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DIÁLOGOS EM TRADUÇÃO: AUGUSTO DE CAMPOS E MACHADO DE ASSIS

DIALOGUES IN TRANSLATION: AUGUSTO DE CAMPOS E MACHADO DE ASSIS

Resumo

Este artigo demonstra que é possível encontrar procedimentos em comum entre Augusto de Campos e Machado de Assis quanto às escolhas que ambos fizeram ao traduzir cantos da Divina Comédia, de Dante Alighieri, demonstrando que a tradução-arte, na terminologia de Augusto de Campos, foi também praticada pelo escritor oitocentista. Busca-se também ampliar o entendimento que se tem do tradutor Machado de Assis, expondo procedimentos tradutórios adotados já ao fim de sua prática como tradutor, no texto que é, talvez, a sua obra-prima em tradução.

Palavras-chave
Machado de Assis; Augusto de Campos; Dante Alighieri; Tradução; Poesia

Abstract

This article demonstrates that it is possible to find common procedures both in Augusto de Campos and in Machado de Assis when it comes to the choices they made when translating cantos from the Divine Comedy, by Dante Alighieri, showing that the translation-art, term coined by Augusto de Campos, was also practiced by the nineteenth century write. It is also aimed at broadening the understanding we have of Machado de Assis as a translator, by exposing translation procedures adopted at the end of his life as a translator in the text that is, perhaps, his master-piece in translation.

Keywords
Machado de Assis; Augusto de Campos; Dante Alighieri; Translation; Poetry

Querer aproximar dois autores aparentemente tão díspares na sua produção poética pode, a princípio, parecer despropositado, ou até mesmo anacrônico. Afinal, enquanto poetas, temos duas personalidades que, à primeira vista, se opõem: se Augusto é visto e vê a si mesmo como um poeta de vanguarda, um dos fundadores do movimento concretista na poesia brasileira, Machado de Assis não raro é descrito como um poeta de outra ordem, que não se apresentou como vanguardista, nem fundou movimentos, um escritor cuja produção poética é facilmente ofuscada pela sua produção em prosa em uma parte considerável de sua fortuna crítica.

Há, no entanto, um ponto de interseção na produção de ambos: a tradução. Ambos traduziram poesia e outros gêneros, e ambos produziram obras cuja interseção se torna ainda mais interessante e que serão o mote deste trabalho: cantos da Commedia de Dante Alighieri. Se Augusto de Campos é tradutor renomado e poeta premiado, a produção tradutória de Machado de Assis é quase tão ou mais esquecida que a sua poesia. O que se pretende sugerir, portanto, é que, embora na superfície haja pouco que os assemelhe, o cotejo das traduções que ambos fizeram de cantos da Commedia podem revelar procedimentos e posicionamentos similares.

Do método

Antes, contudo, é preciso levantar as balizas que irão determinar os critérios que utilizaremos no cotejo. Para tanto, os procedimentos de crítica de tradução do tradutor e teórico francês Antoine Berman, particularmente em Pour une critique des traductions: John Donne, serão chamados à baila. Não se tratará, evidentemente, de avaliar as traduções em termos de “boas” ou “ruins”, termos demasiadamente subjetivos que pouco ou nada acrescentam à discussão, mas de levantar questões que nos mostrem, particularmente neste caso, características de ambos os tradutores nos procedimentos adotados de forma a verificar nossa tese de que há entre eles, no caso da tradução dos cantos da Commedia, mais semelhanças do que diferenças.

No capítulo Esquisse d’une méthode (BERMAN, 1995BERMAN, A. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Éditions Gallimard, 1995., p. 64-97), Berman propõe uma série de procedimentos que visam dar suporte ao trabalho do crítico. Dentre estes, os primeiros passos são leituras e releituras da tradução, com o intuito de identificar áreas de interesse na obra traduzida, seguidos de leituras do original, amparada pela fortuna crítica da obra em questão, de forma a identificar traços que individualizem o autor e obra traduzidos. Em seguida, o crítico deveria buscar o tradutor, procurando conhecer o indivíduo que traduz – se também escrevia, de quantas e de quais línguas traduz, sua atuação literária, etc. – e, principalmente, seu posicionamento enquanto tradutor, explícito principalmente na sua produção tradutória, mas também nos discursos que possa ter feito sobre sua prática. O passo seguinte seria o de definir o que Berman chama de “projeto de tradução” que “définit la manière dont, d’une part, le traducteur va accomplir la translation littéraire, choisir un ‘mode’ de traduction, une ‘manière de traduire’”1 1 Tradução: “Define a maneira como, por um lado, o tradutor vai realizar a sua translation literária, escolher um ‘modo’ de tradução, uma ‘maneira de traduzir’.” (Tradução nossa). (BERMAN, 1995BERMAN, A. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Éditions Gallimard, 1995., p. 76). Há também que se considerar o que Berman chama de horizonte do tradutor, que é o conjunto de parâmetros linguísticos e literários que determinam o trabalho do tradutor, o contexto sócio-histórico-geográfico a partir do qual realiza seu trabalho.

Estes passos são os que precedem o confronto da tradução com o texto que lhe deu origem. Os últimos serão particularmente úteis para nossa proposta de identificar, a partir dos resultados de Augusto e Machado, procedimentos que apontem para convergências entre ambos, suspeitas que levantamos após as leituras de suas traduções de cantos da Commedia.

Dos tradutores

Quanto a Augusto de Campos, embora pouco tenha escrito sobre tradução, ficando para seu irmão Haroldo a tarefa de teorizar a respeito, podemos facilmente supor, principalmente a partir das diversas colaborações de ambos, que Augusto e Haroldo compartilhavam os mesmos posicionamentos quanto à prática de tradução. Posicionamento, aliás, bastante conhecido entre os que se interessam pelos estudos de tradução ou pela produção tradutória dos irmãos Campos.

Transcriação é o termo que Haroldo de Campos deu à prática de tradução levada a cabo por eles em que o objetivo é o de recriar, em criação paralela, embora recíproca, o modo de significar do texto de origem (CAMPOS, 1992CAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In: CAMPOS, H. de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992., p. 35). Para Augusto, por outro lado, conforme afirma em Invenção, seu trabalho

segue os preceitos da tradução criativa – ‘tradução-arte’, como gosto de chamá-la, ‘transcriação’, como ele prefere. Isto é, uma tradução que procura transpor para a língua receptora não só o sentido mas a riqueza dos valores formais (ritmos, rimas, assonâncias, aliterações, paranomásias, metáforas, etc.) e a poeticidade do texto original (CAMPOS, 2003CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003., p. 261).

Dentro deste mesmo conceito, conforme coloca Haroldo de Campos, é necessário

Traduzir a forma, ou seja, o “modo de intencionalidade” (Art des Meinens) de uma obra – uma forma significante, portanto, intracódigo semitótico – quer dizer, em termos operacionais, de uma pragmática do traduzir, re-correr o percurso configurador da função poética, reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o, enquanto dispositivo de engendramento textual, na língua do tradutor, para chegar ao poema transcriado como re-projeto isomórfico do poema originário (CAMPOS, 1981CAMPOS, H. de. Transluciferação Mefistofáustica. In: CAMPOS, H. de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981., p. 181).

A tradução, laborando em palimpsesto, torna-se, de certa forma, a porta-voz através da qual a tradição fala (CAMPOS, 1981CAMPOS, H. de. Transluciferação Mefistofáustica. In: CAMPOS, H. de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981., p. 191-2). Na tradução de um poema, portanto, o essencial não é a reconstituição da mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em que está incorporada esta mensagem, da informação estética, não da informação meramente semântica (CAMPOS, 1977CAMPOS, H. de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977., p. 100). A prática da tradução, para os poetas concretos de São Paulo, surge como fruto da necessidade de se reformular a poética brasileira, porque, para Haroldo de Campos e demais poetas concretos, traduzir poesia é viver o interior do mundo e da técnica do traduzido (CAMPOS, 1992CAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In: CAMPOS, H. de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992., p. 42-43).

Em se tratando de traduzir Dante Alighieri, Augusto de Campos nos agraciou com algumas palavras no texto que precede suas traduções, “O desafio dos Cantos de Dante”, em Invenção. Augusto evoca os poetas Ezra Pound e T.S. Eliot para justificar a grandeza do poeta florentino: enquanto o primeiro coloca Dante e Guido Cavalcanti logo após os poetas provençais em importância, a crítica de Eliot é trazida para ressaltar que “uma das coisas surpreendentes na poesia da Divina Comédia é que ela é, em certo sentido, extremamente fácil de ler” (CAMPOS, 2003CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003., p. 179), fruto da diretidade da fala de Dante, cujo estilo particularmente lúcido, segundo Eliot, é antes de uma lucidez poética do que intelectual. Outro aspecto da facilidade é o método de alegoria empregado pelo poeta italiano, dono de uma imaginação visual que quer que vejamos o que ele mesmo viu, o que é feito a partir de uma linguagem acessível, pouco metafórica. Augusto admira ainda a capacidade de Dante em “condensar, sem prejuízo da fluência narrativa, as complexidades da alma humana nas três séries de Cantos em tercetos decassilábicos encastoados em ‘terza rima’” (CAMPOS, 2003CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003., p. 180), mas também relata problemas encontrados para traduzir Dante: a dificuldade de encontrar formas equivalentes trabalhando com estoque verbal mais restrito, a necessidade de se fazer malabarismos para preservar a força poética de Dante sem prejuízo ao sentido da obra e sem que se percam suas referências, problemas comuns a outras traduções, mas que tomam grandes proporções em um monumento literário como a Commedia.

Augusto de Campos, reconhecendo o quão árdua é a tarefa, aponta como pecado frequente nas traduções de Dante os contorcionismos sintáticos a que diversos tradutores da Commedia recorreram na busca pela manutenção da métrica e rima, mesmo que a prejuízo da linguagem fluida e direta de Dante. Curiosamente, é Machado de Assis um dos poucos que, para Augusto, segue o caminho inverso e obtém “uma das mais bem-sucedidas traduções de um canto dantesco já feitas entre nós” (CAMPOS, 2003CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003., p. 181), e cita ainda estudo de Edoardo Bizzarri que, em Machado de Assis e Dante, reputa ao escritor oitocentista a maior tradução que Dante teve em língua portuguesa, tanto pela interpretação correta do texto da Commedia quanto pelo respeito à forma original, respeitando ritmo e estilo de Dante, um elogio que, vindo do tradutor que verteu Guimarães Rosa para a língua de Dante, é de se considerar com alguma seriedade. As constatações de Augusto a respeito de Machado vão ainda mais longe, ao dizer que “Machado opta pela concretude e diretidade da linguagem, saindo-se galhardamente em passos onde é dificílimo conjugar a coerência sintática e semântica ao rigor da estrutura formal” (CAMPOS, 2003CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003., p. 180). Evidentemente, os elogios de Augusto provêm de reconhecer em Machado características que vê em sua própria produção enquanto tradutor, o que motivou este estudo que pretende colocar as produções de ambos lado a lado para observar tais convergências.

Se Augusto de Campos nos deixou material explícito a respeito do que pensa sobre de seu trabalho de tradutor, o mesmo não podemos dizer sobre Machado de Assis. Não há texto dedicado exclusivamente a refletir sobre nenhuma outra tradução que tenha realizado, salvo uma ou outra nota de rodapé em que se limita a dizer que traduz via francês por não dominar a língua original da obra. Sobre as crenças e posicionamento de Machado de Assis a respeito da tradução, item importante no método proposto por Antoine Berman, sabe-se pouco. Não há, também, texto em que Machado se dedique exclusivamente à reflexão da prática tradutória, sua ou de outrem. Há, todavia, breves comentários, geralmente com críticas incisivas à má qualidade das traduções praticadas por aqui no século XIX, além de alguns pareceres emitidos por ele enquanto atuava no Conservatório Dramático.

Em alguns de seus ensaios, como “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858, “Ideias sobre o teatro”, de 1859, ou “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”, de 1873, Machado externa sua opinião, severa e contundente, a respeito da maioria dos tradutores, a quem culpabiliza pelo atraso na formação de uma literatura nacional, apontando os equívocos de tradução e os galicismos que ferem a língua pátria. Reconhecendo na tradução o elemento dominante na literatura de então, particularmente no teatro, critica a mercantilização da arte e a falta de critério na escolha de quem ficará incumbido das tarefas tradutórias. Nos pareceres emitidos enquanto membro do Conservatório Dramático2, despontam as mesmas críticas: excesso de galicismos, escolha de obras valor estético duvidoso, a supressão de trechos que o tradutor não consegue transpor ou a utilização de linguagem que beira o ininteligível.

Quando elogia os tradutores, os motivos são também quase sempre os mesmos: o cuidado com a língua portuguesa, e a habilidade em criar uma obra que se leia como tal, algo que desponta como de grande importância para Machado. Na última das notas que acompanham os poemas de Falenas, por exemplo, Machado atribui a Feliciano de Castilho a tradução da ode a partir da qual compõe seu texto. A respeito da tradução, afirma que esta fora tão “portuguesmente saída das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que tradução”, comentário que aponta para duas possíveis leituras: por um lado, que Machado preza o cuidado com o vernáculo, e por outro que aprecia traduções que são capazes de, por si próprias, serem lidas como uma obra, e não somente um pálido reflexo de uma.

O apreço e a importância que Machado de Assis conferia ao trabalho do tradutor, entretanto, ficam ainda mais patentes na carta de 10 de junho de 1899, enviada ao seu editor francês Garnier, em que reporta pedido de autorização de tradução de suas obras para o alemão. Machado acata prontamente, abrindo mão dos proventos oriundos dos direitos autorais para ver sua obra traduzida, considerando-se pago pelo benefício de ver sua obra em outro idioma. Diz Machado: “Pour moi, Monsieur, je ne lui exigerait [sic] aucun autre bénéfice, trouvant que c’est déjà un avantage de me faire connaître dans une langue étrangère, qui a son marché si différent et si éloigné du nôtre”3 3 Tradução: “No que me diz respeito, eu não exigirei nenhum outro benefício, pois considero que já é uma vantagem tornar-me conhecido numa língua estrangeira, cujo mercado é tão diferente e afastado do nosso.” (Tradução nossa). (MOUTINHO e ELEUTÉRIO, 2011MOUTINHO, I.; ELEUTÉRIO, S. Correspondência de Machado de Assis: Tomo III, 1890-1900. Rio de Janeiro: ABL, 2011., p. 378). O pedido, infelizmente, é negado pelo editor, com o argumento de que os alemães sempre cobram e que, de sua parte, a autorização dependeria do pagamento de cem francos por obra, o que põe fim ao projeto. A troca de cartas, no entanto, explicita o empenho de Machado em levar a termo o projeto, atestando sua crença de que a tradução seria o melhor meio de se tornar visto no exterior e, por conseguinte, o reconhecimento do papel da obra traduzida no diálogo entre culturas e sistemas literários.

Das traduções

Machado de Assis traduziu somente um dos cantos da Commedia, o Canto XXV do Inferno, que publicou primeiramente no jornal carioca O Globo, em 25 de dezembro de 1874, sendo depois reeditado no semanário A Instrução Pública, em 28 de janeiro de 1875, e finalmente incluído em Ocidentais, como parte do volume Poesias Completas, em 1901 (MANUPELLA, 1966MANUPELLA, G. Dantesca luso-brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri. Coimbra: Coimbra Editora, 1966., p. 49). R. Magalhães Junior sugere que Machado teria traduzido este canto por influência da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, com quem colaborara na Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários e que traduziu a Commedia por completo (MAGAHÃES JR., 2008MAGAHÃES JR., R. Vida de obra de Machado de Assis: Aprendizado. Rio de Janeiro: Record, 2008., p. 187). Por equívoco, não se sabe se de Machado ou do editor, em Ocidentais a tradução do canto, que na obra de Machado é publicada com o título Dante, é referenciada como sendo do Purgatório, e não do Inferno.

A da tradução Canto XXV da Commedia parece ser uma exceção ao silêncio que cerca as traduções de Machado. Quando reeditada em A Instrução Pública, veio introduzida pelo seguinte texto:

Destaco dos meus papéis a seguinte tradução do canto XXV do “Inferno”, tão justamente admirado como um dos melhores quadros saídos da imaginação daquele homem extraordinário que Florença deu ao mundo. Rivarol, que aliás não poupa censuras ao poeta, dá livre expansão ao entusiasmo que lhe causa o canto que se vai ler. “Dante (diz ele) mostra neste quadro aquele magnífico horror que fazia pasmar Tasso. Atrevimentos de estilo, grandeza de desenho, severidade de expressão, tudo aqui se acha. Os três versos com que a descrição termina fazem estremecer de admiração, porquanto já não é italiano, non mortale sonans; é o mens divinor; é o inferno em toda a sua majestade: ‘Cosi vid’io la settima zavorra/Mutar e transmuttare; e que me scusi/La novità, si fior la penaa aborra.’

Comecei esta tradução por curiosidade, e conclui-a creio que por aposta comigo mesmo. Pus todo o escrúpulo em que a reprodução me saísse fiel; mas se as descrições, as imagens e as ideias passaram à nossa língua, não passou, nem poderia passar o estilo do poeta, estilo ao qual dizia Macaulay que os mais nobres modelos da arte grega deveriam ceder o passo. Esse não se traduz: soletra-se ou lê-se, conforme se conhece pouco ou muito a língua original.

Os motivos que levaram Machado a escolher tal canto estão ali: decerto, Machado teve algum tipo de contato com a tradução em prosa que Antoine de Rivarol fez do “Inferno”. Ao citar o tradutor francês, Machado também expõe os motivos que chamaram sua atenção: “atrevimento de estilo, grandeza de desenho, severidade de expressão”. Dizendo que começara “por curiosidade” e em aposta consigo mesmo, é como se nos dissesse que estava testando seus limites criativos. Machado é sincero quanto ao seu empenho e seus objetivos, e modesto quanto aos resultados: considera-se escrupuloso na busca pela fidelidade na reprodução, mas não julga ter conseguido reproduzir o estilo do poeta, que considera intraduzível. Modéstia à parte, sua tradução soa, de fato, mais “machadiana” do que “dantesca”, o que não é nenhum demérito.

Encontramos, ainda, duas outras opiniões a respeito da motivação de Machado: Edoardo Bizzari, no ensaio “Machado de Assis e a Itália”, afirma que o canto escolhido, que estranha a princípio por não ser dos mais famosos da Commedia, será “posteriormente reconhecido pela crítica como um dos mais interessantes e complexos do Poema, devido aos problemas de técnica expressiva e de linguagem poética impostas pela ousadia da figuração” (BIZZARI, 1961BIZZARI, E. Machado de Assis e a Italia. Caderno, São Paulo, 1, 1961., p. 22), o que para ele comprovaria a sensibilidade instintiva de Machado para questões de estética, além de uma leitura atenta da Commedia. Já o crítico francês Jean-Michel Massa apresenta a seguinte explicação para a escolha de Machado:

Ce choix du chant XXV, pour paradoxale qu’une telle affirmation paraisse, n’est-il pas un hommage à la Beauté? Momigliano, dans son célèbre commentaire, evoque Mi-chel-Ange; ce chant a peut-être interessé le poète brésilien par l’étude sculpturale et plastique qu’elle évoquait pour lui4 4 Tradução: “Esta escolha do canto XXV, por paradoxal que tal afirmação pareça, não seria uma homenagem à Beleza? Mimigliano, no seu célebre comentário, evoca Michelangelo; este canto talvez tenha interessado o poeta brasileiro pelo estudo escultural e plástico que evocava para si.” (J.-F. BOTREL; JEAN-MICHEL MASSA; A. POUPET, 1966J.-F. BOTREL; JEAN-MICHEL MASSA; A. POUPET. La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de Assis. Études Luso-Brésiliennes, Paris, XI, 1966., p. 22).

Augusto de Campos, por outro lado, apresenta em Invenção traduções de quatro cantos do Inferno – os cantos I, V, VII e XX-VIII – e dois do Purgatório – os cantos VI e XXVI. Se a respeito das escolhas de Machado somos obrigados a ficar na especulação, Augusto de Campos nos dá razões bem claras para sua escolha: O poeta-tradutor admira em Dante sua capacidade de condensar as complexidades de sua viagem alegórica mantendo uma narrativa fluente, em linguagem simples, direta, de poucas metáforas. Sobre o canto que utilizaremos para nossa comparação, o Canto XXVIII, Augusto de Campos afirma ser este “um dos mais violentos e histriônicos e também um dos mais surpreendentes”, com “humor negro terrível a refletir-se na linguagem nua e crua e até mesmo cruel e rude, que muitos tradutores hesitam em traduzir ao pé da letra”, preferindo eufemismos à linguagem direta e clara de Dante.

Para os fins da análise que se seguirá, procuraremos identificar nos dois cantos escolhidos para análise – Canto XXV, na tradução de Machado e o Canto XXVIII na tradução de Augusto de Campos – elementos que apontem para procedimentos em comum na recriação da obra de Dante em nossa língua. Como são traduções de cantos diferentes, embora muito próximos na linguagem e na temática, cotejaremos ambas com outras traduções da Commedia, feitas por Ítalo Eugênio Mauro, publicada em 1998, e por José Pedro Xavier Pinheiro5 5 Doravante designados, respectivamente, I.E.M e J.P.X.P. contemporâneo e conhecido de Machado.

No exemplo a seguir, Augusto de Campos, mantendo os decassílabos do canto de Dante, consegue também manter um ritmo adequado, acentuando, no exemplo a seguir, ora a 6ª sílaba nos versos 22 a 25, ora a 4ª sílaba, como nos versos 26 e 27, sem perder de vista as terza rimas, com rimas perfeitas e exemplar criatividade ao fazer rimar o verbo seguido de preposição em percebi a com o verbo exibia. Embora com um resultado que o obrigue a iniciar o período em uma estrofe – com o verbo “exibia” – e continuar na seguinte – o que não ocorre no texto de Dante –, o tradutor consegue versos fluentes, que se leem com desenvoltura e fluência dignas do texto italiano, sem procurar disfarçar ou eufemizar as fortes imagens de Dante, como em “que muda em merda tudo o que é tragado”, resultado quase literal do verso italiano, que diz algo como “que transforma em merda o que se devora”. Pode-se dizer até que Campos consegue enriquecer sonoramente o texto de Dante com aliterações bastante sonoras que sequer existem no texto italiano, como em “Entre as pernas, patente, pendurado” e, mais ainda, em “que muda em merda tudo o que é tragado”.

22 Tal um barril com fendas, percebi a 22 Già veggia, per mezzul perdere o lulla, 23 poucos passos alguém esquartejado 23 com’io vidi un, così non si pertugia, 24 do queixo até o ânus; exibia 24 rotto dal mento infin dove si trulla. 25 Entre as pernas, patente, pendurado 25 Tra le gambe pendevan le minugia; 26 o rol das vísceras e o triste trato 26 la corata pareva e ‘l tristo sacco 27 que muda em merda tudo o que é tragado. 27 che merda fa di quel che si trangugia.

Vejamos agora como se saem os demais tradutores ao transpor os mesmos versos que vimos acima:

22 Nem um tonel, se aduela rebenta, 22 Qual tonel, que aduelas perde ao fundo 23 fende-se como alguém que vi, rasgado 23 Estava um pecador, que roto eu via 24 desde a garganta até lá onde se venta, 24 das fauces ao lugar que é menos mundo. 25 co’ as entranhas à vista e, pendurado 25 As entranhas pendiam-lhe; trazia 26 entre as pernas, levando o ascoso saco 26 patentes os pulmões e o saco feio, 27 no qual fezes se torna o que é tragado. 27 onde o alimento de feição varia. I.E.M. J.P.X.P.

De imediato percebemos o quanto ambos suavizam as fortes imagens de Dante: no texto italiano lemos que o poeta vê um homem que fora rasgado da garganta ao ânus como um tonel ou barril que perdera o fundo, e cujas entranhas estão penduradas entre as pernas. O texto italiano é bastante direto, com imagens e vocabulário fortes, que nomeia sem amenizar ou eufemizar.

Em ambas traduções acima, o que era merda se tornou algo menos feio, mais educado, como fezes na tradução de Mauro e ainda mais eufemístico, onde o alimento de feição varia na tradução de Pinheiro. São também desnecessariamente eufemísticos ao traduzir a frase dove se trulla que, no texto de Dante, quer dizer exatamente por onde se peida, que Mauro traduz por “onde se venta”, imagem pouco clara que enfraquece a linguagem forte e direta do poema, enquanto Pinheiro consegue resultado ainda mais fraco com “ao lugar que é menos mundo”. Augusto de Campos, embora não tenha usado o verbo peidar, que traduziria literalmente no caso, deixa bem claro de onde começa e até onde vai o corte: do queixo até o ânus.

Vejamos mais um trecho na tradução de Augusto de Campos, agora os versos 118 a 126, em que Dante vê o poeta provençal Bertran de Born, decapitado e segurando sua própria cabeça, em uma cena icônica da Commedia:

E que esta minha vida, de repente, 118 Io vidi certo, e ancor par ch’io ‘l veggia, Um corpo sem cabeça descortina 119 un busto sanza capo andar sì come Andando em meio a turba, lentamente; 120 andavan li altri de la trista greggia; A cabeça cortada pela crina 121 e ‘l capo tronco tenea per le chiome, Pendia-lhe da mão como lanterna 122 pesol con mano a guisa di lanterna; E nos olhou e disse: “Triste sina.” 123 e quel mirava noi e dicea: «Oh me!». Servia-se a si mesmo de lucerna, 124 Di sé facea a sé stesso lucerna, E eram duas em um e um em duas; 125 ed eran due in uno e uno in due: Pode o impossível O que nos governa. 126 com’esser può, quei sa che sì governa.

Novamente, encontramos no texto de Augusto de Campos uma tradução que preza pela manutenção das principais características do texto dantesco: linguagem direta, de compreensão imediata, com versos em decassílabos heroicos, priorizando o acento na 6ª sílaba, e a hábil manutenção das terza rimas. Se traduzirmos mais literalmente o texto de Dante no primeiro terceto – Certamente vi e parece que vejo ainda / um corpo sem cabeça andar como / andavam os outros daquele triste rebanho – observaremos que Augusto de Campos se afasta, embora pouco, do texto de Dante, mas certamente o faz para conseguir versos que possam ser lidos sem os contorcionismos sintáticos que talvez se fizessem necessários para manter fidelidade maior ao conteúdo.

Comparemos agora com as traduções de Mauro e Pinheiro:

118 De um corpo sem cabeça a caminhada
119 por certo eu vi, e parece-me ainda vê-lo,
120 seguido pela turba malfadada.
121 Tronca, a cabeça que, pelo cabelo
122 agarrada, pendia como lanterna,
123 nos olhava emitindo um mesmo apelo.
124 De si fazia para si mesmo lucerna,
125 e eram dois em um, e um em dois:
126 só pode isso explicar quem nos governa.
I.E.M.
Eu via, e cuido ver na mesma sorte
Apropinquar-se um corpo sem cabeça,
por entre os outros da infeliz coorte.
Caminha, alçando-a pela coma espessa,
Da mão pendente a modo de lanterna:
Gemendo, os olhos seus nos endereça.
Servia ele a si próprio de luzerna,
eram duas em um, e um em duas:
Como ser pode, sabe quem governa
J.P.X.P.

Devemos louvá-los por terem conseguido manter os decassílabos e as terza rimas, mas de imediato encontramos escolhas vocabulares em ambos que não contribuem para refletir a linguagem fluida do texto italiano: Mauro traduz capo tronco – literalmente cabeça cortada/decepada – que não causa estranheza ao leitor italiano, por “Tronca, a cabeça”, escolha que obriga o leitor menos avisado a ir a um dicionário; Pinheiro, ao escolher o verbo Apropinquar-se causa a mesma estranheza, embora esteja uma tradução do século XIX, ao passo que Machado não produz nada parecido. Mauro peca ainda pela entrega de versos que dificilmente se leem com naturalidade, obrigando o leitor a desfazer mentalmente o emaranhado sintático que elabora nos seus tercetos, como em “De um corpo sem cabeça a caminhada / por certo eu vi, e parece-me ainda vê-lo, / seguido pela turba malfadada”. algo que Augusto de Campos exprime em versos de leitura fácil e imediata.

Estas breves observações atestam para a qualidade da tradução-arte de Augusto de Campos: respeito à métrica e rimas, atenção para o acento e ritmo dos versos mas sem esquecer de entregar ao leitor versos que sejam esteticamente equivalentes aos do textofonte, sem mascarar ou atenuar o que possa causar estranheza nem acrescentar nada que desfigure a poética de origem.

Se observarmos agora a tradução de Machado de Assis, encontraremos, primeiramente, métrica impecável: todos os versos escritos em decassílabos, em vários dos quais encontramos alternância binária do acento ora na 4ª e 10ª sílabas, como no verso 2 abaixo, mas bastante comum no decorrer da tradução, ora decassílabos heroicos, acentuados na 6ª sílaba, como nos versos 1 e 3.

1 Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
2 as mãos em figas, dêste modo brada:
3 «Olha, Deus, para ti o estou fazendo!»
1 Al fine de le sue parole il ladro
2 le mani alzò con amendue le fiche,
3 gridando: «Togli, Dio, ch’a te le squadro!».

Poder-se-ia reprovar Machado por não utilizar exclusivamente o decassílabo heroico, de herança italiana. Mas nem mesmo Dante foi regular no seu uso, e na própria Commedia há exemplos de decassílabos nada ortodoxos, com acento na 7ª sílaba, conforme aponta Péricles Eugênio da Silva Ramos em O verso romântico e outros ensaios6 6 Caso do verso “Se vuoi campar desto loco selvaggio”, citado por Ramos que acrescenta haver “muitos outros” na Commedia. In: RAMOS, P. E. S. O verso romântico e outros ensaios, p. 51 .

Nos versos citados acima, é admirável também a naturalidade dos versos de Machado, que conservam a linguagem simples e direta de Dante, algo que fica ainda mais evidente ao compararmos a tradução de Machado com a dos tradutores Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier Pinheiro:

1 No final de sua fala, esse ladrão
2 Ambas as mãos ergueu, fazendo figas
3 E gritou: “Toma, Deus, que pra ti são”.
I.E.M
Assim dizia o roubador e, alçando
Ambas as mãos, que figuravam figas:
“Toma, ó Deus”, exclamou, “o que te mando”.
J.P.X.P.

É difícil concordar que qualquer uma das traduções acima soe tão natural quanto a de Machado. As aliterações de fazendo figas de Mauro ou figuravam figas de Pinheiro não correspondem sonoramente à utilizada por Dante, embora se note a preocupação dos tradutores com o fato. Há, no verso de Dante, uma aliteração com o fonema “m” em mani/amendue, que Machado soube conservar no par “mãos/modo”, cujo som reforça e remete às mãos e ao gesto feito. Além disso, a escolha de “brada” por Machado para compor a rima do segundo verso remete sonoramente ao par ladro/squadro utilizada por Dante, feito que nenhum dos outros tradutores alcançou. Por outro lado, soa pouquíssimo agradável e até cacofônico o trecho “pra ti são” na tradução de Mauro.

No terceto a seguir, em tradução de Machado, Dante interpela o leitor – algo também tipicamente Machadiano – para anunciar o que narrará em seguida: a transfiguração de dois homens em um só ser:

46 Leitor, não maravilha que aceitá-lo, 46 Se tu se’ or, lettore, a creder lento 47 ora te custe o que vai ter presente, 47 ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, 48 pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo. 48 ché io che ’l vidi, a pena il mi consento.

Machado, novamente, produz decassílabos perfeitos em sua tradução, com acento na 6ª sílaba no primeiro verso do terceto acima e na 4ª sílaba nos demais. O mais interessante, no entanto, é notar a fluidez natural dos seus versos, que mesmo o leitor moderno consegue ler e acompanhar sem dificuldade, mostrando compreender bem o que Dante queria dizer com a creder lento, ou seja, ter dificuldade em acreditar.

46 Se acreditar, leitor, tu serás lento, Em crer o que eu contar se fores lento, 47 no que eu direi, não me será surpresa, não há de ser, leitor, para estranhado; 48 pois eu, que o vi, a custo inda o sustento. Quase o que eu vi descrê meu pensamento. I.E.M. J.P.X.P

A tradução de Pinheiro, embora contemporânea à de Machado de Assis, causa estranheza e dificuldades demais para o leitor contemporâneo devido à sintaxe pouco usual, que em nada lembra o texto italiano. A tradução de Mauro, embora menos obscura, ainda fica aquém da naturalidade dos versos de Machado. Curiosamente, nota-se que, ao contrário do que realiza Machado, ambos atribuem o advérbio lento do verso italiano ao leitor, tornando-o um adjetivo e, por conseguinte, de certo modo desqualificando o leitor, o que não é o caso no texto de Dante.

O que foi visto até aqui é reforçado pelo trecho abaixo, em tradução de Machado:

67 Os outros dois bradavam: "Ora pois, 67 Li altri due ’l riguardavano, e ciascuno 68 Agnel, ai triste, que mudança é essa? 68 gridava: «Omè, Agnel, come ti muti! 69 Olha que já não és nem um nem dois!” 69 Vedi che già non se’ né due né uno». 70 Faziam ambas uma só cabeça, 70 Già eran li due capi un divenuti, 71 e na única face um rosto misto, 71 quando n’apparver due figure miste 72 onde eram dois, a aparecer começa. 72 in una faccia, ov’eran due perduti. 73 Fersi le braccia due di quattro liste; 73 Dos quatro braços dois restavam, e isto, 74 le cosce con le gambe e ’l ventre e ’l casso 74 pernas, coxas e o mais ia mudado 75 num tal composto que jamais foi visto. 75 divenner membra che non fuor mai viste.

Como antes, temos ótimos decassílabos com a manutenção das terza rimas sem precisar recorrer a rimas fáceis ou pobres, sem sacrificar a imediata compreensão dos versos e, consequentemente, do que está sendo narrado. Mais notável ainda é o quanto Machado é capaz de distanciar-se do texto italiano sem contudo parecer-lhe infiel, exagerado ou equivocado. A única alteração mais radical de Machado se dá no verso 74, que em Dante diz, em tradução literal, “a coxa com a perna e o ventre/barriga e o peito”, que Machado traduz por “pernas, coxas e o mais ia mudado”, em que ventre/peito somem aparentemente, mas de que a frase “e o mais” dá conta adequadamente.

Ao compararmos com as demais traduções transcritas a seguir, encontraremos rimas muito menos interessantes do que as de Machado: Mauro chega a rimar um com um, e não é difícil encontrar outros exemplos de rimas igualmente pobres, como em restara/ anulara ou mistos/malquistos/vistos. A mesma deficiência é encontrada na tradução de Pinheiro, que rima percebendo/podendo, ou mudado/misturado, e que novam ente peca por utilizar uma linguagem que hoje soa datada, com trechos que podem obrigar o leitor a voltar e ler novamente para tentar entender o que se está dizendo, como em “Um já não é mas dois ser não podendo! ”, que Machado consegue transportar habilmente em “Olha que já não és um nem dois! ”.

Os outros dois olhavam; deles, Os dois, a maravilha percebendo um gritava: “Agnel, como mudou gritavam-lhe: - “Ai! Agnel, quanto tua cara! hás mudado! olha, que já não és nem dois nem Um já não é mas dois ser não um!” podendo!” Das duas cabeças já uma só Numa cabeça as duas se hão restara; tornado; surgiam agora os dois Confundidos estavam dois semblantes mistos semblantes num rosto só, que os outros num rosto em que se haviam anulara. misturado. Fez-se dois braços dos quatro São os dois braços, que eram malquistos; quatro de antes coxas co’ as pernas, barriga co’ Foram coxas e pernas, ventre e o peito, peito transformaram-se em membros Membros, que nunca hão tidos nunca vistos. semelhantes.

Talvez a crítica aos tradutores Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier Pinheiro seja severa demais, dada a envergadura da obra e a inestimável contribuição que deram às letras brasileiras disponibilizando versões completas em nossa língua do texto de Dante. O fato, contudo, é que diante de obras de arte poética como as traduções de Augusto de Campos e Machado é difícil ficar impassível.

Conclusão

O que se viu dos tradutores Machado e Augusto demonstrou o quanto os procedimentos de ambos se equivalem: respeito à métrica, ritmo e rima, como não poderia deixar de ser, mas com elementos que os alçam a outro patamar, uma vez que ambos são capazes de reconfigurar o texto italiano em nossa língua sabendo seguir de perto os passos de Dante quando necessário, e distanciar-se para ser-lhe fiel quando imperativo. Ambos demonstraram ser possível conseguir manter a fluência e a naturalidade dos versos dantescos, bem como os horrores das imagens infernais, ao mesmo tempo em que ofertam ao leitor um texto que envolve e fascina sem perder sua poeticidade, demonstrando que traduções não são nem precisam ser necessariamente inferiores, ou mais falhas, que os textos-fonte.

Não se pretende dizer com isso que Machado de Assis fosse um tradutor transcriador nos moldes dos poetas concretos, mas que o que faz de determinada tradução uma obra de arte, apesar da terminologia criada e proposta por Haroldo de Campos, é atemporal. Machado, assim como Augusto, soube fazer a tradução-arte, ambos demonstrando ter alta sensibilidade poética e habilidade peculiar para recriar versos em nossa língua. É de se lamentar que nenhum nos tenha deixado uma versão completa da Commedia.

  • 1
    Tradução: “Define a maneira como, por um lado, o tradutor vai realizar a sua translation literária, escolher um ‘modo’ de tradução, uma ‘maneira de traduzir’.” (Tradução nossa).
  • 2
    Cf. SOUSA, J. Galante de. “Machado de Assis, censor dramático”. Revista do Livro, Rio de Janeiro, n. 3-4, p. 83-92, dez. 1956a; _____. “Pareceres emitidos por Machado de Assis”. Revista do Livro, Rio de Janeiro, n. 1-2, p. 178-192, jun. 1956b. Tradução: “No que me diz respeito, eu não exigirei nenhum outro benefício, pois considero que já é uma vantagem tornar-me conhecido numa língua estrangeira, cujo mercado é tão diferente e afastado do nosso.” (Tradução nossa).
  • 3
    Tradução: “No que me diz respeito, eu não exigirei nenhum outro benefício, pois considero que já é uma vantagem tornar-me conhecido numa língua estrangeira, cujo mercado é tão diferente e afastado do nosso.” (Tradução nossa).
  • 4
    Tradução: “Esta escolha do canto XXV, por paradoxal que tal afirmação pareça, não seria uma homenagem à Beleza? Mimigliano, no seu célebre comentário, evoca Michelangelo; este canto talvez tenha interessado o poeta brasileiro pelo estudo escultural e plástico que evocava para si.”
  • 5
    Doravante designados, respectivamente, I.E.M e J.P.X.P.
  • 6
    Caso do verso “Se vuoi campar desto loco selvaggio”, citado por Ramos que acrescenta haver “muitos outros” na Commedia. In: RAMOS, P. E. S. O verso romântico e outros ensaios, p. 51
  • Publicado em setembro de 2017

Referências

  • ALIGHIERI, D. A divina comédia Tradução de Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998.
  • ALIGHIERI, D. A divina comédia Tradução de José Pinheiro Xavier. São Paulo: Centaur, 2012.
  • ASSIS, J. M. M. de. A poesia completa: edição anotada: recepção crítica. São Paulo: Edusp, 2009.
  • BERMAN, A. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Éditions Gallimard, 1995.
  • BIZZARI, E. Machado de Assis e a Italia. Caderno, São Paulo, 1, 1961.
  • CAMPOS, A. de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003.
  • CAMPOS, H. de. A arte no horizonte do provável São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
  • CAMPOS, H. de. Transluciferação Mefistofáustica. In: CAMPOS, H. de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe São Paulo: Perspectiva, 1981.
  • CAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In: CAMPOS, H. de. Metalinguagem e outras metas São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
  • J.-F. BOTREL; JEAN-MICHEL MASSA; A. POUPET. La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de Assis. Études Luso-Brésiliennes, Paris, XI, 1966.
  • MAGAHÃES JR., R. Vida de obra de Machado de Assis: Aprendizado. Rio de Janeiro: Record, 2008.
  • MANUPELLA, G. Dantesca luso-brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri. Coimbra: Coimbra Editora, 1966.
  • MOUTINHO, I.; ELEUTÉRIO, S. Correspondência de Machado de Assis: Tomo III, 1890-1900. Rio de Janeiro: ABL, 2011.
  • RAMOS, P. E. da S. O verso romântico e outros ensaios São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1959.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2017
  • Aceito
    27 Maio 2017
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