Open-access Concepções de Masculinidade Hegemônica como Mediadora do Sexismo Direcionado às Mulheres

RESUMO

Este artigo analisa a relação entre identidade masculina e sexismo ambivalente, tomando as concepções de masculinidade e a cultura da honra como variáveis mediadoras dessa relação. Para alcançar este objetivo, foram realizados dois estudos com participantes homens de duas regiões do país, Centro-oeste (119 participantes) e Nordeste (117 participantes). Os resultados indicaram que as concepções de masculinidade são mediadoras da relação entre identidade masculina e o sexismo ambivalente. Em contraste, a cultura da honra não se manteve significativa no modelo da mediação. Conclui-se que a concepção de uma masculinidade, baseada em preceitos hegemônicos de gênero, reafirma a superioridade masculina em detrimento à feminina, e naturaliza práticas de sexismo e comportamentos violentos em defesa da manutenção da identidade masculina.

PALAVRAS-CHAVE: masculinidade; sexismo; preconceito; identidade social; cultura da honra

ABSTRACT

This article analyses the relationship between masculine identity and ambivalent sexism, considering concepts of masculinity and culture of honour as mediating variables in this relationship. For this purpose, two studies were carried out with male participants from two regions of Brazil, Midwest (119 participants) and Northeast (117 participants). The results indicated that the concepts of masculinity are mediators of the relationship between masculine identity and ambivalent sexism. In contrast, the culture of honour did not remain significant in the mediation model. We conclude that the conception of masculinity based on hegemonic precepts of gender restates masculine superiority in detriment to the feminine, naturalizes sexism and violent behaviour for maintenance of masculine identity.

KEYWORDS: masculinity; sexism; prejudice; social identity; culture of honour

Dados do Relatório Mundial do Escritório das Nações Unidas, sobre Drogas e Crime (2019), demonstram que, em 2017, 87 mil mulheres foram assassinadas em todo o mundo; mais da metade delas (58%) foram mortas por parceiros íntimos ou outros membros da família, o que significa dizer que, por dia, 137 mulheres morrem vítimas de feminicídio no mundo. O estudo aponta a relação entre o gênero masculino e a violência, destacando que a cada dez suspeitos de casos de homicídio, aproximadamente nove são homens, e que a cada 10 vítimas de homicídios cometidos por parceiros íntimos, mais de oito são do sexo feminino.

No Brasil, a incidência da violência contra a mulher e, por consequência, a morte, tem números alarmantes. De acordo com o Atlas da Violência (2020), entre 2017 e 2018, apesar da taxa de homicídios contra mulheres ter apresentado uma queda de 9,3%, o número de homicídios ocorridos em residência e reconhecidos como feminicídios teve um aumento de 6,6%.

Mais recentemente, com cenário de pandemia e isolamento social causado pelo COVID-19 esse número tem aumentado. A pandemia teve um impacto mundial exacerbando desigualdades já existentes. Segundo a ONU Mulheres (2020), houve um incremento de casos de violência doméstica em todo o mundo, e as mulheres foram as principais vítimas. Em território nacional, segundo estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), 1, em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos, afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, período que corresponde ao da pandemia da Covid-19. Isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Vale ressaltar que a maioria das mulheres sofreu violência na sua própria casa, e os agressores são pessoas conhecidas da vítima. Esses dois elementos, ou seja, violência na própria casa e o agressor ser conhecido da vítima, são os mais recorrentes nas últimas pesquisas.

Entre os principais fatores explicativos da violência contra as mulheres estão a desigualdade socioeconômica, o sexismo e a manutenção de uma identidade masculina hegemônica, definida como um status social que deve ser conquistado e mantido por meio de ações publicamente verificáveis, evitando associações com o feminino de seus repertórios comportamentais, linguísticos e emocionais (Vandello & Bosson, 2013).

No entanto, os estudos não têm considerado o papel mediador que as concepções sobre essa masculinidade e cultura da honra têm na relação entre a identidade masculina e o sexismo, ressaltando que a “Cultura da Honra” é uma das principais causas da violência contra a mulher em culturas mais tradicionais (Souza, 2015; Souza, et al., 2017; Souza, et al., 2016).Neste artigo, analisamos a relação entre identidade masculina e sexismo, tomando as concepções de masculinidade e a cultura da honra como fenômeno mediador dessa relação.

Identidade Masculina, Cultura da Honra e Sexismo

A identidade masculina tem uma importância central na concepção de ser homem; a masculinidade não é apenas a formulação cultural de um dado natural, é um processo de construção social contínuo e disputado (Welzer-Lang, 2001). Trata-se de uma concepção genérica e não universal, pois depende da sociedade em que está inserida. Portanto, mais de um tipo de masculinidade pode ser encontrado dentro de um ambiente cultural, coexistindo diferentes entendimentos de masculinidades. Contudo, sua construção social segue uma lógica hierárquica, definindo formas masculinas dominantes e dominadas.

A consequência cultural dessa estruturação hierárquica seria a imposição de uma forma dominante, normativa, ideal de ser “homem”, sendo considerada uma masculinidade hegemônica (Connell & Messerschmidt, 2013) ou uma ideologia tradicional da masculinidade (Levant, 1996). Trata-se de um modelo patriarcal de masculinidade construído em dois campos inter-relacionados de relações de poder: nas relações de homens com mulheres, marcadas pelas desigualdades de gênero, e nas relações dos homens com outros homens, caracterizadas pelas desigualdades de raça, etnicidade, sexualidade, dentre outras.

A masculinidade, além de um parâmetro para hierarquizar condutas masculinas, constitui-se como uma série de práticas e símbolos compartilhados socialmente, e valorados como ideais. O ideal hegemônico de masculinidade tem como principais valores o poder do homem sobre a mulher (submissão feminina); a associação do status de masculinidade com a virilidade e força física; a necessidade de ser provedor e demonstrar coragem; assim como evitar qualquer atributo vinculado ao mundo feminino, para não correr o risco de “perder” sua identidade masculinidade (Connel & Messerschmidt, 2013; Kimmel, 1998).

De acordo com a Teoria da Identidade Social, as identidades são assumidas a partir do conflito simbólico entre os grupos a que sentimos pertencer e os grupos a que não pertencemos, pari passu com a tendência a supervalorizar seu grupo e desvalorizar o dos outros (Tajfel, 1983). Nessa perspectiva, a construção de um gênero é interdependente da construção do outro, ou seja, para que um homem aprenda o que é ser homem, é necessário que ele tenha clareza do que significa ser mulher.

Estudos mostram que a identificação masculina pode induzir à exclusão de traços femininos, produzindo um afastamento identitário do universo feminino (Bosson & Michniewicz, 2013; Guerra, et al., 2015). A manutenção desse processo é permanentemente vigiada e, sobretudo, autovigiada. O homem é socialmente cobrado e deve, nessa lógica, evitar posturas não másculas e fornecer provas de sua masculinidade (Welzer-Lang, 2001). Vandello et al. (2008), demonstram, no seu conceito de masculinidade “precária”, que a masculinidade exige mais realizações sociais que a feminilidade. Ao serem questionados como perdiam esse status, os participantes se referiam aos motivos mais relacionados a causas sociais (perder um emprego) e a razões físicas (perda da força com a idade). Os resultados evidenciam que a masculinidade (mais que a feminilidade) é vista como um status incerto, que deve ser conquistado sempre, e que pode ser perdido rapidamente (Vandello, et al., 2008).

Os comportamentos dos homens, principalmente aqueles mais identificados com a masculinidade hegemônica, são frequentemente motivados por uma necessidade contínua de provar o status, afirmando um gênero masculino tradicional. Esse padrão pode ter implicações nas atitudes e comportamentos relacionados à violência sexista (Vandello & Bosson, 2013).

Tais preocupações com a esse tipo de masculinidade parecem ser comuns à maioria das culturas (Gilmore, 1990), demonstrando que existe certa noção de “honra” masculina, como elemento central na organização social e identitária. Todavia, a existência e a manutenção de culturas da honra dependem de certas condições históricas e materiais.

Durante séculos, o Sul dos EUA foi considerado mais violento do que o Norte. As pessoas que viviam no Sul e em algumas partes do Oeste dos EUA demonstravam preocupações relacionadas à sua reputação, não percebidas em outras regiões (Cohen & Nisbett, 1996). Essas regiões tinham, em sua história, uma economia baseada em pastoreio e agricultura, população mais pobre e com baixa escolarização (Nisbett & Cohen, 1996; Henry, 2009).

Nas sociedades que adotam os postulados de uma cultura de honra, as normas e práticas sociais são importantes para a manutenção da honra, tanto masculina quanto feminina. Há, entretanto, uma atenção especial à honra masculina e à regulação severa do comportamento feminino. Nessas culturas, o status dos homens é associado à necessidade de parecerem fortes e capazes de responder às ameaças à sua masculinidade ou à sua família. Já as mulheres são estimuladas a possuírem características que endossem os papéis tradicionais de gênero. Assim, os homens, muitas vezes, sentem-se justificados a atribuir condutas e a envolverem-se em agressões para controlar suas parceiras e as mulheres da sua família; ao passo que as mulheres são encorajadas a suportarem tal tratamento, também por uma questão de honra, de reputação feminina (Rodriguez Mosquera, Manstead, & Fischer, 2002; Rodriguez Mosquera, Fischer, Manstead, & Zaalber, 2008). Dessa forma, a tendência dos homens de valorizar e defender sua masculinidade pode ter graves consequências, promovendo comportamentos destrutivos e atitudes sexistas, reforçando a desigualdade social e de gênero (Glick, Wilkerson, & Cuffe 2015).

A noção de que a masculinidade tradicional ou hegemônica é uma forma de identificação social problemática é comprovada em estudos, como, por exemplo: a relação entre o endosso dessa ideologia com graus mais altos de alexitimia (Levant et al., 2006), restrição emocional (Guerra et al., 2014; Levant et al., 2006; Oransky & Fisher, 2009), exagero no consumo de álcool (Capraro, 2000), e relutância em buscar serviços de saúde (Gomes & Nascimento, 2006). Outros estudos mostram que essa forma de masculinidade aumenta a possibilidade de os homens perceberem sua identidade como ameaçada (Vandello & Bosson, 2013), sendo mais propensos à agressão (Vandello & Cohen, 2003) e ao assédio sexual (Giordano et al., 2006; Wade & Brittan-Powell, 2001).

Entre os instrumentos que se propõem a compreender os aspectos da masculinidade, a Escala de Concepções de Masculinidade (ECM), desenvolvida por Oransky e Fischer (2009), adaptada ao contexto brasileiro por Guerra et al. (2015), tem como foco a medição da conformidade às normas de gênero, baseada em três dimensões teóricas: Restrição Emocional, basea-se na ideia de que, para o indivíduo ser considerado masculino, deve esconder suas emoções e não aparentar vulnerabilidade (Guerra et al., 2014; Levant et al., 2006; Oransky & Fisher, 2009); Heterossexismo, que seria a crença de que qualquer tipo de comportamento, por parte dos homens, que possa ser considerado feminino, não é aceitável, legitimando o discurso de normatização da heterossexualidade (Herek, 2004; Oransky & Fisher, 2009; Scardua & Souza Filho, 2006); e a dimensão da Provocação Social, que traz a provocação entre os homens como um comportamento natural, que deve ser aceito como parte do processo de “ser homem” (Guerra et al., 2014). Essas dimensões possibilitam uma melhor compreensão do fenômeno da masculinidade, ao tratarem do esforço constante envolvido na manutenção do papel social do gênero masculino (Guerra et al., 2014; Oransky & Fisher, 2009).

Estudos com o instrumento no contexto brasileiro comprovaram que assim como há a associação negativa entre a dimensão provocação social e a desejabilidade social (Guerra et al., 2014), também há uma associação direta e significativa com a honra familiar e com a honra masculina (Guerra et al., 2015), demostrando que as concepções de masculinidade se associam à reputação do homem em seus relacionamentos com outras pessoas. Na medida em que os homens são mais sensíveis que as mulheres à exigência de ação pública para manter a masculinidade, essas ideologias masculinas prescritivas se vinculam a atitudes tradicionais de preconceito com relação ao gênero, como o sexismo e a homofobia (Glick et al., 2015).

Apesar de o sexismo ser concebido como um reflexo da hostilidade direcionada a mulheres, Glick e Fiske (1996; 2001) destacam que se trata de um fenômeno ambivalente, englobando duas dimensões: o sexismo hostil, caracterizado como mais flagrante, que se constitui pela rejeição, antipatia e intolerância em relação ao papel feminino; e o sexismo benevolente, mais velado, que endossa a natureza complementar das diferenças de gênero, o comportamento paternalista e crenças na intimidade heterossexual. Estudos demonstram que as crenças masculinas tradicionais e a adesão à cultura da honra aumentam a propensão de atitudes sexistas, benevolentes e hostis (Saucier et al., 2016), de comportamentos sexualmente agressivos (Brown et al., 2018), de deslegitimação de mulheres abusadas sexualmente (Saucier et al., 2015), e de aceitação da violência dos parceiros íntimos (Dorothee et al., 2013).

O Brasil, apesar de ser classificado como um país com alta adesão à cultura da honra, possui grande variedade social, cultural e identitária, ou seja, o que se entende por honra, o que é ser uma pessoa honrada ou sobre fatores preocupantes em relação à honra; sofre mudanças de acordo com a cultura e com o papel social exercido pelos cidadãos de determinado contexto (Araújo, 2016; Johnson & Lipsett-Rivera, 1998), de forma que, pode-se supor a existência de diferenças significativas entre suas regiões, considerando a relação entre condições históricas e econômicas e cultura.

O objetivo deste artigo é analisar a relação entre identidade masculina e sexismo ambivalente, tomando as concepções de masculinidade e a cultura da honra como variáveis mediadoras dessa relação em duas regiões do Brasil, com condições econômicas e culturais diferentes. Nossa hipótese geral prevê que uma maior identidade masculina implicará maior sexismo ambivalente apenas quando houver maiores adesões a concepções tradicionais (excludentes) de masculinidade e à cultura da honra. Dois estudos foram realizados para testar essa hipótese: um, num contexto mais urbano (Brasília); e outro, num contexto mais rural e tradicionalista (Sertão Nordestino). A escolha do sertão se dá por tratar-se de uma região onde masculinidade é um dos elementos constitutivos da sua identidade, e cujo território, historicamente, teve economia e organização social baseadas na agricultura e pecuária, tendo violência e as desigualdades sociais bastante presentes sua formação (Albuquerque Junior, 2013), características regionais indicativas da presença de uma cultura de honra (Cohen & Nisbett, 1996), assim como estudos que apontam os estados nordestinos como aqueles que possuem forte presença da cultura da honra (Souza, 2015; Souza et al., 2017; Souza et al., 2016).

Estudo 1

Método

Participantes

No primeiro estudo, participaram 119 estudantes de uma universidade pública do Distrito Federal, todos do sexo masculino, com idade entre 18 e 35 anos (M= 19,6; DP= 2,18), pertencentes a diferentes cursos de ciências exatas. Quanto à orientação sexual, 89,9% dos participantes se declararam heterossexuais, 6,7% bissexuais e 3,4% homossexuais.

Em relação à religião, 65% afirmaram possuírem uma, sendo 42% católicos, 11% evangélicos, 3,4% espíritas e 0,8% budistas. Sobre a renda, 10,9% tinham renda de até 2 mil reais, 37,8% entre 2 e 10 mil reais e os restantes (51,3%), acima de 10 mil.

Instrumentos

O questionário foi estruturado em três partes. A primeira delas é composta pelos dados sociodemográficos, como: sexo, idade, renda familiar, crença religiosa e curso; seguida por uma pergunta de evocação livre, baseada no Inventário de Identidade Psicossocial de Zavalloni (1984). A questão teve como objetivo evocar as primeiras impressões a partir da indução “Ser masculino significa...”, solicitando ainda uma atribuição à característica citada (positiva, negativa ou neutra), e se essa se aplica, ou não, ao próprio participante. Com base na Teoria da Identidade Social (Tajfel, 1983), a partir das valências de cada evocação, construímos um indicador de identidade, variando de -5 (nenhuma identificação) a 5 (muita identificação) referente à representação identitária dos participantes com relação ao gênero (M = .72 DP= 2,74)

A Escala de Concepções da Masculinidade (ECM) foi desenvolvida por Oransky e Fisher (2009), e validada no Brasil por Guerra et al. (2014). Ela é composta por 16 itens, cujas respostas variavam de 1 (Discordo totalmente) a 4 (Concordo totalmente). Os itens foram agrupados nas três dimensões da masculinidade: Heterossexismo (e.g., homens de verdade nunca agem como uma menina; aparentar ser gay faz com que um homem pareça menos homem), Provocação Social (e.g., é normal para os homens zoar seus amigos; para ser aceito os homens devem ser capazes de zoar outros), e Restrição Emocional (e.g., homens não deveriam falar sobre suas preocupações uns com os outros; quando um homem sente medo deveria manter isso pra si mesmo). O instrumento obteve uma consistência interna satisfatória (α = .83 M = 1,75 DP= 0,41) e nas suas três dimensões: Heterossexismo (α = .83 M =1,35 DP= 0,50), Provocação Social (α = .70 M =2,30 DP= 0,68) e Restrição Emocional (α = .54 M = 1,25 DP= 0,36).

O Inventário de Sexismo Ambivalente (ISA), que foi elaborado originalmente por Glick e Fiske (1996) e adaptado ao contexto brasileiro por Formiga, Gouveia e Santos (2002), é composto por 22 itens que avaliam duas dimensões do sexismo: Sexismo Hostil (eg.: as mulheres se ofendem muito facilmente; as mulheres feministas estão fazendo exigências completamente irracionais aos homens), e Sexismo Benevolente (ex,: as mulheres devem ser queridas e protegidas pelos homens; o homem está incompleto sem a mulher). Para as respostas usamos a mesma amplitude da escala anterior. O ISA apresentou consistência interna satisfatória (α = .88 M =1,73 DP=0,50). A consistência das dimensões do sexismo também fora satisfatória: Hostil (α = .87 M = 1,68 DP= 0,60) e benevolente (α = .76 M = 1,78 DP= 0,52).

O Inventário sobre a Honra Conjugal (IHC) consistiu em um relato sobre infidelidade conjugal. O instrumento descrevia um casal heterossexual em que a esposa estava tendo um caso extraconjugal. Os participantes deveriam, então, avaliar possíveis atitudes do marido, utilizando, para as respostas, porcentagens (de 0% a 100%) de emissão de uma lista de 13 comportamentos no instrumento (ex.: evitar ser visto em público; ser agressivo com quem estivesse divulgando a situação), sendo 0% não provável e 100% extremamente provável. O instrumento demonstrou consistência interna satisfatória (α = .75 M =10,23 DP= 9,58).

Procedimentos e Aspectos éticos

A coleta dos dados foi realizada em sala de aula, pelo próprio professor responsável. Após serem informados dos objetivos do estudo, os alunos foram convidados a participar e informados sobre o caráter voluntário da pesquisa. Os participantes receberam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme consta na resolução CNE nº 510/2016. A administração dos instrumentos foi realizada coletivamente e com duração média de 20 minutos. A coleta de dados aconteceu entre abril e maio de 2019.

Análise dos Dados

A análise estatística do banco de dados foi realizada utilizando-se o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) e o software Process, desenvolvido por Hayes (2013), para as análises das mediações. Foram seguidos os procedimentos de Baron e Kenny (1986), nos quais a análise da mediação é realizada a partir de um conjunto de regressões múltiplas, de forma que o efeito de mediação ocorre quando são satisfeitas as seguintes condições: (1) existe um efeito da variável independente (VI) sobre a variável dependente (VD); (2) existe um efeito da VI sobre a variável mediadora (VM); (3) existe um efeito significativo da VM sobre a VD; (4) o efeito da VI sobre a VD torna-se mais fraco, ou mesmo desaparece, quando a variável mediadora é colocada no modelo de análise.

Resultados e Discussão

A princípio, conduziu-se uma regressão múltipla hierárquica, para verificar o impacto das variáveis propostas sobre o sexismo ambivalente. A análise foi realizada por etapas. Inicialmente, utilizamos no primeiro modelo as variáveis sociodemográficas [F(5, 118) = 5,92, p < 0,001; R²=0,17]. No segundo modelo, foram utilizadas as variáveis atitudinais [F(5, 96) = 23, 28, p < 0,001; R²= 0,53]. O terceiro modelo, que inclui todas as variáveis na análise, foi o que mais se mostrou explicativo para o sexismo ambivalente, explicando 58% da variância. O diagnóstico de multicolinearidade indicou que, embora algumas variáveis preditoras estejam moderadamente correlacionadas, não há multicolinearidade, pois os Fatores de Inflação de Variância (VIF) estão todos abaixo de 10; os índices de Tolerância também se mostram apropriados para a regressão (Salvian, 2016).

Na primeira regressão, pôde-se constatar que, dentre o conjunto de variáveis sociodemográficas, apenas a orientação heterossexual implicou em mais sexismo. Na segunda análise, quando regredidas apenas as variáveis atitudinais, a variância explicada foi de 53%, toda ela decorrente das três concepções de masculinidade. Ou seja, quanto maiores os escores de heterossexismo, provocação social e restrição emocional, maiores os de sexismo. A identidade masculina e a adesão à cultura da honra não tiveram efeitos significativos. Finalmente, na terceira análise de regressão, quando inseridas as variáveis atitudinais e sociodemográficas conjuntamente, vê-se que o incremento da variância explicada do sexismo com a adição das variáveis do segundo modelo foi da ordem de 41% (ΔR2= 0,58 - 0,17). Este resultado demonstra a maior importância das variáveis atitudinais, especificamente das concepções da masculinidade, do que dos pertencimentos sociodemográficos na predição do sexismo, os quais perdem força preditiva (ΔR2= 5%). Tais dados indicam que os participantes apresentam conformidade às normas de papel de gênero masculino hegemônico, assim, quanto mais o indivíduo adere a premissas dessa masculinidade tradicional, mais endossa práticas sexistas (Tabela 1).

Tabela 1
Análises de Regressão Múltipla Hierárquica (Método Enter) para explicar o Sexismo Ambivalente (n = 119)

Para testarmos nossa hipótese de que a relação entre identidade masculina e sexismo ambivalente seria mediada pelas concepções de masculinidade e adesão à cultura da honra dos participantes, procedemos a um teste de mediação sequencial, utilizando o software Process (Hayes, 2013), considerando o modelo conceitual número 6, com duas mediadoras. Os procedimentos de análise foram os utilizados para modelos com múltiplos mediadores, e utilizamos o método bootstrap, simulando 5000 amostras (Preacher & Hayes, 2008).

Na Figura 1, podemos ver que existe uma mediação completa das concepções da masculinidade na relação entre identidade masculina e sexismo ambivalente (efeito indireto estandardizado: 0.229, 95% CI = 0,112 - 0,334). Com efeito, a relação direta entre identidade masculina e sexismo ambivalente, que era significativa (r = 0,33), passou a ser não significativa (r = 0,10). A cultura da honra não atuou como mediadora da relação identidade masculina - sexismo ambivalente, efeito indireto = -0,01, 95% CI =-0,05 - 0,03. Da mesma forma, e diferentemente do que havíamos hipotetizado, a mediação sequencial das concepções de masculinidade e cultura da honra também não foi significativa, efeito indireto = 0,00, 95% CI = -0,02 - 0,04.

Figura 1
Teste de mediação sequencial do Estudo 1

A mediação encontrada confirma parcialmente nossa hipótese, demonstrando que o efeito direto da identidade masculina sobre o sexismo ambivalente desaparece quando as concepções de masculinidade são introduzidas, ou seja, a adoção de concepções de uma masculinidade tradicional ou hegemônica faz com que a identificação com o masculino produza preconceito contra as mulheres.

O resultado sugere que os participantes apresentam conformidade às normas de papel de gênero masculino hegemônico, reproduzindo uma representação identitária construída simultaneamente em oposição ao que se atribui ao feminino, caracterizando um distanciamento dos comportamentos e atitudes tradicionalmente considerados "femininos”, seja contendo suas emoções ou reafirmando a sua masculinidade. Assim, os dados demonstram que o endosso de componentes desse tipo de masculinidade são preditores de condutas sexistas, aumentando a probabilidade de o indivíduo ter atitudes preconceituosas contra as mulheres.

Diferentemente do que esperávamos, a cultura da honra, ainda que positiva e significativamente associada às concepções de masculinidade, não se relacionou com o sexismo na amostra pesquisada, e, por isso, não atuou como mediadora entre essa variável e a identidade masculina. E ainda chama a atenção a relação negativa entre cultura da honra e identidade masculina. Desse modo, nos propusemos a realizar o estudo em uma região do País onde a cultura da honra é fortemente associada, o sertão nordestino.

Estudo 2

Método

Participantes

O estudo teve amostra composta por 117 estudantes de cursos da área de ciências agrárias de uma universidade no sertão nordestino, todos do sexo masculino, com idades entre 17 e 32 anos (M= 21,9; DP= 3,26), e residentes de 14 municípios que se localizam no semiárido, tendo como base a delimitação territorial estabelecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com relação à orientação sexual, 91,5% se declararam heterossexuais, 5,1% homossexuais, e 2,6% bissexuais. Quanto à religião, 65% dos participantes eram católicos, 7,7% evangélicos/protestantes, 2,6% espíritas, um participante era religioso do candomblé e 24,8% dos participantes afirmaram não possuir nenhuma religião. Em relação à renda, 71,8% declararam ter uma faixa de renda mensal familiar de até 2 mil reais, enquanto 17,1% tinham renda de 2 mil a 4 mil reais mensais. Apenas 11,2% afirmaram ter renda superior a 4 mil reais.

Instrumentos

Os participantes responderam ao mesmo questionário do Estudo 1. Neste estudo, no entanto, acrescentamos um item no qual indagamos “Ser sertanejo significa...”. A identidade masculina foi elevada (M = 2,78 DP= 2,41), e a sertaneja ainda maior (M = 3,14 DP= 2,25). A Escala de Concepções da Masculinidade obteve média de adesão de 1,92 (DP= 0,52) e boa consistência interna (α= .81). A subescala de Heterossexismo também obteve consistência satisfatória (α= .81 M = 1,97 DP= 0,70). Entretanto, as dimensões Restrição Emocional (α= .59 M =1,65 DP= 0,59) e Provocação Social (α= .51 M = 2,07 DP= 0,65) apresentaram consistência interna entre baixa e moderada, dados que convergem com o estudo de Guerra et al. (2014), em que as dimensões em questão apresentaram uma consistência inferior à dimensão do Heterossexismo.

O Inventário de Sexismo Ambivalente (ISA) apresentou uma consistência interna satisfatória (α= .83 M = 2,47 DP= 11,52), como suas dimensões: Hostil (α = .84 M = 2,46 DP= 0,52) e benevolente (α = .73 M = 2,48 DP= 0,58). O Inventário sobre a Honra Conjugal (IHC) também apresentou consistência interna satisfatória para a escala de honra pessoal (α = .75 M =15,1 DP= 11,81).

Procedimentos, aspectos éticos e análise dos dados

Os mesmos do estudo 1. A coleta dos dados aconteceu entre outubro e novembro de 2018. As análises utilizaram os mesmos softwares do estudo 1.

Resultados e Discussão

Seguindo o mesmo procedimento do Estudo 1, foram realizadas regressões lineares (método Enter) para verificar o impacto das variáveis coletadas sobre o sexismo ambivalente. Inicialmente, o modelo com as variáveis sociodemográficas não se mostrou significante [F(5, 116) = 1,70, p= 0,14; R²=0,03], seguindo pelo segundo modelo com as escalas e os escores de identidade dos participantes, tanto a masculina quanto a sertaneja [F(6, 116) = 17,38, p < 0,000; R²= 0,46]. E por fim, o terceiro modelo de regressão, explicando 44% da variância [F(11, 104) = 8,46, p < 0,000; R²= 0,44]. Procedemos novamente ao diagnóstico de multicolinearidade, o qual indicou baixas ou moderadas correlações entre as variáveis preditoras, sem a presença de colinearidade (Tabela 2).

Na primeira regressão pôde-se constatar que, dentre o conjunto de variáveis sociodemográficas, apenas a orientação heterossexual implicou em mais sexismo. Na segunda análise, quando regredidas apenas as variáveis atitudinais, a variância explicada foi de 46%, decorrente das concepções de masculinidade heterossexista e restrição emocional, bem como da identidade sertaneja. Ou seja, quanto maiores os escores de heterossexismo, provocação social e restrição emocional e identidade sertaneja, maiores os de sexismo. A identidade masculina, a provocação social e a adesão à cultura da honra não tiveram efeitos significativos. Na terceira análise de regressão, quando inseridas todas as variáveis, não se obteve um incremento da variância explicada do sexismo, que era da ordem de 46% no segundo modelo (ΔR2= 0,44 - 0,03). Este resultado confirma, como ocorreu no primeiro estudo, a maior importância das variáveis atitudinais, agora com o ingresso da identidade sertaneja e perda de força da provocação social.

Tabela 2.
Análises de Regressão Múltipla Hierárquica (Método Enter) para explicar o Sexismo Ambivalente (n = 117)

Novamente, para testarmos nossa hipótese em um contexto de organização social mais tradicional e patriarcal, procedemos a um teste de mediação sequencial, seguindo os mesmos procedimentos do Estudo 1.

Na Figura 2, podemos ver que, assim como ocorreu no Estudo 1, existe uma mediação total das concepções da masculinidade na relação entre identidade masculina e sexismo ambivalente (efeito indireto estandardizado: 0.118, 95% CI = 0,005 - 0,215). Do mesmo modo, a cultura da honra não atuou como mediadora da relação identidade masculina - sexismo ambivalente, efeito indireto = 0,01, 95% CI =-0,03 - 0,01. Também a mediação sequencial das concepções das concepções de masculinidade e cultura da honra não foi significativa, efeito indireto = 0,00, 95% CI = -0,00 - 0,02).

Figura 2.
Teste de mediação sequencial do Estudo 2

Assim como no Estudo 1, a mediação encontrada confirma parcialmente nossa hipótese, demonstrando que o efeito direto da identidade masculina sobre o sexismo ambivalente desaparece quando as concepções de masculinidade são introduzidas, ou seja, é a adoção de concepções de masculinidade excludentes, pautadas em modelos tradicionalistas de masculinidade, que faz com que a identificação com o masculino produza preconceito contra as mulheres. Todavia, neste estudo, por se tratar de uma amostra de um contexto tradicionalista, uma região em que a maioria das pesquisas sobre cultura de honra se concentram no Brasil (Souza, 2015; Souza et al., 2016; Souza et al., 2017), e por compreendemos que a masculinidade é um importante elemento constitutivo dessa identidade regional (Albuquerque Junior, 2013), nossa expectativa de que a cultura da honra estivesse fortemente vinculada à identidade masculina e ao sexismo era maior.

Em função disso, decidimos testar o efeito da identidade sertaneja, tomando-a como variável mediadora, juntamente com as concepções de masculinidade e a cultura da honra, da relação entre identidade masculina e sexismo, numa análise de mediação sequencial tripla. Na Figura 3, podemos ver que a introdução da identidade sertaneja, como variável mediadora da relação entre identidade masculina e sexismo, altera o padrão encontrado no Estudo 1. Deixa de ser significativa a mediação das concepções de masculinidade, 95% CI = -0,01 - 0,22, e passa a ser significativa a mediação da identidade sertaneja, efeito indireto estandardizado: 0.065, 95% CI = 0,001 - 0,304). Nenhuma das outras mediações foi significativa. Esse resultado demonstra que a identificação masculina se associou positivamente à identidade sertaneja, que, por sua vez, relacionou-se com o sexismo ambivalente.

Figura 3.
Teste de mediação sequencial do Estudo 2, introduzindo a variável identidade sertaneja

A partir de uma análise de mediação sequencial tripla, inserindo a identidade sertaneja, o padrão visto no Estudo 1 se altera. Os resultados indicaram que, na medida em que o participante associa sua identidade masculina à sertaneja, ele tende, mais fortemente, a endossar o sexismo ambivalente. Portanto, a imagem do Nordeste e, em específico do Sertão, influencia diretamente no modo de ser e de comportar-se de seus habitantes, pois, na medida em que compartilham o núcleo dessas representações, caracterizam e definem sua identidade regional (Gimenez, 1997). Ser sertanejo também é compartilhar os estereótipos relacionados ao sertão e a seu povo, que permeiam o imaginário popular. Dessa forma, os participantes trouxeram a representação de um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos e “masculinos”, características provenientes de discursos de base biogeográfica disseminados por discursos regionalistas do início do século XX, um estereotipo fruto da adaptação a um ambiente hostil e a um modelo de masculinidade viril a ser generalizado na região, também dito como “cabra-macho” (Albuquerque Junior, 2013).

Tendo isso em vista, acredita-se que, pela semelhança entre os atributos compartilhados pela identidade social sertaneja e masculina, é provável que esta interseção identitária (Roccas & Brewer, 2009) configure uma representação “maximizada” de um ideal de masculinidade hegemônica, sendo uma característica valorada e buscada dentro das possibilidades de identidades regionais.

A relação dessas identidades com o sexismo se dá, principalmente, no compartilhamento da crença em uma organização social patriarcal e uma visão idealizada da mulher como objeto romântico, submissa ao homem, aliando, assim, os papéis sociais tradicionais de gênero, e legitimando práticas de violência contra a mulher (Ferreira, 2014; Glick & Fiske, 1996; 2001). Contudo, a hipótese de que a cultura da honra também seria um mediador da relação não foi confirmada. Na verdade, encontramos uma relação negativa entre cultura da honra e identidade masculina, possivelmente por conta da abordagem do instrumento que trata da defesa da honra relacionado à violência física explícita (e.g., agredir ou matar a companheira que o “desonrou”). Assim, visto que a agressão física é a modalidade mais reconhecida de violência contra a mulher por parte dos homens (Cecchetto, et al., 2016), podem ter sido acionadas normas antissexistas, diminuindo a propensão de apresentar comportamentos de defesa da honra, nesse sentido.

Além disso, esperávamos que a cultura da honra se apresentasse de forma diferente no sertão, pois, além dos estudos na região, o território possui as condições históricas e materiais específicas para o desenvolvimento dessa cultura. No entanto, um estudo elaborado por Tomas (2016), realizando um cruzamento de dados do Latin American Public Opinion Project (LAPOP), sobre o Brasil, encontrou grande variabilidade de honra entre os municípios, possivelmente, pelas dimensões continentais do País. Os resultados desse estudo demonstram que existem atitudes de honra no Sul, onde as condições sociais e estruturais não são necessariamente tão severas quanto no Nordeste. Dessa forma, mesmo o Brasil sendo considerado uma cultura de honra (Johnson & Lipsett-Rivera, 1998), possui grande variabilidade com relação à honra, sendo influenciada pelas vastas diferenças sociais, culturais e identitárias do território nacional (Araújo, 2016).

A associação do Nordeste à cultura da honra, para além de dados específicos, pode estar ligada a percepções e representações que se têm da região, cuja constituição histórica é violenta, desenvolvendo códigos de justiça paralelos ao estado (cangaço), bem como um sistema de valores baseado no patriarcado e na reputação (Albuquerque Junior, 2013).

Considerações Finais

O presente artigo analisou a relação entre identidade masculina e sexismo, tomando as concepções de masculinidade e a cultura da honra como possíveis elementos mediadores dessa relação. Apesar da cultura da honra não se mostrar um elemento mediador significativo nesse modelo, nossos resultados ilustraram como as premissas identitárias, relacionadas à masculinidade hegemônica, podem operar como desencadeadoras de atitudes negativas e violência contra as mulheres. Este padrão de resultados confirma os nossos pressupostos teóricos de que a masculinidade hegemônica está associada a atitudes e comportamentos sexistas em relação às mulheres (Giordano et al., 2006; Glick et al., 2015; Wade & Brittan-Powell, 2001; Vandello & Bosson, 2013).

Trazendo à tona ainda a ideia de que a identidade masculina, baseada em preceitos hegemônicos do gênero, funciona de forma a reafirmar a superioridade masculina em detrimento à feminina, naturalizando práticas de sexismo e comportamentos violentos em defesa da manutenção da identidade masculina, indicando ainda um movimento de manutenção de posturas tradicionais de gênero, que demarcam diferenças sociais e asseguram espaços de poder masculino, abrindo possibilidades de naturalização do uso da violência para a manutenção dessa masculinidade.

Nesse sentido, foi possível perceber que o processo de diferenciação social, que ajuda a manter uma identidade masculina positiva, em detrimento aos traços atribuídos ao exogrupo (mulheres), reforça a divisão social baseada em gênero e justifica as ações dirigidas a esses grupos estereotipados (Tajfel, 1983). Também foi possível verificar que a valorização do endogrupo (identidade masculina) só implicou desvalorização do exogrupo (sexismo), quando galvanizada por concepções tradicionalistas de masculinidade, indicando que o amor ao próprio grupo não implica, de forma direta, o ódio ao grupo do outro (Brewer, 1999).

Constatamos também uma associação positiva entre a identidade masculina e a identidade sertaneja na relação com sexismo. Essas identidades se relacionaram fortemente, em muitos aspectos, sobrepondo-se e convergindo-se também com a construção histórica dessa identidade regional. Dessa forma, ao passo que os participantes compartilham e se identificam com representações e estereótipos que são direcionados aos sertanejos, com sobreposição entre as identidades, ressaltam características patriarcais e de exclusão baseadas em gênero que são presentes na constituição de ambas as representações identitárias.

Cabe referir que a cultura da honra, ainda que não tenha efeito direto sobre o sexismo, esteve, nos dois estudos, fortemente correlacionada às concepções de masculinidade hegemônica e negativamente associada à identidade masculina assumida pelos estudantes universitários; os quais não aceitaram explicitamente a cultura da honra de violência física sexista, mas permanecem aceitando as concepções de masculinidade tradicionais a ela ligadas.

O presente estudo possui algumas limitações que merecem destaque. A primeira está relacionada à aferição da cultura da honra. Apesar da premissa que, nas culturas em que a honra é um tema central de organização, a masculinidade e a honra estão intimamente ligadas, não constamos o fator mediador desse constructo.

Em pesquisas futuras, seria interessante rever a metodologia de autorrelato, assim como promover uma percepção sobre a honra mais ampla, trazendo sua importância nos âmbitos comunitários e familiares, não se restringindo a relações amorosas, como forma de acessar conteúdos ideológicos e culturais compartilhados socialmente, demonstrando a relação entre a honra e manutenção da masculinidade no contexto brasileiro.

Em segundo lugar, a pesquisa parte da perspectiva de homens universitários. É possível que as relações entre as variáveis medidas neste estudo possam diferir significativamente se a amostragem for constituída por indivíduos de ambos os sexos biológicos e variadas faixas etárias forem consideradas. Assim, seria importante, futuramente, desenvolver pesquisas que integrem a perspectiva de mulheres e homens de diversas idades e regiões, como uma forma de ampliar a compreensão da identidade regional e suas interseções entre os gêneros. No entanto, apesar das limitações destacadas, acreditamos que este estudo abre novas possibilidades de compreensão de fenômenos sociais, relacionadas a preconceitos de gênero, a partir do estudo das identidades.

A pesquisa propõe uma reflexão sobre dimensões da masculinidade que se baseiam na manutenção da estrutura social patriarcal, reproduzindo estereótipos de gênero, e promovendo discriminações e violências sociais na medida em que endossam crenças sexistas. Não obstante, este estudo abre a possibilidade de desnaturalizar as figuras e os papéis de gênero, permitindo pensar outras formas possíveis de ser homem no sertão, para além do estereótipo de cabra-macho, destacando, assim, não apenas a relevância da discussão sobre masculinidade, mas a importância de compreendermos como essa identidade de gênero está imersa em premissas que endossam práticas preconceituosas, assim como ajuda a preencher a lacuna ainda existente na literatura de estudos empíricos brasileiros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
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  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2020
  • Aceito
    31 Maio 2022
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