 1964-1989. Rio de Janeiro: Nova Fronteira .), Ricardo Musse, então doutorando de Filosofia, publicou uma resenha no jornal Folha de S.Paulo, comentando o livro. A resenha era precedida por uma entrevista com Merquior, conduzida por Bernardo Carvalho, em um tom belicoso pouco usual para o gênero jornalístico (Carvalho e Merquior, 1990CARVALHO, Bernardo; MERQUIOR, José Guilherme. 1990. Em seu 20o livro, José Guilherme Merquior ataca “paradigma formalista”. Folha de S.Paulo, 3 nov. 1990. Letras, p. F4.). A crítica de Musse foi muito mais comedida, concentrando-se no livro resenhado e abstendo-se de fazer ilações a respeito dos compromissos políticos do diplomata. Nessa ocasião, o resenhista constatou que, enquanto os artigos de crítica literária de Merquior seguiam um padrão acadêmico, sua crítica cultural era mais livre e pouco rigorosa: “utiliza-se da terminologia filosófica sem controle conceitual, ou mesmo senso histórico, manipulando conceitos sem referencial e vinculando pensamentos sem mediações” (Musse, 1990aMUSSE, Ricardo. 1990a. Livro expõe crítica da cultura às avessas. Folha de S.Paulo, pp. F-4-F-5., p. F-4).
O ataque de Musse se concentrou, entretanto, na tese principal que percorria o livro de Merquior: o modernismo estético e seu formalismo foi um movimento “culturalmente, e às vezes, mesmo politicamente reacionário”, oposto à modernidade política e social com a qual o diplomata se alinhava (Musse, 1990aMUSSE, Ricardo. 1990a. Livro expõe crítica da cultura às avessas. Folha de S.Paulo, pp. F-4-F-5., p. F-4). A consequência dessa oposição era uma “crítica da cultura às avessas”, que atacava os elementos de “rebeldia e contestação” presentes na cultura modernista. A recusa das formas próprias do modernismo teria subjugado Merquior aos “vícios da crítica ideológica”, reproduzindo um “procedimento normativo” (Musse, 1990aMUSSE, Ricardo. 1990a. Livro expõe crítica da cultura às avessas. Folha de S.Paulo, pp. F-4-F-5., p. F-5). Embora a resenha tenha sido escrita de maneira independente, sem o conhecimento da entrevista, ela deve ser lida em conjunto com esta, para melhor compreensão do efeito que ela produziu.
Merquior (1990MERQUIOR, José Guilherme. 1990c. Resenhador de “Crítica” foi apressado e redutor. Folha de S.Paulo, p. F-6.c) respondeu ao resenhista duas semanas depois, sem deixar de atacar também seu entrevistador. Os epítetos abundavam na resposta: “jovem”, “moço”, “futuro professor”, “palpiteiro” e “baixo clero”. Mais interessante do que a retórica agressiva, característica de Merquior, eram, entretanto, seus argumentos. Neles, o diplomata citou As ideias e as formas (Merquior, 1981aMERQUIOR, José Guilherme. 1981a As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), coletânea na qual sua cruzada antiformalista aparecia entrelaçada com sua defesa do liberalismo. E lembrou que, já em O marxismo ocidental (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações . [1986]), havia deixado evidente que o jovem Lukács havia transportado sua crítica estética “ético-totalista” para o âmbito da política, um caminho que o “euromodernismo” teria promovido no sentido contrário. Seja qual fosse o sentido, se da estética para a política ou da política para a estética, esse caminho conduziria aos “vários vínculos entre a mente euromodernista e o espírito totalitário” (Merquior, 1990cMERQUIOR, José Guilherme. 1990c. Resenhador de “Crítica” foi apressado e redutor. Folha de S.Paulo, p. F-6., p. F-6).
Em sua resposta, Musse (1990MUSSE, Ricardo. 1990b. Merquior vê a folha da árvore e atira na floresta. Folha de S.Paulo, p. F-6.b) contestou as ofensas e insinuações, procurou reforçar a acusação de superficialidade já feita, desta vez argumentando com base na réplica de Merquior, chamou o diplomata de “ultra-romântico enrustido” e esclareceu seu ponto de vista a respeito do modernismo. Segundo o resenhista, “o (bom) exemplo de modernização social e o (mau exemplo) do modernismo” eram apenas uma maneira de ver as coisas. Outro modo, segundo o qual o “modernismo estético é um mero apêndice da modernização social”, também teria sido destacado por muitos autores. Para Musse, entretanto, embora essas duas maneiras de encarar o modernismo tivessem fortes argumentos em seu favor, “ambas fazem um recorte apenas unilateral da modernidade” (Musse, 1990bMUSSE, Ricardo. 1990b. Merquior vê a folha da árvore e atira na floresta. Folha de S.Paulo, p. F-6., p. F-6), mas o tema não foi desenvolvido e o autor concluiu a resenha remetendo o leitor à análise habermasiana do tema (Habermas, 1987HABERMAS, Jürgen. 1987. The philosophical discourse of modernity: twelve lectures. Cambridge: MIT Press.).
Merquior (1990MERQUIOR, José Guilherme. 1990c. Resenhador de “Crítica” foi apressado e redutor. Folha de S.Paulo, p. F-6.b) voltou à carga uma semana depois, mas desta vez ignorou solenemente a resposta de Musse. Terçou armas, desta vez, com a pequena notinha que Bernardo Carvalho escreveu e publicou como apêndice à tréplica do diplomata, procurando explicar a confusão que havia feito na transcrição da entrevista entre “metastasis” e o poeta romano Pietro Metastasio (Merquior, 1990bMERQUIOR, José Guilherme. 1990b. O poeta Metastásio, Hoffman, Freud e outros detalhes. Folha de S.Paulo, p. F-2., p. F-2). Quem saiu em defesa de Merquior contra Musse foi Celso Lafer (1990LAFER, Celso. 1990. Discussão exige “calma para ver e honestidade para informar”. Folha de S.Paulo, p. F-2, 8 dez. 1990.), em um artigo publicado na mesma edição. Lafer protestou contra a afirmação de que Merquior era um ultrarromântico, bem como a insinuação de que não conheceria a obra de Habermas. Para o professor da Faculdade de Direito da USP, o “jovem (29 anos) doutorando em filosofia” teria ofendido as regras apropriadas para a discussão pública preconizadas por autores como John Stuart Mill e Jürgen Habermas. Musse não apenas teria demonstrado “falta de gosto pelo rigor, associado a uma propensão pelo preconceito”, como teria faltado “com a consideração que merece a altíssima envergadura da trajetória intelectual de José Guilherme Merquior” (Lafer, 1990LAFER, Celso. 1990. Discussão exige “calma para ver e honestidade para informar”. Folha de S.Paulo, p. F-2, 8 dez. 1990., p. F-2). Mas no artigo do professor não havia mais ideias do que essa defesa do respeito e da respeitabilidade. O artigo de Lafer parece deslocado, seja por ser um participante externo à discussão, seja por recorrer a razões que dificilmente poderiam ser encontradas nos textos de Musse, bastante cuidadosos no uso das palavras. Mas o artigo pode ter razões outras, servindo como homenagem ao amigo, o qual enfrentava galhardamente uma doença que veio a lhe tirar a vida poucos meses depois.
Motivos e intenções
A maneira como Merquior se engajou no debate com os marxistas brasileiros não foi sempre igual. O tipo de intercâmbio intelectual que manteve com Coutinho e Konder foi muito diferente daquele que marcou suas polêmicas contra Sader, Musse e outros. As razões são várias. O que distinguia Coutinho e Konder dos demais marxistas envolvidos nesses debates era o pertencimento à mesma geração da qual Merquior também fazia parte e, principalmente, a convivência precoce em estruturas de sociabilidade articuladas em torno das redações dos jornais e revistas, das livrarias e editoras, dos museus e dos salões, enfim, da intensa vida intelectual extra-acadêmica que caracterizava a cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1960.
Além desses traços comuns e das relações pessoais que marcavam Merquior, Coutinho e Konder, é possível identificar ao menos três adversários comuns a esse grupo de amigos e responsáveis por um diálogo crítico intenso e duradouro: o irracionalismo, o dogmatismo e o autoritarismo. Como visto já na orelha que escreveu para A razão do poema, publicado em 1965, Konder fazia referência à defesa que seu autor fazia do racionalismo e definia esta como um terreno comum. O engajamento desses três amigos contra tendências que denominavam de irracionalistas na filosofia e na cultura contemporânea foi frequente. Os alvos da crítica nem sempre eram os mesmos, entretanto, Merquior (2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .) dirigiu suas baterias contra o marxismo ocidental e o espírito antimoderno que o caracterizava; Coutinho (2010COUTINHO, Carlos Nelson. 2010. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular.), por sua vez, preferiu se engalfinhar com o estruturalismo, visto como um anti-humanismo; enquanto Konder (2009KONDER, Leandro. 2009. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular.) dirigiu sua crítica ao caráter antidialético do marxismo-leninismo Mesmo assim, os empreendimentos eram convergentes, como se pode ver na crítica que Merquior e Coutinho dirigiram à filosofia de Louis Althusser (Coutinho, 2010COUTINHO, Carlos Nelson. 2010. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular.; Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações .) e de Michel Foucault (Coutinho, 2010COUTINHO, Carlos Nelson. 2010. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular.; Merquior, 2021MERQUIOR, José Guilherme. 2021. Foucault, ou o niilismo de cátedra. São Paulo: É Realizações, 2021.), bem como na ênfase que todos eles deram ao caráter irracional do stalinismo. Comentando a crítica que moveu contra o irracionalismo e as tendências que procuravam combinar as ideias de Marx e de Nietzsche, Castello (1987CASTELLO, José. 1987. A vitória da velha razão. Jornal do Brasil, 19 dez. 1987. Idéias, p. 6-7.) resumiu esse empreendimento: “Nessa luta, um antimarxista como José Guilherme Merquior é meu primo” (p. 6).
Uma segunda preocupação comum era o dogmatismo. A luta de Coutinho e Konder no interior do Partido Comunista Brasileiro contra as tendências dogmáticas que se faziam presentes é bastante conhecida. A heterodoxia que sempre demonstraram lhes permitia ter uma atitude crítica com o próprio marxismo, ou ao menos, com as correntes mais ortodoxas que predominavam na esquerda partidária. Desse modo, embora tanto Coutinho como Konder tenham reagido criticamente a certos argumentos presentes em O marxismo ocidental, encararam de modo aberto e despido de preconceitos a crítica de Merquior. Também neste terreno partilhavam inimigos em comum e uma ética do diálogo. Escrevendo sobre Konder, Coutinho afirmou que a ação teórica e política” deste era marcada por “um profundo espírito de tolerância, a abertura para o diverso, a permanente preocupação em manter abertas as condições para um fecundo diálogo entre o marxismo e as demais correntes de pensamento” (Coutinho, 2009COUTINHO, Carlos Nelson. 2009. Derrota e revanche da dialética. In: KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular. p. 7-16., p. 11). E concluiu afirmando: “tampouco me parece casual que o saudoso José Guilherme Merquior, talvez o mais brilhante pensador liberal brasileiro, tenha dedicado a Leandro o seu livro de crítica ao ‘marxismo ocidental’” (Coutinho, 2009COUTINHO, Carlos Nelson. 2009. Derrota e revanche da dialética. In: KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular. p. 7-16., p. 11-12). Pode se objetar, entretanto, que Merquior não era animado pelo mesmo espírito tolerante de seu amigo e que costumava atacar violentamente seus adversários. Mas também nesses arroubos o que se manifestava era um forte antidogmatismo. Era em nome da recusa de ideias fáceis, cômodas e dóceis que a verve ácida do polemista aparecia com maior intensidade.
O diálogo cordato entre Barbosa Filho e Merquior fornece uma prova adicional. Ambos não pertenciam a uma mesma geração, nem há indícios de que tenham participado de uma mesma estrutura de sociabilidade, mas o lugar no qual este diálogo teve lugar teve sua importância e definiu seus contornos. A revista Presença, desde sua fundação, acolhia vozes diversas, provenientes de um amplo espectro democrático e antiautoritário. Embora tivesse uma clara linha política, esta se definia, justamente, pela defesa do pluralismo e pelo antidogmatismo, valores partilhados também por Merquior. O espaço no qual o intercâmbio ocorreu favorecia e estimulava, portanto, o diálogo. As ideias apresentadas por Barbosa Filho e a intenção política que orientava o texto também contribuíram para tal. Ao contrário de outros críticos, o resenhista da Presença argumentou a partir de uma perspectiva antirromântica, explicitamente racionalista e fortemente antidogmática, estabelecendo, desse modo, um terreno comum com Merquior.
Mas a convergência não era apenas histórica e filosófica. A resenha de Barbosa Filho estava claramente orientada pelo programa político que encontrava lugar nas páginas da revista Presença, a qual via na convergência entre socialistas e liberais democráticos a solução para os impasses da “modernidade possível” no Brasil e para a consolidação da incipiente Democracia. Entre os participantes desse coletivo apareciam nuances a respeito e diferenças sobre os partidos que melhor favoreceriam a construção dessa frente, mas, apesar dos desacordos, intelectuais como Merquior teriam seu lugar nesse projeto apesar de suas oscilações e de, em algumas oportunidades, fornecerem “mesmo involuntariamente, munição ao conservadorismo”. Por intermédio de Barbosa Filho, Merquior continuou sua conversa com Coutinho e Konder.
Embora o diálogo de Merquior com os marxistas tenha assumido tons estridentes em mais de uma circunstância, ele ainda permanece como vestígio de uma época não muito distante, na qual o intercâmbio intelectual entre diferentes vertentes político-ideológicas ainda era possível. Sua reconstrução permite compreender não apenas as modalidades do debate público, mas também o que estava em jogo nele. Quando a Democracia era um objetivo explicitamente ressaltado pelos interlocutores, a tolerância era uma exigência, e também ela parte de um programa político. Restabelecer dignidade ao princípio da tolerância é, também, fortalecer a Democracia nestes dias que correm.
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- MOUFFE, Chantal. 1979. Gramsci’s and Marxists Theory. London: Routledge & Kegan Paul, 1979.
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» https://bit.ly/3MByiZo - SIRINELLI, Jean-François. 1986. Le hasard ou la nécessité ? Une histoire en chantier : L’histoire des intellectuels. Vingtième Siècle, n. 9, p. 97-108.
- SIRINELLI, Jean-François. 1989. Génération et histoire politique. Vingtième siècle, v. 22, p. 67-80.
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- TRIGO, Luciano; MERQUIOR, José Guilherme. 1987. Um crítico da “Kulturkritik”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 1, 6 abr.
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Sobre os conceitos de geração intelectual e estrutura de sociabilidade, ver: Sirinelli (1986SIRINELLI, Jean-François. 1986. Le hasard ou la nécessité ? Une histoire en chantier : L’histoire des intellectuels. Vingtième Siècle, n. 9, p. 97-108., 1989SIRINELLI, Jean-François. 1989. Génération et histoire politique. Vingtième siècle, v. 22, p. 67-80.).
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A referência era obviamente a Leandro, filho de Valério Konder, um comunista da velha guarda.
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O interesse pelas ideias de Lévi-Strauss pode ser percebido já no ensaio “Estética e antropologia”, escrito em 1964 e parte do livro Razão do poema (Merquior, 2013MERQUIOR, José Guilherme. 2013b. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações ., p. 241-286). A editora É Realizações, a qual detém o espólio bibliográfico de José Guilherme Merquior, acaba de publicar um livro inédito, escrito originalmente em francês quando ele era aluno de Claude Lévi-Strauss (Merquior, 2022MERQUIOR, José Guilherme. 2022. Estruturalismo como pensamento radical. São Paulo: É Realizações .). Nesse livro, Merquior se interroga sobre a ética subjacente à Antropologia de seu mestre. Este artigo já havia sido submetido à revista Lua Nova quando o livro foi lançado, razão pela qual é aqui apenas mencionado.
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Na verdade, Merquior tinha uma hipótese explicativa. Esse “mistério” estava “ligado a esses surdos combates internos, a essas obscuras guerras de religião, que constituem a história dos partidos comunistas e de suas respectivas intelligentsias” (Merquior, 1981dMERQUIOR, José Guilherme. 1981d. Marxismo e democracia: As idéias e as formas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira . pp. 232-240., p. 237). Acertou na mosca. Quase 20 anos mais tarde, Carlos Nelson Coutinho escreveu a respeito dessa hipótese: “Sou obrigado a reconhecer hoje, tantos anos depois, que Merquior tinha boa dose de razão […]. Em 1979, quando escrevi A democracia como valor universal, ainda era militante do PCB e acreditava em sua renovação” (Coutinho, 2000COUTINHO, Carlos Nelson. 2000. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez., p. 11).
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No livro, entretanto, a ênfase recai exclusivamente sobre Lukács e Gramsci.
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A bibliografia de Lukács é extensa no livro de Merquior, mas predominam as traduções para o inglês. As eventuais referências neste artigo às obras de Lukács são feitas utilizando as mesmas edições citadas em O marxismo ocidental.
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No ensaio sobre Novalis, Lukács afirmou que este teria dito que nada existiria de mau no mundo e “tudo nos deixaria cada vez mais perto de outra era de ouro”, mas não há nesse ensaio nexo evidente entre essa era de ouro e a ideia de comunidade (Lukács, 1974LUKÁCS, György. 1974. Soul and form. Cambridge: MIT Press., p. 52).
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De acordo com Lukács, “em Tolstoi, insinuações de um avanço para uma nova época são visíveis; mas permanecem polêmicos, nostálgicos e abstratos. É nas palavras de Dostoiévski que este novo mundo, distante de qualquer luta contra o que realmente existe, é desenhado pela primeira vez simplesmente como uma realidade vista” (Lukács, 1971bLUKÁCS, György. 1971b. The theory of the novel; a historico-philosophical essay on the forms of great epic literature. Cambridge: MIT Press., p. 152).
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Segundo Lukács: “Não é a primazia dos motivos econômicos na explicação histórica que constitui a diferença decisiva entre o marxismo e o pensamento burguês, mas o ponto de vista da totalidade” (Lukács, 1971aLUKÁCS, György. 1971a. History and class consciousness; studies in Marxist dialectics. Cambridge, Mass.: MIT Press., p. 27). E o “desejo consciente pelo reino da liberdade só pode significar dar conscientemente os passos que realmente levarão a ela. […] Implica a subordinação consciente de si mesmo àquela vontade coletiva que está destinada a trazer à existência a liberdade real e que hoje está dando seriamente os primeiros passos árduos, incertos e tateantes em direção a ela. Essa vontade coletiva consciente é o Partido Comunista” (Lukács, 1971aLUKÁCS, György. 1971a. History and class consciousness; studies in Marxist dialectics. Cambridge, Mass.: MIT Press., p. 315).
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Além de Anderson (1976ANDERSON, Perry. 1976b. The Antinomies of Antonio Gramsci. New Left Review, n. 100, pp. 5-78.b), Merquior citou Adamson (1980ADAMSON, Walter L. 1980. Hegemony and revolution. Berkeley: University of California Press.), Boggs (1976BOGGS, Carl. 1976. Gramsci’s Marxism. London: Pluto.), Femia (1981FEMIA, Joseph V. 1981. Gramsci’s political thought. Oxford: Oxford University.), Levy (1987LEVY, Carl. 1987. Max Weber and Antonio Gramsci . In: MOMMSEN, Wolfgang J.; OSTERHAMMEL, Jurgen (org.). Max Weber and his contemporaries. London: Routledge. pp. 388-408.) e Mouffe (1979MOUFFE, Chantal. 1979. Gramsci’s and Marxists Theory. London: Routledge & Kegan Paul, 1979.), além de alguns poucos italianos. As obras desses autores sobreviveram muito mal ao tempo, não incorporaram os ganhos analíticos decorrentes da edição crítica dos Quaderni del carcere, publicada em 1975 sob responsabilidade de Valentino Gerratana, e hoje raramente são citados nos estudos gramscianos.
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Trata-se das seleções e traduções de Q. Hoare e G. N. Smith (Gramsci, 1971GRAMSCI, Antonio. 1971. Selections from the Prision Notebooks of Antonio Gramsci . New York: International Publishers.; 1977bGRAMSCI, Antonio. 1977b. Selections from political writings. New York: International Publishers .). Além de tardias, estas edições não traziam sequer a totalidade dos textos presentes na chamada edição temática, publicada sob a direção de Felice Platone e Palmiro Togliatti pela editora Einaudi a partir dos anos 1950. Ficavam, portanto, aquém das edições argentina e brasileira, já publicadas.
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Cf. p. ex. a seguinte afirmação: “Os cadernos foram começados em 1929. Em 1935, a doença forçou Gramsci a deixar de escrever. As notas mais antigas são, primordialmente, uma reação à vitória do fascismo. No começo da década de 1930, elas se tornam mais teóricas, menos imediatamente políticas. Finalmente, aí pelos últimos dois anos, o foco recai na cultura italiana e nas questões linguísticas” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 12). Para a crítica aos erros interpretativos de Anderson, ver: Francioni (1984FRANCIONI, Gianni. 1984. L’Officina gramsciana: ipotesi sulla struttura dei “Quaderni del carcere”. Napoli: Bibliopolis.) e Thomas (2011THOMAS, Peter D. 2011. The Gramsci an moment: philosophy, hegemony and Marxism. Boston: Haymarket, 2011.).
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De acordo com Merquior, “Gramsci, dentre os fundadores do marxismo ocidental, mostrou inclinação para a sociologia histórica - mas a própria natureza de suas análises aproximou-o mais da tradição historista de Weber ou Croce que das preocupações historicistas de Hegel e Marx” (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 140).
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Apesar da ausência de uma concepção pluralista do poder político, Gramsci teria se mostrado preocupado, segundo Merquior, “com a ampliação do ‘eleitorado’ comunista” e por essa razão teria inspirado as correntes eurocomunistas e as ideias da “democracia de massas” de Pietro Ingrao (Merquior, 2018MERQUIOR, José Guilherme. 2018. O marxismo ocidental. São Paulo: É Realizações ., p. 135). Segundo Coutinho, em Gramsci, as “colocações básicas de Lenin, assim, são conservadas (no que têm de essencial) e elevadas a nível superior”, ele “assimilou e enriqueceu a teoria lenineana” (Coutinho, 1981, p. 66 e 126COUTINHO, Carlos Nelson. 1981. Gramsci. Porto Alegre: LP&M.).
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15
Sobre a revista Presença, ver a tese de Camila Góes (2021GÓES, Camila Massaro Cruz de. 2021. Gramsci e a dialética da tradução na América Latina: o caso das revistas Pasado y Presente e Presença. Tese de Doutorado em Ciência Política. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.), a quem agradeço a indicação desta resenha e da réplica de Merquior.
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Sobre a Declaração de Março e seus efeitos na renovação do PCB, ver: Santos (1988SANTOS, Raimundo. 1988. A primeira renovação pecebista: reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB. Belo Horizonte: Oficina de Livros.).
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17
De acordo com o levantamento de Camila Góes, Leandro Konder publicou treze artigos na revista entre 1983 e 1990, o que o tornava o segundo autor mais publicado nela. Carlos Nelson Coutinho publicou menos de seis artigos e por isso não fez parte do inventário (cf.: Góes, 2021GÓES, Camila Massaro Cruz de. 2021. Gramsci e a dialética da tradução na América Latina: o caso das revistas Pasado y Presente e Presença. Tese de Doutorado em Ciência Política. Campinas: Universidade Estadual de Campinas., Tabela 3, p. 276).
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18
Sobre a recepção desse livro no Brasil ver: Ridenti (2010RIDENTI, Marcelo. 2010. Intelectuais e modernidade: Marshall Berman e seu público brasileiro. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 3, pp. 289-316.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
12 Jan 2022 -
Aceito
30 Jan 2023