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APLICAÇÃO DO MODELO DE AVALIAÇÃO DE JULIANE HOUSE NA TRADUÇÃO LITERÁRIA: O CASO DE TRADUZIR UM ENSAIO ANÔNIMO DE TIESHENG SHI

APPLICATION OF JULIANE HOUSE’S EVALUATION MODEL IN LITERARY TRANSLATION: THE CASE OF TRANSLATING A TIESHENG SHI’S ANONYMOUS ESSAY

Resumo

Este trabalho objetiva discutir a possibilidade de aplicar o Modelo de Avaliação da Qualidade da Tradução de Juliane House na tradução literária. Para tanto, a partir de uma apresentação sobre tal paradigma, mostraremos seus argumentos teóricos, parâmetros estabelecidos e procedimentos de aplicação. Em seguida, adotaremos os critérios propostos por House, campo, teor, modo e gênero, e os empregaremos em um ensaio anônimo do autor chinês, Tiesheng Shi. Feito isso, analisaremos, com exemplos levantados, os vantagens e desvantagens que o modelo de House pode trazer para a prática de tradução.

Palavras-chave
Modelo de Avaliação da Qualidade da Tradução; tradução; literatura chinesa

Abstract

This paper aims to discuss the possibility of applying the Translation Quality Assessment Model of Juliane House in literary translation. Therefore, starting from a presentation of this paradigm, we will show its theoretical arguments, defined parameters and application procedures. Then, we will adopt House’s criteria, field, tenor, mode, and genre, and employ them in an anonymous essay of the Chinese writer, Tiesheng Shi. After this, we will analyze, based on specific examples, the advantages and disadvantages that House’s model can bring to the practice of translation.

Keywords
Translation Quality Assessment Model; translation; Chinese literature

Introdução

Desde o estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a China, em 1974, ao longo desses quarenta e nove anos de cooperação e interação, os dois grandes países em desenvolvimento têm conseguido vários resultados positivos na área econômica e na política. Porém, considerando-se a riqueza cultural representada pelos dois países, ainda se observa uma lacuna significativa em termos de intercâmbio cultural. Por exemplo, no Brasil, ainda não se registrou nenhuma prosa traduzida do chinês para o português. Por outro lado, depois da Reforma e Abertura Chinesa, a literatura contemporânea do país ganhou uma liberdade sem precedentes em termos de criação escrita que incentivou grande quantidade de excelentes escritores chineses, que se destacaram e conquistaram fama nos anos oitenta e noventa do século XX. E, como um escritor representante desse período, Tiesheng Shi se destaca com suas prosas marcadas por pensamentos profundos sobre temas da vida e da morte, bem como as questões mais intrínsecas da existência dos seres humanos.

A tradução desse tipo de textos apresenta uma série de desafios ao tradutor. Em primeiro lugar, já que prosas são produção literária e artística, além de reproduzir no texto traduzido as informações semânticas do original, como se faz para preservar os elementos estilísticos e estéticos vinculados na escrita do texto de partida, ou seja, informação estética, nas palavras de Max Bense, ou, sentença absoluta, de acordo com Albercht Fabri (Campos, 1992Campos, Haroldo de. Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.). E, outra característica que representa uma dificuldade na tradução das prosas contemporâneas chinesas diz respeito aos componentes culturais, ou podem ser chamados por Culture-Specfic Items, cuja definição, conforme o estudioso espanhol, Javier Franco Aixelá, é “um produto da inexistência do item referido ou de seu status intertextual diferenciado no sistema de texto-alvo” (Franco Aixelá, 2007Franco Aixelá, Javier. “Culture-specific Items in Translation”. In: Alvarez, Román & Vidal, María del Carmen África (Ed.). Translation, Power, Subversion. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press, 2007. p. 52-78., p. 58, tradução nossa). No caso da tradução dos textos chineses, podemos contar com os objetos que apenas existem na cultura de chegada, os termos relacionadados a religião, as referências da história chinesa, etc. Assim, encontra-se a questão importante, qual teoria ou modelo tradutório, levando em considerações os desafios mencionados acima, poderia orientar as traduções de prosas chinesas para a língua portuguesa?

O modelo pragmático-funcional de Juliane House, por sua vez, foi criado com a intenção de avaliar, por meio de uma análise linguística e sistemática, a qualidade de tradução. Porém, os parâmetros implantados por House, campo, teor, modo e gênero, também ajudam a descrever, de forma concreta, as características do texto original, ou seja, eles podem ajudar o tradutor a traçar o perfil do texto-fonte. Sendo assim, levanta-se a seguinte hipótese, o modelo de avaliação de qualidade de House, com determinados ajustes, também pode ser aplicado na tradução, ou, pelo menos, na tradução literária. E, caso essa conjectura seja negativa, quais lições podemos adquirir com a tentativa de utilizar o modelo de House para traduzir as prosas chinesas? Eis também o objetivo do presente trabalho.

Desta forma, a primeira seção deste trabalho fará uma apresentação geral do modelo de avaliação da qualidade de traduções de House, mostrando seus argumentos teóricos, parâmetros estabelecidos e procedimentos de aplicação. Na seção próxima, empregaremos o modelo de House para orientar a traduzir um ensaio anônimo de Tiesheng Shi, escrito em 1991, e anotaremos, com exemplos específicos, as vantagens e desvantagens que esse modelo poderá contribuir para tal processo tradutório. O trabalho encerra-se com nossas considerações sobre o texto traduzido, enfocando especialmente as contribuições que o modelo de House traz para a prática da tradução literária.

O modelo de avaliação de qualidade de House

No artigo “How do we know when a translation is good”, antes de introduzir seu modelo de avaliação para traduções, House (2001)House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160. faz uma apresentação de como as traduções são avaliadas sob diferentes tradições e escolas de pensamento. A partir dessas diversas abordagens propostas para avaliar traduções, observa-se que diferentes compreensões da tradução levam para diferentes critérios e metodologias no julgamento sobre a qualidade de traduções. Sendo assim, ela defende que as traduções devem ser concebidas como textos duplamente condicionados: de um lado, pelo texto-fonte e, de outro, pelas condições comunicativas dos receptores da tradução, por isso, um dos conceitos básicos na tradução é a equivalência tradutória que conecta esse dois lados, ou seja, a questão de como se deve entender a relação entre o texto original e o texto traduzido. A autora ainda cita o estudioso norte-americano Catford (apud House, 2001House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160., p. 135, tradução nossa), “o problema central na prática de tradução é encontrar equivalente de LC. Assim, a tarefa central das teorias tradutórias é definir a natureza e condições de equivalência tradutória”. House acrescenta que o conceito de equivalência também é a base para a crítica de tradução e o critério fundamental para qualidade de tradução.

Em relação à interpretação dessa correspondência tradutória, a autora mostra afinidade com o linguista croata Valdimir Ivir, que a descreve da seguinte forma,

A equivalência é [...] relativa e não absoluta...ela nasce do contexto de situação e é definida pela interação de muitos fatores, assim, não existe fora desse contexto [...] Ela não é estipulado por um algoritmo para a conversão de itens linguísticos de L1 para os de L2

(Ivir apud House, 2001House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160., p. 135, tradução nossa).

De acordo com House, os fatores que consistem o contexto de situação para delimitar a equivalência tradutória vêm de vários aspectos, como, por exemplo, as condições histórico-sociais, o mundo extralinguístico, as normas linguísticas tanto de língua de partida quanto de chegada, a compreensão e interpretação do tradutor sobre o texto original, e outros fatores contextuais.

Desta forma, ela afirma que, no caso de tradução, a noção mais relevante é a de equivalência funcional, que está relacionada à preservação do sentido entre duas línguas e culturas diferentes. House ainda explica que três aspectos são importantes para a tradução: o semântico, o pragmático e o textual e que a tradução é compreendida como a substituição de um texto na língua de partida por um texto semântica e pragmaticamente equivalente na língua de chegada. Por outro lado, já que a equivalência de tradução é vinculada ao contexto particular de situação, House sugere que deve-se dividir esse último em componentes manejáveis, isto é, perfis de contexto de situação ou dimensões situacionais.

Assim, no seu modelo revisado para avaliação da qualidade de tradução, com a intenção de capturar os perfis de contexto de situação para uma determinada tradução, House utiliza os conceitos clássicos de Halliday: Campo, Tom e Modo. A dimensão Campo está relacionada a atividade social e tópica, diferenciando-se em itens lexicais entre os graus de especializado, geral e popular. A dimensão Tom, por sua vez, trata da natureza dos participantes, o endereçado e o enderaçador, e a relação entre eles em termos de poder e distância social, bem com o grau de emotividade. Além disso, nessa dimensão, inclui-se também a proveniência temporal, geográfica e social do enunciador do texto, e sua postura intelectual e afetiva perante o texto, junto com os estilos diferentes de atitudes sociais (formal, consultivo, informal). O Modo refere-se ao canal falado ou escrito, podendo ser simples (escrito para ser lido) ou complexo (escrito para ser falado), e ao grau de participação permitido entre o autor e o leitor, podendo também ser simples (monólogo sem participação do leitor) ou complexo (vários leitores envolvidos). Assim, essas três dimensões compõem a categoria de Registro, que descreve características individuais de texto no nível linguístico, ou seja, ela captura a conexão entre os textos e seu microcontexto. Por outro lado, com a finalidade de associar os textos com seu macrocontexto, House, no seu modelo de avaliação, acrescenta outro parâmetro, Gênero, que permite relacionar qualquer texto individual à classe textual, com a qual compartilha um propósito comum. Embora a autora considere que o gênero é uma categoria superordenada ao registro, afirma que existe uma correlação entre elas, isto é, o gênero é o conteúdo do registro e o registro é a expressão do gênero, igual à relação entre o registro e a linguagem.

Levando em consideração os parâmetros apresentados acima, o modelo de House consistem em seguintes procedimentos. Primeiro, fazer uma análise linguístico-pragmática sobre o texto original, com a finalidade de descrever o específico perfil textual que carateriza a função individual do texto-fonte. Para isso, House sugere que, em cada uma das dimensões (campo, tom e modo), cabe-se diferenciar entre os aspectos lexicais (escolhas e padrões de itens lexicais, colocações, co-ocorrencias, etc.), sintáticos (parataxe, hipotaxe, natureza da frase verbal, modo, tempos, etc.) e textuais (coesão e coerência, temas dinâmicos, clausulas, links icônicos), embora nem sempre todas as categorias sejam encontradas operativas numa dimensão determinada. No segundo passo, após a análise linguístico-pragmática, identificar o perfil textual dele, que será comparado com o do original na próxima etapa. Desta forma, de acordo com a autora, o grau de adequação da qualidade de tradução se manifesta na conformidade entre o perfil retirado da tradução e outro traçado do texto original, e as diferenças encontradas nessa comparação podem se distinguir entre desencontros dimensionais e os não dimensionais. O primeiro refere aos erros pragmáticos relacionados aos usuários da língua e ao uso da língua, enquanto o último ocorre quando os elementos da tradução não correspondem com o sentido denotativo do original ou existe brechas do sistema alvo em vários níveis. Por fim, concluir a avaliação final da qualidade de tradução, que mostra os dois tipos de erros e a declaração dos encontros relativos aos textos fonte e alvo.

No entanto, House também comenta que, ao aplicar esse modelo de avaliação da qualidade de traduções, é necessário ter em conta o tipo de tradução pretendida, isto é, diferentes categorias de tradução apresentam diferentes características textuais, que consequentemente influenciam o julgamento da qualidade de tradução. A autora distingue as traduções entre duas espécies principais de tradução: tradução explícita e tradução velada. No primeiro tipo, os receptores da tradução explicitamente não estão sendo endereçados e o texto final não tem pretensão de ter status de segundo original, mas, sim, de tradução. A tradução velada, por sua vez, é aquela que recebe status do original na cultura de chegada e, o texto final não é marcado pragmaticamente como uma tradução de um texto-fonte, mas pode, concebívelmente, ter sido criado de forma independente. Assim sendo, na tradução explícita, o texto traduzido está inserido em um novo evento discursivo, no qual se dá também uma nova moldura, e a correspondência entre tradução e texto-fonte deve ocorrer nos níveis linguístico-textuais, registro e gênero, e a equivalência funcional também é possível, mas é de uma outra natureza: a tradução permitirá acesso à função do original em seu próprio contexto sociocultural e discursivo. Por outro lado, no caso da tradução velada, o tradutor deve recriar um discurso equivalente em termos de manter a função que o texto original tem em sua moldura e mundo discursivo. A fim de alcançar a equivalência nos aspectos de gênero e função textual individual, o tradutor pode manipular o texto-fonte nos níveis linguístico-texutais e no nível do registro, através do emprego de filtro cultural, que, segundo House, é uma forma de capturar as diferenças socioculturais em relação a normas de expectativa e convenções estilísticas entre as comunidades linguístico-culturais fonte e alvo. Além disso, para avaliar, de forma imparcial e adequada, a qualidade de traduções veladas, é essencial levar em conta todos os conhecimentos sobre as diferenças culturais entre as comunidades fonte e alvo.

House ainda faz uma outra distinção importante entre traduções e versões. Conforme as definições propostas por ela, as versões explícitas são produzidas sempre que uma função especial é explicitamente adicionada ao um texto traduzido e podem ser encontradas em dois casos: quando uma tradução é realizada para atingir uma audiência em particular e quando é dado um propósito específico a uma tradução. Em contrapartida, as versões veladas acontecem sempre que, com o objetivo de preservar a função do texto-fonte, o tradutor aplica um filtro cultural de forma não objetiva e, em consequência, desvios ocorridos nas dimensões situacionais, ou em outras palavras, o texto original passa por uma manipulação que não é comprovada por pesquisa. A autora comenta que a escolha inicial entre traduzir ou produzir uma versão não pode ser feita com base nas características do texto, mas pode depender dos propósitos determinados arbitrariamente, os quais tradução ou versão é requisitada.

Aplicação do modelo de House na prática de tradução literária

a. Hipótese e procedimento

Em primeiro lugar, para presente trabalho, seleciona-se um ensaio anônimo de Tiesheng Shi, o qual trata das suas reflexões sobre budismos e templo budista. Escolhemo-no pela sua extensão curta, já que não há espaço excedente em um artigo acadêmico. Por outro lado, a crônica escolhida se trata de um representativo de Shi, dado que é marcada pelo uso frequente de termos religiosos, tais como “寺庙[sì miào] templo”, “和尚[hé shang] monge”, “佛学[fó xué] budismo”, “经[jīng] mantra”, e consta de elucubrações filosóficas sobre os assuntos mais profundos de ser humano, quer dizer, no ensaio, o autor usa a metáfora de templo budista para discutir que o desejo de compreensão é uma natureza universal entre todos.

De acordo com a proposta de House, quando um texto original possui um valor estabelecido na comunidade de língua de partida, uma tradução explícita seria a solução mais adequada. No caso do ensaio escolhido para o presente trabalho, ele desfruta uma posição relevante no sistema literário da língua-fonte, uma vez que seu autor é considerado um dos grandes nomes para a literatura contemporânea chinesa, como, por exemplo, o ganhador do prêmio do Nobel de Literatura, Mo Yan comenta que “Eu tenho muito respeito e admiração por Tiesheng Shi, porque ele não é somente um excelente escritor, mas também uma pessoa extraordinária” (Yu, 2006Yu, Qing. “从残缺走向完美——访《我与地坛》作者史铁生 Da deficiência à Perfeição—a Entrevista com o Tiesheng Shi, o Autor de Eu e o Parque do Templo da Terra”. Mundo da Leitura, 36(6), p. 6-7, 2006., p. 7, tradução nossa) e o crítico e historiador chinês, Chen Sihe, no seu livro Curso de História da Literatura Contemporânea Chinesa, separa um capítulo inteiro para apresentar Shi e suas obras, em que elogia o escritor da seguinte forma, “Ele não se limita ao desespero de ser uma pessoa deficiente, mas procura assumir a responsabilidade de encontrar um caminho de redenção para a humanidade inteira” (Chen, 1999Chen, Sihe. 中国当代文学教程. Curso de História da Literatura Contemporânea Chinesa. Xangai: Universidade de Fudan, 1999., p. 342, tradução nossa). Assim, consequentemente, para traduzir esse ensaio anônimo, cabe-se realizar uma tradução explícita e buscar alcançar a equivalência nos níveis de registro e gênero. No que diz respeito à função individual do texto, a tradução deve permitir acesso à função do original em seu novo evento discursivo, e o leitor precisa ser tratado como um observador externo, mantendo uma distância à cena discursiva original.

Com as justificativas apresentadas acima, entende-se que o procedimento de nossa pesquisa deve consistir em seguintes passos: primeiro, por meio de uma análise linguístico-pragmática do texto de partida, traça-se o perfil do original; segundo, uma vez que a tradução tem de alcançar a equivalência do original nos níveis de registro e gênero, procura-se, na língua-alvo, a correspondência nos aspectos respectivos; por fim, após a realização de tradução, avalia-se as vantagens e desvantagens do modelo de House na prática de tradução literária.

Aplicação do modelo de House

Campo

O texto original é uma crônica curta, que apresenta as reflexões filosóficas do autor. No início do texto, o autor conta sua experiência de procurar emprego, quando voltou da zona rural à sua cidade natal com as pernas paralisadas. A seguir, ele se lembra de um pequeno templo, que ficava perto de onde trabalhava e começa a refletir sobre a questão de morar naquele mosteiro. Em consequência, desenvolve a análise pela sua motivação de se mudar para templo e chega à conclusão de que o desejo intrínseco do ser humano é conseguir a compreensão de outros.

No meio léxico:

Análise do original: No original, o autor conta sua história de procurar emprego e de encontrar um pequeno templo perto do trabalho. Assim, identificam-se palavras ligadas ao contexto histórico da sociedade chinesa de então. Por outro lado, encontram-se os termos específicos para descrever templo, ou relacionados ao budismo (Para não se exceder a extensão de um artigo, discutem-se somente as palavras ligadas ao contexto sócio-histórico).

Exemplo: 插队回来双腿残废了…

Tradução: Voltei do campo com as pernas paralisadas....

Justificativa: No texto original, a palavra chā duì refere à Campanha de Envio ao Campo1 1 A Campanha de Envio ao Campo foi uma política instituída na República Popular da China no final da década de 1960 e no início dos anos 1970. Como resultado do pensamento antiburguês predominante ao longo da Revolução Cultural, Mao Zedong declarou que certos jovens urbanos privilegiados seriam enviados para as zonas montanhosas ou para as aldeias agrícolas, a fim de que pudessem aprender com os trabalhadores e camponeses dali. , conforme explicado em nota de rodapé. Ou seja, ela é classificada como um Culture-Specfic Items, conforme a definição de estudioso espanhol, Javier Franco Aixelá (2007)Franco Aixelá, Javier. “Culture-specific Items in Translation”. In: Alvarez, Román & Vidal, María del Carmen África (Ed.). Translation, Power, Subversion. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press, 2007. p. 52-78., e é fortemente relacionado ao contexto da história contemporânea da China. Embora House admite que “é essencial levar em consideração qualquer conhecimento sobre as diferenças culturas entre comunidades de partida e de chegada” (House, 2001House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160., p. 143), não propícia nenhuma estratégica concreta para orientar o tradutor resolver essa questão de como tratar dos Culture-Specfic Items. Visto que o leitor de chegada raramente possui a familiaridade com a cultura e história chinesa, na tradução, opta-se por uma abordagem mais explicativa de acrescentar em nota de rodapé uma curta apresentação de respectivo acontecimento histórico.

No meio sintático:

Análise do original: Com a finalidade de deixar as ideias abstratas mais fáceis de entender, o autor utiliza os recursos linguísticos, com frequência, como, por exemplo, as metáforas, de modo que possa deixar as ideias abastratas mais tranquilas de entender.

Exemplo: ...那庙的形式原就是一份渴望理解的申明, 它的清疏简淡朴拙幽深恰是一种无声的宣告...

Tradução: ...o templo em si é uma declaração de almejo à compreensão e seu ambiente tranquilo e singelo, um manifesto silencioso...

Justificativa: No texto original, para deixar suas reflexões filosóficas mais entendíveis, o autor metaforiza o templo como 渴望理解的申明 kě wàng lǐ jiě de shēng míng(uma declaração de almejo à compreensão) e o ambiente do templo como 无声的宣告wú sheng de xuān gào (um manifesto silencioso). Segundo a proposta de House, seria adequado, na tradução para o português, manter a mesma figura de linguagem e reproduzir a mesma conotação semântica da metafora encontrada no texto original, com o objetivo de alcançar a equivalência na dimensão de campo.

No meio textual:

Análise do original: Identifica-se uma coesão textual forte, que deixa claras as reflexões filosóficas do autor e ajuda o leitor a entender os raciocínios abstratos do texto. Tal coesão textual se atinge pelo uso frequente de conjuntivas ao longo do texto original, como, por exemplo, 既然jì rán e又yòu, 不是bù shi (um par de conjunções coordenativas) eér shì (um par de conjunções adversativas).

Exemplo: 摇了轮椅回家, 一路上却想, 既然愿意与世无争地度此一生, 又何必一定要在那庙里?

Tradução: No caminho para casa, porém, um pensamento não quis me deixar: já que aceito viver minha vida em paz, há de ser dentro desse templo?

Justificativa: No trecho citado em chinês, encontra-se um par de conjuntivas既然jì rán e 又yòu, que representa um par de conjunções coordenativas. Quanto o tema se trata de conjunções em chinês, de acordo com o professor de português do Instituto Politécnico de Macau, Changsen Li (2002)Li, Changsen. Aspectos Teórico-Práticos de Tradução Português/Chinês. Macau: Instituto Politécnico de Macau, 2002., uma das diferenças linguísticas entre o chinês e o português é o uso desse recurso: em chinês, as conjuntivas se apresentam em par de par, e, no caso de português, se utiliza apenas uma conjuntiva por vez. Desta forma, a fim de preservar o perfil do texto-fonte, seria necessário acomodar a frase de tradução conforme as normas estabelecidas na língua de chegada e escolher apenas uma palavra para recuperar a conjunção coordenativa, marcada por dois termos no texto original.

Tom

1. Linhagem temporal, geográfica e social do autor

Análise do original: Não marcado, contemporâneo, não marcado

Orientação para tradução: Deve-se manter a mesma linguagem vernácula na TC.

2. Relação entre autor e leitor

Análise do original: O autor conta sua história de uma forma descomplicada e entendível, deixando o leitor numa posição simétrica. Em nenhum momento, ele tenta obrigar o público aceitar seu ponto de vista sobre a vida, e, muito pelo contrário, o tronco de introspecção se desenrole com raciocínio claro e argumentação progressiva.

No meio léxico:

Análise do original: Para não impor superioridade sobre o leitor, o autor evita de utilizar termos muito sofisticados ou complicados, e até emprega algumas palavras bem simples e populares em certos momentos.

Exemplo: 幸得一家街道小作坊不嫌弃, 这才有一份口粮钱可挣。

Tradução: Por sorte, uma pequena oficina coletiva não se incomodou com a minha condição e me aceitou. Apenas dessa maneira, consegui um dinheiro para pagar as contas.

Justificativa: Na frase citada do texto original, o autor usa o termo “口粮钱kǒu liáng qián”, que literalmente significa “o dinheiro para comprar alimentação” e, no sentido mais amplo, pode se referir à despesa geral da vida. Vale-se destacar que essa palavra possui um tom popular, e fica presente, com mais frequência, na fala entre as pessoas de classe dos proletários, por exemplo, os camponeses e os operários. Conforme a proposta de House, a fim de alcançar a equivalência nesta dimensão de tom, cabe-se buscar, em língua portuguesa, algum correspondente com mesmo traço popular. Assim, na tradução, a alternativa escolhida foi “um dinheiro para pagar as contas”.

No meio sintático:

Análise do original: Em vez de utilizar as orações compridas, ou de estrutura sintática complexa, o autor organiza as frases de uma forma simples e explícita, dividindo-as em orações curtas e leves.

Exemplo: 傍晚, 我常摇了轮椅到这小庙墙下闲坐, 看着它, 觉得很有一种安慰。

Tradução: Ao entardecer, eu costumava ir até o muro desse templo e olhava-o sentado na minha cadeira de roda. Era a forma para me tranquilizar.

Justificativa: A frase citada do texto original consiste em quatro orações, que podem ser traduzidas literalmente em seguintes blocos respectivos, 傍晚bàng wǎn (ao entardecer), 我常摇了轮椅到这小庙墙下闲坐 wǒ cháng yáo le lúnyǐ zhào zhè xiǎo miào qiáng xià xián zuò (eu costumo ir, de cadeira de rodas, para sentar debaixo do muro desse tempo), 看着它Kàn zhe tā (olhar para ele), 觉得很有一种安慰 Juéde hěn yǒu yī zhǒng ānwèi (sentir que havia um certo tipo de consolo). De acordo com a proposta de House, na tradução em português, é necessário manter a mesma estrutura simples e explícita. Por outro lado, visto que “a língua chinesa não conta com o recurso de variação morfológica, e a frase se organiza meramente pela coerência lógica das palavras, não pela integridade da estrutura sintática (Yu, 2011Yu, Xiang. Tradução Português-Chinês: Teoria e Prática. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press, 2011., p.28, tradução nossa)”, é possível que, em uma frase marcada por ponto final de chinês, se identificam vários verbos de mesma hierarquia, o que, conforme a norma culta do português, indubitavelmente consistiria em um erro gramatical. Assim sendo, é mais do que necessário, na língua-alvo, adotarmos certas modificações no nível sintático, e, na solução porposta acima, dividimos a única frase no TP em dois períodos completos, tentando conservar a mesma facilidade de leitura, que se trata de uma característica destacada no texto original.

3. Atitude Social

Análise do original: No texto original, manifesta-se um estilo de formalidade, o que é comom nas escritas literárias chinesas.

No meio léxico:

Análise do original: A formalidade do texto é marcada pelo uso frequente de 成语chéng yǔ, que, conforme a definição no Dicionário de Chinês Moderno, são as expressões idiomáticas consolidads ao decorrer do tempo e geralmente consistem em quatro caracteres, carregando consigo uma história ou metáfora por trás.

Exemplo: 我想这和尚真作得, 粗茶淡饭暮鼓晨钟, 与世无争地了此一生。

Tradução: Isso me fez pensar que realmente valeria a pena ser monge, passar a minha vida em paz com uma rotina frugal aos sons de tambores e sinos.

Justificativa: No texto de original, identificam-se dois 成语chéngyǔ, o que é uma marca de formalidade na língua chinesa. O primeiro é 粗茶淡饭cū chá dàn fàn, e outro 暮鼓晨钟mù gǔ chén zhōng. Se os traduzíssemos ao pé da letra, ficariam “chá fraco e refeição escassa” e “tambor da noite e sino de manhã”. No entanto, 粗茶淡饭cū chá dàn fàn é uma metáfora para descrever uma dieta simples, e os sons de tambores da noite e sinos de manhã são o símbolo da rotina budista, uma vez que, todos os dia, os monges precisam tocar tambor e sino em determinado horário. Conforme Guo (2015)Guo, Qianqian. 汉英成语文化差异及翻译应对方法探究 A Diferença Cultural entre Chengyu e Expressões Idiomáticos Ingleses, e o Estudo de Sua Tradução. 2015. Dissertação (Estudos da Tradução) – Universidade de Suzhou, Suzhou, 2015., 成语chéng yǔ possui tanto atributo linguístico quanto manifestação cultural e é fortemente ligado aos estudos etnográficas. Por exemplo, no caso de 暮鼓晨钟mù gǔ chén zhōng, para a audiência chinesa, a imagem de tambores ao crepúsculo e sinos de manhã cedo possi uma ligação coerente com a rotina budista. No entanto, não existem respectivos equivalentes de 成语chéng yǔ na língua de chegada, sobre o qual House (2001, p. 142)House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160. explica que “há uma ausência de estudos contrastivos e completos de etnografia” e que seria desafiador encontrar correspondentes linguístico-culturais na outra comunidade etenográfica. Levando essa permissa na mente, decidimos, no texto traduzido, evidenciar a metáfora do TP e manter a formalidade por meio de uma linguagem mais sofisticada em português.

No meio sintático:

Análise do original: Outra marca de formalidade se consiste no uso de figuras de linguagem. No texto estudado, podemos observar que o autor faz questão de empregar antítese para destacar suas reflexões filosóficas.

Exemplo: 而且从那小庙的宣告中, 也听出这样的意思: 入圣当然可以, 脱凡其实不能, 无论僧俗, 人可能舍弃一切, 却无法舍弃被理解的渴望。

Tradução: Do manifesto daquele pequeno templo, dava para entender o seguinte: é possível se aproximar das revelações divinas, mas difícil abrir mão das trivialidades mundanas. Qualquer pessoa, religiosa ou leiga, pode abandonar tudo, menos seu desejo de ser compreendida.

Justificativa: No trecho citado acima, observa-se que o autor constrói de propósito uma comparação entre 入圣rù shèng e 脱凡tuō fán, os quais respectivamente significam “se aproximar das revelações divinas” e “abrir mão das trivialidades mundanas”, com a intenção de destacar sua opinião de que nenhum ser humano consegue se livrar do desejo de ser compreendido. De acordo com Garcia (2010, p. 70)Garcia, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. 27. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2010., “Antítese é uma figura de retórica que consiste em opor a uma idea outra de sentido contrário”. Na verdade, esse recurso de linguagem não apenas aumenta a expressividade do texto, mas também delinea a formalidade da escrita. Segundo as ideias de House, o tradutor deve manter esse mesmo perfil linguísto-pragmático na tradução em português. Por outro lado, para a língua chinesa, “é de uso facultativo as palavras de conjunção para formular uma oração coordenada, porque a ligação entre as orações já se justifica pela sua sequência de colocação” (Yu apud Zheng, 2019Zheng, Tao. Uma tradução comentada da prosa contemporânea chinesa: Eu e o Parque do Templo da Terra, de Shi Tiesheng. 2019. 166 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019., p. 108), por isso, se traduzíssemos literalmente a antítese 入圣当然可以脱凡其实不能rù shèng dāng rán kě yǐ, tuō fán qí shí bù néng, a frase ficaria incorreto em português como é possível se aproximar das revelações divinas, difícil abrir mão das trivialidades mundanas. Desta forma, além de reproduzir o contraste de ideias apresentado no original, precisamos também inserir uma conjunção “mas” para deixar essa antítese correta e legível sob a estrutura da gramática de língua portuguesa.

Modo

1. Meio

Análise do original: o canal do texto-fonte é o de simples (escrito para ser lido), e suas características coincidem com os aspectos mencionados na análise sobre a dimensão de Atitude Social, ou seja, há um uso frequente de 成语chéng yǔ e figuras de linguagem.

Orientação para tradução: Também coincidem com as estratégias tomadas nos exemplos apresentados na seção de Atitude Social.

2. Participação

Análise do original: No nível lexical, ao longo do texto, apenas se identificam tratamentos de primeira e terceira pessoa do singular, que referem, respectivamente, ao próprio autor e ao templo budista. O uso dos demais pronomes pessoais, no entanto, se encontra ausente no texto em chinês. No nível textual, por sua vez, observa-se que não existe diálogo entre locutores, o que indica não-comparecimento de destinatário. Desta forma, conclui-se que o texto-fonte se enquadra como um monólogo, e sua dimensão de participação, assim, se classifica como a de simples.

Orientação para tradução: De acordo com a prosposta de House, a participação do texto-alvo deve manter o mesmo perfil. Em consequência disso, a tradução se limita apenas ao emprego de primeira e terceira pessoa do singular e não estabelece nenhum tipo de diálogo.

Gênero

Análise do original: Conforme House (1997, p. 107)House, Juliane. Translation Quality Assessment: A Model Revisited. Tübingen: Narr, 1997., “gênero é uma categoria socialmente estabelecida, caraterizada por ocorrência de uso, fonte e um propósito comunicativo, ou qualquer combinação destes”, ou melhor dizendo, ele é vinculado ao tipo de discurso e ajuda a explicar as diferenças e semelhanças da mesma categoria de texto. O texto original, por sua vez, se classifica como uma crônica literária, em que o autor articula sua experiência da vida com reflexões filosóficas sobre o ser humano, tentando transferir ao público seu ponto de vista sobre a humanidade: o desejo intrínseco do homem é ser compreendido por outros.

Orientação para tradução: De acordo com House (2001)House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160., no caso de realizar uma tradução explícita, precisamos manter o mesmo gênero do original, ou seja, reproduzir um ensaio literário em português e recuperar os traços de argumentações e reflexões filosóficas do autor no texto-alvo.

Considerações finais

Este trabalho tem como objetivo apresentar o modelo de avaliação da qualidade de traduções de House e aplicá-lo para orientar a prática da tradução literária. Com isso, remolderamos os parâmetros propostos pela autora e os testamos em um ensaio anônimo do escritor contemporâneo chinês, Tiesheng Shi. Conforme as análises pormenorizadas discutidas acima, chegamos às seguintes considerações finais.

Em primeiro lugar, no lado positivo, a partir dos exemplos apresentados, observamos que o modelo adaptado de House pode nos ajudar a realizar um levantamento detalhado sobre as características linguístico-pragmáticas do texto original. No nível morfológico, notamos o tom e a singularidade de certas palavras escolhidas pelo autor, como o traço popular da expressão 口粮钱kǒu liáng qián. Na perspectiva sintática, destacam-se as figuras de linguagem, como metáfora e antítese. E, no âmbito textual, observamos o uso de determinados tratamentos pessoais, como a primeira e segunda pessoa do singular, ao longo do desenvolvimento do ensaio. Embora tenhamos percebido que, às vezes, os critérios propostos por House podem resultar em redundância na análise, por exemplo, no caso da aplicação sobre esse aritgo de Tiesheng Shi, o diagnóstico da discussão sobre o Atitude Social coincide com o sobre Meio de Comunicação: ambos levam à conclusão de que a escrita do TP se destaca pela formalidade, o modelo da autora, no ponto de vista pragmático, oferece um conjunto sistematizado e hierarquizado de análise que ajuda o tradutor a capturar as particularidades linguísticos do TP e não se esquecer das respectivas orientações tradutórias ao longo da realização de seu trabalho.

Em segundo lugar, precisamos também admitir que esse modelo conciliado de House ainda apresenta espaço para melhoria quando aplicado à prática de tradução. Por um lado, apesar da diretriz geral de se realizar uma tradução explícita, no momento em que é preciso lidar com as diferenças linguísticas e gramaticais entre o português e o chinês, há uma falta de teorias prospectivas para conduzir a tomada de decisão do tradutor. Por exemplo, o modelo de House pode nos ajudar a identificar que o texto original dá preferência por estrutura sintática simples e divide uma única frase em várias orações curtas e leves, no entanto, apesar da instrução de manter essa mesma caraterística no TC, ele parece indiferente com as discrepâncias existentes entre duas línguas, dado que a língua chinesa concede o emprego de vários verbos de mesma hierarquia em um período composto e dispensa as ligações sintáticas e que a língua portuguesa considera esse fenômeno erro gramatical. Por outro lado, no que diz respeito aos aspectos culturais, que, por natureza, fazem parte das obras literárias chinesas, a própria House admite a carência de estudos contrastivos de etnografia entre diferentes comunidades, porém, falha em sugerir uma resposta concreta para resolver esse problema. No caso do ensaio anônimo de Tiesheng Shi, por meio da análise do modelo de House, conseguimos identificar o uso da referência cultural da Campanha de Envio ao Campo e 成语 chéngyǔ, ambos se tratam de peculiaridades excluxivas da língua e cultura chinesa, e entender sua referência para o TP, contudo, parece-nos uma lacuna de apoio teórico que nos oriente em relação à inexistência de equivalentes entre o português e o chinês.

Em resumo, na prática de tradução, o modelo de House, através dos parâmetros estabelecidos de registro e gênero, possibilita ao tradutor uma descrição detalhada dos elementos linguístico e estilísticos do texto original, porém, é necessário conciliá-lo com outras teorias tradutórias para resolver as questões problemáticas relacionadas aos aspectos culturais e à recepção do texto de chegada.

  • 1
    A Campanha de Envio ao Campo foi uma política instituída na República Popular da China no final da década de 1960 e no início dos anos 1970. Como resultado do pensamento antiburguês predominante ao longo da Revolução Cultural, Mao Zedong declarou que certos jovens urbanos privilegiados seriam enviados para as zonas montanhosas ou para as aldeias agrícolas, a fim de que pudessem aprender com os trabalhadores e camponeses dali.

Referências

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  • House, Juliane. “How Do We Know When a Translation is Good”. In: Steiner, Erich & Yallop, Colin (ed). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin & Nova York: Mouton de Gruyter, 2001. p. 127-160.
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  • Yu, Xiang. Tradução Português-Chinês: Teoria e Prática Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press, 2011.
  • Zheng, Tao. Uma tradução comentada da prosa contemporânea chinesa: Eu e o Parque do Templo da Terra, de Shi Tiesheng 2019. 166 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Apêndice Texto em chinês

我曾想过当和尚, 羡慕和尚可以住进幽然清静的寺庙里去。但对佛学不甚了了, 又自知受不住佛门的种种戒律, 想一想也就作罢。何况出家为僧的手续也不知如何办理, 估计不会比 出国留学容易。

那时我正度着最惶茫潦倒的时光。插队回来双腿残废了,摇着轮椅去四处求职很像是无聊之徒的一场恶作剧, 令一切正规单位的招工人员退避三舍。幸得一家街道小作坊不嫌弃, 这才有一份口粮钱可挣。小作坊总共三间低矮歪斜的老屋, 八九个老太太之外, 几个小伙子都跟我差不多, 脚上或轻或重各备一份残疾。我们的手可以劳作, 嗓子年轻, 梦想也都纷繁, 每天不停地唱歌, 和不停地在仿古家具上画下美丽的图案。在那几一干七年。十几年后我偶然在一家星级饭店里见过我们的作品。

小作坊附近, 曲曲弯弯的小巷深处有座小庙, 废弃已久,僧人早都四散, 被某个机关占据着。后来时代有所变迁, 小庙修茸一新, 又有老少几位僧徒出入了, 且唱经之声隔墙可闻。傍晚, 我常摇了轮椅到这小庙墙下闲坐, 看着它, 觉得很有一种安慰。单是那庙门、庙堂、庙院的建筑形式就很能让人镇定下来, 忘记失学的怨愤, 忘记失业的威胁, 忘记失恋的折磨,似乎尘世的一切牵挂与烦恼都容易忘记了.......晚风中,孩子们鸟儿一样地喊叫着游戏, 在深巷里荡起回声, 庙院中的老树沙啦沙啦摇动枝叶仿佛平静地看这人间, 然后一轮孤月升起, 挂在庙堂檐头, 世界便像是在这小庙的抚慰下放心地安睡了。我想这和尚真作得,粗茶淡饭暮鼓晨钟,与世无争地了此一生。

摇了轮椅回家, 一路上却想, 既然愿意与世无争地度此一生, 又何必一定要在那庙里? 在我那小作坊里不行么? 好像不行, 好像只有住进那庙里去这心才能落稳。为什么呢?又回头去看月下小庙的身影,忽有所悟:那庙的形式原就是一份渴望理解的申明, 它的清疏简淡朴拙幽深恰是一种无声的宣告, 告诉自己也告诉别人, 这不是落荒而逃, 这是自由的选择, 因而才得坦然。我不知道那庙中的僧徒有几位没有说谎, 单知道自己离佛境还差得遥远, 我恰是落荒而逃, 却又想披一件脱凡入圣的外衣。

而且从那小庙的宣告中, 也听出这样的意思: 入圣当然可以, 脱凡其实不能, 无论僧俗, 人可能舍弃一切, 却无法舍弃被理解的渴望。

Tradução em português

Já pensei em me tornar monge por invejar uma vida reclusa e sossegada em um mosteiro. No entanto, tenho pouca familiaridade com o budismo e plena consciência de que não nasci para obedecer toda aquela disciplina e restrição, por isso, deixei de lado essa ideia. Não conheço, ainda por cima, as formalidades para oficializar meus votos religiosos, que não devem ser mais fáceis do que os trâmites de estudar no exterior.

Foi nos dias mais confusos e abatidos da minha vida. Voltei do campo com as pernas paralisadas e tive de percorrer a cidade toda atrás de um emprego. O simples fato de eu sentado numa cadeira de rodas já foi suficiente para afugentar os empregadores decentes, porque para eles aquilo era uma pegadinha de um vagabundo. Por sorte, uma pequena oficina coletiva não se incomodou com a minha condição e me aceitou. Apenas dessa maneira, consegui um dinheiro para pagar as contas. A oficina funcionava em cômodos caindo aos pedaços. Além de oito ou nove senhoras velhas, os rapazes que trabalhavam lá todos tinham deficiência nas pernas como eu, de graus diferentes. Nossas mãos eram capazes de trabalhar, nossas vozes, jovens, e nossos sonhos, coloridos. Todos os dias, cantávamos tão incessantemente quanto pintávamos belos desenhos nos móveis do estilo antiquado. Fiquei lá por sete anos consecutivos. Mais de dez anos depois, vi, por coincidência, um trabalho nosso num hotel estrelado.

Perto da oficina, os becos labirínticos levavam a um pequeno templo, desativado e sem os monges por um bom tempo, e uma entidade do governo chegou a ocupar o local. Mais tarde, as circunstâncias mudaram e o estabelecimento religioso foi restaurado e aparatado. Via-se uma movimentação de monges, velhos e jovens, e ouviam-se mantras recitados no lado de fora do muro. Ao entardecer, eu costumava ir até o muro desse templo e olhava-o sentado na minha cadeira de roda. Era a forma para me tranquilizar. Simplesmente olhar para aquela arquitetura da porta, salão e pátio do templo já podia acalmar o coração de uma pessoa e fazê-la esquecer o desagrado de deixar os estudos, a preocupação de perder emprego, a aflição de terminar um namoro. Parecia que todos os apegos e todas as perturbações podiam ser deixados para trás com facilidade... Na brisa de final de tarde, crianças brincavam e gritavam como pássaros alegres, os ecos ressoavam no fundo das ruelas. As árvores velhas no pátio do templo balançavam seus galhos e folhas, como se estivessem contemplando este universo com serenidade. Pouco tempo depois, uma lua solitária subiu no céu e ficava pendurada no beiral do pavilhão principal. O mundo parecia ter caído no sono sob a bênção desse recanto religioso. Isso me fez pensar que realmente valeria a pena ser monge, passar a minha vida em paz com uma rotina frugal aos sons de tambores e sinos.

No caminho para casa, porém, um pensamento não quis me deixar: já que aceito viver minha vida em paz, há de ser dentro desse templo? Não pode ser naquela oficina? Talvez não, parece que apenas me mudar para lá dentro do templo pode acalmar meu coração. Por quê?” Virei a cabeça e olhei para a silhueta do templinho ao luar. De repente, entendi uma coisa: o templo em si é uma declaração de almejo à compreensão e seu ambiente tranquilo e singelo, um manifesto silencioso, para quem está dentro e para os outros, que viver lá não é uma escapada por desespero, mas sim, uma escolha de livre arbítrio, feita com muita calma. Eu não sabia dizer quais monges do templo não mentiram, mas sabia que eu estava muito longe de alcançar a iluminação budista, só buscava uma escapada, mas queria deixar a impressão de que abri mão das trivialidades mundanas para me aproximar das revelações divinas.

Do manifesto daquele pequeno templo, dava para entender o seguinte: é possível se aproximar das revelações divinas, mas difícil abrir mão das trivialidades mundanas. Qualquer pessoa, religiosa ou leiga, pode abandonar tudo, menos seu desejo de ser compreendida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
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