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Inespecificidade e política na literatura brasileira recente

Unspecificity and politics in recent Brazilian literature

La inespecificidad y la política en la literatura brasileña reciente

Resumo

“A gente escreve o que ouve e nunca o que houve”, essa frase de Oswald de Andrade, recuperada na epígrafe do livro Delírios de damasco de Veronica Stigger, nos provoca a um redimensionamento do que entendemos das escritas literárias. Do mesmo modo, convoca uma prática de escrita não coincidente consigo mesma. A essa não coincidência, chama-se, aqui nesse texto, inespecificidade, noção da autora Florencia Garramuño, que nos serve de aproximação à leitura do poema “Sessão” de 2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque., de Roy David Frankel. Esse encontro, que centraliza o debate do texto, traz uma série de provocações às práticas literárias recentes e ao atual cenário político brasileiro figurado desde o golpe de Estado em 2016. O esforço é de tomar as práticas literárias atuais como espaço possível de construção política, sob a forma da impropriedade e da impertinência.

Palavras-chave:
inespecificidade; política; Roy Frankel

Abstract

“We write what we hear and never what happened”, this phrase by Oswald de Andrade, retrieved in the epigraph of the book Delírios de damasco , by Veronica Stigger, invites us to reconfigure what we understand about literary writings. Likewise, it calls for a writing practice that does not coincide with itself. This non-coincidence is called here in this text ‘unspecificity’ a notion by the author Florencia Garramuño, which serves as an approximation to the reading of the poem “Sessão” (2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque.), by Roy David Frankel. This encounter, which centralizes the debate in the text, brings a series of provocations to recent literary practices and to the current Brazilian political scenario figured since the Coup d'état in 2016. The effort is to take current literary practices as a possible space for political construction in the form of impropriety and impertinence.

Keywords:
unspecificity; politics; Roy David Frankel

Resumen

“Escribimos lo que oímos y nunca lo que sucedió”, la frase de Oswald de Andrade recuperada del epígrafe del libro Delírios de damasco de Veronica Stigger, impulsa un redimensionamiento de lo que entendemos sobre la escritura literaria. Asimismo, exige una práctica de escritura que no coincide consigo misma. Esta no coincidencia, en este texto, se denomina inespecificidad, noción de la autora Florencia Garramuño que sirve de aproximación a la lectura del poema “Sessão”, de Roy David Frankel (2017)FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque.. Este encuentro, que centraliza el debate en el texto, trae una serie de provocaciones a las prácticas literarias recientes y al actual escenario político brasileño figurado desde el Golpe de Estado de 2016. El esfuerzo es el de tomar las prácticas literarias actuales como un posible espacio de construcción política, en forma de impropiedad e impertinencia.

Palabras clave:
inespecificidad; política; Roy David Frankel

A proposta deste estudo é colocar à prova a possibilidade de articular a leitura do conceito de inespecificidade, de Florencia Garramuño (2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco. ), com dois aspectos das figurações poéticas surgidas do golpe de Estado que o Brasil sofreu em 2016. O primeiro seria composto pelo desenquadramento de origem e a provisoriedade da obra “Sessão”, de Roy David Frankel, um livro de poemas em que o autor seleciona alguns dos discursos pronunciados pelos parlamentares durante a sessão do golpe na Câmara de Deputados transcritos taquigraficamente. O segundo seria a abertura, a partir dessa prática discursiva inespecífica, da possibilidade de pensar outra potência para a prática democrática contemporânea, que não se reduza ao exercício de uma técnica do poder.

O inespecífico, enquanto categoria estética, opera como uma ação político-discursiva exclusivamente destituinte, em que não existe uma proposta de restabelecer determinada ordem de coisas, textos ou práticas artísticas. A inespecificidade obriga a obra a um jogo agonístico ao criar certa tensão em suas formas heterogêneas, e, desse modo, se expressa como força que negativa as estratégias discursivas do poder estabelecido. Para além disso, a inespecificidade está colocada por uma vontade coletiva, porque não se quer mais representar ou produzir um único relato, de um sujeito também único, e é isso que confere a essa prática uma destituição no âmbito formalista de qualquer poder constituído.

Segundo Florencia Garramuño:

Para essas práticas contemporâneas, uma leitura estritamente disciplinada ou disciplinária parece captar pouco do evento ou acontecimento, já que a crise da especificidade coloca em questão toda definição exclusivamente formalista da estética (2014, p. 99).

Por outro lado, nas palavras de Ana Kiffer, o efeito imediato do inespecífico é não somente apagar as fronteiras do dentro e fora, “mas, e sobretudo, o deixar entrever, no flash de uma fresta, que tais fronteiras, além de móveis, são efeitos visuais, sonoros, táteis, entre muitos outros, de construções e desconstruções permanentes e aleatórias” (2014, p. 63). Citando Bernard Andrieu, a autora conclui:

Não que sejam dissolvidas numa fusão ou confusão de gêneros, mas porque tornaram-se dispositivos operatórios para chegar até o outro lado do corpo, nesses lugares inéditos que se dão através da consciência experiencial e não mais somente através de categorias de julgamento (Andrieu, 2012, p. 42 apud Kiffer, 2014KIFFER, Ana (2014). A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (org.). Expansões contemporâneas - literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 63).

Essas colocações sobre o inespecífico nos aproximam de perspectivas epistemológicas que dialogam com o esforço de deslocamento que parte da crítica teórica brasileira tem realizado a respeito dos valores formais e éticos da arte e da cultura na contemporaneidade. Deslocamento que deriva, relativamente, das ameaças que nascem do discurso de perda da autoridade moral das humanidades elaboradas pela extrema direita política do país. Portanto, será que na base desses valores morais e éticos que nos inquietam podemos ainda vislumbrar, com a ajuda da recente noção de inespecificidade, certo racionalismo estético passado que nos têm levado novamente a uma linguagem opaca e muda frente aos conteúdos políticos de nosso presente? De acordo com Leonardo Villa-Forte, ao discutir a chamada pós-produção:

O que nos interessa pensar, entretanto, não é a inspiração, a reinvenção, a emulação ou a simulação, nem se trata aqui de um estudo das fontes, influências e influenciadores, mas sim de outros tipos de recriação: Reciclagem. Reaproveitamento. Remixagem. Transfiguração. [...] O gesto de fazer de um conteúdo original uma outra coisa, mas não por meio de uma invenção, e sim pela reproposição ou reenquadramento por seleção, edição e recontextualização (2019VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio . , p. 19).

Essa recontextualização da obra, ready-made, reaparece como prática diante da máxima de que tudo já foi dito e feito em termos estéticos literários. O silêncio ao qual relegamos uma determinada produção literária perante à experiência de horror de tempos tão sombrios e desastrosos, escapa por uma realocação dos discursos produzidos por esse mesmo horror. Talvez o desconforto em reencontrar, no corpo do poema, as notas taquigráficas do golpe de Estado vivido pelo país em 2016 seja um dos potenciais desse tipo de escrita: “A combinação de autorias não é algo a mais, mas a própria tessitura, o próprio jogo de cada um desses textos” (Villa-Forte, 2019VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio . , p. 41). É a coletividade de vozes, que mesmo dissonantes, dá corpo ao poema ‘Sessão” do autor Roy Frankel, e é nessa coletividade que temos erigido o corpo político que nos interessa antes como potência, para não cairmos na dualidade do velho debate cópia-original.

Giros epistemológicos

Faz algumas décadas Roberto Schwartz escreveu:

Sabe-se que progresso técnico e conteúdo social reacionário podem andar juntos. Esta combinação, que é uma das marcas de nosso tempo, em economia, ciência e arte, torna ambígua a noção de progresso. Também a noção próxima, de vanguarda, presta-se à confusão. O vanguardista está na ponta de qual corrida? (1992SCHWARTZ, Roberto (1992). Nota sobre vanguarda e conformismo. In: SCHWARTZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 43-48., p. 43).

Está claro que a mais recente expansão dos poderes técnicos e políticos e das grandes corporações industriais e financeiras, associada às teses neointegralistas tem significado, no Brasil, a destruição dos meios ecológicos de subsistência, o encolhimento das redes sociais, a despacificação da vida cotidiana. A utopia social e cultural, de signo revolucionário e emancipador, que a crítica literária como disciplina, por exemplo, carrega implícita enquanto potência, enfrenta-se, ademais, com a invalidação do projeto humanista ocidental de caráter eurocêntrico que a sustentou até o momento.

Nessa perspectiva, a pesquisadora Inês Signorini (2019SIGNORINI, Inês (2019). Escritas humanas, mas não humanísticas. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 544-565, maio/ago.), ao falar de escritas humanas e não humanísticas, assinala-nos o seguinte:

[Os exemplos apresentados] ilustram diferentes modos e graus em que tipos de escrita, em sentido amplo e não apenas verbal grafocêntrico, são capazes de minar e fazer divergir os convencionais consolidados pela tradição humanista, particularmente o verbal grafotécnico projetado pelo racionalismo tecno-científico (Signorini, 2019SIGNORINI, Inês (2019). Escritas humanas, mas não humanísticas. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 544-565, maio/ago., p. 560).

Ainda que Signorini não limite os casos do seu estudo apenas ao texto e ao livro, o seu raciocínio faz concorrer dois significativos eixos argumentativos, que nos interessam para a nossa discussão: o de uma práxis discursiva que desterritorializa códigos e convenções pré-existentes e um fora textual desenhado por espaços sujeitos ao desastre iminente em razão das fraturas do projeto humanista. Para dar forma a esta hipótese, a autora recorre ao pensamento da filósofa Rosi Braidotti, que parte de uma perspectiva pós-humanista crítica, nos termos do feminismo pós-estruturalista, para entender que qualquer projeto de emancipação no presente passa por encontrar alternativas ao aparato ontológico, epistemológico e político da tradição humanista e androcêntrica. Braidotti assinala, nesse sentido, o surgimento do que denomina “outros estruturais” do sujeito formado pela tradição humanista da renascença dos séculos XIV a XVI até o liberalismo e marxismo dos séculos XX e XXI. A mesma antiga tradição humanista que marcou os textos literários até bem recentemente (Signorini, 2019SIGNORINI, Inês (2019). Escritas humanas, mas não humanísticas. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 544-565, maio/ago.).

Esses “outros”, como indica Braidotti em entrevista a Cosetta Veronese, igualmente destacados por Signorini, já estavam ganhando corpo e se tornando incômodos por meio de movimentos sociopolíticos do século XX, como o movimento pelos direitos das mulheres, os movimentos antirracismo e pró descolonização, os movimentos antinucleares e pró meio ambiente. Esses coletivos vocalizaram os desejos desses “outros estruturais” da modernidade, que, como destaca no diálogo, sublinham o derradeiro colapso do velho centro humanista ou da posição de sujeito dominante (Veronese, 2016VERONESE, Cosetta. Can the humanities become post-human? Relation. Beyond Anthropocentrism, v. 4, n. 1, p. 97-101, June. , p. 98).

Atento a esses giros epistemológicos, o conceito de inespecificidade de Garramuño tem sido definido como uma crítica sobre a arte contemporânea que borra as fronteiras de pertencimento entre as disciplinas e questiona a propriedade não só como caráter estético, mas também enquanto crítica da vida em comum. Espaços e fronteiras instáveis produzem deslocamentos radicais que nos fazem pensar na própria atividade da escrita como passagem incessante entre regimes heterogêneos, seja no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de campos discursivos.

Para Karl Erik Schøllhamer e Heidrun Kriegger Olinto, no ensaio “O lugar da crítica na literatura e nas artes contemporâneas”, “Há uma emergência em tornar visíveis novos olhares e lugares para o exercício da crítica na literatura e nas artes contemporâneas” (Olinto e Schøllhammer, 2016OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2016). O lugar da crítica na literatura e nas artes contemporâneas. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik; SIMONI, Mariana (org.). Literatura e artes na crítica contemporânea. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio ., p. 9). A crítica da literatura na atualidade tem praticado não só um retorno aos conceitos clássicos e tradicionais, mas também se propõe como quem está entre, e, por isso, tensiona as demais formas da estética em seu exercício vivo no tempo contemporâneo. Nessa ótica, a expansão das misturas entre as artes e entre as mídias e certa unanimidade em admitir a indefinição da literatura enquanto campo autônomo, estimula o exercício experimental, ético, estético e político.

Desse modo, a literatura e a democracia, no sentido de suas práticas na contemporaneidade, parecem reiterar uma espécie de espectro caricatural benjaminiano com relação a sua prática anterior. Inclusive, essa ideia nos faz pensar se esse antecedente não era ele mesmo um simulacro das instituições constituídas nessas disputas de força? Ou seja, é de fato verificável, do ponto de vista prático, que a Literatura e a Democracia já foram tão rígidas a ponto de conter qualquer inespecificidade, mesmo dentro de sua própria constituição?

É cada vez mais certo que se quisermos propugnar a democracia, devemos pensar algo que não tenha relação alguma com aquilo que hoje se chama democracia. Essa retomada da política como prática da vida em comum e da cidadania parece ser redimensionada pelas escritas contemporâneas a partir de uma inespecificidade que experimenta uma retomada da política por esses corpos que escolhem escrever sob a forma do provisório.

Escrever sem escrever1 1 Referência ao título do livro Escrever sem escrever, literatura e apropriação no século XXI (Villa-Forte, 2019). - as taquigrafias do Golpe

A professora Vera Lúcia Follain, em seu prefácio para o texto Escrever sem escrever, literatura e apropriação no séc. XXI, de Leonardo Villa-Forte, escreve:

Os matizes que a arte assume na era da cultura digital, quando as ferramentas e mecanismos disponibilizados por computadores facilitam e estimulam o deslocamento de conteúdos de arquivo de um suporte para outro, assim como viabilizam alterações, à escolha de cada usuário, neste mesmo conteúdo. Somos então lembrados de que a reutilização e o reaproveitamento têm sido não só uma característica das artes contemporâneas como uma das maiores forças determinantes de nossa sociedade industrial-tecnológica (Follain, 2019FOLLAIN, Vera Lúcia (2019). Prefácio. In: VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. , p. 11).

A justificativa pela qual a autora demonstra o papel assumido pela arte nos últimos anos nos ajuda a entender, de certo modo, quais são as possibilidades do experimento literário. Do suporte clássico do papel e da caneta, passamos a uma dimensão infinita da escrita, que agora não ocupa mais as noções de autoria e originalidade:

O descentramento da autoria gerado pelo gesto de deslocar fragmentos de um texto original para inseri-los em outros contextos, apagando a sua origem, oferece ao leitor uma instigante reflexão sobre as desestabilizações provocadas pela prática da escritura como deslocamento ou montagem de outros objetos culturais (Villa-Forte, 2019VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio . , p. 12).

Essa discussão nos interessa porque a prática da inespecificidade empreendida no poema de Roy David Frankel centra-se, sobretudo, na questão da autoria, não tanto na forma do poema (métrica), ou de seu conteúdo, visivelmente político. A inespecificidade, nesse caso, está vinculada a um confronto com a categoria tradicional de autoria e consequentemente de posse do que se escreve.

Quando o autor escolhe a apropriação das falas dos deputados em sua forma ipsis litteris, ele compromete a origem desse discurso e cria uma estética de dissolução, ao constatar mais uma vez o ilegítimo e o injustificável que foi a sessão parlamentar de impeachment da presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados no dia 11 de abril de 2016. A base para os poemas foi a transcrição das notas taquigráficas das falas dos congressistas no momento em que pronunciavam os votos. No livro, o leitor desconhece o orador de cada discurso. A autoria dos próprios deputados se perde e cria-se um amontoado de palavras, delirantes e dispersas, entre a defesa da pátria e da “família tradicional brasileira”. Nem mesmo a autoria das falas mais lúcidas, que identificavam o desastre político que se instalava e que se projetava para o futuro, é poupada do apagamento deliberado por Frankel.

Há intervenções de ordem gráfica internas aos discursos. Essas intervenções operam sobre o conteúdo semântico e se unem a uma intervenção maior que é a própria seleção dos discursos. A autoria proposta é coletiva: o autor do “Sessão” é a Câmara dos Deputados. Porém, não há um desenquadramento radical, os aspectos políticos que caracterizam a origem enunciativa dos discursos não são abandonados, embora sejam claramente recontextualizados, a remoção de si não se dá de maneira completa.

Há um grande conjunto de intertextos não explicados, como citações a outros políticos, menções aos partidos existentes e diversas referências a períodos relevantes da história brasileira - sua fundação, a Ditadura Militar, o impeachment de Fernando Collor de Mello. São fios propositadamente soltos deixados para o leitor.

A autoralidade enquanto categoria fixa, emanando sentidos, pode ser substituída por outras mais fluidas e que permitam um maior mergulho no potencial perspectivizante da literatura. Ao ser retirado de seu contexto funcional de origem e inserido numa situação diferente, os discursos perdem características antigas, mas, por outro lado, o novo ambiente sinaliza suplementos inusitados que reorganizam e intensificam a atitude do receptor. O leitor precisa reajustar o olhar, nas palavras de Villa-Forte: “A colagem não é um monstro destruidor, mas uma maneira orgânica de lidar com a coletividade de registros textuais e produzir sentido a partir desse coletivo” (2019VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio . , p. 20).

As oralidades transcritas pelo poema de David Frankel, não escancaram apenas o delírio, o escárnio, ou, em termos mais acadêmicos, a anomia do projeto democrático do Brasil da segunda década do século XXI. Expõem igualmente as antigas estruturas coloniais do país que o constituem desde o início de sua formação política. Nesse aspecto, no poema não há diferenciação entre as figuras que participam do parlamento, quer dizer, entre as inclinações a favor ou contra o impeachment. Se igualam em ambas as falas, portanto, o projeto colonial, que parece continuar operando com força no Brasil, e o caráter econômico, que o neoliberalismo empreende de modo tão violento na América Latina.

Nesse ponto, é importante trazer a materialidade do poema de Frankel para demonstrar a escolha estético-ética que o autor faz das notas taquigráficas. E, não à toa, o título dessa seção do poema é “As taquigrafias do Golpe”. Em um esforço de comparar a velocidade em que o processo de impeachment foi aprovado e votado no Congresso Nacional e a técnica da taquigrafia, podemos vislumbrar que o mesmo maquinicismo, por meio do qual funciona esse método de escrita, foi aplicado no julgamento da presidenta Dilma Rousseff. Os corpos de fala (parlamentares) tiveram pressa em proferir os discursos e provocar a queda do sistema representativo democrático do país. Contudo, inversamente à velocidade dos discursos, temos a permanência das palavras. Permanência essa priorizada pelo poema de Frankel, não só pelos motivos já referidos anteriormente, mas também pelo destaque que o autor outorga às palavras Brasil, brasileiro e país:

Sou um

Deputado municipalista
e do agronegócio.

Portanto,
em nome
do Paraná,
pelo desenvolvimento e progresso

Do Brasil,
voto sim
(Frankel, 2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque., p. 67, grifo nosso).
Contra

a ladroeira,
contra
a imposição desse partido de
esquerda,
que quer

transformar este Brasil,

numa ditadura de esquerda,
o meu voto é sim
(Frankel, 2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque., p. 68, grifo nosso).
Sr. Presidente,

em respeito
à Constituição

Brasileira

que ajudei
a escrever em 1988, em respeito à opinião do povo do
Distrito Federal e do País,

voto sim, contra
a corrupção, contra
a dilapidação das empresas estatais e dos fundos
de pensão
e a favor
de um novo
tempo
(Frankel, 2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque., p. 81, grifo nosso).
Por não haver

saída
fora da
democracia; em homenagem ao povo

brasileiro,
que carrega
as marcas de ausência de democracia na pele
e na alma; contra
a corrupção, que está sentada na Presidência desta
sessão; contra
o golpe e a traição; em defesa dos direitos e em defesa
da democracia, eu voto contra o golpe, eu voto
não
(Frankel, 2017FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque., p. 81, grifo nosso).

O deslocamento dessas palavras específicas da ordem sintática que deveria compor o corpo do poema nos traz outro aspecto importante do poema. Aspecto esse definido pelo significado que cada uma dessas palavras carrega particularmente na construção da noção de Estado-Nação, que tem sido reivindicado, desde a modernidade, pelas forças políticas de extrema direita como forma de pertencimento, identificação e, consequentemente, de controle das massas populacionais. No entanto, aqui, em razão da seleção de Frankel, elas são colocadas em xeque. O destaque mostra como elas são apropriadas pelos discursos de poder. Porém, por obra da inespeficidade da autoria, são despossuídas dessa autoridade. O corpo do poema, que manifesta a banalidade dos argumentos dos discursos, ridiculariza o significado das palavras destacadas. Nesse caso, perder o contexto da origem e da autoria não desfavorece o procedimento estético e reitera a ética da escrita e sua potência nas transformações políticas-discursivas.

Sendo assim, o inespecífico, em a “Sessão”, é um regime heterogêneo que funciona como disputa dentro do que chamamos forças político-discursivas, no sentido em que concorre para a construção do que Garramuño (2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco. ) define como mundos em comum. Essa força é operada por um sujeito que reivindica a prática da inespecificidade como forma de vida frente às linhas de poder. São esses vetores de poder ou biopoder, na perspectiva das leituras políticas do filósofo Giorgio Agamben, que decidem, em seu limite, quem morre e quem vive nas sociedades contemporâneas, no sentido simbólico e no sentido material (Agamben, 2006AGAMBEN, Giorgio (2006). Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pre-textos.).

A partir dessa breve leitura, em que tentamos nos aproximar do texto poético contemporâneo de Frankel e da inespecificidade proposta por Garramuño, deixamos algumas lacunas em relação a uma crítica em literatura e arte que, em resposta ao constante domínio das formas e das instituições, tem se posicionado cada vez mais próxima de uma apropriação dos meios e suportes contemporâneos. Isso quer dizer muito mais perto de uma crítica aos modos e moldes de vida do próprio, da propriedade, tanto nos termos de gestão, da vida em comum, quanto do pertencimento a categorias herméticas da vida em comum, como nos assinala igualmente as teses de Garramuño.

Nesse sentido, a proposição não é simplesmente fazer uma análise literária de um texto produzido a partir de um acontecimento político e histórico, mas, antes, de propor outro modo de ver e produzir literatura, que não esteja mais apartado das experiências e de todos os corpos que podem produzi-la. Para finalizar, retornemos à provocação de Villa Forte, quando diz:

Do ponto de vista brasileiro e latino-americano, seria infértil manter uma posição binária e professar que certa literatura deve ser superada porque só outra tem valor. A América do Sul é o continente dos múltiplos tempos sobrepostos. Numa esquina, o passado. Na outra, o futuro. Há mais riqueza no “e” do que no “ou” (2019, p. 212).

O chamamento à experimentação é fato inconteste das práticas literárias recentes no Brasil. Esse exercício literário é o que dimensiona nossas possibilidades e cria a partir da multiplicidade, da indefinição dos suportes e da quebra desse binarismo entre autoria e originalidade. Somos o próprio tempo do múltiplo. Desse modo, a inespecificidade questiona não os modos pelos quais a literatura pode ou deve existir, mas igualmente os meios e suportes pelos quais a produção literária atual tem se desenvolvido. Seu inegável diálogo com outras artes e disciplinas encerram o que o próprio da literatura imagina ser.

A impropriedade e a impertinência dos textos contemporâneos deixam em aberto a potência da literatura, muito para além de ser uma instituição ou uma disciplina. A literatura e o seu fazer na contemporaneidade evidenciam como a imaginação e a múltipla existência produzem rupturas incessantes, não só do sistema, mas também dos regimes de si do sujeito, entre o eu e o outro. O fazer literário é essa possibilidade imaginativa, da abertura, da diferença, da construção de mundos em comum. Assim como podemos ver em “Sessão”, a quebra da unicidade dos discursos demarcando o golpe de Estado que vivemos recentemente no Brasil, podemos ver também a potência que o fazer literário trouxe ao realocar esses sentidos. Vê-los pelo corpo do poema só anuncia que, para além dos suportes utilizados, a literatura pode deformar seu pressuposto contextual.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio (2006). Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pre-textos.
  • FOLLAIN, Vera Lúcia (2019). Prefácio. In: VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio.
  • FRANKEL, Roy David (2017). Sessão. São Paulo: Editora Luna Parque.
  • GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco.
  • KIFFER, Ana (2014). A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (org.). Expansões contemporâneas - literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2016). O lugar da crítica na literatura e nas artes contemporâneas. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik; SIMONI, Mariana (org.). Literatura e artes na crítica contemporânea. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio .
  • SCHWARTZ, Roberto (1992). Nota sobre vanguarda e conformismo. In: SCHWARTZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 43-48.
  • SIGNORINI, Inês (2019). Escritas humanas, mas não humanísticas. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 544-565, maio/ago.
  • VERONESE, Cosetta. Can the humanities become post-human? Relation. Beyond Anthropocentrism, v. 4, n. 1, p. 97-101, June.
  • VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio .
  • 1
    Referência ao título do livro Escrever sem escrever, literatura e apropriação no século XXI (Villa-Forte, 2019VILLA-FORTE, Leonardo (2019). Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio . ).

Editora:

Regina Dalcastagnè

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2021
  • Aceito
    04 Ago 2021
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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