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Metodologia Histórico-Crítica em Pesquisas Educacionais: 1.asaproximações

RESUMO

A pedagogia histórico-crítica (PHC) elaborada por Dermeval Saviani é uma perspectiva educacional importante que considera história, sociedade e poder como fatores determinantes, permitindo análises do campo educativo, em especial, as que emergem das políticas públicas. O objetivo deste artigo é apresentá-la como metodologia para investigações na área educacional. Trata-se de um ensaio analítico, de corte bibliográfico, das obras de Saviani (2021a; 2021c), que fornecem também o aporte teórico-epistemológico da investigação. Em síntese, a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) apresenta pressupostos que além da teoria são considerados necessários na consolidação de uma metodologia de pesquisa para análise do campo educacional, permitindo perceber contradições e relações de poder entre grupos nas políticas educacionais.

Palavras-chave
Pedagogia Histórico-Crítica; Saviani; Metodologia; Políticas Educacionais

ABSTRACT

The Historical-Critical Pedagogy (HCP), developed by Dermeval Saviani, is an important educational perspective that considers history, society, and power as determining factors, allowing the analysis of the educational field, especially those resulting from public policies. The aim of this article is to present it as a methodology for research in the field of education. This is an analytical, bibliographical essay on the works of Saviani (2021a; 2021c), which also provides theoretical and epistemological support for the investigation. In summary, Historical-Critical Pedagogy (HCP) presents assumptions that, in addition to theory, are considered necessary for the consolidation of a research methodology for analyzing the educational field, making it possible to perceive contradictions and power relations between groups in educational policies.

Keywords
Historical-Critical Pedagogy; Saviani; Methodology; Educational Policy

Introdução

O campo da pesquisa educacional se apresenta para pesquisadores do âmbito educacional como um desafio. São inúmeros os congressos, periódicos, grupos de pesquisa/estudo e programas de pós-graduação stricto sensu que buscam conferir consistência metodológica às investigações educacionais. Como pontuam Dalbosco, Dela Santa e Baroni (2018)DALBOSCO, Cláudio Almir; DELA SANTA, Fernando; BARONI, Vivian. A hermenêutica enquanto diálogo vivo: contribuições para o campo da pesquisa educacional. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 145-153, 2018., na mesma medida que a educação possui uma realidade institucional, administrativa e organizacional bem definida, não possui uma existência epistemológica específica. O problema denunciado pelos autores encontra eco nos registros acadêmicos que pontuam as dificuldades de encontrar uma natureza específica para os estudos educacionais e as bases de ordem epistemológicas que estejam interligadas com a proposta metodológica.

Considera-se que a pesquisa educacional, ao tratar de um objeto de estudo amplo, que parte de diversas abordagens e de áreas distintas, configura-se como um espaço polissêmico, flutuante e diverso. Nas palavras de Charlot (2006, p. 9)CHARLOT, Bernard. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, ANPEd, v. 11, n. 31, 2006., a pesquisa educacional acaba se tornando um campo epistemologicamente fraco “[…] mal definido, com fronteiras tênues e de conceitos fluídos”, que absorve uma série de discursos pouco científicos e com fragilidades acadêmicas. Nesse sentido, incorpora-se uma prática de “tudo pode em pesquisas educacionais”. Na mesma esteira, Gatti (2012)GATTI, Bernardete A. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, UFRGS, v. 28, n. 1, p. 13‑34, 2012. afirma que a pesquisa educacional se caracteriza como uma geleia geral, por decorrência da utilização de termos pouco precisos e com rigor epistemológico questionável. As fragilidades metodológicas têm levado à adoção de um ideal cientificista decorrente dos métodos das ciências exatas que, ao instrumentalizar o objeto de pesquisa, relativizam a fundamentação teórica/epistemológica e enfraquecem as pretensões de validades do conhecimento educacional. Tal condição resgata o positivismo para a educação que, para Dalbosco, Dela Santa e Baroni (2018)DALBOSCO, Cláudio Almir; DELA SANTA, Fernando; BARONI, Vivian. A hermenêutica enquanto diálogo vivo: contribuições para o campo da pesquisa educacional. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 145-153, 2018., acaba reduzindo as pesquisas educacionais a um procedimento metódico-experimental que restringe o estudo do fenômeno educacional ao que é mensurável, ao fortalecer a utopia positivista de ciência.

Essa orientação colabora para pesquisas que restringem a compreensão da complexidade e as dinâmicas próprias da área que, em última instância, impõem o empírico sobre o teórico/epistemológico. Essa configuração tem levado à realização de pesquisas com pouca ou nenhuma densidade teórica e com métodos de investigação que não respondem pela complexidade que envolve a educação, sobretudo, as políticas educacionais.

Uma das concepções pedagógicas que podem contribuir para ampliar o arcabouço metodológico das pesquisas em educação é a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), desenvolvida pelo professor Dermeval Saviani. A PHC se propõe a superar as desigualdades por meio da compreensão da educação como um fenômeno social inserido em um contexto histórico. Ela tem como guia a busca pela emancipação humana, a partir da utilização das categorias do marxismo, que colocam a práxis no centro do processo educativo, unindo teoria e prática para construir uma educação revolucionária. Essa abordagem pedagógica é fundamental para a educação brasileira, que ainda sofre com a herança da desigualdade e da exclusão social.

Nesse sentido, a PHC pode fornecer o instrumental para a análise da educação e da sociedade, permitindo a compreensão das relações entre cultura e educação, desigualdade social e educação, estrutura e práticas educacionais, e o papel da escola na sociedade. Entendemos que a PHC pode contribuir com elementos para a elaboração de uma metodologia investigativa essencial para os pesquisadores em políticas educacionais e para todos os profissionais da educação que buscam desenvolver pesquisas com coerência metodológica e rigor científico.

Nesse panorama, emerge o problema investigativo formulado a partir da pretensão de apresentar a PHC como um diálogo necessário para o campo educacional e essencial à fundamentação metodológica das pesquisas no campo das políticas educacionais. O problema investigativo caracteriza-se pela pergunta: qual a contribuição da PHC para a pesquisa educacional? O objetivo consiste em apresentar que a PHC, por meio dos seus conceitos, torna-se uma metodologia para pesquisa e investigação em políticas educacionais. De tom ensaístico, a pesquisa caracteriza-se como exploratória, de corte bibliográfico e cunho analítico. O objeto de estudo são as obras de Saviani (2021bSAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. Campinas: Autores Associados, 2021b.; 2021c)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c..

O itinerário do ensaio é organizado em duas partes. Na primeira parte é abordada a formulação da pedagogia histórico-crítica. A intencionalidade é apresentar as bases teóricas e conceituais para a formulação da metodologia fundamentada na PHC. Destaca-se a ênfase nos conceitos elaborados por Marx, Vásquez e Gramsci, que alicerçam a PHC. Na segunda parte, são abordadas as categorias de historicizar, materialidade/concreticidade, teoria e prática, radical, rigorosa e de conjunto. As categorias decorrem das obras Pedagogia Histórico-Crítica (Saviani, 2021cSAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c.) e Educação: do senso comum à consciência filosófica (Saviani, 2004SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores Associados, 2004.).

Portanto, por meio da investigação, é possível compreendermos que a PHC, enquanto diálogo necessário, apresenta-se como uma importante condição para sustentar metodologicamente as pesquisas no campo educacional, sobretudo, pelo fato de responder à complexidade e às dinâmicas da educação, ao analisar os fatos a partir da historicidade e concreticidade dos fenômenos. A metodologia histórico-crítica fornece subsídio às pesquisas educacionais que permitem ao investigador fugir do instrumentalismo objetivista dos dados empíricos e/ou da praticidade, ao reconhecer a materialidade, a historicidade e a intencionalidade da produção do conhecimento.

A Elaboração de uma Concepção Pedagógica: contexto histórico e teórico da PHC

Dermeval Saviani nasceu em Santo Antônio de Posse, São Paulo, em 25 de dezembro de 1943, sendo registrado posteriormente, em 3 de fevereiro de 1944. Em 1948, sua família mudou-se para São Paulo, onde ele frequentou a escola primária e, posteriormente, o curso secundário em escolas seminaristas. Saviani iniciou sua formação filosófica em 1962 e graduou-se em filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1966. Em 1967, começou a ensinar Filosofia e Educação na PUC-SP e em outras escolas. Doutorou-se em Filosofia da Educação na PUC-SP em 1971 e começou a trabalhar como professor em programas de pós-graduação em Filosofia da Educação. Em 1986, obteve o título de livre-docente em História da Educação e, em 1990, foi aprovado em um concurso público de professor adjunto de História da Educação na Universidade Estadual de Campinas. Em 1993, tornou-se professor titular de História da Educação, na mesma universidade. No início dos anos 1980, participou da criação da Associação Nacional de Educação e da publicação da Revista da Ande. Saviani também foi membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e coordenador do Comitê de Educação no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Gama; Santos Júnior, 2014GAMA, Carolina Nozella; SANTOS JÚNIOR, Cláudio de Lira. A produção de Dermeval Saviani: primeiras aproximações aos artigos que tratam da teoria pedagógica. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v. 7, n. 1, p. 110-120, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/10331. Acesso em: 10 fev. 2023.
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).

Saviani começou a ensinar aos 22 anos, durante a época do golpe civil-militar no Brasil. Durante sua carreira, ele presenciou a mudança na abordagem da Igreja Católica sobre o desenvolvimento da América Latina, passando de um enfoque em desenvolvimento para um enfoque em libertação. Na Universidade Católica, ele viu a difusão das ideias marxistas e a criação de programas de pós-graduação em Filosofia da Educação. Desde então, Saviani tem se dedicado à educação brasileira, buscando formar cidadãos críticos e reflexivos, capazes de questionar a ordem social vigente, refletindo assim seu compromisso com a luta dos subalternos e contra a repressão militar (Batista; Lima, 2013BATISTA, Eraldo Leme; LIMA, Marcos Roberto. Dermeval Saviani – uma trajetória de luta e compromisso com a educação transformadora. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v. 5, n. 2, p. 203-215, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/9711. Acesso em: 10 fev. 2023.
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).

Como apontam Batista e Lima (2013)BATISTA, Eraldo Leme; LIMA, Marcos Roberto. Dermeval Saviani – uma trajetória de luta e compromisso com a educação transformadora. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v. 5, n. 2, p. 203-215, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/9711. Acesso em: 10 fev. 2023.
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, a produção teórica de Saviani surge no contexto da ditadura militar no Brasil, que foi marcada por repressão, perseguição e assassinato de lideranças políticas e sociais. O governo militar procurou reprimir e cooptar a população por meio de estratégias, como a criação de sindicatos fantasmas e mudanças na estrutura sindical mediante decretos-leis. No entanto, essa estratégia gerou contradições e o movimento sindical crítico começou a se fortalecer a partir da década de 1970, com a eclosão de greves importantes, como a greve dos metalúrgicos do ABC. A repressão militar também não conseguiu eliminar totalmente a oposição e somente aumentou a contradição, fazendo com que setores da população se incorporassem à resistência. A obra de Saviani foi desenvolvida em um contexto histórico de resistência contra o movimento reacionário instaurado na educação no Brasil.

Segundo Saviani (2021b)SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. Campinas: Autores Associados, 2021b., a PHC surgiu como resposta à necessidade de encontrar alternativa à pedagogia dominante no final da década de 1970. Ocorreu no contexto de desenvolvimento de análises críticas da educação e correspondia a uma necessidade histórica, especialmente no Brasil, onde era necessário criticar a pedagogia oficial e evidenciar seu caráter reprodutor. Não estava restrito apenas à situação brasileira, mas era um movimento global.

A partir da crítica ao movimento escolanovista1 1 O movimento Escolanovista surgiu no Brasil na década de 1920 e teve como objetivo modernizar a educação, buscando uma abordagem mais científica e centrada no aluno. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado em 1932, defendia a criação de uma escola pública, gratuita, mista, laica e obrigatória, que garantisse uma educação comum e iguais oportunidades sociais, inspirado nas ideias de John Dewey. No entanto, o movimento foi criticado por desconsiderar aspectos culturais e morais da formação humana e por ter ideias consideradas elitistas e distantes da realidade da maioria da população. Para saber mais: INEP (1944) e Saviani (2021c). , Saviani percebe a insuficiência dessa corrente pedagógica, que, em sua perspectiva, não era revolucionária o bastante e desconsiderava as desigualdades sociais e políticas que afetavam a educação. Inicia então o processo de pensar e elaborar uma abordagem pedagógica que considere esses elementos, sendo mais crítica e dialogal, e que valorize a participação dos alunos em busca da superação das desigualdades sociais. Ele publicou seu primeiro artigo sobre a proposta em 1982 e lançou o livro Escola e Democracia em 1983. Em 1991, é publicado o livro Pedagogia Histórico-Crítica Primeiras Aproximações, que busca aprofundar as discussões em torno da PHC.

A PHC é uma teoria crítica não reprodutivista2 2 Saviani classifica as teorias educacionais em dois grupos: as não críticas e as crítico-reprodutivistas. O primeiro grupo compreende a Pedagogia Tradicional, Nova e Tecnicista, que entendem a educação como um instrumento de equalização social, ou seja, para superar a marginalidade. Já o segundo grupo é formado pelas teorias crítico-reprodutivistas, que compreendem a educação como um instrumento de discriminação social e de marginalização. Saviani considera este segundo grupo como crítico, pois busca entender a educação a partir de seus condicionantes objetivos, ou seja, da estrutura socioeconômica que determina a forma como a educação se manifesta. Essa análise crítica da educação é importante para a construção de uma pedagogia que busque superar as desigualdades educacionais e sociais, mas não é suficiente. Por isso a necessidade de uma nova teoria crítico-não reprodutivista, a exemplo da PHC (Saviani, 2021b). , que busca considerar os interesses dos subalternos na educação e enfrentar o pensamento reacionário. Saviani encontrou dificuldade em encontrar uma denominação adequada para sua concepção pedagógica, que tinha uma base teórica crítica tanto ao escolanovismo quanto à teoria crítico-reprodutivista. Segundo ele (Saviani, 2021cSAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c.), a denominação veio como resposta a uma demanda dos alunos da PUC-SP, que cobravam uma disciplina que aprofundasse o estudo da pedagogia revolucionária, mas esse nome, pedagogia revolucionária, era problemático. Assim, foi necessário encontrar uma denominação mais adequada. O autor apresenta uma significativa síntese de sua abordagem:

[…] o que eu quero traduzir com a expressão pedagogia histórico-crítica é o empenho em compreender a questão educacional com base no desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a concepção pressuposta nesta visão da pedagogia histórico-crítica é o materialismo histórico, ou seja, a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana

(Saviani, 2021cSAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c., p. 76).

A expressão histórico-crítica reflete uma teoria pedagógica que procura compreender a pedagogia a partir de sua inserção no processo histórico e social. Ela se contrapõe às teorias crítico-reprodutivistas que não consideravam o contexto histórico e social na análise da pedagogia. A expressão histórico-crítica enfatiza a importância de compreender o movimento histórico e as transformações sociais para compreender a pedagogia e sua relação com a sociedade. Ao mesmo tempo, ela mantém a crítica, mas, diferentemente da teoria crítico-reprodutivista, não se limita a uma abordagem meramente reprodutiva, porém busca compreender a história e sua dinâmica para entender a pedagogia.

Saviani procura elaborar uma teoria da educação baseada na realidade brasileira e voltada aos interesses da classe trabalhadora, usando o materialismo histórico-dialético3 3 Karl Marx revolucionou o pensamento filosófico ao fundar o marxismo, que pode ser dividido em quatro momentos: o primeiro com as obras de Marx, o segundo com as contribuições de Marx e Engels, o terceiro com a contribuição de Lenin e o quarto, momento contemporâneo, com várias tendências. O marxismo é composto pelo materialismo dialético, materialismo histórico e economia política e se inclui como uma tendência dentro do materialismo filosófico. O pensamento de Marx tem como base a visão dialética hegeliana com um matiz materialista de mundo, e suas fontes diretas estão ligadas ao idealismo clássico alemão, socialismo utópico e economia política inglesa (Triviños, 1992). , método inaugurado por Marx, como fundamento, segundo o autor:

A fundamentação teórica da pedagogia histórico-crítica nos aspectos filosóficos, históricos, econômicos e político-sociais propõe-se explicitamente a seguir as trilhas abertas pelas agudas investigações desenvolvidas por Marx sobre as condições históricas de produção da existência humana que resultaram na forma da sociedade atual dominada pelo capitalismo. É, pois, no espírito de suas investigações que essa proposta pedagógica se inspira

(Saviani, 2021aSAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2021a., p. 422).

O materialismo histórico-dialético “[…] trata da ciência filosófica do marxismo que estuda as leis sociológicas que caracterizam a vida da sociedade, de sua evolução histórica e da prática social dos homens no desenvolvimento da humanidade” (Triviños, 1992TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Editora Atlas, 1992., p. 51). O materialismo histórico-dialético representou uma mudança radical no entendimento dos fenômenos sociais que, até então, explicavam-se basicamente por meio do idealismo. Sobre o marxismo, Triviños (1992)TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Editora Atlas, 1992. aponta que essa abordagem busca solucionar os problemas sociais por meio da transformação social, como apresentado por Peña, em sua obra O que é o Marxismo. Para o autor:

O marxismo é uma concepção geral e total do homem e universo. Em função dessa concepção de mundo, é uma crítica da sociedade em que nasceu o marxismo, isto é, uma crítica a sociedade capitalista. Em função dessa crítica, e como resultado dessa crítica da sociedade capitalista, o marxismo é uma política, é um programa de ação para a transformação da sociedade, para a criação de uma nova sociedade, isto é, para a criação de um novo tipo de relação entre os homens

(Peña, 2015PEÑA, Milcíades. O que é marxismo? Notas de iniciação marxista. São Paulo: Sundermann, 2015., p. 18).

Para Löwy (1991)LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortex Editora, 1991., não há uma maneira única de definir o marxismo, ele conclui que pode ser chamado de materialismo histórico, materialismo dialético, filosofia da práxis, todas essas nomenclaturas exibem o mesmo objeto, mas atravessado por ângulos diferentes, daí uma das grandes riquezas desse método. Karel Kosík (1969, p. 17)KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969., em sua obra Dialética do Concreto, apresenta o marxismo como “[…] um esforço para ler, por trás da pseudo imediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra”.

A contribuição do método marxista para a educação é apresentada por Frigotto (2001)FRIGOTTO, Gaudêncio. Enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2001., que destaca que, na perspectiva materialista histórica, o método está vinculado a uma concepção de realidade, de mundo e de vida. Nesse sentido, o posicionamento do pesquisador antecede o método. Este último se caracteriza como uma espécie de mediação no processo de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e a transformação dos fenômenos sociais.

Masson e Mainardes (2013)MASSON, Gisele; MAINARDES, Jefferson. Las contribuciones de la perspectiva marxista para la investigación sobre políticas educativas. In: TELLO, César. Epistemologías de la Política Educativa: posicionamientos, perspectivas y enfoques. Campinas: Mercado de Letras, 2013., ao apontarem a contribuição do método de Marx para o campo educacional, concluem que a reprodução do concreto pela via do pensamento, possível pelo materialismo histórico-dialético, significa que é possível chegar a um conhecimento verdadeiro porque explica a realidade como ela é, em determinado contexto histórico, econômico, político, social e cultural, mas é efêmero, provisório.

Compreendendo a influência que o marxismo tem na obra de Saviani, podemos concluir que ele busca elaborar uma teoria da educação que esteja fundamentada na realidade brasileira e voltada aos interesses da classe trabalhadora, utilizando o materialismo histórico-dialético como base. Essa abordagem permite uma análise crítica da sociedade capitalista e busca a transformação social como meio para solucionar os problemas sociais. A utilização do materialismo histórico-dialético como base para a teoria da educação de Saviani contribui para a construção de uma pedagogia (que o próprio Saviani tendeu a chamar de revolucionária), que busca a superação das desigualdades educacionais e sociais.

Algumas categorias do marxismo são fundamentais para entendermos como se constitui teoricamente a PHC e como podemos vislumbrar essa abordagem com fins metodológicos. Como apontado por Saviani (2021c)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c., Marx não trabalhou de forma elaborada as questões pedagógicas, disso a necessidade de buscar outros intelectuais que desenvolveram o pensamento marxiano nessa direção, como Vásquez e Gramsci, entre outros. Algumas categorias centrais apontadas por Saviani são: dialética, contradição, mediação e práxis.

Em relação à dialética, em sua obra Saviani (2021c, p. 119)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c. aponta:

Quando se pensam os fundamentos teóricos, observa-se que, de um lado, está a questão da dialética, essa relação do movimento e das transformações; e, de outro, que não se trata de uma dialética idealista, uma dialética entre os conceitos, mas de uma dialética do movimento real.

No pensamento marxista, a concepção de dialética é de uma ciência conectada à realidade e enriquecida com a prática social da humanidade. Por meio da abordagem dialética da realidade, o materialismo dialético demonstra como a matéria se transforma e como ocorre a transição das formas inferiores para as superiores (Triviños, 1992TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Editora Atlas, 1992.). Marx estabelece a diferença entre o método dialético usado por ele e o elaborado por Hegel:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente o seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem

(Marx, 2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 90).

O objetivo desse movimento dialético é a busca de um método cientificamente correto. Para Marx, é insuficiente que a dialética se baseie no real como garantia de objetividade, pois se perde o sentido. A concretude é da ordem teórica e é o trabalho teórico que constrói a concretude do real, substituindo a abstração vazia por múltiplas determinações teóricas, como aponta Marx (2011, p. 54)MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. São Paulo: Boitempo, 2011.:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento.

A dialética busca entender a realidade em sua totalidade, captando tanto sua atualidade quanto sua potencialidade. Trata-se de um método de conhecimento concreto, que não reduz as coisas a entidades abstratas e vazias, mas as considera em sua complexidade, com todas as suas características e em constante movimento. Por meio da dialética, é possível estudar e desvendar as contradições existentes em qualquer unidade e entender a unidade a que elas tendem. Em síntese, a dialética permite uma compreensão mais aprofundada e completa da realidade (Peña, 2015PEÑA, Milcíades. O que é marxismo? Notas de iniciação marxista. São Paulo: Sundermann, 2015.).

A contradição é derivada do movimento dialético, há uma luta permanente entre os contrários que estão unidos e que, por sua vez, leva à solução da contradição e à mudança de estado qualitativo. Existem diferentes tipos de contradições, como as antagônicas na sociedade, em que os meios de produção são privados, e as não antagônicas na sociedade, em que os meios de produção são de propriedade social. As contradições podem ser internas ou externas, básicas ou secundárias, e são reconhecidas como forma universal do ser (Triviños, 1992TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Editora Atlas, 1992.). Segundo Lenin (1979, p. 20)LENIN, Vladimir Ilyich. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. São Paulo: Global Editora, 1979., a dialética trata do que chamamos de teoria do conhecimento, que “[…] deve igualmente considerar seu objeto do ponto de vista histórico, estudando e generalizando a origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da ignorância ao conhecimento”.

Nesse sentido, a dialética expressa no materialismo histórico é fundamental para a PHC, que busca uma educação voltada aos interesses da classe trabalhadora. A partir desse entendimento, a PHC busca compreender a educação como um fenômeno social que está inserido em um contexto histórico específico e que possui relações dialéticas com outros elementos da sociedade, como a economia, a política e a cultura. Dessa forma, ao se aplicar o materialismo dialético à educação, é possível compreendê-la como um reflexo das relações sociais em que está inserida, como uma instituição que reproduz e reforça as desigualdades e contradições presentes na sociedade, mas que também permite a possibilidade de superação dessa condição.

A categoria da mediação é fundamentada na filosofia de Hegel, sendo incorporada mais tarde por Marx, e é essencialmente dialética, sendo compreendida como um processo baseado nos conceitos de movimento e negação. Ela não pode ser vista como um produto, mas como um processo organizado a partir da negação recíproca entre os elementos da relação. A mediação é essencial para o processo de conhecimento, pois é ela que permite que a reflexão recíproca aconteça entre os elementos em relação, possibilitando a superação da contradição e a síntese de uma nova compreensão (Almeida; Oliveira; Arnoni, 2007ALMEIDA, José Luís Vieira; OLIVEIRA, Edilson Moreira; ARNONI, Maria Eliza Brefere. Mediação dialética na educação escolar: teoria e prática. São Paulo: Edições Loyola, 2007.).

Saviani (2021b)SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. Campinas: Autores Associados, 2021b. propõe uma pedagogia que inclua a categoria da mediação, que é vista como uma prática social global que se manifesta em três momentos: Problematização, Instrumentação e Catarse. Isso corresponde ao processo de conhecimento que ocorre pela mediação da análise, passando do empírico ao concreto pela mediação do abstrato. A prática é o ponto de partida e o ponto de chegada da educação nessa abordagem.

Disso decorre a concepção de práxis, que no pensamento de Marx trata da:

[…] unidade inseparável entre teoria e prática. O marxismo não crê que estas sejam coisas distintas e complementares entre si. O marxismo nega que a teoria seja um complemento da prática, ou vice-versa. Para o marxismo, a teoria e a prática não são mais que momentos de um mesmo processo que é a práxis, isto é, a ação do homem

(Peña, 2015PEÑA, Milcíades. O que é marxismo? Notas de iniciação marxista. São Paulo: Sundermann, 2015., p. 63).

A práxis é entendida no pensamento de Saviani a partir da compreensão de Adolfo Sánchez Vázquez4 4 Adolfo Sánchez Vázquez foi um importante filósofo e escritor espanhol que se exilou no México após a Guerra Civil Espanhola e se tornou um pensador de grande importância na filosofia marxista latino-americana. Ele escreveu diversas obras sobre a teoria e prática marxista, bem como sobre a filosofia em geral, e defendia uma visão crítica do marxismo, buscando superar algumas das limitações teóricas e práticas do marxismo ortodoxo. Vázquez enfatizava a importância da teoria da práxis de Marx e a necessidade de uma ética revolucionária para guiar as ações dos militantes. Sua obra teve grande influência na América Latina, especialmente no México e na Argentina, onde lecionou na Universidade de Buenos Aires (Ferreira, 2019). (2007) como a síntese entre teoria e prática. Enquanto o idealismo estabelece o primado da teoria sobre a prática e o pragmatismo estabelece o primado da prática, a filosofia da práxis, tal como o marxismo, busca unificar teoria e prática na práxis. A prática é originante, tendo primado sobre a teoria, e a teoria é derivada, sendo iluminada pela prática (Saviani, 2021cSAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c.).

Na concepção de Vázquez (2007)VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007., a práxis é abrangente e não se restringe a um setor específico, inclui arte, criatividade teórica, transformação revolucionária da sociedade, organização e luta de classes, que são considerados como exemplos de práxis criadoras, pois representam a união entre subjetividade e objetividade, pensamento e realidade, reflexão e ação em relação aos processos históricos, únicos e irrepetíveis.

O intelectual italiano Antonio Gramsci5 5 Antonio Gramsci (1891-1937) foi um teórico marxista e político italiano, fundador do Partido Comunista Italiano. Sua contribuição à teoria marxista destaca-se por suas análises sobre a cultura e a hegemonia política na luta de classes. Gramsci foi preso pelo regime fascista de Mussolini em 1926 e passou grande parte de sua vida adulta na prisão. Suas ideias sobre cultura e luta de classes continuam a ser objeto de estudo e debate atualmente. Para saber mais recomendamos a leitura de Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário (Maestri, 2020). aborda a práxis como filosofia. Para o autor, a filosofia da práxis é a teoria que está empenhada em articular a teoria e a prática, unificando-as na práxis. Ela é um movimento prioritariamente prático, mas que se fundamenta teoricamente, alimentando-se da teoria para esclarecer o sentido e dar direção à prática. A filosofia da práxis tem papel fundamental no processo de luta política, pois exige clareza sobre os problemas filosóficos, jurídicos, religiosos e morais e torna necessária uma luta de hegemonias políticas nos campos da ética e da política, até se atingir uma elaboração superior da própria concepção do real: a consciência de fazer parte de determinada força hegemônica, a consciência política, é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam (Baptista, 2010BAPTISTA, Maria das Graças de Almeida. Práxis e educação em Gramsci. Filosofia e Educação. Revista Digital do Paideia, Ribeirão Preto, v. 2, n. 1, 2010.).

O conceito de práxis, portanto, é basilar para a PHC, pois fornece uma compreensão da educação como uma prática social transformadora. A práxis é entendida como uma ação guiada por uma reflexão crítica e por uma compreensão da realidade social, implica a reflexão crítica sobre a realidade social e a busca de alternativas para a superação das desigualdades sociais e educacionais.

A partir da perspectiva educacional da PHC, é possível compreender a educação como um fenômeno social que está inserido em um contexto histórico específico e que possui relações dialéticas com outros elementos da sociedade. Nesse sentido, a PHC busca compreender a educação como uma prática social fundamental, que procura pela superação das desigualdades educacionais e sociais, sendo, portanto, uma abordagem pedagógica revolucionária que visa à emancipação humana. Com a utilização das categorias do marxismo, Saviani elaborou uma pedagogia crítica que coloca a práxis no centro do processo educativo, unificando teoria e prática para construir uma educação que seja verdadeiramente transformadora.

A Pedagogia Histórico-Crítica como Metodologia para Pesquisa em Políticas Educacionais

O trato sobre pesquisas no campo educacional e, mais precisamente, as investigações sobre políticas educacionais não pode perder de vista os seus compromissos com a análise minuciosa do problema de investigação a partir da consistência metodológica. No campo das políticas educacionais, Shiroma, Campos e Garcia (2005)SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima; GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de documentos. Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 427-446, 2005., no provocativo e elucidativo artigo intitulado Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para a análise de documentos6 6 No artigo, Shiroma, Campos e Garcia (2005) apresentam detalhadamente a metodologia da análise do discurso como condição para as pesquisas em políticas educacionais, sobretudo, para as investigações que envolvem textos de políticas educacionais. , apontam para a necessidade de que investigadores educacionais, ao sinalizarem seus aportes epistemológicos e metodológicos, sejam capazes de analisar as políticas educacionais e seus documentos por meio de dois movimentos, a saber, o que dizem explicitamente, mas também perceber e captar o que não dizem, isto é, as intencionalidades subjetivas, ideológicas e discursivas que fogem da aparência, mas que influenciam a estrutura organizacional da educação.

Nesse contexto, a PHC insere-se como fundamento metodológico para o estudo da educação. A metodologia histórico-crítica, conforme Saviani (2021b)SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. Campinas: Autores Associados, 2021b., consolida-se como uma condição de superação das teorias crítico-produtivistas. Para Corsetti (2010)CORSETTI, Berenice. A metodologia histórico-crítica e a reflexão sobre a questão do rendimento escolar no Brasil. In: MARTINS, Ângela Maria; WERLE, Flávia Obino (Org.). Políticas Educacionais: elementos para reflexão. Porto Alegre: Redes Editora, 2010., Saviani, ao analisar essas teorias, embora tenha reconhecido o poder de crítica ao aparelho educacional, fazia-o de forma em que eram eliminadas as saídas do campo pedagógico. Um dos principais problemas está no fato que tais teorias não apresentavam alternativa, pois não ofereciam uma perspectiva pedagógica para a prática educativa.

[…] o problema das teorias crítico-reprodutivistas era a falta de enraizamento histórico, isto é, a apreensão do movimento histórico que se desenvolve dialeticamente em suas contradições. A questão em causa era exatamente dar conta desse movimento e ver como a pedagogia se inseria no processo da sociedade e de suas transformações. Então, a expressão histórico-crítica, de certa forma, contrapunha-se à crítico-reprodutivista. É crítica, como está, mas, diferentemente dela, não é reprodutiva, mas enraizada na história

(Saviani, 2021cSAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c., p. 119).

Os apontamentos dão o tom e o desenho da metodologia histórico-crítica, ao apresentarem os conceitos da dialética, da contradição, da materialidade e da historicidade. Para Corsetti (2010, p. 89)CORSETTI, Berenice. A metodologia histórico-crítica e a reflexão sobre a questão do rendimento escolar no Brasil. In: MARTINS, Ângela Maria; WERLE, Flávia Obino (Org.). Políticas Educacionais: elementos para reflexão. Porto Alegre: Redes Editora, 2010., “[…] trata-se de uma dialética histórica expressa no materialismo histórico”, que é a concepção que procura compreender e explicar os processos por meio da forma como são produzidas as relações sociais e suas condições de existência. Tal condição, no entender de Corsetti (2010)CORSETTI, Berenice. A metodologia histórico-crítica e a reflexão sobre a questão do rendimento escolar no Brasil. In: MARTINS, Ângela Maria; WERLE, Flávia Obino (Org.). Políticas Educacionais: elementos para reflexão. Porto Alegre: Redes Editora, 2010., permite compreender as questões relativas à política educacional a partir do desenvolvimento histórico objetivo. Isso significa compreender a educação e, mais propriamente, as políticas educacionais, no contexto da materialidade das relações sociais.

Desse modo, Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., em entrevista concedida para o periódico Interface: Comunicação, Saúde e Educação, apresenta três pontos elucidativos para o desenvolvimento de uma teoria verdadeiramente crítica para a educação. No sentido do objetivo do texto, os três pontos apresentados conduzem para os procedimentos metodológicos orientadores para a pesquisa em políticas educacionais que devem ser tomados como pontos de organização, sinteticamente, apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Movimentos da metodologia histórico-crítica

Os movimentos definem para o investigador a obrigatoriedade da vigilância epistemológica que permite em seu percurso investigativo assumir três condições básicas para análise do fenômeno educativo, a saber, a concreticidade, a contextualização das teorias e a sistematização de categorias analíticas a partir da PHC e inferência de conclusões, para a compreensão da totalidade do objeto de pesquisa. Os movimentos dispostos, como alerta Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., não devem ser tomados formalmente ou cronologicamente em sequência mecânica. Trata-se de movimentos que se interconectam, transversalizam e atravessam uns aos outros em um movimento constante de reciprocidade.

O primeiro movimento, para Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., está relacionado com a problemática que motiva determinada investigação. De acordo com Saviani (2017, p. 716), “[…] a problematicidade pode se revelar em diferentes circunstâncias e de diferentes maneiras”. Assim, um problema investigativo se origina da prática cotidiana, com o contato com as teorias, na insatisfação com as orientações emanadas das políticas e diretrizes oficiais, das opções filosóficas, ideológicas políticas, estéticas, morais etc. A problematicidade é a condição inicial para as pesquisas que envolvem a metodologia histórico-crítica porque conduzem ao entendimento da concreticidade7 7 Para Saviani (2004), “[…] captar a verdadeira concreticidade não é outra coisa senão captar a essência”. Por essência, entende-se no processo de investigação, como um produto do modo pelo qual a sociedade (sujeito) produz sua própria existência. Na metodologia histórico-crítica, a essência do problema é a necessidade. A identificação da necessidade afasta aquilo que Saviani (2004) denomina de pseudoconcreticidade. Para evitar erros metodológicos em pesquisa, aponta três condições, a saber; radical, rigorosa e de conjunto para a definição da problemática investigativa. Para melhor entendimento e aprofundamento, sugerimos a leitura do capítulo A filosofia na formação do educador do livro Educação: do senso comum à consciência filosófica (2004). .

O segundo movimento reconhece que nenhuma teoria/epistemologia é neutra. As teorias/epistemologias são cercadas de intencionalidade e interesse que direcionam o conhecimento científico. Para tanto, um dos pressupostos básicos da metodologia histórico-crítica é a consciência sobre as escolhas teóricas/epistemológicas que o pesquisador define para suas análises e, em segundo sentido, ter clareza que não há neutralidade científica.

Nesse sentido, as teorias hegemônicas correspondem às ideias dominantes que são correspondentes às ideias de classe dominante. Para Saviani (2017, p. 718)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., “[…] trata-se, pois, das teorias hegemônicas que dão expressão universal aos interesses da classe dominante, apresentando-os como correspondentes aos interesses de toda a sociedade”. Sendo assim, a metodologia histórico-crítica deve verificar os limites, as insuficiências e as inconsistências das teorias hegemônicas. É fundamental, nesse sentido, desmontar epistemologicamente as teorias hegemônicas. Tal condição é imprescindível para qualquer pesquisa em políticas educacionais – a capacidade de verificação e análise das teorias hegemônicas para afastar erros e equívocos teóricos e metodológicos.

O terceiro movimento contempla dois aspectos: a) sistematização das categorias; e b) inferência de conclusões e análises do fenômeno estudado, vejamos.

Ao sistematizar as categorias, o sujeito pesquisador se aproxima da catarse8 8 Conceito oriundo da obra de Antonio Gramsci. proposta por Saviani (2021a, p. 62)SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2021a., que trata da “[…] elaboração-transformação da estrutura em superestrutura na consciência dos homens”. A catarse destaca a objetividade subjetivada conquistada pelos pesquisadores por meio do trabalho de pesquisa. Durante esse processo, eles alcançam uma compreensão mais profunda dos objetos de estudo e dominam as ferramentas culturais necessárias para operar transformações na vida material, com intencionalidades ético-políticas. A catarse, portanto, não se resume à aplicação imediata de conceitos aprendidos, mas a uma compreensão ampla e integrada da realidade e suas possibilidades de transformação (Faria, 2022FARIA, Lenilda Rego Albuquerque de. A Didática Histórico-Crítica: contribuições para o ato educativo. Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da Educação, Florianópolis, v. 40, n. 3, p. 1-23, 2022.).

A inferência de conclusões e análises do fenômeno estudado permitem a reconstrução de uma nova sociedade, de um novo sujeito e uma nova cultura. Nas palavras de Saviani (2017, p. 719)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., “[…] cabe expor, de forma sistematizada, o resultado da investigação que penetrou no interior dos processos pedagógicos e reconstruiu suas características objetivas”, que capacitam formular diretrizes pedagógicas e respostas ao problema de investigação. Como Saviani destaca, a prática social é o ponto de partida e de chegada do processo, com a aquisição de instrumentos teórico-práticos, a prática do pesquisador passa a ser alterada em termos qualitativos, permitindo que ele se posicione de forma crítica e criativa ao possuir uma visão refletida, mediatizada, essencial e concreta dos fenômenos. Essa compreensão superior da prática social permite que o investigador assuma uma postura criativa e dinâmica diante da realidade objetiva (Faria, 2022FARIA, Lenilda Rego Albuquerque de. A Didática Histórico-Crítica: contribuições para o ato educativo. Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da Educação, Florianópolis, v. 40, n. 3, p. 1-23, 2022.).

Os três movimentos são base de organização de uma metodologia autenticamente histórico-crítico, a qual permite ao investigador definir o problema e, ao investigá-lo, ir à raiz com rigor e visão de conjunto.

Definida a primeira etapa, passaremos à organização de categorias analíticas e necessárias para a metodologia histórico-crítica. As categorias não devem ser tomadas como totalidade absoluta. No contexto da PCH, outras categorias e conceitos para a metodologia podem surgir e que não foram apresentadas neste texto. Cabe ainda destacar que a metodologia histórico-crítica poderá servir de base para pesquisa de cunho documental, de campo, de entrevistas, grupos focais, análise de conteúdo, análise de discurso etc. No quadro apresentamos as categorias definidoras da metodologia histórico-crítica.

Quadro 2
Categorias investigativas da metodologia histórico-crítica

As categorias tratadas a partir das obras do autor são uma síntese necessária e fundamental para a organização metodológica de pesquisas na área educacional. A historicização, como categoria, é inclusive defendida por pesquisadores como um conceito que deve aparecer em ao menos um objetivo proposto para as pesquisas em políticas educacionais. Para Saviani (2021c)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c., ao se referir à problemática discussão entre Guiomar e Nozella, ambos seus orientandos de doutorado, a respeito da relação entre compromisso político e competência técnica, expõe de forma mais assertiva e clara a importância da historicização. Saviani (2021c)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c. expõe que ambos em seus artigos são insuficientes na análise, pois não conseguem historicizar o objeto investigado. Nesse ponto, surge a questão basilar da historicização, que, para Saviani (2021c, p. 38, grifo do autor), “[…] implica referir a competência às diferentes concepções de cultura. Fundamentalmente, trata-se de distinguir entre a cultura enciclopédico-didática e a cultura histórico-proletária. Cada uma com sua própria ideia de competência”.

A historicização aliada às demais categorias permite compreender a cultura e suas manifestações. O sentido de cultura carrega a totalidade e a concentricidade em suas manifestações materiais que são base para decifrar dialeticamente as contradições e as lutas de classe contidas no problema de investigação. É aquilo que Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017. adverte como um antídoto para o problema amplamente defendido por positivista da neutralidade científico-cultural. As investigações calcadas no ideário de neutralidade científica, que retiram a historização dos conceitos, tendem a produzir, nas palavras de Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017., interpretações e análises de dados abstratas, a-históricas e desligadas da práxis social. Segundo Saviani (2021c, p. 51)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c.,

[…] a historicização. Com efeito, entendo que o viés positivista, vinculado à objetividade à neutralidade e descartando a universalidade do saber, vincula-se ao processo de desistorização que caracteriza essa concepção. A historicização, pois, em lugar de negar a objetividade e a universalidade do saber, é a forma de resgatá-las.

Nesse sentido, as pesquisas em políticas educacionais que utilizam a metodologia histórico-crítica devem prioritariamente iniciar pela categoria da historicização. É necessário consolidar uma base histórica e historicizante capaz de compreender e entender a materialidade, o contexto e a concreticidade no problema investigativo. A desatenção a essa categoria pode incorrer o risco de produção de pesquisas frágeis e incapazes de propor diagnósticos e inovações que reflitam a totalidade.

O empenho para a fundamentação da metodologia histórico-crítica para compreender a questão educacional com base no desenvolvimento objetivo, material e contextual é uma condição imprescindível que se interliga com a categoria da materialidade/concreticidade. Parte de uma compreensão apurada e totalizante das condições materiais e concretas que envolvem o objeto de investigação. O diagnóstico seguro e as conclusões decorrem dessa condição imperativa de analisar a concreticidade/materialidade do fenômeno estudado. Aliada a tal condição, Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017. expressa que a categoria da totalidade concreta possibilita que as pesquisas se libertem da carapaça (abstrata e a-histórica) e resgate as raízes históricas do problema investigado.

Em relação à teoria e prática, Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017. é enfático em afirmar que os educadores, teimosamente, tendem a compreender como polos separados. Essa compreensão evidencia o senso comum que se propaga nos meios educacionais, de tal modo que o discurso que reivindica a prática contra a teoria tem se tornado um dos argumentos preponderantes para a reformulação de políticas educacionais com a inserção da pedagogia das competências. O sentido de teoria e prática é elaborado por Saviani (2017)SAVIANI, Dermeval. Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 1, p. 711-724, 2017. a partir dos estudos de Vásquez, que entende que teoria é prática à medida que materializa, por meio de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da realidade ou antecipação da ideia de sua transformação.

O conceito de mediação liga a teoria e prática. As pesquisas devem pressupor a práxis social como ação transformadora. No entanto, observando a condição mediadora entre a teoria e prática que implica, a saber: a) na superação ou eliminação dos modismos teóricos; b) na superação do reducionismo da prática na pesquisa; c) na efetividade de pesquisas que produzam conhecimento transformador; d) na condição que as pesquisas, sobretudo de políticas educacionais, tenham compromisso político. A relação entre a teoria e a prática se desvela na análise da totalidade concreta e no compromisso político que a investigação assume como pressuposto de transformação social.

As categorias da radicalidade, rigorosidade e de conjunto, como nos adverte Saviani (2004)SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores Associados, 2004., não devem ser tomadas como categorias autossuficientes que se justapõem em uma somatória. As categorias se relacionam dialeticamente como uma conexão que mantém o movimento metodológico. Esse processo, descrito por Saviani (2004)SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores Associados, 2004., a partir do conceito de criticidade, garante, ao mesmo tempo a radicalidade, a universalidade e a unidade. A observância das três categorias na pesquisa garante ao investigador, por meio do movimento dialético, compreender a totalidade do problema investigado.

As categorias permitem apontar para dois movimentos. Um dos movimentos é o esforço de contribuir conjuntamente com a comunidade acadêmica para o fortalecimento e amadurecimento de uma metodologia de pesquisa decorrente da PHC. O segundo movimento, que se tornou o desafio motor do artigo, foi de apresentar algumas categorias de análise como metodologia de pesquisa para as políticas educacionais.

Conclusão

Dermeval Saviani é um intelectual essencial, especialmente no que se refere ao pensamento social, político e pedagógico. Ele é um autor comprometido com a transformação social e luta por uma sociedade justa e igualitária. Sua trajetória de vida e obras são exemplos de persistência e rigor acadêmico, oferecendo uma nova perspectiva político-pedagógica para o país.

Desenvolvida por Saviani, a PHC compreende a educação como um fenômeno social inserido em um contexto histórico, que busca a superação das desigualdades sociais e educacionais. Essa abordagem pedagógica revolucionária busca a emancipação humana por meio da utilização das categorias do marxismo, que colocam a práxis no centro do processo educativo, unindo teoria e prática para construir uma educação transformadora. Da mesma forma, um dos grandes desafios da área educacional é consolidar metodologias que sejam capazes de escapar ao discurso reducionista da ciência positiva. Nesse enquadramento, uma perspectiva de metodologia fundada na PHC sustenta uma passagem de uma teoria comprovadamente reconhecida no campo educacional como uma proposta pedagógica, para a fundamentação de uma práxis investigativa. Nesse sentido, o caminho se desvela de uma teoria para uma metodologia de pesquisa que pretende, com rigor científico, tornar-se uma prática metodológica crítica, que seja capaz de compreender as contradições inerentes às disputas na arena das políticas públicas.

Buscamos apresentar a PHC como uma metodologia que permite compreender as questões educacionais no contexto da materialidade das relações sociais, por meio da dialética, da contradição, da materialidade e da historicidade, com foco especial nas pesquisas em políticas educacionais, contribuindo com uma consistência metodológica e a possibilidade de analisar não apenas o que é explicitamente dito, mas também as intencionalidades subjacentes aos documentos políticos.

Nesse sentido, a metodologia histórico-crítica para a pesquisa em educação requer três movimentos interligados: 1) a identificação da problematicidade que motiva a pesquisa; 2) a conscientização sobre as teorias/epistemologias que influenciam a pesquisa; e 3) a sistematização das categorias para análise do fenômeno estudado e inferência de resultados. A metodologia exige a compreensão da concreticidade do problema educativo, a análise crítica das teorias hegemônicas e a formulação de diretrizes pedagógicas a partir dos resultados da pesquisa. Esses movimentos são interconectados e transversalizam uns aos outros em um movimento constante de reciprocidade. A metodologia histórico-crítica busca desmontar epistemologicamente as teorias hegemônicas e reconstruir uma nova sociedade, um novo sujeito e uma nova cultura.

Destacamos a importância da historicização como categoria fundamental para a organização metodológica de pesquisas na área educacional, permitindo compreender a cultura e suas manifestações, assim como a materialidade e a concreticidade do objeto de investigação. As categorias de totalidade concreta, radicalidade, rigorosidade e conjunto, quando relacionadas dialeticamente, permitem compreender a totalidade do problema investigado. A relação entre teoria e prática é mediada pela práxis social como ação transformadora e compromisso político. As pesquisas em políticas educacionais devem pressupor o compromisso com a transformação social e a análise crítica das teorias hegemônicas, que apresentam os interesses da classe dominante como universais.

Além das pesquisas em políticas educacionais, a metodologia histórico-crítica fornece ferramentas para a análise da educação e da sociedade, permitindo a compreensão das relações entre cultura e educação, desigualdade social e educação, estrutura e práticas educacionais, e o papel da escola na sociedade.

A metodologia histórico-crítica pode auxiliar na análise da relação entre cultura e educação, destacando a importância da crítica às desigualdades sociais e buscando alternativas para superá-las. Além disso, é possível aplicar a abordagem para compreender a estrutura e as práticas educacionais, analisando as relações sociais envolvidas e buscando soluções transformadoras para a realidade educacional e social. A metodologia também pode ser utilizada para compreender o papel da escola na reprodução das relações sociais e formação das subjetividades, permitindo uma análise crítica das práticas educacionais.

Apontamos para uma nova possibilidade de compreensão do trabalho de Saviani, que destaca o trabalho de produção científica pela apropriação da concepção de mundo revolucionária, proposta pela PHC. Para alcançarmos a transformação social não basta apenas adotarmos uma pedagogia revolucionária, é necessário que a produção de conhecimento seja fundamentada nos mesmos princípios dessa pedagogia e que não se baseie apenas nos conteúdos técnico-científicos, mas também na prática social transformadora, buscando a superação das desigualdades e a formação de uma nova sociabilidade humana.

Por fim, a grandiosidade e originalidade da obra de Saviani permite lançar o desafio de solidificar uma metodologia de investigação das políticas educacionais por meio da PHC. Alinhado ao problema e objetivo do artigo, expomos um caminho para pesquisas na educação a partir dos pressupostos metodológicos da PHC. Cabe destacar, que outros textos e investigações estão em processo de construção. A intenção, juntamente com a comunidade científica, é validar a metodologia histórico-crítica; para tal, estamos participando de eventos e apresentando a proposta para colher sugestões que possam qualificar o processo.

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    O movimento Escolanovista surgiu no Brasil na década de 1920 e teve como objetivo modernizar a educação, buscando uma abordagem mais científica e centrada no aluno. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado em 1932, defendia a criação de uma escola pública, gratuita, mista, laica e obrigatória, que garantisse uma educação comum e iguais oportunidades sociais, inspirado nas ideias de John Dewey. No entanto, o movimento foi criticado por desconsiderar aspectos culturais e morais da formação humana e por ter ideias consideradas elitistas e distantes da realidade da maioria da população. Para saber mais: INEP (1944)INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 1944. e Saviani (2021c)SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2021c..
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    Saviani classifica as teorias educacionais em dois grupos: as não críticas e as crítico-reprodutivistas. O primeiro grupo compreende a Pedagogia Tradicional, Nova e Tecnicista, que entendem a educação como um instrumento de equalização social, ou seja, para superar a marginalidade. Já o segundo grupo é formado pelas teorias crítico-reprodutivistas, que compreendem a educação como um instrumento de discriminação social e de marginalização. Saviani considera este segundo grupo como crítico, pois busca entender a educação a partir de seus condicionantes objetivos, ou seja, da estrutura socioeconômica que determina a forma como a educação se manifesta. Essa análise crítica da educação é importante para a construção de uma pedagogia que busque superar as desigualdades educacionais e sociais, mas não é suficiente. Por isso a necessidade de uma nova teoria crítico-não reprodutivista, a exemplo da PHC (Saviani, 2021bSAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. Campinas: Autores Associados, 2021b.).
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    Karl Marx revolucionou o pensamento filosófico ao fundar o marxismo, que pode ser dividido em quatro momentos: o primeiro com as obras de Marx, o segundo com as contribuições de Marx e Engels, o terceiro com a contribuição de Lenin e o quarto, momento contemporâneo, com várias tendências. O marxismo é composto pelo materialismo dialético, materialismo histórico e economia política e se inclui como uma tendência dentro do materialismo filosófico. O pensamento de Marx tem como base a visão dialética hegeliana com um matiz materialista de mundo, e suas fontes diretas estão ligadas ao idealismo clássico alemão, socialismo utópico e economia política inglesa (Triviños, 1992TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Editora Atlas, 1992.).
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    Adolfo Sánchez Vázquez foi um importante filósofo e escritor espanhol que se exilou no México após a Guerra Civil Espanhola e se tornou um pensador de grande importância na filosofia marxista latino-americana. Ele escreveu diversas obras sobre a teoria e prática marxista, bem como sobre a filosofia em geral, e defendia uma visão crítica do marxismo, buscando superar algumas das limitações teóricas e práticas do marxismo ortodoxo. Vázquez enfatizava a importância da teoria da práxis de Marx e a necessidade de uma ética revolucionária para guiar as ações dos militantes. Sua obra teve grande influência na América Latina, especialmente no México e na Argentina, onde lecionou na Universidade de Buenos Aires (Ferreira, 2019FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Adolfo Sánchez Vázquez: algumas notas sobre sua vida e valiosa obra. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v. 10, n. 3, p. 279-290, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistag erminal/article/view/29636. Acesso em: 3 mar. 2023.
    https://periodicos.ufba.br/index.php/rev...
    ).
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    Antonio Gramsci (1891-1937) foi um teórico marxista e político italiano, fundador do Partido Comunista Italiano. Sua contribuição à teoria marxista destaca-se por suas análises sobre a cultura e a hegemonia política na luta de classes. Gramsci foi preso pelo regime fascista de Mussolini em 1926 e passou grande parte de sua vida adulta na prisão. Suas ideias sobre cultura e luta de classes continuam a ser objeto de estudo e debate atualmente. Para saber mais recomendamos a leitura de Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário (Maestri, 2020MAESTRI, Mário. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. Joinville: Clube de Autores, 2020.).
  • 6
    No artigo, Shiroma, Campos e Garcia (2005)SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima; GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de documentos. Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 427-446, 2005. apresentam detalhadamente a metodologia da análise do discurso como condição para as pesquisas em políticas educacionais, sobretudo, para as investigações que envolvem textos de políticas educacionais.
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    Para Saviani (2004)SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores Associados, 2004., “[…] captar a verdadeira concreticidade não é outra coisa senão captar a essência”. Por essência, entende-se no processo de investigação, como um produto do modo pelo qual a sociedade (sujeito) produz sua própria existência. Na metodologia histórico-crítica, a essência do problema é a necessidade. A identificação da necessidade afasta aquilo que Saviani (2004)SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores Associados, 2004. denomina de pseudoconcreticidade. Para evitar erros metodológicos em pesquisa, aponta três condições, a saber; radical, rigorosa e de conjunto para a definição da problemática investigativa. Para melhor entendimento e aprofundamento, sugerimos a leitura do capítulo A filosofia na formação do educador do livro Educação: do senso comum à consciência filosófica (2004).
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    Conceito oriundo da obra de Antonio Gramsci.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

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Referências

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Editado por

Editora responsável: Carla Karnoppi Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    20 Nov 2023
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