Resumo:
O presente artigo desenvolve um percurso sobre a atualidade da performance como ato de linguagem que tem uma efetividade própria no campo do gênero, na política das ruas e na psicanálise. Além destes domínios, a arte contemporânea é também citada como ilustrativa da atualidade da performance. Aproxima-se a paródia, elemento importante na performance de gênero, da noção lacaniana de semblante. Investiga-se o modo como a linguagem performativa opera nesses diferentes campos como um modo de ato que possui valor de palavra, um ato que tem valor de um dizer. Além disso, acentua-se a presença do corpo como elemento central e fundamental para o ato performativo.
Palavras-chave: performance; corpo; sujeito contemporâneo; política; psicanálise
Abstract:
This article traverses a course around the contemporariness of the performance as an act of language with its own effectiveness in the field of gender, in street politics, and in psychoanalysis. In addition to these domains, contemporary art is also cited as illustrative of current performance. The parody, an important component in gender performance, is linked to the Lacanian concept of semblant. We probe the way performative language functions in these diverse fields as a form of act worth of words, an act that is also an utterance. Moreover, the presence of the body is emphasized as a central and essential factor in the performative act.
Keywords: performance; body; contemporary subject; politics; psychoanalysis
Na atualidade, a performance tem se mostrado um modo de linguagem privilegiado para a expressão de algumas manifestações do sujeito contemporâneo.
No presente artigo, abordaremos alguns modos de formação subjetiva que utilizam a performance como modo de expressar-se. Para este fim, examinaremos a presença desta nos campos do gênero, da política e da psicanálise, além de uma breve incursão na arte performativa como um domínio que revela a atualidade da performance. O eixo central de nosso desenvolvimento teórico será feito a partir de alguns livros da filósofa estadunidense Judith Butler, que tem desdobrado esta noção como ferramenta fecunda em suas reflexões acerca da atualidade, nomeadamente em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990/2017), Frames of war: when is life grievable? (2009) e Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia (2018). Nestes estudos, buscamos recolher a concepção de performance estabelecida por Butler, apontando as diferentes declinações e compreensões acerca desta noção em diferentes épocas de sua obra. Não se trata, aqui, vale ressaltar, de aprofundar o pensamento de Judith Butler, mas de aproveitar a sua riqueza e a sua originalidade para realizarmos algumas incursões que consideramos profícuas de como o sujeito hoje faz um recurso à performance - de forma positiva - para manifestar-se social e psiquicamente. Estas duas ordens não são separadas no campo da psicanálise, e, por isso, não intentamos especificar, ao longo do artigo, que “aqui se faz cultura” ou “aqui estamos no registro do psiquismo”.
Com efeito, as configurações subjetivas de nossos dias põem em cena e realçam elementos cruciais para os debates que se dão hoje no campo mais interno da psicanálise contemporânea. Na clínica psicanalítica atual, podemos testemunhar a presença maciça dos registros psíquicos do corpo, da imagem e do ato (BIRMAN, 2009; BIRMAN, 2012).
Com efeito, nossa aposta é que a noção de performance pode ser uma contribuição para avançarmos, no campo da psicanálise, na pesquisa destes registros psíquicos, seja no plano psíquico ou social, que se realizam no entrecruzamento entre eles. De fato, podemos arriscar a dizer que aquela consiste em um ato, mas que se aproxima imensamente da imagem em sua forma de exprimir-se. Além disso, realiza-se por meio do corpo, um terceiro elemento fundamental que a constitui e que, ao mesmo tempo, é também elemento central nas configurações subjetivas da cultura e da clínica psicanalítica atuais. Com efeito, segundo Birman (2012), o sujeito contemporâneo apresenta seu sofrimento em torno dos registros do corpo e da ação, que se configuram a partir de uma modalidade de dor que se produz e se descarrega no corpo, ao mesmo tempo em que é exercida a tentativa de sua eliminação pela via do ato, isto é, tanto pela descarga imediata das tensões internas como pela vivificação intensiva do registro da imagem, como visamos frisar ao longo do presente artigo.
Desse modo, a linguagem performativa pode ser articulada, no campo da psicanálise, às teorizações que aí já se proliferam há alguns anos acerca da intensificação dos planos do corpo, da ação e da imagem na formação da subjetividade contemporânea. Além do ato, a performance enfatiza também a importância hoje da imagem, uma vez que aquela se materializa necessariamente por meio de uma cena, de uma encenação. Sabemos, há muito, o quanto a experiência subjetiva estaria hoje circunscrita à hegemonia do olhar, do espetáculo (DEBORD, 1997; BIRMAN, 2012), da exibição e da exacerbação da dimensão da imagem. Nesse contexto, o espaço e a espacialidade tornam-se centrais, revelando um sujeito não mais interiorizado na ordem do pensamento, mas o ser performático que traz consigo a marca da exterioridade, do excesso e do exagero, que o impele para a ação e se personifica no domínio do corpo (BIRMAN, 2012). Buscaremos, assim, pensar estes domínios em sua possível relação com a performance, conforme tem sido definida e explorada desde os anos 90 nos trabalhos da filósofa Judith Butler.
Na perspectiva deste campo de investigação, faz-se urgente, hoje, que a psicanálise se debruce sobre a noção de performance, para que possa acompanhar a atualidade psíquica e social deste modo de expressão que se dá pelo ato, que é performativo e materializado no corpo, e cuja duração se delimita pela presença deste na cena da performance. Percorreremos, então, algumas manifestações observadas hoje nas configurações de gênero, na política das ruas ou na psicanálise, campos que nos oferecem testemunhos de um modo de ato que possui valor de palavra, um ato que é ao mesmo tempo um dizer. Além disso, faremos uma breve incursão na performance na arte contemporânea, mas não adentraremos muito neste domínio, uma vez que não queremos nos afastar de nosso eixo central, qual seja, o de encontrar ecos entre a noção de performance em Butler e os registros psíquicos do ato, do corpo e da imagem, tão centrais nos debates contemporâneos movidos no campo da psicanálise.
Com efeito, no campo da arte contemporânea, tem sido oferecido ao corpo um lugar fundamental, exposto ao olhar do outro e inscrevendo-se como objeto permeável ao próprio sujeito. Segundo Rivera, a arte performática propõe uma reflexão sobre a própria noção de sujeito hoje, na medida em que se constitui, segundo as palavras da autora, como “o reduto próprio ao sujeito” (RIVERA, 2013, p. 20) ao realizar um descentramento do mesmo para a ordem do corpo e da finitude. Se o sujeito é efêmero, se traz consigo a marca da sua própria finitude, como afirma Badiou (1994), a performance o acompanha nestas características, uma vez que aponta para a condição mortal e passageira do homem. Ela ocorre como um evento que se realiza na própria impermanência, existindo somente enquanto permanece na cena a presença do corpo do artista (RIVERA, 2013), ou, como veremos mais adiante, com a reunião dos corpos em aliança nas ruas (BUTLER, 2018).
Dessa maneira, a performance, seja na arte, seja no campo do gênero, seja como uma forma de fazer política, convoca o corpo ao mesmo tempo em que invoca o sujeito. O corpo é presença sine qua non para a sua ocorrência, em todas as suas manifestações. Cabe destacar, aqui, que não se trata do corpo enquanto uma imagem unificada ou narcísica. A repetição de movimentos inerente à performance visa a esvaziar qualquer tentativa de unificação ou substantificação, para deixar surgir um corpo que desfaz as fronteiras entre sujeito e objeto, descentrando-se do ideal da imagem corporal e deixando emergir o corpo fragmentário, que se subtrai à totalização da imagem, permitindo que se alcance um elemento novo, alijado da fantasia e “passível de sofrer o atravessamento de algum ato que o desfigure e que venha denunciar a sua finitude” (SALLES; ROCHA, 2019, p. 199). Nos termos de Butler, o corpo performático é aquele que não possui uma essência, revelando sua vulnerabilidade e sua condição precária.
Segundo a reflexão feita por Sales e Rocha (2019) acerca da performer Marina Abramovic, não encontramos na obra desta artista performática a exaltação de um corpo ideal, belo, mas, sim, a afirmação do corpo fragmentado, que se dispõe ao outro com toda a sua vulnerabilidade, inclusive a de se permitir ser atacado e machucado, afastando-se, portanto, de qualquer ordem corporal idealizada e deixando aparecer o informe, o desfigurado e o estranho. Assim, pela via da desmontagem do corpo belo, a arte contemporânea desfaz qualquer mestria do artista sobre sua arte, produzindo uma experiência de deslocamento e estranhamento tanto para o artista como para o espectador (RIVERA, 2013; SALLES; ROCHA, 2019). Dessa maneira, no lugar de um corpo identitário, surge a todo o momento na obra dessa performer o elemento do inusitado, do estranho que transfigura o ideal da imagem. No lugar da identidade, surge o estranhamento; no lugar do belo, defrontamo-nos com o terrível (RIVERA, 2013).
Outra via fecunda para examinar o performativo é a problemática do gênero. Num enfoque que pode ser denominado de pós-estruturalista, Butler (1990/2017) avança em relação às teorias anteriores da linguagem performativa, que mostraram como atos de fala podem ser performativos, ao indicar que, nos problemas de gênero e nos estudos sobre as manifestações políticas, o corpo se encontra no centro da cena. Os atos corporais podem se tornar performativos, o que indica um campo de investigação que faz avançar as teorias da performatividade (RODRIGUES, 2018). Segundo Butler (1990/2017), esta é uma pergunta crucial, que deve atualmente ser feita: se há o performativo da linguagem, como conceber o performativo do corpo?
Com efeito, Butler parte da teoria austiniana para pensar a performatividade em sua filosofia. John L. Austin se insere no grupo de filósofos da linguagem que criticam a compreensão da linguagem puramente como meio de transmissão de sentido. Ele é o responsável pelo termo “performatividade” e sua obra aproxima a linguagem à dimensão do ato, ao conceber que “falar é fazer”. Um outro aspecto relevante é o fato de a leitura que os pós-estruturalistas (corrente à qual Butler, como dissemos acima, se afilia) fazem da obra de Austin não é somente que a linguagem possa ser uma forma específica de ação, mas que, para além disso, é fundamental o entendimento de que todo ato de fala terá o poder de modificar o mundo (RODRIGUES, 2018). Se “a performatividade é um modo de nomear um poder que a linguagem tem de produzir uma nova situação ou de acionar um conjunto de efeitos” (BUTLER, 2018, p. 35), os enunciados linguísticos passam a ser vistos como tendo efetivamente um poder, qual seja, o de fazer alguma coisa acontecer ou trazer algum fenômeno à existência no momento mesmo da sua enunciação.
Nesta perspectiva, vejamos agora, então, o desenvolvimento da noção de performance nos três livros de Butler selecionados para a discussão exposta no presente artigo. Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (BUTLER, 1990/2017), o corpo é visto como o lugar princeps para o aparecimento do performativo. Os atos de fala performativos constituem, na verdade, performativos corporais. Nesse livro, a pensadora estadunidense salienta, seguindo a influência de Foucault, que lhe é cara, que o gênero se inscreve na linguagem da superfície e da força, sem ter uma condição ontológica que lhe ofereça uma substancialidade e sem se ater às categorias de identidade masculina ou feminina. Segundo Perelson (2004), a crítica do binarismo dos gêneros conduz Butler a questionar também a ideia de um sexo natural ou pré-discursivo, por um lado, e um gênero culturalmente construído, por outro.
Assim, apresentando-se como “fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos” (PERELSON, 2004, p. 235), o corpo gênero não tem estatuto ontológico separado dos vários atos que o inauguram: “O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade” (BUTLER, 1990/2017, p. 235).
Destaca-se, aqui, uma diferença crucial entre os termos expressão e performatividade. Os atributos de gênero não são expressivos, pois constroem efetivamente a identidade que supostamente expressariam. Não existe uma identidade preexistente a partir da qual um ato ou atributo poderia ser referenciado. A ideia de expressar remete à compreensão de que algo já estaria lá anteriormente para que possa ser revelado pela expressão, o que não ocorre no performativo, ação que no tempo mesmo do seu acontecimento realiza a inauguração de algo, movimento pelo qual algo é dito no acontecimento mesmo do ato. Segundo Butler (1990), a linguagem performativa não se constitui em uma expressão, pois a esta subjaz a ideia de que haveria uma interioridade a ser transposta para “fora” e, desse modo, expressar-se para o olhar do outro. Ora, justamente, o ser performático é, desde sempre, exteriorizado, não exprime algo que viria da interioridade, mas se forja pela exteriorização ela mesma, sendo esta a sua genuína manifestação (BUTLER, 1990/2017).
Esta distinção feita por Butler entre performance e expressão se mostra como uma boa via teórica para a compreensão do sujeito atual que, segundo Birman (2012), estaria inscrito muito mais na ordem do espaço, da espacialidade, do que no registro do tempo. As relações entre as categorias do espaço e do tempo fornecem indicações importantes acerca da estruturação do sujeito. A espacialização da experiência subjetiva estaria circunscrita à hegemonia do olhar, do espetáculo, da exibição e da exacerbação da dimensão da imagem. A inflação da imagem e a presença maciça do narcisismo trazem miragens de um eterno presente, marcado pela repetição do mesmo, apagando a temporalização e, a reboque, todo horizonte de futuro. A espacialização, desse modo, revela um sujeito não mais interiorizado, mas o ser exteriorizado e performático, que traz consigo a marca do excesso que impele para a ação e se manifesta no domínio do corpo (BIRMAN, 2012).
A expressão, assim, não é o recurso de linguagem observado nos casos dos atos de gênero ou das manifestações de rua, que necessitam, ainda, do elemento da repetição para serem performativos. Para que atos corporais se tornem performativos, é necessário que sejam repetitivos e ritualizados. Não se trata apenas de repetir, mas é necessário também que isso ocorra sob uma forma estilizada. Segundo Sales e Rocha (2019), a repetição, nesse contexto, não significa dar movimentos a signos que fariam chegar a um sentido, mas se relaciona diretamente com o corpo: “A repetição vista na performance não coaduna com o fenômeno de proliferação de signos que geraria um sentido para a cena, mas faz emergir o elemento novo que invade a cena e evoca a dimensão de um resto indizível - resto de corpo” (SALES; ROCHA, 2019, p. 194).
Dessa maneira, a repetição de imagens e de movimentos retoma a ideia de “citacionalidade”, trabalhada por Butler como a condição para que um ato de fala se torne performativo. É necessário citar, e repetidamente, para que o ato se torne ao mesmo tempo a realização do evento. Segundo Pinto (2009), esta prática reiterativa e citacional inerente à performance foi fundamentada por Butler desde as obras de Austin e de Derrida, para mostrar que o aspecto ritualístico, no enunciado performativo, isto é, sua possibilidade de ser repetido, é o elemento que permite a desconstrução da existência de um referente. A performance é repetível pois anuncia a possibilidade de todo signo “de ser repetido na ausência não somente de seu referente, mas também na ausência do seu significado ou intenção determinada” (PINTO, 2009, p. 130).
Dessa maneira, a citacionalidade fará com que, em algum momento, algo de novo possa surgir, algo que não se dá por mera repetição, mas que exerça algum modo de ruptura com a norma vigente. Há, neste viés, “a exigência da necessidade de repetição das normas para pensar que a força da autoridade do ato performativo se acumula pela citação de um conjunto de práticas anteriores” (RODRIGUES, 2018, p. 4).
No campo do gênero, além da citacionalidade, a repetição personifica-se também na figura da paródia, com o mesmo fim de denunciar a inexistência de um referente. A paródia, figura de linguagem que se materializa no corpo gênero, realiza uma imitação cômica do original com a finalidade de zombar do original, realizar pela via do corpo uma crítica contundente da ideia mesma de original. Aqui, observa-se o uso reiterado, exagerado e abusivo de uma “repetição estilizada de atos”. A conjunção da repetição com a “ação estilizada” permite a fabricação da aparência de substância, isto é, de uma identidade construída que postula a crença na continuidade e consistência da sua substancialidade, mas que concomitantemente denuncia a todo momento seu caráter de descontinuidade e contingência. É neste aspecto que reside a paródia: ela faz crer na aparência, mas não esconde seu caráter aparente, não quer enganar, não busca fazer a aparência passar pela essência.
Assim, a “citacionalidade” consiste em uma noção crucial para a compreensão da performance na obra de Butler, referindo-se à necessidade da repetição que “cita” o original mas, ao mesmo tempo, denuncia a ausência do mesmo. É necessário repetir, citar, muitas vezes, para apontar o vazio da essência, a fratura ali onde seria suposto haver uma substância.
Nesse viés, observa-se que o valor de subversão inerente à paródia é revelador da artificialidade da identidade. A paródia de gênero é subversiva porque afirma a arbitrariedade de qualquer identidade e o vazio de qualquer fundamento. “O efeito de gênero se produz pela estilização do corpo” (BUTLER, 1990/2017, p. 242), que provoca a “ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero” (idem). Como salienta Perelson, o eu de gênero permanente, para Butler, define-se por um estilo, por atos repetidos que constroem a ficção de uma identidade substancial (PERELSON, 2004, p. 198). A denúncia da identidade como sendo da ordem de um artífice é fundamental para o exame da nossa atualidade, na qual o campo da identidade tem sido questionado e, em seu lugar, apresenta-se a possibilidade de reconhecimento social de uma gama mais múltipla de formas de ser.
O caráter de subversão aqui presente, nesse sentido, está em produzir uma descontinuidade entre sexo, gênero e desejo, desconstruindo suas supostas relações e desfazendo a aparência substantiva do gênero e da identidade. Ainda segundo Perelson, “o meio eficaz para esta desconstrução se encontra nas deformações ou repetições parodísticas - nas performances dissonantes e desnaturalizadas que revelam que o original nada mais é do que uma paródia da ideia do original e do natural” (ibidem, p. 159).
Neste contexto, a figura da drag queen se apresenta como um paradigma para a análise das questões de gênero hoje, pois aponta para a artificialidade da ligação entre sexo biológico e identidade de gênero. O ato, o gesto e o desejo são, aqui, amealhados pelo signo da paródia, forma de desconstruir, através do riso e da sátira, qualquer intenção de ontologia. A drag não busca o engano, mas deixa claro, de saída, que o “ser da mulher” não é uma essência, mas uma montagem. Ela realiza uma zombaria da mulher idealizada, travestindo-se de mulher à maneira de um exagero que desfaz a existência essencial da mulher. A afetação, o excesso e a artificialidade são elementos que reforçam que a feminilidade consiste na fabricação de uma identidade, revelando, dessa maneira, que qualquer identidade de gênero é uma construção de um corpo gênero. A paródia da drag consiste em brincar com a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado, desmontando com isso qualquer ideia de identidade original. Segundo Butler:
Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero - assim como sua contingência. Aliás, parte do prazer, da vertigem da performance, está no reconhecimento da contingência radical da relação entre sexo e gênero diante das configurações de unidades culturais que normalmente são supostas naturais e necessárias. (BUTLER, 1990/2017, p. 237).
Portanto, a questão fundamental, aqui, é o fato de a drag desconstruir, pela montagem escancarada e exagerada de uma identidade de gênero, a suposição de que esta seria uma decorrência direta do sexo biológico. Dizer que não há o original e asseverar o caráter de cópia da identidade sexual é a própria razão do riso, o próprio caminho da subversão. Esta ocorre diante da “percepção de que o original foi sempre um derivado” (BUTLER, 1990/2017, p. 239), isto é, a performance de gênero denuncia o caráter performativo do próprio gênero, à medida em que desestabiliza as categorias naturalizadas tanto de identidade quanto de gênero. Na mesma esteira, podemos localizar todas as identidades trans, que também atestam a separação entre sexo e gênero.
No campo da psicanálise, essa desnaturalização é também crucial para o exame do gênero. A psicanálise não trabalha com a noção de identidade, mas com a importância da noção de identificação, que é, inclusive, constituinte do sujeito. Por esse viés, o eu é concebido como uma formação de traços psíquicos adquiridos a partir da relação com os outros primordiais da criança. Nesse sentido, a identificação é a costura das nossas fantasias, dos lugares que ocupamos nas relações que estabelecemos com os outros, daquilo que consideramos o nosso eu. Desde que delineou a importância da pulsão sexual para a constituição do sujeito, Freud já indicara que a sexualidade se dá neste nível das fantasias e das identificações.
Na perspectiva lacaniana, a performance pode ser aproximada da noção de semblante, que joga com a relação entre essência e aparência ao manifestar uma aparência que abole a essência, ao revelar “o truque na sua própria aparição” (DUNKER, 2008, p. 10). As figuras que se apresentam sob a forma do semblante revelam abertamente sua forma postiça, deixando claro que a aparência não possui uma essência por detrás à qual estaria associada. O semblante não é a aparência querendo se passar por essência, como o são os simulacros no pensamento de Platão. Trata-se, antes, de uma aparência que não visa ao engodo, apresentando-se de saída como “falsa”, como desconstrução da existência mesmo de qualquer verdade essencial.
Por este ângulo, o exagero hiperrealista da drag queen pode ser visto como um modo de relação com a aparência similar à operação do semblante, porque parodia a relação entre essência e aparência; hiperboliza tanto a aparência do ser mulher que denuncia ao mesmo tempo a não existência de qualquer essência do ser mulher.
Uma outra via pela qual Butler examina a presença da performatividade é na política das ruas. Cabe notar que a noção de performance não é homogênea na obra de Butler quando utilizada para o gênero ou para a política. No primeiro, como dito, a performance se liga a uma espécie de teatralização. Um segundo aspecto é que a performance de gênero ficou recortada, no campo da política, às reivindicações do feminismo. No deslizamento do termo para o terreno da política das ruas, como será explicitado agora, a performance é utilizada para reivindicações políticas mais amplas. Ela se dá na presença mesma dos corpos em sua ocupação dos espaços públicos. A palavra ocupação, aliás, tem sido usada desde o início destas performances de rua, associada a reivindicações de direitos. Seguindo nesta linha de raciocínio, os deslizamentos deste termo podem ser esmiuçados também para a distinção entre a performance na política e na arte. Apesar da complexidade e do aprofundamento que a distinção mereceria, propomos aqui, de maneira bem breve, que, apesar de ambas terem como condição a presença mesma dos corpos e sua duração requerer esta presença, a performatividade plural da política está sempre associada à busca do “direito de aparecer” dos precarizados (BUTLER, 2018), como veremos a seguir.
Dessa maneira, observa-se, em Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia (BUTLER, 2018), a demonstração de como a ação dos corpos pode ser a base da aliança contra a violência de Estado. Rodrigues (2018) comenta que, nesse livro, Butler segue a mesma linha de raciocínio que vem há muito desenvolvendo, ao apontar mais uma vez, assim como já o havia feito em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? (BUTLER, 2009), para o corpo como o terreno da vulnerabilidade e da condição precária. Em Corpos em aliança e a política das ruas, a performance é examinada a partir das assembleias, como o modo pelo qual se articulam corpo, ação e política das ruas. Se, por um lado, a obrigação de performance e desempenho individuais tem sido com frequência uma obrigação moral na normatividade contemporânea, há, por outro, modos coletivos de performatividade que estimulam formas plurais de atuação e de práticas sociais de resistência, as quais envolvem ações corpóreas e modos de liberdade que se engajam na assembleia pública. O corpo, mais uma vez, é aqui elemento central, na medida em que as alianças se fazem com as presenças dos corpos nos espaços abertos, nas ruas, nas assembleias.
Neste viés, a pergunta feita pela autora é: no caso da performatividade política, quais são as condições sociais e de vida para a ação? Para além do campo da linguística, há uma forma de fazer política que se dá “por meio do movimento corporal da assembleia, unindo ação e resistência” (BUTLER, 2018, p. 56). As comunidades se unem em assembleia em um modo de “performatividade plural” (ibidem, p. 57) que engaja a anterioridade da ação em relação ao poder. Algumas vezes, não há como obter o poder para ser capaz de agir: “Algumas vezes é uma questão de agir e, na ação, reivindicar o poder de que se necessita” (ibidem, p. 65). Aqui encontra-se talvez o cerne daquilo que a autora está chamando de performatividade corporal: uma maneira de ser exposto à linguagem antes de qualquer possibilidade de formar ou representar atos de fala. A performatividade, portanto, pode se dar por meio de ações que usam o corpo como um lugar ao mesmo tempo de subversão e de reivindicação, que produzem uma modalidade de ato que visa a garantir as condições da existência face à precariedade: “Agir em nome desse suporte sem esse suporte é o paradoxo da ação performativa plural em condições de precariedade” (ibidem, p. 72).
Se o humano é atravessado necessariamente por aquilo que a autora denomina “condição precária”, o termo “precariedade” indica que há uma distribuição irregular da condição precária (BUTLER, 2009). A precariedade ocorreria quando há a sujeição prolongada à condição precária. Cabe destacar que, no pensamento de Butler, precariedade e gênero estão interligados, uma vez que aqueles que não vivem o seu gênero de modo inteligível para o discurso da normalidade se encontrariam mais expostos a situações de violência.
De maneira similar, as reuniões de corpos nas políticas das ruas engendram atos peformativos ao se articularem sob a forma da assembleia, que constrói um “nós” por meio de um agir coletivo plural e persistente. É importante marcar que tal sujeito coletivo não existia antes do surgimento da assembleia. Este “nós” se constitui no momento mesmo em que se reúne; não fora previamente estabelecido. Por isso, a performatividade não pode ser tratada como uma entidade; ela é, antes, um conjunto vivo de relações que permite aos considerados inelegíveis e aos precarizados encontrar uma forma de expressar seu “direito de aparecer” (BUTLER, 2018, p. 57).
Segundo Perelson (2004), Butler, em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, livro escrito em 1990, já apontava que uma ação política não requer a existência prévia de uma identidade, sede dos interesses políticos pelos quais se luta, mas é construída performativamente por meio de sua ação; constitui uma prática, e sobretudo uma prática discursiva.
Por isso mesmo, passa a se tornar necessário e urgente que os precarizados formem alianças, o que envolve “uma proposição plural e performativa de elegibilidade onde ela não existia antes (BUTLER, 2018, p. 57). A performatividade plural não visa somente a dar visibilidade aos precarizados. Ela critica também as formas de poder vigentes. Para se tornar parte de uma ação coletiva que se manifesta na política das ruas, uma pessoa precisa não apenas formar alianças, mas também agir em termos de igualdade com outros humanos. Tais movimentos políticos são uma maneira performativa de linguagem que visa a um suporte social em condições de precariedade, usando a forma política da ação performativa plural.
Concluindo, a performance é uma via, a nosso ver, importante para a investigação do sujeito contemporâneo. Articulá-la ao campo da psicanálise é realçar a presença impactante, das dimensões do ato, do corpo e da imagem na formação das subjetividades.
Neste viés, as questões atuais sobre o gênero ganham extrema relevância, na medida em que apontam as mudanças radicais que ocorreram nas últimas décadas no campo da sexualidade, apontando a identidade sexual como resultante de uma fabricação e desconstruindo o que seria da ordem do binarismo masculino/feminino, para indicar um alargamento da apropriação daquilo que se define como sexual. Seguindo a noção de performance, encontramo-nos, também, com o campo da política, no qual o gênero também, evidentemente, se inscreve. A reunião de pessoas na rua, a cuja ocorrência temos assistido com tanta frequência pelo mundo afora, instigam a psicanálise a estabelecer forte interlocução com a política, no sentido em que esta não se aparta de forma alguma do sujeito. No presente artigo, atemo-nos, no que se refere à psicanálise, à proximidade da performance com a noção de semblante, assim como à separação necessária, que já fora há muito apontada por Freud, entre sexo biológico e identificação sexual, e à força e primordialidade das fantasias em nosso mundo psíquico, que descontrói, também, a existência de um referente original.
Além disso, a performance contemporânea, em seus diferentes territórios de atuação e com suas distintas acepções, oferece um campo de abertura para que a psicanálise valorize, em seu campo específico de atuação, as dimensões do ato e do corpo. Concebida como um modo de linguagem que comparece em ato e cuja duração tem como condição a presença do corpo, a performance instiga o psicanalista a vislumbrar o ato como uma operação psíquica positiva, reveladora de um sujeito que ali mesmo se fabrica, e não como um elemento que aponta para um sujeito alhures, aquele que comparece na atuação ou no acting-out para denunciar uma dessimbolização ou uma dificuldade de elaboração psíquica. Ao contrário, com os exemplos de performance que percorremos no presente artigo, vimos como ela pode ser, em alguns casos, a própria condição de aparição do sujeito.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Jun 2020 -
Data do Fascículo
May-Aug 2020
Histórico
-
Recebido
20 Jul 2019 -
Aceito
19 Abr 2020