Resumo:
O ensaio aborda a relação entre experiência de linguagem e imaginação poética a partir das reflexões de Agamben, Merleau-Ponty e Bachelard como estratégia para tensionar o problema da descontinuidade temporal que tece a alteridade linguageira dos encontros entre crianças pequenas e adultos. Reivindica a compreensão pedagógica de que é interagindo poeticamente com o mundo, desencadeando tempos de presença e assumindo tentativas de plasmar sentidos singulares no coletivo, e não dele distanciando-se analiticamente, que podemos perseguir a linguagem como gesto desvinculado de qualquer instrumentalidade. A questão pedagógica que emerge não é a da liberdade enraizada no individuo, mas a do viver juntos.
Palavras-chave: Infância; Experiência da Linguagem; Imaginação; Poético
Abstract:
The essay addresses the relationship between the experience of language and poetic imagination based on the reflections by Agamben, Merleau-Ponty and Bachelard as a strategy to expose the tensions within the problem of temporal discontinuity that weaves the fabric of 'languagely' alterity in the meetings between small children and adults. It claims the pedagogic understanding that it is only by interacting poetically with the world, by triggering times of presence, and by assuming our attempts to project singular meanings onto the collective, and not by keeping an analytical distance from it, that we can pursue language as a gesture unfettered by any kind of instrumentality. The pedagogical question that emerges is not about the freedom rooted in the individual, but about living together.
Keywords: Childhood; Experience of Language; Imagination; Poetic
Introdução
Este ensaio emerge da interlocução por nós estabelecida nos últimos anos a partir do interesse em aproximar estudos que se detém na íntima relação entre imaginação poética e experiência da linguagem na educação de crianças pequenas em tempos e espaços de vida coletiva. Na experiência de pensarmos e compartilharmos ideias, podemos apenas partir de onde estamos. E onde estamos é no meio da experiência: entre devaneios e pensamentos, entre sensível e conceitual. Como diz Gaston Bachelard (1994, p. 95), "[...] nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha".
A opção por nos situarmos intencionalmente nesse lugar entre, nesse lugar de movimento entre devaneio e pensamento, entre o que podemos sentir e pensar e o que ainda não sentimos e pensamos, tem por objetivo nos colocarmos entre diferentes forças que promovem abertura à contradição e à discussão, portanto à intenção de tensionar ideias mais do que defendê-las.
Para tanto, encontramos a potência da reflexão pedagógica muitas vezes fora da pedagogia, por exemplo, ali no cruzamento entre os devaneios dos poetas e as especulações dos filósofos. Educação tem a ver com esse entre que aproxima filosofia e poesia, pois diz respeito à força do pensamento. Sem oposição simplificada entre ambas, mas tampouco sem fusão destruidora de suas especificidades históricas, o modo como exercem tal força estabelece a distinção entre pensar sobre o mundo, inerente à reflexão filosófica, e pensar no mundo, inerente à produção poética. O elo que as aproxima é a linguagem.
Educação tem a ver também com o entre que emerge dos encontros e desencontros entre os velhos e os jovens, entre os adultos e as crianças, ou seja, entre modos de sentir e de pensar em tempos diferentes. Para Bárcena (2012), sem essa experiência da diferença entre tempos, sem essa descontinuidade temporal entre gerações não há possibilidade de transmissão pedagógica. A inscrição no tempo e na linguagem exige educação do humano, isto é, torna o humano educável. Tanto a experiência do tempo quanto da linguagem dizem respeito à potência transfigurativa do humano. A experiência do tempo emerge no devir narrativo e habitamos as dimensões da linguagem de muitos modos.
Para nos determos nessa alteridade linguageira que emerge de uma relação entre tempos diferentes, tomamos como pressuposto filosófico que o elo entre educação e infância - assim como entre poesia e filosofia - situa-se na temporalidade da experiência da linguagem, em uma relação sempre mediada pela própria linguagem. O termo linguageiro é aqui utilizado no sentido que lhe dá Merleau-Ponty (1991, p. 94) para afirmar que "[...] há uma significação 'linguageira' da linguagem que realiza a mediação entre a minha intenção ainda muda e as palavras, de tal modo que minhas palavras me surpreendem a mim mesmo e me ensinam o pensamento". Por isso, para Agamben (2008), a ideia não é uma metalinguagem nem visão de um objeto fora da linguagem,
[...] mas visão da linguagem mesma. Uma vez que a linguagem, que medeia para o homem toda coisa e todo conhecimento, é ela mesma imediata. O homem falante não pode alcançar nada imediato, exceto a mediação mesma. Semelhante mediação imediata constitui para o homem a única possibilidade de alcançar um princípio liberado de todo pressuposto, inclusive da pressuposição de si mesmo; [...] O que une aos homens entre si não é nem uma natureza nem uma voz divina nem a comum prisão na linguagem significante, mas a visão da linguagem mesma e, portanto, a experiência de seus limites, de seu fim (Agamben, 2008, p. 37).
Assim, o interesse em aproximarmos nossos estudos, leituras e escritas no campo da educação das infâncias não é perseguir uma elucidação ao problema pedagógico posto pela aprendizagem dos muitos modos de estar e conviver em linguagem pelas crianças na Educação Infantil. O que nos mobiliza escrever é o desafio de aprender a interrogar o problema educacional posto pela descontinuidade temporal que habita o devir linguageiro entre adultos e crianças pequenas. Isto é, em enfrentar a questão educacional posta pela descontinuidade temporal na lógica de ler, interpretar e agir a partir daquilo que nos instala em um mundo comum: a experiência linguageira e sua potência poética de plasmar sentidos singulares no coletivo mundano.
Não se trata de apresentar modelos ou de julgar o adequado e o inadequado, mas reivindicar na educação infantil a compreensão pedagógica da alteridade temporal entre adultos e crianças nos modos linguageiros de participar da vida pública. O desafio pedagógico está em considerar que, nessa alteridade, é o adulto que não pode incorporar a linguagem: são sempre as crianças as primeiras a aprender (Agamben, 1999).
Talvez, o maior desafio posto pelas crianças pequenas à pedagogia seja a condição de que antes de transmitir o que for, os adultos têm que transmitir a linguagem (Agamben, 1999). Para Bárcena (2010), o ato de transmitir ultrapassa a comunicação, pois diz respeito à experiência produtora de presença, de alguém que dá e de alguém que recebe, e não à mera produção ou reprodução interpretativa de significados. Se a transmissão "[...] contém a presença de um quem em palavras encarnadas, toda relação pedagógica se resolve em um fazer-nos presentes no que dizemos, no que fazemos e ante quem dizemos e para quem falamos" (Bárcena, 2010, p. 36).
Considerar essa produção de presença na transmissão pedagógica supõe uma responsabilidade ética e estética para com a experiência da linguagem que implica não fragmentá-la em linguagens estanques, já que nenhuma dimensão da linguagem existe independente da ação do corpo que a inscreve no mundo e lhe confere sentido na convivência. Torna-se importante então considerar que a pedagogia,
[...] para além da constituição histórica de modelos educacionais racionalizados em princípios coerentes com suas práticas, conforma saberes e conhecimentos que exigem atualização no debate de suas escolhas éticas, de suas decisões políticas e de suas ações práticas, pois sua intencionalidade não significa formatar ou modelar humanos, mas com eles interagir no mundo (Murillo, 2013, p. 14).
Propor uma reflexão que aproxime as temáticas da imaginação poética e da linguagem no campo da Pedagogia, como fenômenos que emergem da e na convivência entre adultos e crianças, exige aprender a pensar temas impossíveis de serem paralisados em respostas fixas, pois dizem respeito à experiência de coexistir e esta não é redutível nem a conceitos nem a categorias prévias. Implica considerar com George Steiner (2003, p. 355) que "[...] a alegria e a mágoa humanas, a angústia e o júbilo, o amor e o ódio, continuarão exigindo uma expressão articulada. Continuarão a pressionar a linguagem".
O desafio pedagógico está em acolher que a linguagem pode ser interrogada, mas não descortinada. Sempre estaremos diante do mesmo enfrentamento: "[...] a linguagem só permanece enigmática para quem continua a interrogá-la, isto é, a falar dela" (Merleau-Ponty, 2012, p. 197). Entre o dizível e o indizível, o que se pode falar se dá no interior da linguagem e não fora dela (Agamben, 1999).
Nessa escrita, portanto, não há percursos traçados até um final feliz que nos tranquilize, apenas a possibilidade de ensaiar uma estratégia metodológica que permita alcançar uma aproximação à descontinuidade temporal e à alteridade linguageira entre crianças pequenas e adultos, não como distância ou separação, mas como tempo presente pela presença, um tempo que se constitui por uma linguagem que produza e contenha presença, aquela que promove e amplia a densidade existencial do real.
Assim, como estratégia metodológica para enfrentarmos o desafio posto pelas crianças pequenas à responsabilidade ética e estética dos adultos tomarem decisões ao conviverem nos tempos e espaços da Educação Infantil, optamos pela aproximação entre três abordagens da infância como três modos de tensionar o problema posto à educação pela alteridade linguageira entre crianças pequenas e adultos: infância e imaginação poética em Gaston Bachelard, infância e corpo sensível operante em Maurice Merleau-Ponty e infância e experiência da linguagem em Giorgio Agamben. Três pensadores, três abordagens tão diferentes quanto potentes para pensar infâncias. No centro das reflexões e análises de cada um em torno da infância - em suas diferenças - está a linguagem. A intenção não é reunir o pensamento destes autores, mas perseguir, no modo particular de cada um formular e dizer a infância, possibilidades de pensá-la como potência poética do humano se tornar linguagem.
Infância e Linguagem: experiência do inefável
Para Agamben (2005), a infância não é um período localizado no tempo cronológico nem um estado psicossomático independente da linguagem, e sim uma dimensão-limite interior à linguagem. Assim, alcançar a infância é encontrar a linguagem. Tanto a linguagem quanto a infância não cessam de advir e, por isso, não há início cronológico, origem localizável no tempo, um antes da linguagem ou um sujeito pré-linguístico. Liberada do condicionamento subjetivo que define a origem como um ponto em uma cronologia, como causa inicial cindindo um tempo antes e um tempo depois, a origem "[...] não pode ser historicizada, porque é ela mesma historicizante, é ela mesma a fundar a possibilidade de que exista algo como uma 'história'" (Agamben, 2005, p. 61).
Se infância e linguagem coexistem como "[...] limite e estrutura a priori de todo conhecimento histórico" (Agamben, 2005, p. 62), é nesta circularidade - infância como origem da linguagem e linguagem como origem da infância - que emerge o lugar da experiência enquanto infância do humano, como experiência da linguagem que se consuma na e pela linguagem. A existência de uma infância como fato do humano significa que o humano não se identifica nem com o sujeito (algo subjetivo), nem com a linguagem (algo natural), pois deve apropriar-se da linguagem para constituir-se sujeito. Deve-se dizer eu para tornar-se sujeito da linguagem (Agamben, 2005). Ao fazê-lo, abre-se para ele a possibilidade da história.
Aqui, só se pode falar de experiência, nos e entre humanos, a partir dessa distância, interior à linguagem, entre ela e a infância. Caso contrário, a linguagem seria o lugar da totalidade e da verdade, porém não o lugar da experiência. A experiência não é a causa passada, mas a inquietação do fazer-se no presente, pois é o que vai surgir e, ao mesmo tempo, o que guia esse surgimento. Por isso, para Skliar (2012, p. 67) a experiência inaugura o pensamento, pois "[...] o pensamento não é anterior à experiência. É sua consecução, sua perseguição, seu porvir".
"Como infância do homem, a experiência é a simples diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda infante, isto é a experiência" (Agamben, 2005, p. 62). Experiência não submetida à linguística ou à Ciência da Linguagem ao dizer respeito à "[...] pura existência da linguagem, independentemente de suas propriedades reais" (Agamben, 2008, p. 66), ou seja, em sua exposição. Esse experimentum linguae, essa existência da linguagem como conteúdo da experiência, foi descrito por Wittgenstein em sua única conferência pública:
E agora descreverei a experiência de maravilhar-se com a existência do mundo dizendo: é a experiência de ver o mundo como um milagre. Nesse momento sou tentado a dizer que a expressão justa na língua para o milagre da existência do mundo, mesmo não sendo nenhuma proposição na língua, é a existência da própria linguagem (Wittgenstein apud Agamben, 2005, p. 17).
O que está em jogo nessa pressuposição da pura existência da linguagem e sua abertura ao pensamento para a pura existência do mundo é "[...] o excesso da linguagem em relação à ciência" (Agamben, 2008, p. 78), ou seja, a impossibilidade de sua redução às regras lógico-gramaticais, pois algo da linguagem excede a língua e deve permanecer impensado. Esse o mistério do devir humano.
Tanto a linguagem e a imaginação quanto a infância e a educação estão entre o dizível e o indizível, o pensado e o impensado, como um excesso, sempre um pouco mais distante do que o ponto onde acreditamos alcançá-las. Restará sempre, para além e para aquém de nossas afirmações, mais vida do que estas podem fixar sob nossa compreensão. Por isso, para Agamben (2008, p. 38), "[...] toda compreensão está fundada no incompreensível".
É precisamente essa incompreensibilidade - essa inefabilidade de ser in-fans (sem fala) -, essa existência inefável da linguagem, essa finitude, esse silêncio da mudez, que promove abertura à viagem dialética do pensamento (Agamben, 2008). A instância da infância, como arquilimite na linguagem, manifesta-se como experiência do inefável, aquela que não pode ser nomeada ou descrita. Essa experiência, "[...] o mystérion que todo homem institui pelo fato de ter uma infância" (Agamben, 2005, p. 63), não é uma realidade psíquica aquém ou além da linguagem, mas o acontecimento não antecipável nem repetível que transforma uma vida. Os limites da linguagem dizem respeito à experiência poética de rearranjar o mundo dado, à exposição ao desconhecido que nos torna mudos e exige produção de sentido para ser significado. Para o poeta Octávio Paz:
Não há cores nem sons em si, desprovidos de significação: tocados pela mão do homem, mudam de natureza e adentram o mundo das obras. E todas as obras desembocam no significado; o que o homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir para... O mundo do homem é o mundo do sentido. Ele tolera a ambiguidade, a contradição, a loucura ou o embuste, não a carência de sentido. O próprio silêncio é povoado de signos. [...] As diferenças entre o idioma falado ou escrito e os outros - plásticos ou musicais - são muito profundas; mas não a ponto de fazer-nos esquecer que todos são, essencialmente, linguagem: sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo (Paz, 2012, p. 27-28).
É próprio da ação poética tornar algo visível, mostrar, produzir presença ao refazer o mundo, rearranjando-o, recontando-o, ficcionalizando. Ação linguageira de reordenamento das aparências que afeta de modo radical a configuração de nossa experiência temporal porque articula nossa compreensão prática. Rearranjo e desarranjo de aparências que aponta para a confusão da vida que tem que ser transformada em experiência e ser narrada aos outros. A pluralidade habita a singularidade da experiência poética, pois diz respeito à potência de pensamento.
Em Bachelard (1988, p. 14), a imaginação - ou nossos devaneios - nos faz "[...] criar aquilo que vemos [...]" e, portanto, a imagem vai ao real e não parte dele. Significa que são das nossas ficções, nossas fabulações, que extraímos nossas configurações de mundo, nosso real. O poeta é artesão da linguagem que engendra e configura imagens pelo único meio da linguagem. As imagens imaginadas não se reduzem à produção aleatória, mas convocam o pensamento a decifrá-las em outra linguagem. Aqui, o passado não é relevante, o que conta é sua atualização
Os valores, em sua atualidade de valorar no ato mesmo de realizar algo, tornam inertes tudo o que deriva do passado e, portanto, toda a memória tem que ser reimaginada, ou seja, recontada ou dramatizada no instante realizador. Bachelard (1991) credita à percepção e à memória uma imaginação reprodutora que é completamente diferente da imaginação poética, que instaura o devaneio ao mobilizar o corpo operante sobre a materialidade do mundo para narrá-lo em linguagem. As ideias sonham no ato de recontar e refazer o mundo através da colisão entre pensamento e realidade para torná-lo inteligível. Os devaneios engendram realidades através da linguagem, as instauram e as transformam. Neste sentido, a linguagem poética diz respeito à ambiguidade do real, na qual e pela qual se manifesta precisamente a condição da realidade.
O humano é histórico justamente por não vir ao mundo já falante e ter que engendrar a fala e o ser falado desde a imersão em uma história. A carência de linguagem é a condição de sua emergência (Agamben, 2005) e, assim, o percurso de sua aprendizagem é o mesmo para todas as crianças: todas têm que aprender a falar (e a projetar visões) com outros. É porque as crianças têm que aprender a imaginar, isto é, têm que aprender a operar e transfigurar o mundo através da linguagem - fazendo-o presente, tornando-o presença - que a infância age e se constitui em linguagem estando exposta à mesma linguagem, ou seja, exposta à experiência tanto de ausência quanto de busca da linguagem, privação e abertura, ao mesmo tempo exposta ao vazio e à potência. Esta vocação infantil da linguagem, esta dimensão-limite interior à linguagem, entre ela e a infância, tem um nome para Agamben (1999, p. 95): "[...] o pensamento, ou seja, a política".
Para Agamben (2006; 2008), estamos destinados à potência. Para o filósofo significa afirmar que estamos "[...] destinados e abandonados a ela, no sentido de que todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder de não agir e todo o seu conhecer, um poder de não conhecer" (Agamben, 2006, p. 20). A dimensão política do agir no coletivo emerge da possibilidade de que se nos apropriamos da dimensão poética da linguagem - não da linguagem para dizer isso ao aquilo, como comunicação - nos apropriamos também de uma virtualidade do dizer e do não dizer. A potência de ambos é a mesma. "O homem é o animal que pode a própria impotência. A grandeza de sua potência se mede pelo abismo de sua impotência" (Agamben, 2008, p. 294).
Por isso, para Arendt (2004, p. 17) a natalidade, na qual se enraíza a ação no sentido de iniciar, de imprimir movimento a algo, "[...] pode constituir a categoria central do pensamento político [...]", pois nascer é tanto começar-se no mundo quanto começar um mundo na simultaneidade histórica da continuidade de um mundo já constituído. Aqui, o desafio pedagógico quase intransponível é compreender o corpo sensível e operante como fonte primeira das significações que vamos constituindo implicados em um mundo comum ao imantá-lo com nossos devaneios, nossos tateios e hesitações, produzindo sentidos encarnados a partir da exploração linguageira inesgotável que o mundo oferece.
Corpo Operante no Mundo e Linguagem
A abertura à experiência da linguagem engendra um processo histórico particular ao emergir como experiência de temporalização do corpo. O tempo acontece no corpo e o modifica. É só por isso, para Agamben (2005), que temos infância: porque não nascemos já falantes e temos que aprender a instalar no corpo uma história linguageira. É apenas nessa condição que a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo de um tempo linear: ela é intervalo, descontinuidade, irrupção do pensamento, do porvir, pois temos que aprender a plasticidade dos fazeres do corpo que significam a existência mundana. Cada vez pela primeira vez.
Somos devires históricos, nos constituímos em uma perspectiva histórica na qual somos tempo e somos espaço que compõem uma narrativa: a coexistência entre humanos. A historicidade emerge da consciência de um futuro e a lembrança de um passado, o que implica constituir uma narrativa do viver juntos habitando a linguagem. É na existência, vivendo, que constituímos e imprimimos sentidos aos fenômenos pessoais e coletivos. Aqui, a coletividade - a dimensão comum - não é a soma de objetos e/ou de indivíduos, mas uma dimensão de existência permanente (Merleau-Ponty, 1999a). A historicidade é consubstancial ao campo intersubjetivo. Por isso, o mundo, como o corpo, diz respeito ao entre: não há mundo para o humano que não seja um intermundo. Por aí estarmos situados, "[...] estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 18).
Na tradição cartesiana, o verbo existir implica apenas dois sentidos: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. Porém, a experiência do corpo próprio expõe a ambiguidade da existência. Porque o corpo não é um objeto, seus processos vitais não podem estar ligados entre si e ao mundo por relações de causalidade, "[...] todas elas estão confusamente retomadas e implicadas em drama único" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 269). A experiência do corpo próprio contrapõe-se ao movimento reflexivo que, ao destacar o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, nos oferece apenas o corpo em ideia, aquele concebido pelo entendimento. No entanto, o mundo não é meramente causal e factual, antes o mundo é o lugar onde vivemos, estamos no mundo, somos rodeados pelas coisas e seus acontecimentos. E "[...] é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é pelo meu corpo que percebo 'coisas'" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 253).
Habitamos o mundo e habitar é significar, essa potência aberta e indefinida, ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido, pela qual nos transcendemos em direção a modos de agir, em direção ao outro, em direção ao próprio pensamento, pelo nosso corpo e nossa fala. Aqui, "[...] nem a palavra nem o sentido da palavra são constituídos pela consciência" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 539), porque falar não é evocar imagens verbais e articular palavras segundo o modelo imaginado. A palavra não é um objeto por mim reconhecido por uma síntese de identificação, e sim "[...] uma certa modulação de meu corpo enquanto ser no mundo [...] antes de tudo o aspecto que o objeto assume em uma experiência humana" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 540). Os signos, os morfemas, as palavras isoladas, assim como os sons e os traços isolados, os gestos e os movimentos isolados,
[...] nada significam, eles só passam a ter significação por sua combinatória, enfim a comunicação vai do todo da linguagem falada ao todo da linguagem ouvida. Falar é a cada momento detalhar uma comunicação cujo princípio já está estabelecido. Perguntarão, talvez, de que maneira. Pois, afinal, se o que nos dizem da história da terra tem fundamento, é preciso efetivamente que a fala tenha começado, e ela recomeça com cada criança (Merleau-Ponty, 2012, p. 84).
Esse começar da criança no já começado pelo adulto, essa circularidade de uma descontinuidade temporal "[...] que faz com que a língua se preceda naqueles que a aprendem, ensine-se a si mesma e sugira a própria decifração talvez seja o prodígio que define a linguagem" (Merleau-Ponty, 1991, p. 39). Em Merleau-Ponty, o pensamento não é nada de interior, ele não existe fora do mundo e fora das palavras, da linguagem. Nesse sentido, não existe o pensamento nem alinguagem, já que as operações expressivas ocorrem entre palavra pensante e pensamento falante: a fala não traduz, naquele que fala, um pensamento já feito, mas o consuma (Merleau-Ponty, 1999a, p. 242). Constituir-se em linguagem, nessa perspectiva, é mergulhar tanto na experiência histórica humana, quanto na experiência da vida comum.
A linguagem, na fenomenologia merleaupontiana, pressupõe um saber da linguagem, um pensamento que decifra os acontecimentos do e no corpo, pois todo encontro com a linguagem é um encontro com um acontecimento inacabado, sendo ela mesma uma parte desse acontecimento. Por isso, Merleau-Ponty (1999a, p. 537) pode afirmar que "[...] a linguagem adquire sentido para a criança quando constitui situação para ela", pois a criança vive um corpo existencial e indiviso, ela está no coletivo mundano e no seu corpo, ao mesmo tempo nos dois meios sem nenhuma dificuldade.
Esse sair de si até o mundo expõe o mundo também por fazer. O mundo não é dado e acabado: "[...] o mundo está inteiro dentro de mim e eu estou inteiro fora de mim" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 546). Vamos nos tornando a simultaneidade que o mundo torna-se para nós e para os outros. Nessa experiência temporal de nós, a imaginação emerge como imagem encarnada que encarna o mundo, fenda no corpo em sua abertura mundana onde "[...] as coisas passam por dentro de nós, assim como nós por dentro das coisas" (Merleau-Ponty, 1999b, p. 121), não se reduzindo ao figural: é valoração do vivido.
Para a flexibilidade da imaginação importa os valores extraídos do mundo pelas imagens poéticas e não suas características percebidas, pois "[...] para a imaginação, o mundo gravita em torno de um valor" (Bachelard, 1989, p. 177). A imaginação adquire uma realidade particular na medida em que é geradora não apenas de formas, mas de valores e qualidades que apelam para a sensualidade do encontro entre corpo e mundo. É ao que Merleau-Ponty (1999a, p. 211) se refere quando afirma que a apreensão de uma significação se faz pelo corpo: pelo eu posso em sua implicação com o tempo (agora) e o espaço (aqui) e não pelo eu penso. É pela imaginação que exerço esse poder de tomar a iniciativa e agir.
A imaginação, aqui, é muito próxima à concepção de Bachelard quando este afirma ser a matéria um meio para a imaginação se realizar: a imagem vai ao real e não provém dele, é corpo e mundo enlaçados e não polarizados. Em Merleau-Ponty, o enigma do sensível emerge vinculado ao mistério da visão como "[...] abertura de nossa carne imediatamente preenchida pela carne universal do mundo" (Merleau-Ponty, 1991, p. 16), capaz de - na intimidade mais privada de nossa vida - nos fazer simultâneos com os outros. Neste sentido, nossos olhares não são atos de consciência - onde reivindicaríamos uma indelével prioridade - mas sincronia e copresença onde o sensível "[...] é precisamente aquilo que, sem sair de seu lugar, pode assediar mais de um corpo" (Merleau-Ponty, 1991, p. 15). Copresença que faz assistir à metamorfose do visível em vidente uma vez que "não se poderia tocar nem ver sem ser capaz de se tocar e se ver" (Merleau-Ponty, 1991, p. 16).
O mundo vem imaginar-se no corpo operante no instante em que se torna gesto. Porque o mundo não é o que eu penso, mas o que eu vivo, não está dado, mas torna-se. Movimento que vai configurando mundos no movimento de transformá-lo, ou seja, recomeçá-lo. O mundo não quer permanecer quieto: in-quieto nos inquieta, nos força a tocá-lo, a movimentá-lo, a fazer mundo em nós. Esse sair de nós até as coisas exige do nosso corpo ação: agir é entregar-se para inaugurar sentidos. Poder intimamente vinculado à decisão de iniciar algo no mundo.
Um movimento é aprendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu 'mundo', e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação. [...] a motricidade não é como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos. [...] Portanto, não se deve dizer que nosso corpo está no espaço nem tampouco notempo. Ele habita o espaço e o tempo (Merleau-Ponty, 1999a, p. 193).
A fenomenologia de Merleau-Ponty interroga a experiência da própria filosofia ao se voltar para o mistério que fecunda o pensamento: a abertura para o mundo, ou melhor, o há do mundo. Em O Filósofo e sua Sombra, Merleau-Ponty (1991, p. 199) afirma a impossibilidade de suprimirmos tanto as coisas que gravitam em torno de nós quanto os seres vivos com quem coexistimos, pois nosso lugar natal é a Terra - "[...] 'solo' ou 'cepa' de nosso pensamento como de nossa vida". Somos feitos de sua carne, matriz tanto de nosso tempo quanto de nosso espaço, onde compartilhamos "[...] nossa proto-história de seres carnais copresentes num único mundo" (Merleau-Ponty, 1991, p. 199).
Sua obra, marcada pela busca do caráter mundano da realidade, inverte radicalmente a pedra angular do pensamento ocidental ao afirmar que o mundo é o meio de realização da consciência e não podemos, como queria Descartes, constituir o mundo pela fórmula do eu penso. Trata-se de negar a pureza de um pensamento desencarnado do mundo para afirmar o estranho recruzamento de trocas entre corpo e mundo como começo - o prévio do há - de todo saber. Enquanto a tradição cartesiana afirma nossas experiências sensíveis do corpo como fonte de engano, Merleau-Ponty admite, nelas, um poder gerador ou criador de saber.
Portanto, o motivo central que inquieta e atravessa o pensamento do fenomenólogo francês é interrogar a experiência muda de nossa inserção no mundo. Interrogação dirigida ao privilégio atribuído à mediação do pensamento na relação eu-mundo, submetendo o cogito a uma crítica radical ao trazê-lo para uma instância anterior: a imediata experiência do corpo no mundo. Em suas palavras (Merleau-Ponty, 1999a, p. 9), "[...] o verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem, não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação mundo". O corpo operante - o eu posso - não é aberto a ele mesmo senão através de sua abertura aos outros corpos e ao mundo. Um puro agir seria contraditório. A experiência mundana me instaura antes que eu a pense, ou que a represente. No pensamento merleaupontiano, não represento o mundo, estou aderido a ele, não há coincidência de minha percepção com as próprias coisas já que o mundo se constitui como percebido.
O mundo ser um percebido implica em voltar-se para o domínio do vivido, do pré-reflexivo, do imediato: o corpo como sensível exemplar. Não como ponto de partida e de chegada, mas o corpo e seu poder de ser afetado pelo sensível como centro de toda a problemática. O corpo todo dá a medida e as dimensões do mundo. É por isso que a linguagem poética significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido. O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível.
A sensibilidade ao mundo e ao outro é nosso primeiro elo com mundo. Em Merleau-Ponty o corpo deixa de estar na dependência do poder soberano da consciência (eu penso) para exercer a mediação com o mundo, marcando sua presença em nós. O fenomenólogo insiste em destacar a relação entre as coisas e meu corpo para afirmar que não há coincidência perceptiva. A experiência perceptiva é única, imprevisível e compartilhada: "[...] é ela a responsável de que, às vezes, eu permaneça na aparência, e outras, atinja as próprias coisas; ela produz o zumbir das aparências, é ainda ela quem o emudece e me lança em pleno mundo" (Merleau-Ponty, 1999b, p. 20). É o corpo encenando o mundo: vivificando-o.
Vida rítmica, ligada à dialética temporal dos repousos e das ações, das possibilidades de repetições, da liberdade dos começos, do agrupamento ativo e polimorfo dos instantes realizadores (Bachelard, 1989). É por isso que Agamben (2005) pode afirmar que não há humano inteiramente adulto. A infância não lhe abandona porque este é o nome e a tarefa do pensamento.
Linguagem Poética e Gesto Pedagógico
Reivindicar que as crianças habitem suas infâncias, na Educação Infantil, deixando de serem latentes, seres em germe, imperfeitos, não desenvolvidos, para emergirem em sua potência linguageira como outro, diferente do adulto, no jogo das transmissões e alteridades que marca o encontro entre duas experiências do tempo, o que instala os começos e o que apresenta o já começado, expõe a tensão que enfrentamos como pesquisadores e educadores para sonharmos e pensarmos processos pedagógicos com crianças pequenas. A complexidade da intenção de abordar a dimensão poética da linguagem nos processos de aprender a conviver convoca a emergência das contradições, das ambiguidades, dos paradoxos como condição de enfrentamento ao tema, apontando a impossibilidade de simplificar as questões.
Reivindicar a consideração pedagógica por uma experiência, mediada pela linguagem, que favoreça tanto as crianças quanto os adultos a tornarem-se presentes no que fazem e no que são, passa por um determinado encontro com e no mundo. Um encontro que busca na presença do presente, aqui e agora, uma densidade existencial capaz de deslocar as prévias determinações para os acasos indeterminados pelos interstícios dos instantes da ação pedagógica. Que seja uma experiência possível, ao mesmo tempo, de produzir uma presença não reduzida à simplificação de significados pela instrumentalidade de uma precoce escolarização. Que seja uma experiência de linguagem como gesto que reconhece a potência em que se apoia a linguagem, um retorno às infâncias do pensamento, no qual a linguagem recupera seu caráter gestual de meio puro, isto é, desvinculado de qualquer finalidade (ou de sua instrumentalidade). "O gesto linguístico, como todos os outros, desenha ele mesmo o seu sentido" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 253).
Enfim, que se permita a compreensão pedagógica de que é interagindo poeticamente com o mundo - e não se distanciando para analisá-lo e explicá-lo - que podemos, adultos com as crianças, constituir e imprimir sentidos aos fenômenos simultaneamente singulares e coletivos. É na existência, vivendo, que vamos aprendendo a juntos nos apropriarmos da alteridade do que podemos fazer pensando ou pensar fazendo.
A alteridade - nesse ensaio entre crianças pequenas e adultos - emerge não como distância ou separação entre duas subjetividades enraizadas em uma individualidade, mas como experiência da intercorporalidade, fundante da intersubjetividade numa troca e num cruzamento intermináveis na convivência (Merleau-Ponty, 1999b; 2012). Na perspectiva de Skliar (2012, p. 138) quando escreve "[...] a poética que é do outro, faz-me outro", ou seja, não para conceituá-lo ou abstraí-lo, mas para acolhê-lo como o outro em nós, outro tempo, outro modo de estar em linguagem, outro modo de perceber e agir. Convém assinalar que esses outrosnão se referem apenas a outras pessoas, mas à concretude dos lugares que habitamos, à escuta de processos no coletivo, suas tradições, à escuta, enfim, das vidas que neles são vividas.
Implica acolher um encontro de sentidos no tempo e não apenas nos espaços. Desengrenar o tempo, uma ruptura no real. Aqui, realidade não é representação ou identidade, não é algo além ou aquém de mim ou de minha ação no mundo, mas a existência de mim no mundo com o outro, que implica e engendra ação linguageira de rearranjar, refazer, reinventar e recriar o vivido a partir dos sentidos que vamos conferindo, instaurando, compondo, à experiência de coexistir e nos inserir - participar - no mundo comum. Para Bárcena (2012), viver não é outra coisa que estar no existir mesmo, pois a vida não é algo que possa explicar-se. Por isso, "[...] a cada instante também eu fantasio acerca das coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro do imaginário" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 6).
A presença no tempo supõe um encontro linguageiro no tempo do outro, uma cisão no real - que torna o real mais real - pela escuta e atenção à singularidade do tempo constituído por aquilo que na experiência tem de irrepetível e que diz respeito às vias de acesso ao poético (poesia, pintura, desenho, dança, canto, música, cinema - enfim, tudo que diz respeito à artesania de sentidos e significados que produz presença no mundo). O poético, em seu poder de fazer ser o que não é, produz visibilidades, é produção de presença enquanto ação transformativa do corpo operante no mundo, isto é, em seu poder de transformar e metamorfosear modos de agir em linguagem. A experiência é poética quando uma singularidade se reconhece na experiência do outro. Assim nos significamos na experiência coletiva. Aqui, a linguagem poética ensina ao pensamento - e à pedagogia - a lidar com a descontinuidade temporal e as temporalidades simultâneas.
O movimento que assegura a potência e a espontaneidade do fazer poético reside na expressividade do gesto, na abertura entre as palavras, no silêncio entre as notas musicais, no vazio entre os traços e manchas, no movimento. A experiência poética, nesse sentido, mais do que a objetividade de uma ação, é um modo de ação no mundo. Modo de ação que, por ser movimento do corpo no mundo, implica para Merleau-Ponty (1999a, p. 229) "[...] uma operação primordial de significação em que o expresso não existe separado da expressão [...]", pois "[...] a expressão é a linguagem da coisa mesma e nasce de sua configuração" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 432) e, portanto, não há necessidade de comandar os movimentos. A expressão organiza, ela mesma, o corpo. É muito diferente dizer que me expresso através do corpo de dizer meu corpo se expressae, portanto, não falaremos em expressar algo através de um gesto; no gesto expressivo encontramos uma totalidade indivisível entre linguagem e corpo. O irrepetível e único da confluência vital entre experiência temporal e experiência poética emergem dos fazeres transformativos do corpo, que promovem a propagação da sensualidade do sentir.
O poético, como um modo de ação do corpo expressivo no mundo, emerge nas infâncias como brincadeira, acolhendo e se nutrindo de vários repertórios que emergem da íntima relação entre a tensão do jogo e a diversão e alegria do regozijo, para expressar a necessidade de lançar o corpo à sensibilidade de falar, traçar, soar, movimentar-se, tingir, rir, cantar, modelar, construir e destruir objetos. Aprender a imaginar tem a ver com a insistência às resistências (Bachelard, 1989), à ação de tentar, de insistir, de fazer e refazer no sentido de errância, da experiência errática de tatear o real.
Tentar é tatear, é imaginar por que, é projetar movimentos e, por isso, a tentativa é dona de seu tempo, de seu ritmo, de seu valor. Dá certo ou não dá certo. E só alcança sucesso quando permite a quem a realiza seguir aprendendo, seguir projetando e deslocando-se, seguir imaginando e tecendo um mapa imprevisível de alianças com outras tentativas. Seguir respirando. Exige confiar em si e no mundo. Tentar é brincar, brincar é fazer e fazer consome tempo. A tentativa exige tempo para o corpo gerar possibilidades de resultados exitosos.
Os êxitos exigem considerar um princípio de distração e de vertigem que é nosso corpo. Porém, "[...] nosso corpo não tem o poder de fazer-nos ver aquilo que não existe; ele pode apenas fazer-nos crer que nós o vemos. [...] A percepção distraída nada contém a mais e nem mesmo nada de outro do que a percepção atenta" (Merleau-Ponty, 1999a, p. 55). Talvez, aqui, a força da experiência poética. Concentrados fazemos coisas, distraídos vemos, nas coisas que fazemos, um acréscimo que excede nossos limites, subvertendo o caráter das coisas. Concentrado no que nos outros provoca a distração, os alcançamos. Para Octávio Paz (2012), a distração é uma atração pelo reverso deste mundo. A desatenção relativa a um mundo é concentração relativa a outro mundo.
Quando se entrevê a existência de mais algum real, a desatenção de um é concentração no outro. É o ver como da aparição. Uma atenção, um deter-se em, que provoca uma disjunção que engendra uma desatenção - uma atenção distraída - capaz de dinamizar imagens que permitem sentir e fazer sentir algo que parece estar ali. Presença protagonizada pelo devir linguageiro que aproxima aparências distantes, que promove a participação e a coemergência de sentidos. Presença que faz ser o que não é no ato de dramatizar realidades-mundos para transfigurá-los.
Para a racionalidade escolar, distrair o olhar é ver sem atenção, é ver e não ver. O olhar divertido, porque superficial padece dos encantamentos mundanos exigindo constante correção para ater-se ao real e desviar-se do imaginativo: um olhar educado para ver melhor porque sabe ver a distinção entre atenção e distração. O olhar atento à realidade passa a ser o esforço dessa educação.
Porém, temos conquistado a realidade e perdido o sonho. Já ninguém mais tateia o mundo, ninguém sonda a obscuridade do material informe da linguagem, todo mundo trabalha, todo mundo cumpre tarefas. Porém, viver de uma forma ou de outra na linguagem não é trivial.
Torna-se então importante não apenas considerar e aceitar, mas fundamentalmente confiar nas crianças e acolher seus tempos de tentar, de explorar, de experimentar, de aprender, de reconhecer, de inventar, de tatear o real, de bolinar o mundo. A imaginação poética diz respeito à investigação, à exploração de experiências não previamente conhecidas. "Daí que o processo de produção poética seja um movimento de indagação e tateio em que a identificação de cada novo elemento modifica os demais ou os elimina, porque toda linguagem poética é um conhecimento 'fazendo-se'" (Valente, 1994, p. 22). Aqui, explorar, investigar, tentar arranjar e desarranjar o real é algo que as crianças sabem fazer muito bem, desde bebês.
A sensibilidade artesã do gesto pedagógico diz respeito ao poder de atenção distraída às coisas oferecidas aos sentidos e à imaginação, ao modo como nos afetamos pelo que não somos ainda, ao modo como podemos ser afetados pelo que já projetamos em nós. Uma força que torna habitável o presente. Ou seja, ao poder de sermos pelo mundo sentidos, olhados, pensados e imaginados. O modo como nos colocamos em escuta - em ressonância - ao eco das coisas em nós, o modo como as lembramos, as pensamos e as sonhamos formam um único tecido. O mundo me detém no instante do meu gesto com e sobre ele. Esta retenção-escuta de mim, o que em mim não sabia poder saber realizar, me encanta, me faz sair de mim porque passa e me atravessa, me transforma no ato de transformar essa passagem em sentido, para que aprenda a transformar este instante em pensamento ao animar as coisas e emprestar-lhes uma existência poética. Essa potência plástica da linguagem permanece em nós como fonte inesgotável de recomeços. Infâncias.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2015
Histórico
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Recebido
13 Nov 2014 -
Aceito
29 Jul 2015