Este documento está relacionado com:
Este documento está relacionado com:

Open-access Organização das memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+ sob a perspectiva da desclassificação

Organization of LGBTQIAPN+ memories and cultural heritages from the perspective of declassification

Resumo:

O campo da organização do conhecimento, inserido na área da Ciência da Informação, se dedica ao desenvolvimento de fundamentos e técnicas de seleção, organização, armazenamento, comunicação e recuperação dos documentos que transmitem saberes e informações, capazes de gerar novos conhecimentos. Via de regra, a organização do conhecimento se faz a partir de categorias preestabelecidas por uma determinada cultura hegemônica e totalizante, mediante uma lógica essencialista e hierarquizante, sem compreender, muitas vezes, a violência e o lugar hegemônico de onde partem suas propostas. Assim, a partir da percepção das problemáticas do campo da organização do conhecimento, buscamos amparar nossos olhares sob a perspectiva da desclassificação de García Gutiérrez, que propõe a introdução do pluralismo lógico e a aceitação da contradição como ferramentas fundamentais para representar, organizar e promover o protagonismo de vozes marginalizadas e esquecidas/apagadas nos contextos de memórias e patrimônios culturais. Para tanto, nosso objetivo é delinear os aspectos teóricos e epistemológicos que circundam o campo da organização do conhecimento, a fim de estabelecermos um diálogo e um aporte para direcionarmos nossas ações de organizar o conhecimento com vista para a emancipação dos sujeitos, que compõem a tecitura cultural da comunidade LGBTQIAPN+. Para isso, utilizamos uma abordagem metodológica exploratória e qualitativa, que se baseia na revisão narrativa da literatura para a construção deste estudo. Portanto, este artigo é um convite para deslocarmos nossos olhares para as margens dos conhecimentos científicos e sociais, de modo a superarmos as lógicas opressoras, dominantes e universalistas que inferem violências simbólicas e epistemológicas na organização do conhecimento, para um conglomerado de indivíduos e grupos sociais.

Palavras-chave: organização do conhecimento; desclassificação; memória; cultura LGBTQIAPN+; patrimônios culturais

Abstract:

The field of knowledge organization, inserted in the area of Information Science, is dedicated to the development of fundamentals and techniques for the selection, organization, storage, communication, and retrieval of documents that transmit knowledge and information, capable of generating new knowledge. As a rule, the organization of knowledge is based on categories pre-established by a certain hegemonic and totalizing culture, based on an essentialist and hierarchical logic, without understanding the violence and the hegemonic place from which its proposals come. Thus, based on the perception of problems in the field of knowledge organization, we seek here to support our views from the perspective of García Gutiérrez's declassification, which proposes the introduction of logical pluralism and the acceptance of contradiction as fundamental tools to guarantee representation, organize and promote the protagonism of marginalized and forgotten/erased voices in the contexts of cultural memories and heritage. Thus, when we enter the fields of memory, culture, and heritage studies, it is noticeable the absence of legal frameworks that guarantee the organization, preservation, and dissemination of the memories and cultural heritage of the LGBTQIAPN+ community. Therefore, the research proposed here invites us to shift our gaze to the margins of scientific and social knowledge, to overcome oppressive, dominant, and universalist logics that inflict symbolic and epistemological violence in the organization of knowledge, affecting a conglomerate of individuals and social groups. Thus, by guaranteeing the protagonism of the voices that emerge from the ghettos and slums of knowledge, we are sharing feelings of renewal and revolution in scientific and social activities.

Keywords: organization of knowledge; declassification; memory; LGBTQIAPN+ culture; cultural heritages

1 Introdução

A Ciência da Informação (CI), área dedicada a investigar as propriedades e o comportamento da informação, os fluxos informacionais, os mecanismos para processá-la e otimizar a comunicação, a acessibilidade e o uso da informação, como afirmam (Belkin; Robertson, 1976: Borko, 1968), é necessariamente multidisciplinar e participa ativamente da transformação da sociedade contemporânea na chamada sociedade da informação. Isso justificado pela forte dimensão social e humana que permeia os alicerces basilares da área (Saracevic, 1996).

Por sua vez, Duque Cardona (2020), partindo do questionamento “Para que e para quem é a CI?”, sugere ser necessária uma revolução científica dos paradigmas da informação, tendo como marco analítico a decolonialidade, a interculturalidade, os fundamentos de estudos culturais e as epistemologias do sul global, com o intuito de que:

A produção e transferência de informação não responda exclusivamente à lógica de reprodução do conhecimento científico, mas envolva conhecimentos locais, situados, contextualizados e em consonância com a história e a memória latino-americanas (Duque Cardona, 2020, p. 65, tradução nossa).

Em última análise, o que a autora propõe é uma alternativa para o desenvolvimento da área da Ciência da Informação (CI), buscando transpor as barreiras coloniais, opressoras e dominantes que circundam as bases teóricas e epistemológicas da CI.

Por sua vez, o campo da Organização do Conhecimento (OC), inserida na área da CI, se dedica, conforme Esteban Navarro e García Marco (1995), ao desenvolvimento de fundamentos e técnicas de seleção, organização, armazenamento, comunicação e recuperação dos documentos que transmitem saberes e informação, capaz de gerar novos conhecimentos. Em consonância, Bräscher e Café (2010, p. 93) afirmam que a organização do conhecimento, é o processo de “[...] construção de modelos de mundo que se constituem em abstrações da realidade”. Seu produto, a representação de conhecimento, define-se como uma “estrutura conceitual que representa modelos de mundo”, que permite descrições e explicações de fenômenos da realidade.

Assim, ao questionar as estruturas conceituais e epistemológicas do campo da organização do conhecimento, Sales (2021) parte das discussões de Olson (2001) e de García Gutiérrez (2007, 2018) para refletir sobre:

[...] os impasses causados pela hegemonia do pensamento ocidental, pautado quase que exclusivamente na relação dicotômica e no binômio diferenças-semelhanças, responsáveis pela construção de sistemas classificatórios demasiadamente rígidos e deterministas (Sales, 2021, p. 20).

Nesse sentido, o autor chama a atenção que “[...] nas sociedades coexistentes ao século XXI, o que se relacionam não são mais apenas designações verbais e suas cargas conceituais, mas sim uma pluralidade de signos pertencentes às mais diversas manifestações semióticas” (Sales, 2021, p. 14). Na ótica desse autor, é necessário municiar o campo da organização do conhecimento de aspectos éticos e de responsabilidade social, procurando promover a democracia e a inclusão social. Para tal, é imperativo assumir uma postura crítica em relação às ferramentas já existentes e consolidadas na área, dado que estas são dispositivos de poder que muitas vezes reproduzem e legitimam discursividades hegemônicas e homogeneizantes.

Nesta lógica, o pesquisador espanhol Antonio García Gutiérrez busca apresentar uma nova perspectiva para se pensar a organização do conhecimento, examinando os horizontes epistemológicos e o próprio processo humano de organização do conhecimento. Via de regra, essa organização se faz a partir de categorias preestabelecidas por uma determinada cultura hegemônica e totalizante, partindo de uma lógica essencialista e hierarquizante, sem compreender a violência e o lugar hegemônico de onde partem suas propostas (García Gutiérrez, 2008).

Assim, a teoria da desclassificação, proposta por García Gutiérrez é uma:

[...] incursão sobre as possibilidades do pluralismo lógico e da paraconciência na construção dos conhecimentos e memórias, em que chega a reabilitar a contradição como recurso próprio para a garantia do dissenso nas redes de conhecimento e memória (Sodré, 2008, p. 8).

Definida pelo autor:

A desclassificação envolve basicamente a introdução do pluralismo na lógica central da classificação. É uma operação metacognitiva e não automática que, em cada ação do classificador, requer uma consciência completa da incompletude, do preconceito e da subjetividade explícita. Com a tecnologia atual, é possível elaborar procedimentos e sistemas de classificação baseados na desclassificação. Mas tais técnicas e ferramentas também terão que passar por uma revolução epistemológica em todos os seus protocolos e estratos. (García Gutiérrez, 2011, p. 10, tradução nossa).

Consequentemente, a Ciência da Informação (CI), como área multidisciplinar, dedicada a investigar e promover as propriedades, fluxos e transformações da informação, pode promover um profícuo diálogo com a sociedade, “[...] que não apenas produz, mas, consome informação e, sobretudo, seus bens culturais, pois a informação recolhida, processada e decodificada é difundida na sociedade através do patrimônio tanto material como imaterial” (Azevedo Netto, 2004, p. 121). Desta forma, a CI e a OC precisam da participação efetiva dos seus agentes para preservar as informações e as memórias no presente com a expectativa de transmiti-las para as gerações futuras, através das ações de registrar os fatos, conservar os monumentos, organizar os registros e promover a mediação da informação e da cultura pertinentes à memória social e coletiva dos variados grupos sociais.

Múltiplas são as culturas e comunidades existentes em uma sociedade. Nosso foco aqui, está direcionado às comunidades de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, pessoas Não-bináries e demais identidades e vivências sexuais e de gênero. Neste estudo, representadas pela sigla LGBTQIAPN+. Embasados na luta por direitos, na construção de políticas públicas para equalizar a existência, na (re)existência e ressignificação dos corpos, esses grupos sociais buscam romper com culturas patriarcais, autoritárias e excludentes e passam a produzir seus próprios símbolos e significados culturais. Todavia, como destacado por Baptista (2017, p. 133) “[...] é notório que a ausência de marcos legais interessados na população LGBT culminou não só na perseguição e violência (física e/ou verbal) mas também de exclusão social e cultural”, o que nos leva a questionar os modelos de culturas preserváveis, bem como as políticas públicas acerca desta área, sendo excludentes e elitizadas, invisibilizando as diversidades culturais e cerceando as percepções das transformações históricas.

Desta forma, Diego Barbosa da Silva (2018) e Marcos Aurélio da Silva (2017) situam as expressões culturais da comunidade LGBTQIAPN+ ao citar as territorialidades, os festejos, as artes, a linguagem e as performances, constituindo-se o lócus de trocas simbólicas e representações de pertencimento dos indivíduos e do coletivo de forma não homogênea. Priorizando as interseccionalidades e subjetividades, procurando respeitar as variações e os regionalismos, na tentativa de ampliar e garantir a pluralidade das culturas LGBTQIAPN+ passíveis de resgates históricos (memórias e patrimônios), afirmando os sujeitos LGBTQIAPN+ como grupo social atuante e constituinte da nação brasileira.

Partindo das discussões acima expostas, é possível questionar como podemos mobilizar, por meio das noções de pluralismo lógico e inter/transculturalidade, uma organização de memórias, culturas e patrimônios LGBTQIAPN+ de modo a reduzir desigualdades, apagamentos e silenciamentos de grupos sociais marginalizados?

A observação das violências simbólicas e estruturais vivenciadas por sujeitos e coletivos marginalizados, esquecidos e oprimidos justificam esta pesquisa, visto que as memórias e conhecimentos são ancorados pela disputa de poder através de dispositivos sociais que limitam a participação e emancipação destes sujeitos, impedindo a construção de novos saberes e novos fazeres. Tomamos como ponto de partida a demarcação de lugares de onde falamos, como reflete Djamila Ribeiro (2017), a fim de superar o lugar de objeto de pesquisa para assumir o protagonismo nesta empreitada. Isso, porém, como afirma Spivak (2010), não garante que as vozes subalternas sejam ouvidas, portanto, ao definirem-se, classificarem-se e representarem-se, os sujeitos colocados à margem buscam romper os pensamentos, conhecimentos e memórias hegemônicas e universalizantes.

Assim, objetivamos com este artigo, delinear os aspectos teóricos e epistemológicos que circundam o campo da organização do conhecimento, inserido na ciência da informação, a fim de estabelecermos um diálogo e um aporte para direcionarmos nossas ações de organizar o conhecimento com vista para a emancipação dos sujeitos, em especial os sujeitos que compõem a tecitura cultural da comunidade LGBTQIAPN+. Iremos nos utilizar da perspectiva pós-estruturalista da desclassificação, desenvolvida por Garcia Gutiérrez, visando emancipar as vozes e saberes marginalizados e subalternizados pela colonialidade e pelos discursos dominantes. Para alcançar este propósito, utilizamos uma abordagem metodológica exploratória e qualitativa, que se baseia na revisão narrativa da literatura para a construção deste estudo.

Assim, a metodologia exploratória e qualitativa empregada visa aprofundar a compreensão de fenômenos complexos em contextos pouco explorados. Priorizando uma interpretação contextual e narrativa, nosso objetivo é examinar minuciosamente o tema em análise, buscando novos insights e formulando hipóteses exploratórias que contribuam para o avanço do conhecimento (González de Gómez, 2000).

A análise narrativa da literatura desempenha um papel crucial ao situar nosso estudo no contexto acadêmico e científico existente. Segundo Flor et al. (2021), as revisões narrativas geralmente abordam os assuntos de forma ampla e são basicamente análises de revistas, livros e artigos baseadas na interpretação do autor. Este método é subjetivo e pode variar de acordo com a vivência e experiência do autor da pesquisa. Reconhecemos que, apesar de subjetiva, essa abordagem proporciona uma visão abrangente e contextualizada do tema, estabelecendo uma base sólida para a construção do conhecimento (Souza et al., 2016).

Por fim, ao adotarmos uma abordagem metodológica orientada para a decolonialidade, buscamos promover uma reflexão crítica sobre os métodos e teorias utilizados. Reconhecemos a importância de nos afastarmos de discursos hegemônicos e opressores, refletindo esse compromisso em nossa escolha metodológica. Por meio da aplicação crítica de métodos qualitativos e exploratórios para valorização de perspectivas subalternizadas, almejamos contribuir para a construção de um conhecimento mais inclusivo, diversificado e emancipatório (Ribeiro, 2014; Mattos, 2015).

2 Organização do conhecimento e desclassificação

Para a Ciência da Informação, a organização do conhecimento, conforme Esteban Navarro e García Marco (1995), ocupa-se de princípios, métodos e instrumentos que buscam integrar referenciais teóricos e metodológicos que propiciem o diálogo interdisciplinar para aprimorar o desenvolvimento de processos, produtos e instrumentos de organização do conhecimento, visando sua representação e consequentemente a recuperação destes conhecimentos e memórias.

Para Bräscher e Café (2011, p. 25) “[...] a Organização do Conhecimento, como campo de estudo, está fundamentada essencialmente em análises de cunho semântico” que buscam estruturar visões de mundos, mapeando os relacionamentos semânticos, pragmáticos e funcionais das representações conceituais e os apresentando para determinado grupo social. Este conhecimento aceito como algo socializado, portanto, um fenômeno social, necessita ser representado a partir de modelos e instrumentos, a fim de serem recuperados e socializados.

A organização do conhecimento, conforme Farias (2019), consiste no resultado das ações e interações sociais, que integra tanto processos de ordem prática como desenvolvimento de técnicas e instrumentos para organizar o conhecimento. Integra ainda aspectos de ordem crítica e reflexiva, abrangendo componentes éticos e socioculturais que visam garantir a representatividade da diversidade cultural.

Por sua vez, ao observar as lógicas e sistemas de classificação, sejam científicas ou da própria razão humana, García Gutiérrez (2006, p. 110) afirma que “[...] classificar, no sentido tradicional, divide e separa segundo princípios hierarquizantes e totalitários. Desclassificar, por outro lado, é introduzir uma nova ordem, classificando segundo diferentes lógicas, para agregar, reunir.” . Desta forma, haveríamos de evitar o hermetismo, o estancamento, o dogmatismo e o relativismo, e dotar-se de configurações abertas, permeáveis, sensíveis e plurais.

A classificação convencional é baseada em uma lógica dicotômica subjacente que prioriza hierarquizações sendo ancorada em visões indiferentes ao pluralismo lógico/cultural. É, ainda, embasada em uma falsa neutralidade inerente aos mediadores culturais, o que sabemos ser impossível, pois toda ação tem base ideológica, seja ela “dominante” ou “subalterna”. A ação desclassificadora vai perturbar a dicotomia da classificação convencional, como uma frente aberta, possibilitando uma redescrição alternativa para pensar a transcultura e abrir caminhos para os indivíduos e comunidades construírem ferramentas de resistência, reclassificação e autoclassificação, assumindo o protagonismo da organização e/ou produção de conhecimentos e memórias (García Gutiérrez, 2008). Importante observar, que García Gutiérrez não propõe uma substituição das ferramentas convencionais de classificação e organização de conhecimentos e memórias, mas alia-se a elas de modo a superar as defasagens inerentes.

Assim, como obstáculos epistemológicos reconhecidos nas práticas de construção, organização e disseminação de conhecimentos e memórias, segundo García Gutiérrez (2006, p. 106), “[...] têm sido impostos dogmas e repressões múltiplos e redundantes em relação aos modos humanos de se autoconhecer e de perceber o mundo do qual faz parte.” acabando por reproduzir e perpetuar violências simbólicas e estruturais, estabelecendo uma pré-programação universalista e homogeneizante por uma lógica única e universal. Sendo que a diversidade humana é pré-condicionada à sua própria contradição.

Por sua vez, a epistemologia amparada pela lógica contribui nas construções e organizações de conhecimentos e memórias com base na máxima da não contradição, como nos mostra Olson (2007), e na exploração de sistemas lógicos únicos e dominantes, usurpando destes o pluralismo lógico e o uso da contradição em nome da estabilidade, normalidade, universalidade e ausência de violência. Em outras palavras, tais práticas classificatórias são amparadas por lógicas inimigas da diversidade, dado que é a partir das subjetividades e das práticas plurais e emancipatórias que podemos garantir a diversidade.

Assim, ao assumirmos a contradição como uma condição inerente dos sujeitos e coletivos, passamos a identificar a complexidade do mundo, e, deste modo, ordenar considerando também a desordem, a partir de uma classificação evolutiva, crítica e plural. Para assim, desenvolver estratégias e ferramentas que favoreçam a explicação de contradições adquirindo habilidades desconhecidas para perceber outras perspectivas da realidade a partir de territórios negados, de nós mesmos ou nosso próprio sistema excludente e disjuntor de raciocínio.

Para tanto, García Gutiérrez abraça o conceito de epistemografia interativa, incorporando-lhe uma dimensão sociocultural, ética e política, em suma, uma crítica pós-moderna. Esta epistemografia interativa se ocupa então do conhecimento despercebido, e/ou silenciado/apagado, tendo como objetivo a organização horizontal e interativa dos conhecimentos e memórias. É a partir de uma posição sensível que adentraríamos “[...] tanto nos privilegiados vice-reinados das áreas científicas como na imensidão das favelas do saber, mas com interesses reais e conhecimento digno” (García Gutiérrez, 2006, p. 105).

Desta forma, o autor propõe um novo lugar de enunciação, pós-epistemológico, presidido pela hermenêutica, sem fronteiras epistemológicas, sem necessidade de hierarquização, exclusão, fragmentação e disjunção. A epistemografia deve ser orientada por um conhecimento situado, no sentido proposto por Donna Haraway (1988), ou seja, partindo de lugares determinados, para compensar o relativismo crescente que impede a averiguação crítica.

Portanto, a desclassificação parte da introdução de operadores teóricos que visam eliminar as hierarquias, tornando os conceitos não mais redutores e limitantes, mas ampliando as questões éticas, políticas e sociais, estabelecendo elos de ligações entre os conceitos, os sujeitos e as comunidades participantes de uma determinada rede. A desclassificação é uma ferramenta central da epistemografia. Sua função consiste em instalar o pluralismo lógico no coração mesmo da classificação. Com efeito, se a perspectiva lógica permanece predominantemente linear e monológica, os resultados de sua ação poderiam ser “liberados”, em virtude do ato de desclassificar.

3 Memórias, culturas e patrimônios

Os autores Pelegrini e Funari (2008, p. 19) identificam a cultura não como algo dado, como “[...] uma simples herança que se possa transmitir de geração a geração. Ela é uma produção histórica, como parte das relações entre os grupos sociais”. Assim, podemos afirmar que a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social, possibilitando o funcionamento local e global da sociedade em sua plena diversidade e contradição.

Assim também, Stuart Hall (2001) define cultura como o terreno real de práticas, representações e costumes de qualquer grupo histórico específico. Para ele, a cultura não tem um caráter fixo. Ao contrário, ela é fluida, coletiva e produtiva. Fluida, pois, é dinâmica e em constante transformação. Coletiva, porque é produzida e reproduzida através das relações sociais. E produtiva, por suas ações e efeitos projetados nas relações e representações sociais. Isso implica em considerar que em toda prática social se encontram envolvidas em questões de significado cultural (Pinho; Pulcino, 2016).

Deste modo, um discurso acolhido como culturalmente verdadeiro, além de julgar e classificar, atua desqualificando e excluindo outros discursos e, com isso, reforça a sua hegemonia de discurso universal. Nas relações sociais, aquele que se constitui no discurso dominante, e com isso na verdade estabelecida, detém o poder em comparação ao outro, desprovido desta verdade. O discurso, a verdade e o poder são construídos na relação que se estabelece entre as pessoas, sem que ninguém seja detentor (Foucault, 2009).

A cultura produz sentidos e significados. Esses sentidos estão contidos em histórias, memórias e patrimônios que servem de referências para a constituição das identidades. Os indivíduos com suas identidades serão responsáveis pela perpetuação dos elementos culturais, isto é, pela transmissão cultural. Elementos culturais dão forma às identidades. Enquanto cada indivíduo é um agente de reprodução e modificação dos elementos da cultura. A identidade, por sua vez, abarca um conjunto de identidades transculturais, dado que possuímos identidades sexuais, de gênero, étnicas, religiosas, econômica, etc., entretanto, apesar de ser multidimensional, a identidade não perde sua unidade, uma vez que cada indivíduo irá integrar uma pluralidade de referências e marcadores sociais em seu eu. A identidade é única, mas também fragmentada (Pinho; Pulcino, 2016).

A construção das memórias perpassa por diversos meios que corroboram para a apropriação cultural e o sentido de pertencimento a um determinado grupo social. Segundo Pollak (1992, p. 204):

[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela também é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (Pollak, 1992, p. 204).

Na memória coletiva o passado é permanentemente construído e vivificado enquanto é ressignificado. Assim, Schmidt e Mahfoud (1993, p. 292) afirmam que neste sentido “[...] a memória coletiva pode ser entendida como uma forma de história vivente. A memória coletiva vive, sobretudo, na tradição, o quadro mais amplo onde seus conteúdos se atualizam e se articulam entre si”. A memória coletiva, para Halbwachs (2013), desempenha um papel fundamental nos processos históricos. Por um lado, dando vitalidade aos objetos culturais, sublinhando momentos históricos significativos e, preservando o valor do passado para os grupos sociais, por outro, sendo a guardiã de objetos culturais que atravessam os tempos e que, então, pode vir a se constituir em fontes para se preservar as histórias e memórias dos grupos sociais.

Portanto, a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social. Construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. Assim, Pollak (1992, p. 200), afirma que “[...] a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”.

Já, o patrimônio cultural entendido por Pelegrini e Funari (2008 p. 28), como estando “imbricado com as identidades sociais e resulta, primeiro das políticas do estado nacional e, em seguida, do questionamento no quadro da defesa da diversidade”. De acordo, Costa (2011), reitera que cultura, memória, informação e patrimônio, em coerência com as políticas e tendo em vista os valores constitucionais da dignidade individual e coletiva, contribuem para o desenvolvimento emancipatório das construções coletivas dos sujeitos e dos grupos sociais.

Segundo Araripe, (2004, p. 110) o patrimônio é “[...] algo que nos ensina e nos informa a respeito da identidade cultural de uma sociedade”, enaltecendo a função do patrimônio cultural para a sociedade e a preservação de suas memórias. Em consonância, Baez (2006, p. 24) afirma que:

[...] o patrimônio tem capacidade de promover um sentimento de afirmação e pertencimento, pode sustentar ou estimular a consciência de identidade dos povos em seu território; é como uma carteira de identidade que permite preservar ações culturais propícias à integração (Baez, 2006, p. 24).

Para isso, ao campo da Ciência da informação convém o protagonismo na interação entre informação, memória, cultura e patrimônio a fim de dar sustentação ao senso de responsabilidade social na empreitada de subsidiar o desenvolvimento informacional da sociedade. Já para o campo da organização do conhecimento, é imprescindível a garantia de se organizar e dinamizar as memórias e patrimônios culturais apagadas e silenciadas, partindo da construção de teorias e ferramentas que auxiliam nesta empreitada.

4 Memórias, culturas e patrimônios LGBTQIAPN+

As discussões pertinentes às memórias, culturas e patrimônios LGBTQIAPN+ servem para enfatizar as manifestações socioculturais produzidas e/ou relacionadas a comunidade LGBTQIAPN+. Questiona a heteronormatividade e resgata as memórias que animam as referências culturais de um grupo historicamente marginalizado e apagado dos lugares de memórias e das representações patrimoniais brasileiras.

A comunidade LGBTQIAPN+ é caracterizada pela gama de vivências de orientações sexuais, expressões e identidades de gênero que se distanciam da heteronormatividade naturalizada que normaliza padrões sociais e culturais a partir da binaridade de gênero e da heterossexualidade compulsória. É desta forma que nossos corpos são definidos ao nascer e socialmente moldados ao decorrer de nossas existências.

Maria Luiza Heilborn (1993) compreende o gênero como uma dimensão de atributos culturais e psicológicos, conferidos a cada um dos sexos, a partir de uma visão binária e estereotipada de padrões sexuais (femininos e masculinos), inscritos em corpos biológicos e construídos historicamente. Envolve também as relações de poder que emergem das instituições sociais. Da mesma forma, Berenice Bento (2006), ao refletir sobre a construção de “corpo-homem” e “corpo-mulher” afirma que “[...] reproduzir a heterossexualidade consiste em cultivar os corpos em sexos diferentes, com aparências ‘naturais’ e disposições sexuais diferentes.” (Bento, 2006, p. 1).

A sexualidade pode ser compreendida como um conjunto de vivências, práticas e costumes associados a intimidade da vida privada, ao prazer e as expressões românticas. Ela está envolvida em valores morais sendo influenciada por práticas, discursos e pensamentos coletivos (Furlani, 2007). Construída durante o processo de vida do sujeito, isto é, a identidade sexual do indivíduo contém características que o permitem pertencer a um grupo cultural. (Pinho; Pulcino, 2016).

Desta forma, partindo da compreensão da comunidade LGBTQIAPN+ como um grupo social estabelecido culturalmente, suas memórias e as formas de expressão cultural fazem parte da resistência identitária e política desta comunidade. Thürler (2011, p.7) afirma que “[...] é possível compreender a Cultura guei como a diversidade de manifestações culturais, relacionada aos valores, hábitos e linguagem representativos e identificadas com a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.”.

A diversidade sexual e de gênero, no Brasil, compreendem uma articulação conjunta com a diversidade cultural. Principalmente quando somados à desigualdade social e econômica pelas quais os indivíduos dessa comunidade são atingidos. Se, por um lado, a dimensão cultural tenta equacionar as variáveis recorrentes a partir da pluralidade do sujeito contemporâneo, por outro, a dimensão sexual e de gênero abarcam complexas (re)configurações de subjetividades de orientação e prática (entre afeto, encontro, despedida, desejo, erótica, sensualidade, sexo, etc.) (Garcia, 2012).

A questão de silenciamentos da cultura LGBTQIAPN+ também está presente nas discussões de culturas, memórias e patrimônios, visto que este campo é uma ampla arena de disputa, ao qual busca-se romper a manutenção das culturas e memórias hegemônicas, uma vez que os silenciamentos também corroboram para a construção da cultura e do patrimônio e apagar grupos sociais colocados à margem.

Em paralelo, quando tratamos da memória silenciada de um grupo, tratamos da ausência de patrimônio, de espaços e territórios, modos e saberes importantes para a afirmação de sua identidade. Tal fenômeno acaba por fortalecer a vulnerabilidade social desse grupo, afinal, “[...] um povo sem memória nada sabe, e é presa fácil de armadilhas” (Guarnieri, 2010, p.121). Articular a relação entre a memória LGBTQIAPN+ com museus e o patrimônio é, antes de tudo, uma ação cidadã interessada em colaborar na superação de fobias à diversidade sexual impregnadas na cultura nacional (Baptista; Boita, 2017).

5 Algumas reflexões possíveis e necessárias

Em síntese, a Ciência da Informação, ao abordar a Organização do Conhecimento, destaca-se pela busca incessante de integrar referenciais teóricos e metodológicos, promovendo um diálogo multidisciplinar para aprimorar processos, produtos e instrumentos de organização do conhecimento. Ao fundamentar-se em análises semânticas, a Organização do Conhecimento visa estruturar visões de mundo, reconhecendo o conhecimento como um fenômeno socializado que requer representação por meio de modelos e instrumentos para sua recuperação e socialização.

A perspectiva de desclassificação, apresentada por García Gutiérrez, emerge como uma abordagem fundamental no cenário da Organização do Conhecimento. A crítica à lógica dicotômica convencional revela sua propensão hierarquizante e totalitária, defendendo a introdução de uma nova ordem que seja aberta, sensível e plural. Essa abordagem desclassificadora não busca substituir as ferramentas convencionais, mas complementá-las, superando defasagens inerentes e proporcionando uma redecriação alternativa para as culturas, memórias e patrimônios.

Por isso, a superação de obstáculos epistemológicos, conforme destacado por García Gutiérrez, envolve o reconhecimento dos dogmas e repressões que impõem uma lógica única e universal, perpetuando violência simbólica e estrutural. A aceitação da contradição como inerente aos sujeitos e coletivos conduz a uma visão mais complexa do mundo, promovendo uma classificação evolutiva, crítica e plural que valoriza a diversidade.

Assim, a proposta de uma epistemografia interativa, enriquecida por dimensões socioculturais, éticas e políticas, sinaliza uma abordagem pós-moderna e pós-estruturalista. Nesse contexto, a desclassificação assume um papel central, eliminando hierarquias e ampliando questões éticas, políticas e sociais. A busca por um conhecimento situado, livre de fronteiras epistemológicas, hierarquizações e exclusões, torna-se essencial para promover a compreensão crítica a partir de lugares determinados, proporcionando uma visão mais inclusiva e conectada dos conhecimentos e memórias.

Ao analisarmos profundamente a natureza da cultura, memória e patrimônio, percebemos que esses elementos desempenham papéis cruciais na construção e preservação das identidades individuais e coletivas. Como destacado por Pelegrini e Funari (2008), a cultura não é uma herança estática, mas sim uma produção histórica que reflete as complexas relações entre grupos sociais. Da mesma forma, Stuart Hall (2001) ressalta a fluidez, coletividade e produtividade da cultura, reforçando a ideia de que ela está em constante transformação e é moldada pelas interações sociais.

A interligação entre cultura, verdade e poder, conforme proposto por Foucault (2009), destaca como os discursos culturalmente aceitos podem influenciar nas relações sociais, conferindo poder àqueles que detêm o discurso dominante. Nesse contexto, a identidade, como discutido por Pinho e Pulcino (2016), surge como um conjunto complexo de identidades transculturais, refletindo a multiplicidade de referências e marcadores sociais integrados no eu individual.

A abordagem da memória como um fenômeno coletivo e social, conforme delineado por Pollak (1992), Schmidt e Mahfoud (1993), e Halbwachs (2013), destaca sua importância na construção da identidade e na preservação histórica dos grupos sociais. A memória coletiva atua como uma história vivente, preservando objetos culturais significativos e proporcionando continuidade e coerência às comunidades ao longo do tempo.

Assim, ao adentrarmos nas discussões específicas sobre memórias, culturas e patrimônios LGBTQIAPN+, emergem questões fundamentais relacionadas à resistência identitária e à importância de reconhecer e preservar as expressões culturais dessa comunidade historicamente marginalizada. A compreensão da diversidade sexual e de gênero como integrantes da diversidade cultural evidencia a complexidade das (re)configurações de subjetividades enfrentadas por essa comunidade, agravadas pela desigualdade social e econômica.

A questão do silenciamento da cultura LGBTQIAPN+ reforça a importância da luta contra a manutenção de culturas e memórias hegemônicas, pois o apagamento dessas narrativas contribui para a vulnerabilidade social do grupo. Articular as memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+ torna-se não apenas uma ação cidadã, mas também um esforço para superar fobias à diversidade sexual e de gênero enraizadas na cultura nacional.

Dessa forma, a conclusão que se destaca é a necessidade de reconhecimento e valorização da diversidade cultural, memórias e patrimônios, especialmente no contexto LGBTQIAPN+. A promoção de uma sociedade inclusiva e justa requer ações concretas no âmbito da Ciência da Informação e da Organização do Conhecimento, visando dar visibilidade e preservar as narrativas culturais muitas vezes apagadas e silenciadas.

Em última análise, a reflexão sobre a interseção entre a Ciência da Informação, a Organização do Conhecimento e as dinâmicas culturais LGBTQIAPN+ revela-se fundamental para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa. A desclassificação proposta por García Gutiérrez não é apenas uma abordagem teórica, mas uma chamada à ação para transcender barreiras epistemológicas, desafiar hierarquias e enfrentar as exclusões que permeiam as narrativas culturais. A promoção de uma epistemografia interativa, enriquecida por dimensões socioculturais, éticas e políticas, emerge como um caminho necessário para valorizar e preservar as diversas expressões de identidade. Ao reconhecer a fluidez da cultura, a complexidade da identidade e o papel crucial da memória e dos patrimônios culturais, podemos avançar na construção de pontes que conectem as experiências individuais e coletivas. Portanto, a conclusão ressoa com a urgência de ações concretas no âmbito da Ciência da Informação e da Organização do conhecimento, visando não apenas a visibilidade, mas também a preservação das memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+, essenciais para uma compreensão mais profunda, respeitosa e inclusiva do vasto espectro da diversidade humana.

6 Considerações finais

Explorar as interseções entre Ciência da Informação (CI), Organização do Conhecimento (OC), memória, cultura e patrimônio revela a urgente necessidade de repensar paradigmas e estratégias para promover uma sociedade mais inclusiva e justa. A CI, como área multidisciplinar, desempenha papel fundamental na transformação da sociedade contemporânea (sociedade da informação). No entanto, as reflexões apresentadas ressaltam a urgência de uma revolução científica na CI.

A proposta de Duque Cardona (2020) destaca a necessidade de incorporar princípios de decolonialidade, interculturalidade e epistemologias do sul global na CI, a fim de superar barreiras coloniais e integrar conhecimentos locais e contextualizados. No contexto da OC, os desafios decorrem da hegemonia do pensamento ocidental, conforme apontado por Sales (2021), e a teoria da desclassificação proposta por García Gutiérrez surge como uma alternativa para superar tais obstáculos, promovendo uma conscientização da incompletude e subjetividade nas classificações.

A aplicação da teoria da desclassificação às expressões culturais da comunidade LGBTQIAPN+ destaca a importância de reconhecer e preservar memórias e patrimônios historicamente marginalizados. Para tanto, a promoção de uma sociedade mais inclusiva e justa requer a implementação de ações concretas, considerando a interseção com as dinâmicas culturais LGBTQIAPN+.

A contribuição de García Gutiérrez com a teoria da desclassificação ressoa como um chamado para a construção de conhecimentos que respeite o pluralismo lógico e promovam a coexistência de perspectivas, introduzindo operadores teóricos que eliminam hierarquias e promovem a representatividade plena. A aplicação da desclassificação como estratégia para organizar memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+ não busca substituir abordagens convencionais, mas complementá-las, introduzindo operadores que promovem o pluralismo lógico.

A construção de uma sociedade mais inclusiva e justa requer não apenas a organização do conhecimento, mas também ações tangíveis que promovam a equidade, como políticas públicas que reconheçam e valorizem a diversidade cultural LGBTQIAPN+. Além disso, a visibilidade e valorização das narrativas LGBTQIAPN+ são passos cruciais para uma organização do conhecimento que não apenas registre, mas também promova a compreensão e aceitação das diversas culturas presentes na sociedade.

A criação de redes participativas transculturais, conforme proposto por García Gutiérrez, oferece um modelo dinâmico para a preservação das memórias e dos patrimônios LGBTQIAPN+. Essa abordagem transcende as fronteiras físicas e sociais, convidando a comunidade a se envolver ativamente na construção e preservação de suas próprias histórias. A participação coletiva não apenas democratiza o acesso às memórias e patrimônios, mas também fortalece os laços comunitários e promove um senso de pertencimento.

Assim, a organização de memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+, ancorada na teoria da desclassificação, não é apenas uma busca por representação, mas um ato de justiça social e cultural. É uma oportunidade de reconhecer, celebrar e preservar as diversas contribuições dessas comunidades para a riqueza e diversidade cultural. O desafio é transformar as reflexões teóricas em práticas concretas que promovam a inclusão, a compreensão mútua e o respeito pelas diferenças.

Para tanto, nos municiarmos de aspectos éticos e de responsabilidade social para organizarmos as memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+, embasados na perspectiva da desclassificação, pode ser a chave para garantir uma abordagem justa, inclusiva e respeitosa. A desclassificação, como proposta teórica, não apenas questiona as estruturas convencionais da classificação, mas também nos convoca a refletir sobre nossas próprias posições éticas e responsabilidades sociais no processo de organização do conhecimento.

Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer a importância de respeitar a diversidade de identidades e experiências presentes na comunidade LGBTQIAPN+. Isso implica em adotar uma postura ética que valorize a autenticidade e a dignidade de cada indivíduo, evitando estereótipos, preconceitos ou discriminação ao categorizar e representar suas memórias e patrimônios.

Além disso, a responsabilidade social nos instiga a considerar o impacto de nossas ações na sociedade como um todo. Organizar as memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+ de forma responsável significa não apenas reconhecer sua importância histórica e cultural, mas também buscar ativamente promover a inclusão, a visibilidade e o respeito por essas comunidades.

Isso pode envolver, por exemplo, consultar e envolver ativamente membros da comunidade LGBTQIAPN+ no processo de organização, garantindo sua participação e representatividade. Também implica em criar espaços seguros e acolhedores para preservar e compartilhar essas memórias e patrimônios, protegendo contra qualquer forma de discriminação ou marginalização.

Além disso, a transparência e a prestação de contas são aspectos-chave da responsabilidade social na organização do conhecimento. Devemos ser transparentes sobre nossos processos de organização, garantindo que sejam guiados por princípios éticos e respeito pela diversidade, e estar dispostos a prestar contas à comunidade LGBTQIAPN+ e à sociedade em geral sobre nossas ações e decisões.

Em suma, ao nos alicerçarmos com a teoria da desclassificação para organizar as memórias e patrimônios culturais LGBTQIAPN+, estamos não apenas promovendo uma abordagem mais justa e inclusiva, mas também demonstrando um compromisso genuíno com a promoção da diversidade, igualdade e respeito pelos direitos humanos.

Portanto, este artigo é um convite para deslocarmos nossos olhares para as margens dos conhecimentos científicos e sociais, de modo a superarmos as lógicas opressoras, dominantes e universalistas que inferem violências simbólicas e epistemológicas na organização do conhecimento, para um conglomerado de indivíduos e grupos sociais. Assim, ao garantirmos o protagonismo das vozes que emergem dos guetos e favelas do conhecimento, estamos compartilhando sentimentos de renovação e revolução nos fazeres científicos e sociais. A diversidade deve ser garantida e ampliada a partir de posicionamentos críticos, especialmente na cientificidade, sendo onde nos encontramos para este profícuo diálogo.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Referências

  • ARARIPE, F. M. A. Do patrimônio e seus significados. Transinformação, Campinas, v. 16, n. 2, p. 111-122, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-37862004000200001&script=sci_abstract&tlng=pt Acesso em: 21 jul. 2023.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-37862004000200001&script=sci_abstract&tlng=pt
  • AZEVEDO NETTO, C. X. Educação patrimonial e identidade: a memória dos quilombos. Temas em Educação, João Pessoa, v. 13, p. 67-82, 2004.
  • BAEZ, F. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
  • BAPTISTA, J. Museologia comunitária, comunidades LGBT e direitos humanos: estratégias de superação de fobias à diversidade sexual no Brasil. Ventilando Acervos, Florianópolis, n. 1, p. 132-146, 2017.
  • BAPTISTA, J.; BOITA, T. Memória e esquecimento LGBT nos museus, patrimônios e espaços de memória no Brasil. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 5, p. 108-119, 2017. Disponível em: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/revista/edicao5.php?cor=verde Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/revista/edicao5.php?cor=verde
  • BELKIN, N. J.; ROBERTSON, S. E. Information Science and the phenomena of information. Journal of the American Society for Information Science, New Jersey, v. 27, n. 4, p.197-204, 1976. Disponível em: https://doi.org/10.1002/asi.4630270402 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.1002/asi.4630270402
  • BENTO, B. Corpos e próteses: dos limites discursivos do dimorfismo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO: GÊNERO E PRECONCEITOS, 7., 2006, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: UFSC, 2006.
  • BORKO, H. What is information science? American Documentation, New Jersey, v. 19, n. 1, p. 3-5, 1968. Disponível em: https://doi.org/10.1002/asi.5090190103 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.1002/asi.5090190103
  • BRÄSCHER, M.; CAFÉ, L. Organização da informação ou organização do conhecimento? In: LARA, M. L. G.; SMIT, J. W. (org.) Temas de pesquisa em Ciência da Informação no Brasil. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2010. p. 87-103.
  • BRÄSCHER, M; CAFÉ, L. Organização do conhecimento: teorias semânticas como base para estudo e representação de conceitos. Informação & Informação, Londrina, v. 16, n. 3. p. 25-51, 2011. Disponível em: https://doi.org/ 10.5433/1981-8920.2011v16nesp.p25 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/ 10.5433/1981-8920.2011v16nesp.p25
  • COSTA, E. S. “Com quantos gigabytes se faz uma jangada, um barco que veleje”: o Ministério da Cultura, na gestão Gilberto Gil, diante do cenário das redes e tecnologias digitais. 2011. Dissertação (Mestrado) - Curso de Bens Culturais e Projetos Sociais, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2011.
  • DUQUE CARDONA, N. ¿Ciencia de la información para qué y para quién? Aproximación a los paradigmas de la ciencia de la información en el contexto universitario. In: DUQUE CARDONA, N.; SILVA, F. C. G. Epistemologias Latino-Americanas na Biblioteconomia e Ciência da Informação: contribuições da Colômbia e do Brasil. Florianópolis: Rocha, 2020. p. 45-72.
  • ESTEBAN NAVARRO, M. A.; GARCÍA MARCO, F. J. Las primeras jornadas sobre organización del conocimiento: organización del conocimiento e información científica. Scire, Zaragoza, v.1, n.1, p.149-157, 1995. Disponível em: http://ibersid.eu/ojs/index.php/scire/article/view/1038/1020 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » http://ibersid.eu/ojs/index.php/scire/article/view/1038/1020
  • FARIAS, M. C. Q. S. Uma semiótica da cultura para organização do conhecimento: bases teóricas e diretrizes de análise. 2019. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marilia, 2019. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/181528 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://repositorio.unesp.br/handle/11449/181528
  • FLOR, T. O. et al Revisões de literatura como métodos de pesquisa: aproximações e divergências. In: CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA E ENSINO EM CIÊNCIAS, 6., 2021. Anais [...]. Campina Grande: Realize, 2021.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2009.
  • FURLANI, J. Mitos e tabus da sexualidade humana: subsídios ao trabalho em educação sexual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
  • GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Cientificamente favelados: uma visão crítica do conhecimento a partir da epistemografia. Transinformação, Campinas, v. 18, n. 2, p. 103-112, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tinf/a/49xzkXKxWSbxPRCKx6RfX8t/abstract/?lang=pt Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/tinf/a/49xzkXKxWSbxPRCKx6RfX8t/abstract/?lang=pt
  • GARCÍA GUITIÉRREZ, A. L. Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos, 2007.
  • GARCÍA GUITIÉRREZ, A. L. Desclassificação na organização do conhecimento: ensaio pós-epistemológico. Transinformação, Campinas v. 23, n. 1, p. 5-14, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tinf/a/89vfV6PdSJjGkRMrr56GqvJ/?lang=en# Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/tinf/a/89vfV6PdSJjGkRMrr56GqvJ/?lang=en#
  • GARCÍA GUITIÉRREZ, A. L. Em pedazos: el sentido de la desclasificación. Madrid: Asociación Cultural y Científica Iberoamericana, 2018.
  • GARCÍA GUITIÉRREZ, A. L. Outras memórias possíveis: estratégias descolonizadoras do Arquivo Nacional. Petrópolis: Vozes, 2008.
  • GARCIA, W. Uma possibilidade de homocultura no Brasil: estudos contemporâneos. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO DA ABEH, 4., 2012, Salvador. Anais [...]. Salvador: Abeh, 2012. p. 1-8.
  • GONZÁLES DE GÓMEZ, M. N. Metodologia de pesquisa no campo da Ciência da Informação. DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação, Brasília, v.1, n. 6, p. 1-11. 2000. Disponível em: https://repositorio.ibict.br/bitstream/123456789/127/1/GomesDataGramaZero2000.pdf Acesso em: 3 fev. 2024.
    » https://repositorio.ibict.br/bitstream/123456789/127/1/GomesDataGramaZero2000.pdf
  • GUARNIERI, W. R. C. Museologia e identidade. In: BRUNO, M. C. O. (org.). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. São Paulo, Pinacoteca do Estado: 2010. v. 1, p. 176-185.
  • HALBWACHS, M. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2013.
  • HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
  • HARAWAY, D. Situated Knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, Maryland, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988. Disponível em: https://doi.org/10.2307/3178066 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.2307/3178066
  • HEILBORN, L. Gênero e hierarquia: a costela de Adão revisitada. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 50-82, 1993. Disponível em: https://doi.org/10.1590/%25x Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/%25x
  • MATTOS, P. C. Tipos de revisão de literatura. Botucatu: UNESP, 2015. Disponível em: https://www.fca.unesp.br/Home/Biblioteca/tipos-de-evisao-de-literatura.pdf Acesso em: 24 ago. 2021.
    » https://www.fca.unesp.br/Home/Biblioteca/tipos-de-evisao-de-literatura.pdf
  • OLSON, H. A. How we construct subjects: a feminist analysis. Library Trends, Illinois, v. 2, n. 58, p. 509-541, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1353/lib.2008.0007 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.1353/lib.2008.0007
  • OLSON, H. A. Sameness and difference: a cultural foundation of classification. Library Resources & Technical Services, Chicago, v. 45, n. 3, 2001. Disponível em: https://doi.org/10.5860/lrts.45n3.115 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.5860/lrts.45n3.115
  • PELEGRINI, S.C. A.; FUNARI, P. P. A. O que é patrimônio cultural. São Paulo: Brasiliense, 2008.
  • PINHO, R.; PULCINO, R. Desfazendo os nós heteronormativos da escola: contribuições dos estudos culturais e dos movimentos LGBTTT. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 665-680, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022016148298 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S1517-97022016148298
  • POLLAK, M. Identidade e memória social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941
  • RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
  • RIBEIRO, J. L. P. Revisão de investigação e evidência científica. Psicologia, Saúde & Doenças, Porto, v. 15 n. 3, p. 671-682, 2014. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/82390/2/110198.pdf Acesso em: 26 fev. 2024.
    » https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/82390/2/110198.pdf
  • SALES, R. Para uma organização do conhecimento contemporânea: contribuições de Foucault, Agamben, Deleuze E Guattari. In: AMORIM, I. S.; SALES, R. (org.). Ensaios em organização do conhecimento. Florianópolis: UDESC, 2021. p. 13-40. Disponível em: https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/000084/000084d4.pdf Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/000084/000084d4.pdf
  • SARACEVIC, T. Ciência da informação: origem, evolução e relações. Perspectiva em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 41-62, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/pci/article/view/22308 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://periodicos.ufmg.br/index.php/pci/article/view/22308
  • SCHMIDT, M. L. S.; MAHFOUD, M. Halbwachs: memória coletiva e experiência. Psicologia USP, São Paulo, v. 4, n. 1-2, p. 285-298, 1993.
  • SILVA, D. B. A patrimonialização das culturas LGBTQIAs no Brasil: uma questão urgente. Acesso Livre, Rio de Janeiro, n. 9, p. 25-40, 2018. Disponível em: https://revistaacessolivre.files.wordpress.com/2018/06/002_patrimonializac3a7c3a3o_cultura_lgbtqias.pdf Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://revistaacessolivre.files.wordpress.com/2018/06/002_patrimonializac3a7c3a3o_cultura_lgbtqias.pdf
  • SILVA, M. A. Numa tarde qualquer: uma antropologia da parada da diversidade em Cuiabá e da cultura LGBT no Brasil contemporâneo. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 10, n. 15, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/9891 Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/9891
  • SODRÉ, M. Prefácio à edição brasileira. In: GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Outras memórias possíveis: estratégias descolonizadoras do Arquivo Nacional. Petrópolis: Vozes , 2008. p. 7-8.
  • SOUZA, W. L.; SILVA, A. A.; ALVES, D. C. S.; ROCHA, C. B. O. C.; MELO, T. C. L. O bricoleur, uma clínica rizomática e o “fazer psi”: repensando as práticas psicológicas. Caderno de Graduação - Ciências Humanas e mSociais, Alagoas, v. 3, n. 2, p. 23-38, 2016. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/2617 Acesso em: 18 fev. 2024.
    » https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/2617
  • SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
  • THÜRLER, D. A desguetificação da cultura guei. In: ENCONTRO FUNARTE DE POLÍTICAS PARA AS ARTES, 1., 2011, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Funart, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2023
  • Aceito
    05 Mar 2024
location_on
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Ramiro Barcelos, 2705, sala 519 , CEP: 90035-007., Fone: +55 (51) 3308- 2141 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: emquestao@ufrgs.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro