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Pensamento crítico latino-americano e estudos organizacionais

Latin american critical thought and organizational studies

O pensamento crítico latino-americano implica um modo de abordagem da realidade social que parte da consideração da peculiaridade e idiossincrasia da região, ele está firmemente enraizado em suas tradições intelectuais2 2 Lander (2001, p. 14) argumenta que: "O pensamento crítico-acadêmico dos anos 1960 e 1970 - época dos debates sobre a dependência -, apesar de não ter conseguido desprender-se do imaginário (colonial) do desenvolvimento, significou não só significativas rupturas na rejeição às divisões dogmáticas que a tradição liberal estabeleceu entre os distintos âmbitos histórico-sociais (o político, o social, o econômico, o cultural), mas, também, violou de modo expresso os requisitos de objetividade de uma ciência social que almejava ser neutra em termos de valores, ao considerar a produção de conhecimento sobre o social uma tomada de partido, como parte de um compromisso político de transformação social". e constitui uma alternativa ao pensamento único que, com a ajuda do neoliberalismo, macula a análise dos vários níveis da vida social.

A dimensão organizacional, uma das dimensões relevantes para a análise da realidade social (LAPASSADE, 1967LAPASSADE, G. Groupes, organizations, institutions. Paris: Gauthier-Villard, 1967.), não foi posta de lado desse matiz, com a promoção de estudos de modo a-histórico e descontextualizado que fazem da prescrição uma vocação e da harmonia de interesses e da eficiência suas principais bandeiras3 3 Esse olhar organizacional, nos termos de Petit Torres e Peña Cedillo (2009), leva-nos a pensar em um mundo no qual a história e os processos são irrelevantes, sendo em essência atemporal e não localizado. Isso irá diminuir a importância do modo como as características do presente são adquiridas, de como se chegou a esse ponto e se há ou não alguma lógica específica que explique como as coisas variam. Por essa razão, esses autores indicam que predominam, no meio dos estudos de gestão, as receitas e os manuais aplicáveis a qualquer organização, em qualquer momento e em qualquer lugar do mundo. . Esses estudos, que personalizam as organizações e despersonalizam seus membros, ocultam processos sociais estruturais que condicionam as dinâmicas organizacionais e conferem especificidade a elas.

Nesse quadro, são levados adiante transplantes acríticos de conhecimentos que, após surgir como respostas a problemas de países desenvolvidos, são utilizados tanto para a capacitação e o treinamento dos profissionais para o desenvolvimento e a incorporação de dispositivos de gestão. Assim, deixam de lado as necessidades e os problemas próprios de uma região que foi - e é - perpassada por processos políticos, econômicos e sociais específicos.

Com o propósito de promover o desenvolvimento de abordagens alternativas para a análise do fenômeno organizacional, mostra-se importante estimular o cruzamento entre o pensamento crítico latino-americano e os estudos organizacionais. Com isso, abre-se um caminho a percorrer para o desenvolvimento de uma maior compreensão dos fatores, do contexto, do fundo e das forças que operam, envolvem e subjazem às organizações como sistemas sociais em contínua interação com seu ambiente. Isso não implica negar o que existe no campo da teoria organizacional, mas tentar trazer à tona o que se encontra no fundo do fenômeno organizacional, muitas vezes não expresso por decisão deliberada ou por mera ignorância (SUAREZ, 1975SUAREZ, F. Introducción al estudio de la sociología de la organización. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1975.).

Assim, o pensamento crítico latino-americano enfrenta o desafio de tornar-se um instrumento de superação conceitual e analítica no campo da teoria organizacional que sirva para orientar a pesquisa e a prática da gestão organizacional.

Trata-se, por fim, de gerar novos conceitos e novas teorias que possibilitem acelerar os processos de inovação verdadeiramente relevantes para ajudar a liquidar as dívidas com uma sociedade que espera a resolução de velhos problemas que seguem presentes (p. ex., desigualdade, pobreza, marginalização e violência) e novos problemas que se tornam cada vez mais ameaçadores (p. ex., degradação dos recursos naturais, corrupção, integração social).

Nesse quadro, o número temático do periódico Cadernos EBAPE.BR que aqui apresentamos estabeleceu como objetivo convocar todos os pesquisadores acadêmicos interessados em refletir sobre a contribuição do pensamento crítico com os estudos organizacionais e, ao mesmo tempo, proporcionar orientações para uma agenda de pesquisa acerca de temas relevantes do fenômeno organizacional na América Latina.

Os artigos que compõem este número contribuem de modo certeiro com o propósito almejado. Seja ao apresentar o alcance e o potencial da Teoria Crítica latino-americana, ao resgatar autores que põem em xeque o mainstream da teoria organizacional ou quando discutem questões decerto naturalizadas diante do estudo de alguns casos organizacionais em especial.

No primeiro artigo deste número temático, Francisco Salgado e Andrés Abad abordam a origem e o desenvolvimento dos estudos críticos na gestão e a influência da Teoria Crítica de Frankfurt no âmbito acadêmico latino-americano, explicando como a dinâmica e a ação recíproca entre a sociedade e os âmbitos organizacionais possibilitam imaginar alternativas para a emancipação, a busca da razão substantiva e a plena realização do ser humano no ambiente de trabalho.

Por sua vez, Sergio Wanderley propõe-se a rever o conceito de dependência na categoria de pesquisa da América Latina, por meio de uma perspectiva descolonial crítico-histórica, com o objetivo de ampliar o espaço de diálogo nos estudos organizacionais e promover alternativas ao neoliberalismo.

Pablo Gobira, Oscar Lima e Alexandre Carrieri trazem a perspectiva de autores como Guy Debord no campo da administração e utilizam a Teoria Crítica desse autor com o propósito de explorar as formas como os pesquisadores dedicados ao tema têm incorporado seu pensamento.

O artigo de Maria Ceci Misoczky e Guilherme Dornelas Camara tem por objetivo desenvolver uma crítica ética e radical em estudos organizacionais, recorrendo, para tanto, aos postulados da filosofia da libertação preparados por Enrique Dussel.

Por sua vez, Duvan Emilio Ramírez Ospina desenvolve uma reflexão crítica acerca da teoria do capital humano, enfatizando que esta reduz o ser humano a uma mera condição de recurso, utilizado e descartado após cumprir o propósito para o qual foi adquirido.

Ricardo Henry Dias Rohm e Natália Fonseca Lopes examinam as formas como a sociedade gerencial desenvolve nas pessoas uma representação do mundo e do ser humano na qual a única forma evidente da autorrealização consiste na lógica da produtividade, transformando, assim, a empresa em uma referência para a construção do sujeito.

Nancy Piedad Díaz Ortiz e Mariana Lima Bandeira destacam em seu artigo que a responsabilidade social interna vem sendo delimitada dentro de uma visão instrumental, focada exclusivamente em temas jurídicos da relação de emprego e que, sob esse discurso, as organizações ocultam práticas que são, de fato, desumanizadoras na convivência social e promovem ainda mais a intolerância à diferença.

Fabio Vizeu, Rene Eugenio Seifert e Antônio João Hocayen-da-Silva discutem os princípios ideológicos da organização moderna, à luz do sentido natural de comunidade e igualdade social. Eles o fazem por meio do estudo das organizações de base no Sul do Brasil.

O artigo de Hugo Chumbita indica a necessidade de repensar o quadro teórico dos estudos organizacionais, melhorar a comunicação de experiências entre cientistas e intelectuais da região, rever os projetos de reforma inspirados em modelos exógenos e projetar novos modos de intervenção para promover a participação popular.

Fechando esta edição, o artigo de Pablo Aurélio Monje-Reyes reflete acerca das reformas estruturais do Estado chileno implementadas na década de 1980, deixando nas entrelinhas que as políticas de modernização do Estado, sustentadas por processos de descentralização, possibilitaram a modificação das relações de poder entre dominantes e dominados.

Por concluir, gostaríamos de agradecer àqueles que tornaram este número temático possível: aos autores, que compartilharam suas preocupações acadêmicas, e aos avaliadores, que dedicaram a nós parte de seu tempo. Além disso, dedicamos um agradecimento especial ao prof. Fernando G. Tenório, por seu convite e incentivo, e à Fabiana Braga Leal, pela excelente assistência prestada. Estamos certos de que os leitores encontrarão nesta edição um estímulo para percorrer o caminho.

  • LANDER, E. Pensamiento crítico latinoamericano: la impugnación del eurocentrismo. Revista de Sociología, n. 15, p. 13-25, 2001.
  • LAPASSADE, G. Groupes, organizations, institutions. Paris: Gauthier-Villard, 1967.
  • PETIT TORRES, E.; PEÑA CEDILLO, J. El pensamiento socialista latinoamericano y el desarrollo organizacional: hacia la construcción de alternativas válidas para nuestra región. Opción, v. 25, n. 59, p. 111-135, 2009.
  • SUAREZ, F. Introducción al estudio de la sociología de la organización. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1975.
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    Lander (2001, p. 14) argumenta que: "O pensamento crítico-acadêmico dos anos 1960 e 1970 - época dos debates sobre a dependência -, apesar de não ter conseguido desprender-se do imaginário (colonial) do desenvolvimento, significou não só significativas rupturas na rejeição às divisões dogmáticas que a tradição liberal estabeleceu entre os distintos âmbitos histórico-sociais (o político, o social, o econômico, o cultural), mas, também, violou de modo expresso os requisitos de objetividade de uma ciência social que almejava ser neutra em termos de valores, ao considerar a produção de conhecimento sobre o social uma tomada de partido, como parte de um compromisso político de transformação social".
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    Esse olhar organizacional, nos termos de Petit Torres e Peña Cedillo (2009), leva-nos a pensar em um mundo no qual a história e os processos são irrelevantes, sendo em essência atemporal e não localizado. Isso irá diminuir a importância do modo como as características do presente são adquiridas, de como se chegou a esse ponto e se há ou não alguma lógica específica que explique como as coisas variam. Por essa razão, esses autores indicam que predominam, no meio dos estudos de gestão, as receitas e os manuais aplicáveis a qualquer organização, em qualquer momento e em qualquer lugar do mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2015
  • Aceito
    10 Mar 2015
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