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Olhares sobre a culpa no capitalismo moderno: um diálogo entre Deleuze-Guattari e Walter Benjamin

Perspectivas sobre la culpa en el capitalismo moderno: un diálogo entre Deleuze-Guattari y Walter Benjamin

Resumo

O objetivo deste artigo consistiu em refletir acerca das conexões que podem ser estabelecidas entre a caracterização que Deleuze e Guattari fazem da “máquina capitalista civilizada” em seu O anti-Édipo e as análises que Walter Benjamin fez da “estrutura religiosa capitalista” no seu fragmento intitulado O capitalismo como religião, especialmente no que diz respeito à ideia de culpa. Como pôde ser observado, o que parece ser distinto no pensamento Benjaminiano em comparação com a abordagem Deleuze-Guattariana é o fato de que o filósofo alemão apresenta, inicialmente, o capitalismo como tendo uma natureza instrinsecamente religiosa, ou seja, o capitalismo seria uma religião em si. Esse aspecto parece não encontrar aproximações com a concepção Deleuze-Guattariana da “máquina capitalista civilizada”, embora essa última admita o caráter “divino do capital”. A religião, para Deleuze e Guattari, teria uma clara função de auxílio na repressão e na modelagem do desejo humano.

Palavras-chave:
Culpa; Capitalismo; Desejo; Walter Benjamin; Deleuze e Guattari

Resumen

El propósito de este artículo es reflexionar sobre las conexiones que se pueden establecer entre la caracterización que Deleuze y Guattari hacen de la “máquina capitalista civilizada” en su libro El AntiEdipo y los análisis de Walter Benjamin sobre la “estructura religiosa capitalista” en su fragmento titulado El capitalismo como religión, especialmente en lo que se refiere al concepto de culpa. Como puede verse, lo que parece diferente en el pensamiento de Benjamin frente al enfoque de Deleuze y Guattari es el hecho de que el filósofo alemán presenta inicialmente el capitalismo con una naturaleza intrínsecamente religiosa, es decir, el capitalismo sería una religión en sí mismo. Este aspecto parece no encontrar similitudes en la concepción deleuze-guattariana de la “máquina capitalista civilizada”, aunque esta última admite el “carácter divino del capital”. La religión, para Deleuze y Guattari, tendría un papel claro de ayuda en la represión y formación del deseo humano.

Palabras clave:
Culpa; Capitalismo; Deseo; Walter Benjamin; Deleuze y Guattari

Abstract

This article reflects on the connections that can be established between the characterization that Deleuze and Guattari make of the “civilized capitalist machine” in their Anti-Oedipus and Walter Benjamin’s analyses of the “capitalist religious structure” in his fragment entitled Capitalism as religion, especially with regard to the concept of guilt. As can be seen, what seems to be different in Benjamin’s thought compared to the Deleuze-Guattarian approach is the fact that the German philosopher initially presents capitalism as having an intrinsically religious nature - capitalism is a religion in itself. This aspect does not seem to find similarities with the Deleuze-Guattarian conception of the “civilized capitalist machine,” although the latter admits the “divine character of capital.” Religion, for Deleuze and Guattari, has the clear role of helping in the repression and shaping of human desire.

Keywords:
Guilty; Capitalism; Desire; Walter Benjamin; Deleuze and Guattari

INTRODUÇÃO

Em sua Carta a um crítico severo, Deleuze (2021Deleuze, G. (2021). Conversações. São Paulo, SP: Editora 34., p. 17) afirma que “[…] escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de redemoinho com outros fluxos […]”. Falando especialmente da escrita literária, o filósofo francês mostra que o livro seria “[…] uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa”. Pensar a máquina capitalista civilizada com base em autores com trajetórias históricas e intelectuais tão distintas como Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Félix Guattari, no espaço limitado de um artigo, configura-se um desafio ainda maior. Uma primeira dificuldade é a de que o objeto de estudo em questão possui múltiplas camadas de realidade que dificultam, sobremaneira, o olhar do estudioso. Nas palavras de Deleuze e Guattari (2021bDeleuze, G., & Guattari, F. (2021b). Mil platôs (volume 1). São Paulo, SP: Editora 34.), seu projeto construtivista constituiria-se como uma teoria das multiplicidades em que o múltiplo passaria ao estado do substantivo, ou seja, as multiplicidades seriam a própria realidade e não suporiam nenhuma unidade, nenhuma totalidade, nem mesmo se remeteriam a qualquer sujeito. Essas multiplicidades teriam, assim, para os autores, uma natureza rizomática que denunciaria as “pseudomultiplicidades arborescentes”, quais sejam, a imagem da árvore-mundo e o sistema-radícula.

Outro ponto a ser levantado é o de que a máquina capitalista civilizada já foi objeto de uma diversidade enorme de estudiosos das mais variadas vertentes teórico-metodológicas que, agenciando-se entre si, a cartografaram em um mapa de múltiplas conexões.

Mas uma vez que esse rizoma possui múltiplas possibilidades de entrada e que todas as multiplicidades são planas, quais seriam aquelas mais adequadas para o estabelecimento de um diálogo profícuo entre autores tão distintos quanto Gilles Deleuze, Félix Guattari e Walter Benjamin? Para fins deste artigo, optou-se pela observação de duas obras basilares dos três autores, quais sejam, o livro O anti-Édipo, escrito por Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) em 1972, e o fragmento O capitalismo como religião, escrito por Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.) em 1921.

Influenciados por Nietzsche, especialmente no tocante ao segundo tratado da Genealogia da moral, bem como por Marx, em seu livro III de O capital, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) empreendem uma análise das “máquinas sociais” (territorial, despótica e capitalista) segundo o conceito de “dívida”. Já o fragmento Benjaminiano possui um caráter essencialmente anticapitalista e é profundamente influenciado por autores como Friedrich Nietzsche, Max Weber e Georg Simmel, bem como pelo teórico anarquista Gustav Landauer. O texto, profundamente inspirado na leitura do livro sobre Thomas Müntzer, de Bloch (1973Bloch, E. (1973). Thomas Münzer: teólogo da revolução. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.), publicado em 1919, configura-se como uma das mais duras críticas ao capitalismo da época. Nele, o autor apresenta uma faceta pouco explorada, qual seja, a de o capitalismo ser um fenômeno essencialmente religioso.

A natureza “religiosa” do capital não é, no entanto, uma constatação solitária do filósofo alemão. O próprio Marx já apresentava elementos próximos dessa realidade ao tratar, nos Manuscritos econômico-filosóficos, da questão do dinheiro. Ao analisar a peça Timão de Atenas, de Wiliam Shakespeare, por exemplo, especialmente no que diz respeito à cena III do ato IV, Marx (2004Marx, K. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo.) apresenta o dinheiro como tendo duas propriedades principais, quais sejam: ser uma “divindade visível” que transmuta as propriedades humanas no seu contrário e ser “a prostituta universal”. Sacralidade e profanidade seriam, desse modo, atribuídas ao equivalente geral marxiano. O que parece ser original na perspectiva benjaminiana é exatamente a caracterização dessa estrutura religiosa capitalista em quatro elementos principais: a) é uma religião puramente cultual; b) que propaga um culto permanente; c) esse culto não é expiatório, mas culpabilizador e d) seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização.

Esse caráter culpabilizador do capitalismo é, a meu ver, uma das facetas que mais agenciariam a análise Deleuze-Guattariana presente em O anti-Édipo daquela apresentada por Benjamin em seu O capitalismo como religião.

Assim, o objetivo deste artigo consiste em refletir acerca das conexões que podem ser estabelecidas entre a caracterização que Deleuze e Guattari fazem da “máquina capitalista civilizada” em O anti-Édipo e as análises que Walter Benjamin fez da estrutura religiosa capitalista no seu fragmento intitulado O capitalismo como religião, especialmente no que diz respeito à ideia de culpa.

Busca-se, assim, por meio desta reflexão, promover, na área de estudos organizacionais, um debate ampliado sobre a realidade capitalista sob o ponto de vista de autores que, somente nas duas últimas décadas, foram utilizados, de maneira mais contínua, pelos pesquisadores do campo (Barreto, Carrieri, & Romagnoli, 2020Barreto, R. O., Carrieri, A. P; & Romagnoli, R. C. (2020). O rizoma deleuze-guattariano nas pesquisas em estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 18(1), 47-60. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-395174655
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; Cavalcanti, 2016Cavalcanti, M. F. R. (2016). Estudos organizacionais e filosofia: a contribuição de Deleuze. Revista de Administração de Empresas, 56(2), 182-191. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0034-759020160205
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; Paes & Borges, 2016Paes, K; & Borges, F. (2016). O sujeito lacaniano e a organização rizomática: devires-máquina-de-guerra. Farol, 3(7), 670-720. Recuperado de https://doi.org/10.25113/farol.v3i7.2753
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; Zioli, Ichikawa, & Mendes, 2021Zioli, E. G. O., Ichikawa, E. Y., & Mendes, L. (2021). Contribuições de Deleuze e Guattari para uma perspectiva rizomática das organizações. Cadernos EBAPE.BR, 19(3), 552-563. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-395120200113
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).

Este artigo é composto, além desta introdução, pelas seguintes seções: 1) Mea culpa, mea maxima culpa? Ou a era do homo culpabilis?; 2) Capitalismo, desejo e culpa: um olhar com base em Deleuze e Guattari; 3) O capitalismo como religião: o olhar Benjaminiano; 4) Algumas considerações finais e 5) Referências.

MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA? OU A ERA DO HOMO CULPABILIS?

Se pudéssemos realizar um empreendimento no qual buscássemos construir certa arqueologia da culpa no imaginário popular ocidental, necessariamente, voltaríamos nossos olhos para o “Gênesis” cristão. Lá, em suas primeiras páginas, é narrado que Deus plantou um jardim no Éden e colocou o homem que havia criado do barro da terra para cultivar seu solo e guardá-lo. Rodeado de toda sorte de árvores, de aspecto agradável, de bons frutos para comer, da vida e da ciência do bem e do mal, o homem recém-criado recebe o seu primeiro preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”.

Embora não seja possível discutir esse curioso preceito no curto espaço deste artigo, chama a atenção o fato de que o Cristianismo, já nas primeiras palavras de seu livro sagrado, admita o caráter dúbio da ciência, aquela que faz o bem, mas também pode realizar o mal, e coloque a religião como o norte fundamental do comportamento humano. Não cabe aqui também tecer comentários sobre a dubiedade da própria religião em si. Afinal de contas, se a árvore da ciência pode realizar o bem ou o mal, por que não a religião? Enfim.

Logo após o estabelecimento dessa normativa, Deus cria a mulher - “Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada” - das costelas de seu companheiro e, juntos, eles vivem nus e desavergonhados em um Paraíso idílico.

Gostaria, se o leitor me permitir, de reforçar os termos que acabei de citar: nus e desavergonhados. Haveria, aqui, a constatação, mesmo que indireta, de que a sexualidade e, por consequência, o desejo humano seriam tão naturais quanto as árvores do jardim do Éden? Creio que sim.

A cena bíblica continua, e um personagem central, a serpente ou, dito de outra forma, “o animal mais astuto de todos”, faz a sua estreia no palco principal. A serpente, passível de ser interpretada metaforicamente como o órgão sexual masculino, vira-se para a mulher e pergunta: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?” A mulher lhe responde: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’”. Com essa resposta, a serpente retruca: “Oh, não! Vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.”

A narrativa continua, e a mulher, “vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência”, comeu e ofereceu ao homem, que também o comeu. Nesse ponto, tanto o homem quanto a mulher perceberam-se, pela primeira vez, nus e, diante da presença de Deus, sentiram-se envergonhados. Quanto ao restante da história, creio que todos conhecem. Deus amaldiçoa a serpente: “Serás maldita entre todos os animais domésticos e feras do campo; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida”; a mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”; e, finalmente, o homem: “Tirarás da terra com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.” Expulsa Adão e Eva do Paraíso, com o cuidado de colocar “querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida” e, por fim, diz em alto e bom som: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois, cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente.” Eis a culpa original.

Não é somente no livro do “Gênesis” que há uma série de preceitos religiosos que buscam moldar o comportamento humano estabelecendo um limite claro entre o permitido e o proibido. Nos demais livros do Pentateuco (“Êxodo”, “Levítico”, “Números” e “Deuteronômio”) que, junto com o “Gênesis”, compõem a Torá Judaica, há também uma enormidade de regras de natureza religiosa, ritualística, cultural, legal, dietética e até mesmo sexual. Em Levítico 15:16-18, por exemplo, é ordenado ao homem “[…] que tiver um derramamento seminal” que lave todo o seu corpo com água, embora, mesmo assim, continue impuro até a tarde. Além disso, “[…] toda veste e toda pele sobre as quais cair o sêmen serão lavadas com água e ficarão impuras até a tarde”. Da mesma maneira, “[…] se uma mulher dormiu com esse homem, ela se lavará na mesma água que ele e ficarão impuros até a tarde”.

A culpa, especialmente nesse momento histórico no qual a Igreja Católica exerceu um papel ideológico dominante na sociedade ocidental, parece ter relação com o não cumprimento de algum mandamento ou preceito religioso e instaura, no imaginário social, a ideia de pecado.

Delumeau (2009Delumeau, J. (2009). História do medo no Ocidente. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 201) aponta, por exemplo, em sua História do medo no Ocidente, que o medo da peste negra na Europa da Idade Média gerou uma série de explicações de natureza religiosa em que a Igreja “[…] assegurava que Deus, irritado com os pecados de uma população inteira, decidira vingar-se […]” e que “[…] convinha apaziguá-lo fazendo penitência”. Nesse sentido, a Igreja trazia para si o papel de intérprete de uma série de sinais (por exemplo, passagem de cometas) que anunciavam que a vingança divina estaria próxima, causando um sentimento de pânico na população. De acordo com Delumeau (2009), a Igreja assumiu, ainda, durante vários séculos, o papel de repressor e de carrasco de determinados grupos sociais que, de alguma forma, ou questionavam os preceitos católicos ou os punham em xeque. É sob essa perspectiva que, por exemplo, mulheres e judeus foram considerados agentes de Satã e, por consequência, queimados nas fogueiras da Inquisição (acusados de bruxaria ou deicídio).

Foi apenas em 1517 que Lutero atacou pela primeira vez o dogma e as instituições da Igreja Católica, agrupando, pelo menos na Alemanha, em torno de si, “[…] os elementos abastados da oposição, a massa da pequena nobreza, a burguesia e até uma parte dos príncipes seculares que queriam enriquecer apoderando-se dos bens do clero […]” (Engels, 1975Engels, F. (1975). As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 56). A partir daí, o aparecimento de um éthos religioso diverso do católico culminou com uma forte aliança estabelecida entre o Protestantismo e o capitalismo. Tal elo, amplamente discutido em Weber (2001Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Pioneira.), fez com que a religião Protestante (especialmente o Metodismo) funcionasse durante toda a Revolução Industrial como um “braço ideológico do capitalismo”. De acordo com Thompson (1987Thompson, E. P. (1987). A formação da classe operária inglesa: a maldição de adão. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), o Metodismo deslocava as energias ou emoções ameaçadoras de seus fiéis para festas de confraternização, vigílias, reuniões musicais ou campanhas renovacionistas. Ainda conforme aponta o autor, durante essas cerimônias, o pregador falava, didaticamente, “[…] num estilo rude e emocional sobre suas experiências espirituais, tentações e lutas contra o pecado” e os fiéis “[…] erguiam-se e confessavam publicamente seus pecados e tentações, frequentemente acompanhados por implicações sexuais” (Thompson, 1987Thompson, E. P. (1987). A formação da classe operária inglesa: a maldição de adão. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra., p. 248).

O objetivo da pregação consistia, muitas vezes, em dizer que a salvação nunca estaria assegurada e que as tentações surgiriam por toda parte. Havia, assim, um constante estímulo interior em direção a um comportamento sóbrio e diligente por parte do fiel que deveria canalizar todas as suas energias (inclusive sexuais) para a realização de um trabalho metódico e disciplinado.

Tendo isso exposto, nas duas seções a seguir, buscaremos as conexões entre as concepções de capitalismo e culpa em duas obras basilares de três autores, quais sejam, o livro O anti-Édipo, escrito por Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) em 1972, e o fragmento O capitalismo como religião, escrito por Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.) em 1921.

CAPITALISMO, DESEJO E CULPA: UM OLHAR SEGUNDO DELEUZE E GUATTARI

É fato comumente aceito que Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) recusam, em O anti-Édipo, uma concepção psicanalítica do desejo calcada na ideia de falta (Antunes, 2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal.; Peixoto, 2004Peixoto, C. A.Jr. (2004). A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença? PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva, 4(1), 109-127. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-73312004000100007
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; Wendling, 2010Wendling, M. M. (2010). Duas versões do desejo: Lacan, Deleuze & Guattari (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, SE. ). Para os autores, ao empreender uma verdadeira “genealogia dos desejos”, o inconsciente humano poderia ser compreendido como um locus de produção, e não de representação. Ao questionarem certa “edipianização furiosa” que estaria a cargo da psicanálise, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) propõem um inconsciente que se aproximaria muito mais de uma concepção de fábrica, ou de ateliê, do que propriamente de um teatro. Nesse sentido, o desejo estaria muito mais próximo da ideia de um processo do que necessariamente de um ente. Seria, de certa forma, um propagador de fluxos e de linhas que produziria certas conexões. Nas palavras de Hur (2020Hur, D. U. (2020). Desejo e política em Deleuze: máquinas codificadora, neoliberal, neofascista e esquizodramática. PoliÉtica, 8(2), 173-202. Recuperado de https://doi.org/10.23925/poliética.v8i2.50130
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, pp. 175-176), o desejo Deleuze-Guattariano consistiria em “[…] uma força que agencia e é agenciada por diferentes componentes” e que, por isso, “[…] pode assumir diversos vetores direcionais”, formando configurações distintas. Assim, o desejo seria um “[…] agenciamento coletivo, no qual o indivíduo é apenas um ponto ou uma resultante de suas conexões”.

As máquinas desejantes são máquinas binárias, com regra binária ou regime associativo; sempre uma máquina acoplada à outra. A síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma conectiva: “e”, “e depois” […] É que há sempre uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que lhe é conectada, operando um corte; uma extração de fluxo (o seio - a boca) (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 16).

O sujeito Deleuze-Guattariano, compreendido como “máquina desejante”, constituiria-se, fundamentalmente, de três modos distintos: a) a síntese conectiva que mobiliza a libido como energia de extração1 1 “Um bebê é amamentado. Máquina-órgão-boca ‘e’ máquina-fluxo de leite/seio. Algo se passa entre as duas superfícies. O desejo percorre as máquinas. Uma intensidade irradia-se pelo corpo da criança. Algo se produz. Ações e paixões, gestos e afetos. A alegria foi extraída da experiência como um aumento da potência. Satisfação. O agenciamento é bem-sucedido” (Catenaci, 2022, p. 89). ; b) a síntese disjuntiva que mobiliza o Numen2 2 Deleuze e Guattari (2011) chamam de “Numen” a energia libidinal desviante. como energia de destacamento de um fluxo3 3 “A disjunção inclusiva comporta-se como a assimilação do diferente, sem que a sua diferença seja suprimida; aquilo que é incluso disjuntivamente conserva sua singularidade. […] A mesma boca ‘ou’ mastiga ‘ou’ canta ‘ou’ grita ‘ou’ beija, tanto faz, a depender da energia desejante que lhe percorre no momento” (Catenaci, 2022, pp. 91-92). e c) a síntese conjuntiva que mobiliza a voluptas, energia de consumo, como energia residual4 4 “Para ficarmos com a criança sendo amamentada: i. A máquina-órgão boca ‘e’ uma máquina-fluxo leite/seio = conexão; ii. A máquina-órgão boca e uma máquina-fluxo leite/seio ‘ou’ máquina-órgão boca e máquina-fluxo ar = disjunção de registro [‘ou’ mamar, ‘ou’ berrar]; iii. Finalmente, isso será produto de um consumo subjetivo [‘então, era isso!’]” (Catenaci, 2022, p. 93). . A construção desse sujeito passaria, exatamente, pelo que Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) chamam de “máquina celibatária”, ou seja, aquela “[…] que produz intensidades ou quantidades intensivas, as pulsões em Freud, medidas em quantidade de libido, que serão gastas desejavelmente no processo de produção” (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 17).

Embora reconheçam que essa “produção desejante” não tenha sido completamente ignorada pela psicanálise, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) compreendem, no entanto, que ela foi “julgada”, pelos psicanalistas com base em uma ótica essencialmente edipiana. Dessa forma, o desejo concebido como positivo ou produtivo foi, no âmbito da psicanálise, quase sempre entendido como sendo de natureza “anedipiana”5 5 Incluem-se aqui todas as formas “pré-edipianas”, “paraedipianas” e “quase edipianas”. . O que Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) pretendem apontar é que Édipo se tornou, fundamentalmente, nas mãos da “máquina capitalista civilizada” e de seus psicanalistas, um agente da anteprodução no desejo, um elemento castrador “pior que o pecado original”. “Está escrito no frontão do consultório: deixa tuas máquinas desejantes à porta, abandona as tuas máquinas órfas e celibatárias, teu gravador e teu pequeno velocípede, entra e deixa-te edipianizar” (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 79).

Não é coincidência, portanto, que Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) façam, na frase-manifesto acima, uma clara alusão religiosa, qual seja, utilizam-se uma intertextualidade com A divina comédia, de Dante Alighieri, que, ao chegar às portas do inferno encontra a seguinte inscrição: “Deixai toda esperança, vós que entrais.” Embora não seja dito explicitamente, ou mesmo metaforicamente, na frase acima, cumpre lembrar que, na obra original do poeta italiano, a porta do inferno era guardada por Minos, personagem que tinha, por ocupação, avaliar as culpas e emitir as sentenças dos pecadores. Seriam os psicanalistas os minos modernos? Creio que os dois filósofos franceses diriam que sim.

Ao tratar da obra Kafkaniana, Deleuze e Guattari (2021Deleuze, G., & Guattari, F. (2021a). Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte, MG: Autêntica.a, p. 23) afirmam que “[…] não é o Édipo que produz a neurose, é a neurose, quer dizer, o desejo já submetido e buscando comunicar sua própria submissão, que produz Édipo”.

Toda a produção desejante é esmagada, submetida às exigências da representação, aos jogos sombrios do representante e do representado na representação. Aí está o essencial: a reprodução do desejo é substituída por uma simples representação, tanto no processo de cura quanto na teoria. O inconsciente produtivo é substituído por um inconsciente que sabe apenas exprimir-se - e exprimir-se no mito, na tragédia, no sonho. Mas quem nos diz que o sonho, a tragédia e o mito sejam adequados às formações do inconsciente, mesmo se levarmos em conta o trabalho de transformação? (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 77).

Assim, para Peixoto (2004Peixoto, C. A.Jr. (2004). A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença? PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva, 4(1), 109-127. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-73312004000100007
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), amparado na ótica Deleuze-Guattariana, essa concepção negativa do desejo seria instituída por esses meios ideológicos, especialmente por meio do Édipo, com o fim de racionalizar uma situação social de hierarquia ou dominação.

Chamamos idealismo da psicanálise todo um sistema de assentamentos, de reduções na teoria e prática analíticas: redução da produção desejante a um sistema de representações ditas inconscientes, e as formas de causação, de expressão e de compreensão correspondentes; redução das fábricas do incosciente a uma cena de teatro, Édipo, Hamlet; redução dos investimentos sociais da libido aos investimentos familiares, assentamento do desejo sob coordenadas familiares, ainda o Édipo […] A psicanálise não faz mais do que elevar Édipo ao quadrado, Édipo de transferência, Édipo de Édipo, no divã como uma terrinha lamacenta. Porém, familiar ou analítico, o Édipo é fundamentalmente um aparelho de repressão das máquinas desejantes, e de modo algum uma formação do próprio inconsciente (Deleuze, 2021Deleuze, G. (2021). Conversações. São Paulo, SP: Editora 34., pp. 27-28).

Não se deve, no entanto, pensar que a psicanálise seja a única forma institucionalizada agenciada pelo capitalismo para territorializar os fluxos de desejo. Há, ainda, outras conexões possíveis de serem estabelecidas nesse campo: família, igreja, fascismo. Uma delas diz respeito ao papel que a instituição religiosa cumpre na sociedade capitalista ao imprimir uma culpabilidade no sujeito, levando-o a uma sexualidade privatizada e, em certos casos, até fetichizada. É dentro dessa perspectiva, por exemplo, que Deleuze e Guattari (2021Deleuze, G. (2021). Conversações. São Paulo, SP: Editora 34.a) chamam a atenção para o desejo bloqueado de Kafka em A metamorfose, que se direciona fundamentalmente para o retrato da dama na parede, bem como para o pescoço descoberto da irmã. O desejo toma, assim, um ar proibitivo, não dito, condenável por si só e somente exercido nos quartos escuros ou nos banheiros das casas. Essa sexualidade restrita, bloqueada, submissa, reprimida, acaba por territorializar-se nas zonas privadas “privilegiadas” do corpo humano, negligenciando, assim, todas as múltiplas potencialidades de configuração do desejo humano. Para Deleuze e Guattari (2018Deleuze, G., & Guattari, F. (2018). Cartas e outros textos. São Paulo, SP: Edições N-1., p. 212), há “[…] tão somente uma sexualidade que é a mesma em toda parte e que inunda tudo”. Compreender a sexualidade sob essa perspectiva implica compreender que ela é, acima de tudo, social e política.

Não sei se devemos chamar isso de segredo, mas a abertura do desejo para o campo social é uma certa característica de liberdade política, uma certa característica de inovação, de produção particular de objetos; e é precisamente isso de que o campo social não quer ouvir falar […] Tudo é completamente programado (Deleuze & Guattari, 2018Deleuze, G., & Guattari, F. (2018). Cartas e outros textos. São Paulo, SP: Edições N-1., p. 217).

Tal constatação faz lembrar, ainda, outra forma institucionalizada e agenciada pelo capitalismo para territorializar os fluxos de desejo, qual seja, o fascismo. Deleuze e Guattari (2021Deleuze, G. (2021). Conversações. São Paulo, SP: Editora 34.b) chegam a afirmar, em Mil platôs, que a sociedade sempre corre o risco de vivenciar as “ressurgências edipianas até as concreções fascistas” e emendam com um ar quase profético: “Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização” (Deleuze & Guattari, 2021bDeleuze, G., & Guattari, F. (2021b). Mil platôs (volume 1). São Paulo, SP: Editora 34., p. 26).

Nesse contexto, o projeto Deleuze-Guattariano presente em O anti-Édipo6 6 Antunes (2014) afirma que, mesmo sendo uma obra de referência sobre o desejo moderno e a constituição da subjetividade político-econômica do capitalismo, O anti-Édipo trataria mais da repressão do desejo e do processo de produção do homem moderno. seria, exatamente, o de:

Esquizofrenizar, esquizofernizar o campo do inconsciente e também o campo social histórico, de maneira a explodir o jugo de Édipo e a reencontrar em toda parte a força das produções desejantes, reatar no próprio real o liame da máquina analítica, do desejo e da produção (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 75).7 7 Para Foucault (1993, p. 1), “O anti-Édipo mostra, inicialmente, a extensão do terreno percorrido. Porém, faz muito mais. Ele não se distrai difamando os velhos ídolos, ainda que se divirta muito com Freud. E, sobretudo, ele nos incita a ir mais longe. Seria um erro ler O anti-Édipo como a nova referência teórica. […] Não se deve buscar uma ‘filosofia’ nessa extraordinária profusão de noções novas e de conceitos-surpresa. O anti-Édipo não é uma contrafação de Hegel. A melhor maneira de ler O anti-Édipo é, creio eu, abordá-lo como uma ‘arte’, no sentido em que se fala de ‘arte erótica’, por exemplo. Apoiando-se nas noções aparentemente abstratas de multiplicidade, de fluxos, de dispositivos e de ramificações, a análise da relação do desejo com a realidade e com a ‘máquina’ capitalista traz respostas a questões concretas”. 8 8 “Uma psiquiatria verdadeiramente materialista define-se […] por uma dupla operação: introduzir o desejo no mecanismo e introduzir a produção no desejo” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 39).

Antunes (2004)Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal. e Guerón (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, 2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau.) chegam a apontar que esse projeto estaria pautado, ainda, na crítica de outro pilar da sociedade moderna, qual seja, a máquina capitalista civilizada. Guéron (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, 2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau.), especialmente, chama a atenção para o fato de que, nessa tentativa de pensar o socius por meio de certo “materialismo maquínico”, profundamente influenciado tanto pelo marxismo9 9 Para críticas quanto à abordagem marxista utilizada por Deleuze e Guattari em O anti-Édipo, ver Cotrim (2021). , com destaque para o livro III de O capital, quanto por Nietzsche, segundo o tratado da Genealogia da moral, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) acabam por propor, em O anti-Édipo, uma caracterização “evolutiva” das máquinas sociais10 10 É preciso dizer, ainda, que, de acordo com Antunes (2014, p. 278), na abordagem Deleuze-Guattariana, a máquina social seria “literalmente” uma máquina na medida em que teria um “motor imóvel” e faria “[…] diversos tipos de cortes: extração de fluxo, destacamento de cadeia, repartição de partes”. , desde a mais primitiva, “máquina territorial”, passando pela “despótica” até a mais contemporânea, “máquina capitalista civilizada”.

No capítulo III de O anti-Édipo, Selvagens, bárbaros, civilizados, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 185) afirmam que as máquinas sociais pré-capitalistas seriam inerentes ao desejo no sentido de que “elas o codificam, codificam os fluxos do desejo”. Assim, para os autores, “[…] codificar o desejo - e o medo, a angústia dos fluxos descodificados” é algo “[…] próprio do socius”. Para Guéron (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, pp. 263-264), isso significaria, portanto, que os fluxos de desejo seriam “[…] rigorosamente determinados, isto é, o que se determina nessas relações sociais é a função que cada indivíduo e/ou grupo vai exercer”. Além disso, Guéron (2020Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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) afirma que esse processo de codificação poderia ser caracterizado pela introdução de um elemento de “improdução”. Esse elemento, na perspectiva do autor, seria, exatamente, a dívida, a culpa, a falta (Guéron, 2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau.). Como será trabalhado mais adiante, a máquina capitalista, diferentemente das anteriores, se construiu, ao contrário, “[...] como tal sobre fluxos descodificados, substituindo os códigos intrínsecos por uma axiomática das quantidades abstratas”.

De acordo com Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 187), a “máquina territorial” seria “[…] a primeira forma de socius, a máquina de inscrição primitiva, ‘megamáquina’ que cobre um campo social”. A terra, na perspectiva Deleuze-Guattariana, seria, portanto, conforme aponta Ribeiro (2012Ribeiro, V. M. L. (2012). A importância do pensamento de Nietzsche em o anti-Édipo para a formulação de uma economia política primitiva. Griot - Revista de Filosofia, 6(2), 83-97. Recuperado de https://doi.org/10.31977/grirfi.v6i2.537
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, p. 4), “[…] a unidade maquínica dos primitivos e todos os corpos-máquinas dos homens lhe pertencem e são atravessados por suas forças”. Assim, para Antunes (2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 278), nesse modelo, a sociedade não seria um simples meio de troca, em que o essencial seria circular e fazer circular, mas um socius que privilegia a inscrição, marcar e ser marcado. Ainda de acordo com o autor, só haveria “[…] circulação quando a inscrição a exige ou permite”, ou seja, “[…] o que caracteriza a máquina territorial primitiva é codificar os fluxos, investir os órgãos e marcar os corpos” (Antunes, 2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 278).

A máquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os órgãos, marca os corpos. Até que ponto circular, trocar, é uma atividade secundária em relação a esta tarefa que resume todas as outras: marcar os corpos, que são da terra. A essência do socius registrador, inscritor, enquanto atribui a si próprio as forças produtivas e distribui os agentes de produção, consiste nisto: tatuar, excisar, incisar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 191).

Para Ribeiro (2012Ribeiro, V. M. L. (2012). A importância do pensamento de Nietzsche em o anti-Édipo para a formulação de uma economia política primitiva. Griot - Revista de Filosofia, 6(2), 83-97. Recuperado de https://doi.org/10.31977/grirfi.v6i2.537
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, p. 4), esse trabalho cruel de marcação dos corpos teria, como função, a constituição de seres capazes de responder por suas dívidas. Dessa maneira, as relações credor-devedor nessas sociedades primitivas seriam relações finitas que estariam na “[...] base das alianças horizontais maquinadas pelos corpos”. Ainda de acordo com o autor, essas dívidas das sociedades primitivas seriam “[...] compostas por prestações e contraprestações assimétricas” (Ribeiro, 2012Ribeiro, V. M. L. (2012). A importância do pensamento de Nietzsche em o anti-Édipo para a formulação de uma economia política primitiva. Griot - Revista de Filosofia, 6(2), 83-97. Recuperado de https://doi.org/10.31977/grirfi.v6i2.537
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, p. 4). Essa dívida não seria contraída, portanto, em uma relação estabelecida entre o homem e seu deus, mas diria respeito a um ou outros indivíduos. É importante destacar, ainda, que, nesse tipo de sociedade não haveria uma quantidade abstrata, o equivalente geral capitalista, que nivelaria os bens materiais ou prestígios. Assim,

[…] toda a questão do socius primitivo é, portanto, marcar os corpos para que sejam capazes de pagar pela dívida, só sendo capazes, segundo Deleuze e Guattari, se construírem nesses corpos inscrições suficientes, com a violência necessária, para que eles sejam capazes de criar uma memória biocósmica: memória de palavras que todo o corpo pleno da terra o atravessa (Ribeiro, 2012Ribeiro, V. M. L. (2012). A importância do pensamento de Nietzsche em o anti-Édipo para a formulação de uma economia política primitiva. Griot - Revista de Filosofia, 6(2), 83-97. Recuperado de https://doi.org/10.31977/grirfi.v6i2.537
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, p. 4).

Para Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 193), essa crueldade não teria nada a ver com uma violência de caráter qualquer, mas, sim, como um “[…] movimento da cultura que se opera nos corpos e neles se inscreve, cultivando-os”. Essa crueldade teria, portanto, como um de seus objetivos, fazer do homem e de seus órgãos “engrenagens da máquina social”.

Outro aspecto importante acerca da “máquina territorial” Deleuze-Guattariana é o de que o seu funcionamento consistiria em declinar a aliança e a afiliação. Filiação e aliança seriam, conforme afirma Antunes (2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 279), “[…] como que as duas formas do capital primitivo, ‘o capital fixo (ou stock filiativo) e o capital circulante (ou blocos móveis de dívidas), a que correspondem duas memórias, uma biofiliativa e outra de alianças e palavras’”.

De acordo com Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.), a instauração da “máquina despótica” poderia ser resumida pela ideia de uma nova aliança e filiação direta. Nesse contexto, o déspota recusaria alianças laterais e filiações extensas da antiga comunidade. Ele imporia uma nova aliança e colocar-se-ia em uma filiação direta com o próprio Deus, fazendo com que o povo o siga. Assim, para Guéron (2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau., p. 103), “[…] com o surgimento do Estado, […] todos os processos laterais de dívidas que eram sempre renovadas como dívidas finitas nas sociedades sem Estado - determinando as trocas diretas entre coisas e palavra -, se voltam para um suposto ‘ser superior’ ao qual todos agora seriam devedores”. “O surgimento do Deus-Déspota-Estado é, ao mesmo tempo, o surgimento de um elemento infinito da dívida: uma dívida infinita transcendente […]” (Guéron, 2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau., p. 131).

Convém destacar, também, que o aparecimento dessa máquina, instaurada com base em uma lei (e um processo de sobrecodificação), poderia ser caracterizado pela instalação de um novo regime de significantes. Para Guéron (2020Guéron, R. (2020). Capitalismo, desejo e política. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nau.), os sacerdotes, burocratas e juízes seriam, nesse sentido, os intérpretes dessa lei.

Para Antunes (2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 267), o “fim da história” consiste no aparecimento da “máquina capitalista civilizada”11 11 É importante destacar que a utilização do termo “máquina capitalista civilizada” é profundamente inspirada no marxismo, embora o próprio Marx não a utilize nesses termos. Para Guéron (2020), aliás, a influência marxista no pensamento de Deleuze e Guattari é bastante significativa e não pode, de maneira alguma, ser subestimada. De acordo com o autor, embora os dois filósofos franceses tenham trabalhado com conceitos marxistas já em Mil platôs, é em O anti-Édipo (especialmente no livro III de O capital) que essa relação se intensifica. , que, nas palavras do próprio autor, “[…] radicalmente descodifica e desterritorializa a vida social”. Nesse sentido, influenciado por Marx, Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.) apontam que a “máquina capitalista civilizada” consistiria, fundamentalmente, no encontro de dois elementos principais: a) o trabalhador desterritorializado que vende a sua força de trabalho e b) o dinheiro descodificado, devindo capital, que é capaz de comprá-la. Além disso, para Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., pp. 299-300),

[…] cada um desses elementos põe em jogo vários processos de descodificação e de desterritorialização com origens muito diferentes. No caso do trabalhador livre, temos a desterritorialização do solo por privatização; a descodificação dos instrumentos de produção por apropriação; a privação dos meios de consumo por dissolução da família e da corporação; por fim, a descodificação do trabalhador em proveito do próprio trabalho ou da máquina. No caso do capital, temos a desterritorialização da riqueza por abstração monetária; a descodificação dos fluxos de produção pelo capital mercantil; a descodificação dos Estados pelo capital financeiro e pelas dívidas públicas; a descodificação dos meios de produção pela formação do capital industrial. […] Mas o capitalismo só começa, a máquina capitalista só está montada, quando o capital se apropria diretamente da produção, e quando o capital financeiro e o capital mercantil nada mais são do que funções específicas correspondentes a uma divisão do trabalho no modo capitalista da produção em geral.

Tais elementos levam, de acordo com Guéron (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, p. 265), à concepção Deleuze-Guattariana de que a “máquina capitalista civilizada”, com seus fluxos produtivos permanentemente ilimitados, se caracterizaria por ter um caráter essencialmente esquizofrênico. Convém destacar que aquilo que é denominado, por Deleuze e Guattari, como sendo esquizofrenia pode ser compreendido como “[…] uma força que está sempre pressionando, ameaçando e escapando às relações sociais, exercendo uma espécie de pressão, como uma espécie de energia física, sobre os indivíduos e grupos sociais”.

[…] o capitalismo lida com esses fluxos de forma completamente diferente das relações sociais de produção que lhe são anteriores: ele não pode prescindir desses fluxos, ao mesmo tempo em que vive sob permanente ameaça deles. Há, pois, um limite exterior, esquizofrênico, que faz desses fluxos uma ameaça, mas é exatamente aí que o processo de axiomatização vai tentar administrá-los tanto mais quanto possível desde dentro. Trata-se de um processo onde se faz expandir a contraprodução no movimento mesmo de expansão da produção capitalista. Assim, o próprio capitalismo se instala - e se mantém - a partir de um complexo sistema de conjunção de fluxos diferenciais de descodificação e desterritorialização (Guéron, 2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, p. 266).

Para Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.), no entanto, duas outras características fundamentais são importantes para a “máquina capitalista civilizada”. Em primeiro lugar, o capitalismo opera um processo de descodificação dos fluxos relativos à mercadoria e à moeda por abstração. Dessa forma, para os autores, o capitalismo somente aparece no momento histórico em que o dinheiro se torna um equivalente geral (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.). Além disso, uma segunda característica diz respeito ao fato de que o capital, de acordo com Guéron (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, p. 268), empreende um processo de (auto)mistificação, “[…] uma espécie de fetichismo de todos os fetichismos, que faz com que toda a produção seja atribuída a ele, isto é, o capital se torna […] o ‘pressuposto natural e divino’ de todo o processo produtivo”.

É preciso destacar, nesse ponto, que o capitalismo conseguiria introduzir um elemento de contraprodução na máquina desejante, ou seja, a “máquina capitalista civilizada” codifica os fluxos do desejo por meio de certa introjeção da dívida, da má consciência e, por que não dizer, da culpa. Conforme apontado por Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.), o fim supremo do capitalismo consiste, fundamentalmente, em produzir a falta mesmo onde haja sempre excesso. Assim, o homem moderno, esvaziado do sagrado e endividado pelo profano (com seus desejos de consumo, na maioria das vezes, não atendidos e suas dívidas monetárias sempre crescentes), encontra-se sempre em um estado de permanente endividamento perante um deus que não é mais o deus cristão, mas, sim, o deus mercado.

Nessa mesma direção, para Guéron (2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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), a abordagem Deleuze-Guattariana conceberia a dívida no capitalismo como tendo um caráter totalmente “imanente” - dívida infinita imanente. Aliado a isso, Peixoto (2004Peixoto, C. A.Jr. (2004). A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença? PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva, 4(1), 109-127. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-73312004000100007
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, p. 119) compreende que “[…] o fundamento ontológico da falta é revelado em termos de reificação do conceito econômico de escassez […]”, ou seja, “[…] a crítica do discurso sobre o desejo como negatividade […] expõe seu caráter ostensivamente privativo como efeito de uma privação material concreta, [que] implica um tipo de ideologia reativa e contrária à vida”.

[…] será, com o surgimento do capitalismo, que a dívida vai ganhar uma dimensão ‘imanente’: a ‘dívida infinita imanente’, segundo os autores. É curioso porque eles vão articular o processo de introjeção da culpa na maneira como ele se radicaliza no Cristianismo, descrito por Nietzsche em A genealogia da moral (“schuld” é a mesma palavra em alemão para “dívida” e “culpa”), com o conceito de “imanente” que vem do trecho de Marx sobre a gestão imanente da dívida […] (Guéron, 2017Guéron, R. (2017). A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia Aurora, 29(46), 257-282. Recuperado de http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS14
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, p. 270).

Talvez seja esse aspecto, aliás, que faz com que Antunes (2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal.) compreenda que o capitalismo, na abordagem Deleuze-Guattariana, acaba por desterritorializar o sagrado, incluindo seus rituais e tradições, dispensando qualquer sistema religioso de convicção. O fato é que a “máquina capitalista civilizada” empreende, de acordo com Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 341), um profundo movimento de repressão do desejo, por meio da instauração de “neoterritorialidades” que são, nas palavras dos autores, “artificiais, residuais, arcaicas”, além do próprio idealismo edipiano que solda “a sexualidade ao complexo familiar” com base em um argumento mitológico, que adapta a potência produtiva do inconsciente às “[...] forças edificadoras dos mitos e das religiões” (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G; & Guattari, F. (2011). O anti-Édipo (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 81). “A desterritorialização é acompanhada por uma reterritorialização ininterrupta, uma recodificação de formas antigas. O Estado, a pátria e a família continuam a reaparecer de forma modificada, mas igualmente governada por regras e igualmente repressivas” (Antunes, 2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 268).

Essa repressão do desejo e, por que não dizer, essa modelagem do desejo no capitalismo acaba por ligá-lo diretamente ao universo do consumo. Antunes (2014Antunes, M. A. O. S. L. C. (2014). O desejo maquínico em Gilles Deleuze (Tese de Doutorado). Instituto de Investigação e Formação Avançada, Évora, Portugal., p. 254) afirma, nesse sentido, que o capitalismo modela o desejo, por meio de uma necessidade compulsiva e alienante (um consumo de caráter ilimitado), e que esse elemento se tornou a “[…] chave na compreensão das adicções, tornando-se num desvio da ordem do vital para a ordem do patológico, caracterizando-se pela redução do objeto do desejo ao objeto da necessidade”.

O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO: O OLHAR BENJAMINIANO

De acordo com Löwy (2013Löwy, M. (2013). Walter Benjamin: crítico da civilização. In W. Benjamin (Ed.), O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.), O capitalismo como religião é um dos mais impressionantes textos redigidos por Walter Benjamin em sua fase pré-marxista. Diretamente influenciado pelo livro de Ernst Bloch sobre o revolucionário alemão Thomas Müntzer12 12 De acordo com Löwy (2007, p. 177), “[…] o título do excerto se inspirou no livro de Ernst Bloch, Thomas Müntzer, teólogo da revolução, publicado em 1921; no capítulo dedicado a Calvino, o autor denunciou, na doutrina do reformador genovês, uma manipulação que vai ‘destruir totalmente’ o cristianismo e introduzir ‘elementos de uma nova religião’, a do capitalismo erigido como religião […] e tornado Igreja de Mamon”. e pelo socialismo romântico-anarquista de Gustav Landauer, o fragmento é de uma atualidade assustadora. Ele é fundamentalmente anticapitalista e composto de parcas quatro páginas de escritos e de referências bibliográficas, e, além disso, é de um hermetismo e de uma densidade poucas vezes vistos nas ciências humanas, o que leva os estudiosos a uma diversidade de interpretações.

Um primeiro aspecto a ser destacado é que o fragmento foi escrito na mesma época de dois textos Benjaminianos que são bastante críticos à sociedade capitalista, quais sejam Sobre a crítica do poder como violência (1921) e Fragmento teológico-político (1920-1921). Dessa forma, não é de se estranhar que Walter Benjamin busque, nessa época e nesse fragmento, analisar, de maneira bastante revolucionária, mesmo que seja uma análise muito mais weberiana do que marxista, a “religião capitalista”. Colocamos nesses termos, pois, a primeira frase do fragmento consiste exatamente nisto:

O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta. A demonstração da estrutura religiosa do capitalismo, que não é só uma formação condicionada pela religião, como pensou Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso, nos levaria ainda hoje a desviar para uma polêmica generalizada e desmedida (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 21).

É importante destacar aqui que, para Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.), em franca oposição à concepção weberiana clássica de que haveria uma afinidade eletiva entre a religião cristã e a economia capitalista, o capitalismo teria uma natureza intrinsecamente religiosa. Dito de outra forma, o que o autor está afirmando é que não é que o capitalismo é favorecido de alguma forma por uma ideologia religiosa qualquer, mas ele seria, sim, a própria religião em si (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.).

Como forma de defender o seu argumento, Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.) aponta que a “religião capitalista” seria composta de quatro traços principais: a) é uma religião puramente cultual; b) propaga um culto permanente; c) esse culto não é expiatório, mas culpabilizador e d) seu deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização.

No que diz respeito à primeira característica, Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.) afirma que a “religião capitalista” imprime significado a todas as coisas fundamentado em uma relação direta e imediata com o seu culto. Depreende-se daí que, nessa religião, não haveria mediações ou mediadores nem mesmo ideologia. A esse respeito, Míguez (2021Míguez, N. O. (2021). O capitalismo como religião. In A. S. Coelho, & J. M. Sung (Eds.), Pensamento crítico e profecia: 100 anos do “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. São Paulo, SP: Recriar., p. 14) destaca que “[...] o capitalismo impõe seu ethos cultural utilitário como a única dimensão humana com significado transcendente”. “O capitalismo é uma religião puramente de culto, desprovida de dogma” (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 23).

O segundo traço, para Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.), é que a “religião capitalista” promove um culto de duração permanente. Nas palavras do próprio autor:

[…] o capitalismo é a celebração de um culto sans trêve et sans merci [sem trégua e sem piedade]. Para ele, não existem “dias normais”, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pomba sacral, do empenho extremo do adorador (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 22).

Não haveria, por assim dizer, qualquer momento de “descanso” para o adorador da “religião capitalista”, uma vez que ele se encontra no universo da produção ou do consumo ou de ambos. Para Coelho (2021Coelho, A. S. (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo, SP: Recriar., p. 254), uma das interpretações possíveis desse trecho pode estar relacionada com certa cultura do consumo, “[…] em que todos os dias são momentos de consumo e a vida é constantemente, sem trégua, compreendida na dinâmica do sucesso no mercado e mediada pela posse de bens de consumo”.

Outra possibilidade de interpretação está associada a uma possível crítica de Walter Benjamin ao livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Nesse livro, Weber (2001Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Pioneira.) trata, entre outros tantos aspectos, da forma como a religião protestante exerce um controle permanente sobre o modo de vida das pessoas. A ironia benjaminiana estaria, exatamente, na referência aos dias festivos católicos que os protestantes haviam abolido. Coelho (2021Coelho, A. S. (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo, SP: Recriar., p. 252) destaca, ainda, que esse caráter permanente do culto capitalista comportaria “[...] certas divindades, as quais são objetos de adoração”. Para o autor, um dos exemplos mais evidentes desse aspecto seria exatamente o culto ao dinheiro nas suas mais diversas formas, uma vez que, atualmente, o papel-moeda não é mais, como na época, o meio circulante principal (Coelho, 2021Coelho, A. S. (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo, SP: Recriar.).

É interessante destacar também, acerca desse ponto, a proximidade que Löwy (2007Löwy, M. (2007). O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In I. Jinkings, & J. A. Peschanski (Eds.), As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo, SP: Boitempo., p. 180) estabelece entre a análise do dinheiro presente no fragmento e o que está inscrito em um dos textos do pensador anarquista judeu/alemão Gustav Landauer citados por Benjamin nas referências, Llamamiento al socialismo. Diz o texto:

[…] a palavra “Deus” [Gott] é, em sua origem, idêntica a “ídolo” [götze] e que as duas querem dizer “o derretido” [ou “o fundido”] [gegossene]. Deus é um artefato criado pelos homens, a quem se dá vida, traz para si as vidas dos humanos e, finalmente, se torna mais poderoso do que a humanidade. […] O único fundido [gegossene], o único ídolo [götze], o único Deus [Gott] ao qual os seres humanos deram a vida foi o dinheiro [geld]. O dinheiro é artificial e vivo, o dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem todo o poder do mundo. […] Quem não vê, quem não vê ainda hoje que o dinheiro, que Deus, não é mais do que um espírito criado pelos seres humanos, um espírito que se tornou uma coisa [ding] viva, um monstro [unding], e que é o sentido [sinn] de nossa vida que ficou louco [unsinn]? O dinheiro não cria riqueza, é a riqueza; é a riqueza em si; não há outra riqueza que o dinheiro (Landauer, 1919Landauer, G. (2019). Llamamiento al socialismo: por una filosofía libertaria contra el estado y el progreso tecnológico. Madrid, España: Ediciones el Salmón., p. 144).

O terceiro traço é que a “religião capitalista” seria o primeiro caso de um culto culpabilizador e não expiatório. Nas palavras de Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 22):

[…] tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação. Esta, portanto, não deve ser esperada do culto em si, nem mesmo da reforma dessa religião, que deveria poder encontrar algum ponto de apoio firme dentro dela mesma; tampouco da recusa de aderir a ela. Faz parte da essência desse movimento religioso que é o capitalismo aguentar até o fim, até a culpabilização final e total de Deus, até que seja alcançado o estado de desespero universal, no qual ainda se deposita alguma esperança. Nisso reside o aspecto historicamente inaudito do capitalismo: a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfalecimento. Ela é a expansão do desespero ao estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação. A transcendência de Deus ruiu. Mas ele não está morto; ele foi incluído no destino humano. Essa passagem do planeta “ser humano” pela casa do desespero na solidão absoluta de sua órbita constitui o éthos definido por Nietzsche. Esse ser humano é o ser super-humano [ubermensch], o primeiro que começa a cumprir conscientemente a religião capitalista.

Para Silva (2021Silva, J. C. (2021). Capitalismo como religião culpabilizadora. In A. S. Coelho; & J. M. Sung (Eds.), Pensamento crítico e profecia: 100 anos do “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. São Paulo, SP: Recriar.), uma religião que culpa o indivíduo sem oferecer a ele qualquer tipo ou possibilidade de redenção torna-se, na verdade, mito e coloca o ser humano em uma situação essencialmente trágica. Assim, para o autor, ao tomar o lugar da religião “tradicional”, o capitalismo não produziria qualquer tipo de esperança, mas, sim, um estado de desespero universal, uma vez que “[…] se apresenta como uma força impessoal a ditar o destino humano, como uma inescapável totalidade sem alternativas” (Silva, 2021Silva, J. C. (2021). Capitalismo como religião culpabilizadora. In A. S. Coelho; & J. M. Sung (Eds.), Pensamento crítico e profecia: 100 anos do “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. São Paulo, SP: Recriar., p. 104). O capitalismo realizaria, dessa maneira, um processo secularizador da religião em um nível nunca antes observado na humanidade, já que nele não haveria nenhum tipo de transcendência ou céu pelo qual o ser humano poderia almejar (os desejos humanos seriam satisfeitos somente no aqui e no agora por aqueles que podem consumir). Esse processo de secularização do capitalismo deixaria evidente, ainda, de acordo com Silva (2021Silva, J. C. (2021). Capitalismo como religião culpabilizadora. In A. S. Coelho; & J. M. Sung (Eds.), Pensamento crítico e profecia: 100 anos do “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. São Paulo, SP: Recriar., p. 104), a “[…] impossibilidade do culto de promover redenção e, como um índice desse fracasso está a culpa”. “Na lógica capitalista, se os pobres são culpados de sua exclusão, estão fora da graça pela vontade de Deus expressa nos mercados” (Coelho, 2021Coelho, A. S. (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo, SP: Recriar., p. 257).

Löwy (2007Löwy, M. (2007). O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In I. Jinkings, & J. A. Peschanski (Eds.), As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo, SP: Boitempo., pp. 182-183) chama a atenção, ainda, para um argumento extremamente perverso do capitalismo, qual seja, a ideia de que “[…] se os pobres são culpados e excluídos da graça e se no capitalismo são condenados à exclusão social, é porque ‘se trata da vontade de Deus’ ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a ‘vontade dos mercados’”. Convém destacar, ainda, nesse ponto, que a religião capitalista, ao tratar a condenação para a exclusão como vontade de Deus, impossibilitaria, ou, pelo menos, enfraqueceria qualquer forma de ação política de contestação do status quo. Assim, qualquer tipo de questionamento do divino remeteria o humano - como pode ser observado em alguns mitos gregos - à ideia de uma punição trágica e exemplar.

Outro aspecto interessante apontado por Coelho (2021Coelho, A. S. (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo, SP: Recriar.) é que a “religião capitalista”, ao mesmo tempo que é concebida da ideia de exploração, exclusão e sacrifício, também seria capaz de produzir certa fascinação e devoção. Nessa perspectiva, o capitalismo cria uma forte idolatria (fetiche) tanto pelos seus simulacros, dinheiro, capital, mercadorias, entre outros, quanto pelos seus “sacerdotes”, grandes empresários, empreendedores etc. “Comparação entre as imagens dos santos de diversas religiões, de um lado, e das cédulas bancárias de diversos Estados, de outro. […] O espírito que se expressa nos ornamentos das cédulas bancárias” (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 23).

Para Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., p. 22), o quarto e último traço “[...] dessa religião é que seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura […]”. Quanto a esse ponto, o texto Benjaminiano refere-se, de uma maneira muito interessante, a Freud. Nele, Benjamin (2013Marx, K. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo., p. 22) afirma:

A teoria freudiana também faz parte do império sacerdotal desse culto. Ela foi concebida em moldes totalmente capitalistas. A partir de uma analogia muito profunda ainda a ser esclarecida, aquilo que foi reprimido - a representação pecaminosa - é o capital que rende juros para o inferno do inconsciente.

Quando se observa a citação a Freud no fragmento, nota-se que, embora seja uma menção pontual e que o próprio autor admita a necessidade de que a temática seja mais bem trabalhada, percebe-se a concordância do filósofo alemão com a ideia de que a teoria freudiana seria intrinsecamente ligada ao capitalismo, sendo, por assim dizer, parte essencial do culto, da “religião capitalista” (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo.). Além disso, Benjamin aponta, no mesmo fragmento, que o desejo, como uma representação “pecaminosa” do inconsciente é, na sua perspectiva, um instrumento de repressão do capital.

Para Míguez (2021Míguez, N. O. (2021). O capitalismo como religião. In A. S. Coelho, & J. M. Sung (Eds.), Pensamento crítico e profecia: 100 anos do “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. São Paulo, SP: Recriar., p. 15), ao interpretar essa passagem do fragmento, a “religião capitalista” ocultaria “[…] seu Deus culpabilizante no inconsciente, que é um Deus imaturo, cuja maturidade é ferida em cada representação”. Convém destacar, por fim, a “misteriosa” menção a Nietzsche no texto Benjaminiano. De acordo com Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo, SP: Boitempo., pp. 22-23),

O tipo de pensamento religioso capitalista ganha expressão grandiosa na filosofia de Nietzsche. A ideia do ser super-humano transpõe o “salto” apocalíptico não para o arrependimento, a expiação ou a penitência, mas para a intensificação aparentemente constante, porém descontínua em sua última etapa, causando ruptura. Por conseguinte, nos termos do non facit saltum [não dá salto], a intensificação e o desenvolvimento são incompatíveis. O ser super-humano é o ser humano histórico que chegou lá sem conversão, que cresceu através do céu. Essa arrebentação do céu pela humanidade intensificada, que, em termos religiosos, é e permanece culpabilização (também para Nietzsche), fez Nietzsche incorrer em um pré-julgamento. E de modo semelhante, também Marx: o capitalismo impenitente se converte em socialismo com juros e juros sobre juros, que, como tais, são função da culpa (ver ambiguidade demoníaca do conceito).

De acordo com a leitura que Löwy (2007Löwy, M. (2007). O capitalismo como religião: Walter Benjamin e Max Weber. In I. Jinkings, & J. A. Peschanski (Eds.), As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado. São Paulo, SP: Boitempo.) faz desse, em suas próprias palavras, “obscuro parágrafo”, uma leitura possível seria a de que o super-homem nietzschiano não faz mais do que intensificar o culto e a expansão da religião capitalista. Ainda para o autor, o pensamento nietzschiano não questionaria a culpabilidade e o desespero humano e o abandonaria à própria sorte (Löwy, 2007Löwy, M. (2005). Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo, SP: Boitempo.).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve, por objetivo principal, refletir acerca das conexões que podem ser estabelecidas entre a caracterização que Deleuze e Guattari fazem da “máquina capitalista civilizada” em seu O anti-Édipo e as análises que Walter Benjamin fez da “estrutura religiosa capitalista” no seu fragmento intitulado O capitalismo como religião, especialmente no que diz respeito à ideia de culpa.

Como pôde ser observado no decorrer deste artigo, a concepção Deleuze-Guattariana acerca da psicanálise tem um caráter essencialmente crítico. Ao criticar a concepção da psicanálise, segundo a ideia de falta como representação, Deleuze e Guattari buscam criar uma concepção do inconsciente como potência, com aproximações consideráveis do conceito nietzschiano de vontade de potência ou, dito de outra forma, como produção. Além disso, para os autores, o idealismo edipiano serviria à “máquina civilizada capitalista” como um instrumento de repressão do desejo e de racionalização de uma situação social de hierarquia ou dominação. Quando se observa a citação a Freud no fragmento Benjaminiano O capitalismo como religião-, nota-se que, embora seja uma menção pontual e que o próprio autor admita a necessidade de que a temática seja mais bem trabalhada, também se percebe a concordância do filósofo alemão com a ideia de que a teoria freudiana seria intrinsecamente ligada ao capitalismo, sendo, por assim dizer, parte essencial do culto, da “religião capitalista”. Além disso, Benjamin aponta, no mesmo fragmento, que o desejo, como uma representação “pecaminosa” do inconsciente é, na sua perspectiva, um instrumento de repressão do capital.

A menção à ideia de culpa na parte do fragmento Benjaminiano que trata do pensamento de Nietzsche é claramente direcionada ao capitalismo, e não a outras formas pré-capitalistas como destacado na “máquina primitiva” Deleuze-Guattariana. É fato, apesar disso, que a análise Deleuze-Guattariana, profundamente inspirada em Nietzsche, “avança” em direção ao capitalismo ao dizer que ele codifica os fluxos de desejo, por meio de certa introjeção da dívida, da má consciência e da culpa. O capitalismo concebe, assim, para Deleuze e Guattari, a dívida como de natureza totalmente imanente. Sendo uma dívida infinita e imanente, não haveria espaço, portanto, para o homem estabelecer qualquer tipo de questionamento quanto à sua situação de privação material concreta. É nesse aspecto que o parágrafo sobre Nietzsche presente no fragmento Benjaminiano parece aproximar-se do de Deleuze e Guattari. Como dito anteriormente, para Benjamin, o pensamento nietzschiano não questiona a culpa do capital e deixa o homem abandonado à própria sorte em uma situação de claro desespero.

O que parece ser distinto no pensamento Benjaminiano, pelo menos no que diz respeito ao fragmento estudado, em comparação com a abordagem Deleuze-Guattariana, é que o filósofo alemão apresenta, inicialmente, o capitalismo como tendo uma natureza instrinsecamente religiosa, ou seja, o capitalismo seria uma religião em si. Esse aspecto parece não encontrar aproximações com a concepção Deleuze-Guattariana da “máquina capitalista civilizada”, embora essa última admita o caráter “divino do capital”. A religião, que não se confunde com a ideia de “religião capitalista” de Benjamin, para Deleuze e Guattari, teria uma clara função de auxílio na repressão e na modelagem do desejo humano. É preciso dizer, no entanto, que haveria um caráter “divinatório” no equivalente geral capitalista (dinheiro) tanto em Benjamin quanto em Deleuze e Guattari.

Outro ponto importante é que a “religião capitalista” teria, para Benjamin, um caráter cultual permanente. Esse aspecto parece não encontrar uma aproximação imediata com Deleuze e Guattari. No entanto, ao dizer que a “máquina capitalista civilizada” seria de natureza essencialmente esquizofrênica, com seus fluxos produtivos que sempre pressionam as relações sociais, que modelam o desejo, por meio de uma necessidade compulsiva e alienante, Deleuze e Guattari parecem indicar que o caráter cultual do capitalismo estaria, na perspectiva deles, na adicção capitalista pelo consumo.

Quanto ao fato de que Benjamin considera o capitalismo uma religião que tem um culto culpabilizante e não expiatório, nota-se que o autor avança mais em direção à ideia de redenção, temática cara a Benjamin, que a tratará de maneira mais pormenorizada nas Teses II e III do livro Teses sobre o conceito de história do que propriamente nas “causas” da culpa na sociedade capitalista. É preciso dizer que, embora não seja objeto direto deste artigo, Benjamin trata a redenção em Teses sobre o conceito de história como uma espécie de apocatástase, ou seja, uma volta a certo estado originário, no Evangelho, o restabelecimento do Paraíso pelo Messias. Deleuze e Guattari, ao contrário, ao realizarem certa “genealogia da dívida” ao longo das máquinas sociais compreendem que essa dívida vai, aos poucos, passando da relação com o outro, a dívida finita da máquina territorial, para o déspota, a dívida infinita transcendente da máquina despótica e, finalmente, para o capital, a dívida infinita imanente.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), bem como ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o apoio na realização deste artigo.

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  • Wendling, M. M. (2010). Duas versões do desejo: Lacan, Deleuze & Guattari (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, SE.
  • Zioli, E. G. O., Ichikawa, E. Y., & Mendes, L. (2021). Contribuições de Deleuze e Guattari para uma perspectiva rizomática das organizações. Cadernos EBAPE.BR, 19(3), 552-563. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-395120200113
    » https://doi.org/10.1590/1679-395120200113
  • 1
    “Um bebê é amamentado. Máquina-órgão-boca ‘e’ máquina-fluxo de leite/seio. Algo se passa entre as duas superfícies. O desejo percorre as máquinas. Uma intensidade irradia-se pelo corpo da criança. Algo se produz. Ações e paixões, gestos e afetos. A alegria foi extraída da experiência como um aumento da potência. Satisfação. O agenciamento é bem-sucedido” (Catenaci, 2022, p. 89).
  • 2
    Deleuze e Guattari (2011) chamam de “Numen” a energia libidinal desviante.
  • 3
    “A disjunção inclusiva comporta-se como a assimilação do diferente, sem que a sua diferença seja suprimida; aquilo que é incluso disjuntivamente conserva sua singularidade. […] A mesma boca ‘ou’ mastiga ‘ou’ canta ‘ou’ grita ‘ou’ beija, tanto faz, a depender da energia desejante que lhe percorre no momento” (Catenaci, 2022, pp. 91-92).
  • 4
    “Para ficarmos com a criança sendo amamentada: i. A máquina-órgão boca ‘e’ uma máquina-fluxo leite/seio = conexão; ii. A máquina-órgão boca e uma máquina-fluxo leite/seio ‘ou’ máquina-órgão boca e máquina-fluxo ar = disjunção de registro [‘ou’ mamar, ‘ou’ berrar]; iii. Finalmente, isso será produto de um consumo subjetivo [‘então, era isso!’]” (Catenaci, 2022, p. 93).
  • 5
    Incluem-se aqui todas as formas “pré-edipianas”, “paraedipianas” e “quase edipianas”.
  • 6
    Antunes (2014) afirma que, mesmo sendo uma obra de referência sobre o desejo moderno e a constituição da subjetividade político-econômica do capitalismo, O anti-Édipo trataria mais da repressão do desejo e do processo de produção do homem moderno.
  • 7
    Para Foucault (1993, p. 1), “O anti-Édipo mostra, inicialmente, a extensão do terreno percorrido. Porém, faz muito mais. Ele não se distrai difamando os velhos ídolos, ainda que se divirta muito com Freud. E, sobretudo, ele nos incita a ir mais longe. Seria um erro ler O anti-Édipo como a nova referência teórica. […] Não se deve buscar uma ‘filosofia’ nessa extraordinária profusão de noções novas e de conceitos-surpresa. O anti-Édipo não é uma contrafação de Hegel. A melhor maneira de ler O anti-Édipo é, creio eu, abordá-lo como uma ‘arte’, no sentido em que se fala de ‘arte erótica’, por exemplo. Apoiando-se nas noções aparentemente abstratas de multiplicidade, de fluxos, de dispositivos e de ramificações, a análise da relação do desejo com a realidade e com a ‘máquina’ capitalista traz respostas a questões concretas”.
  • 8
    “Uma psiquiatria verdadeiramente materialista define-se […] por uma dupla operação: introduzir o desejo no mecanismo e introduzir a produção no desejo” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 39).
  • 9
    Para críticas quanto à abordagem marxista utilizada por Deleuze e Guattari em O anti-Édipo, ver Cotrim (2021).
  • 10
    É preciso dizer, ainda, que, de acordo com Antunes (2014, p. 278), na abordagem Deleuze-Guattariana, a máquina social seria “literalmente” uma máquina na medida em que teria um “motor imóvel” e faria “[…] diversos tipos de cortes: extração de fluxo, destacamento de cadeia, repartição de partes”.
  • 11
    É importante destacar que a utilização do termo “máquina capitalista civilizada” é profundamente inspirada no marxismo, embora o próprio Marx não a utilize nesses termos. Para Guéron (2020), aliás, a influência marxista no pensamento de Deleuze e Guattari é bastante significativa e não pode, de maneira alguma, ser subestimada. De acordo com o autor, embora os dois filósofos franceses tenham trabalhado com conceitos marxistas já em Mil platôs, é em O anti-Édipo (especialmente no livro III de O capital) que essa relação se intensifica.
  • 12
    De acordo com Löwy (2007, p. 177), “[…] o título do excerto se inspirou no livro de Ernst Bloch, Thomas Müntzer, teólogo da revolução, publicado em 1921; no capítulo dedicado a Calvino, o autor denunciou, na doutrina do reformador genovês, uma manipulação que vai ‘destruir totalmente’ o cristianismo e introduzir ‘elementos de uma nova religião’, a do capitalismo erigido como religião […] e tornado Igreja de Mamon”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
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