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Implicaturas escalares na aquisição de português brasileiro: uma análise da teoria da otimidade para o conectivo “ou”

Scalar Implicatures in the Acquisition of Brazilian Portuguese: An Optimality-Theoretic Analysis for the Connective “or”

Resumo

Quando “ou” é proferido em uma sentença, em princípio, as leituras “A ou B, mas não ambos” (exclusiva) e “A ou B e possivelmente ambos” (inclusiva) são possíveis. A literatura em aquisição tem detectado uma assimetria no comportamento infantil. Por um lado, crianças de até 4;6 anos, diferentemente dos adultos, aceitam o equivalente de “ou” em contextos nos quais “e” seria mais pragmaticamente adequado para descrever a situação. Por outro lado, os resultados de estudos de produção, feitos com crianças adquirindo inglês, indicam que elas produzem “ou-exclusivo” antes dos quatro anos. Este trabalho argumenta que a Teoria da Otimidade (OT) pode explicar essa assimetria na linguagem infantil, na qual a produção ocorre antes da compreensão. Focando no Português Brasileiro (PB), foi investigado o comportamento linguístico infantil na produção de “ou”. Foram analisados dois corpora de fala infantil: um com 119 horas de gravações espontâneas envolvendo quatro crianças entre 2;0 e 5;6 anos, e outro com 51 horas de gravações que contou com sete crianças entre 4;3 e 9;0 anos. Os resultados corroboram os achados para o inglês, com a primeira produção de “ou-exclusivo” observada aos 2;4 anos. É proposta uma extensão da análise para o some, proposta por Mognon et al. (2021) no contexto da OT, para explicar o comportamento das crianças com o “ou” no PB. Assumiremos que a otimização unidirecional é incapaz de selecionar um output vencedor e, para o cálculo de implicatura, é necessário que a otimização bidirecional entre em cena. A partir dessa análise, será argumentado que a otimização bidirecional é adquirida tardiamente no desenvolvimento infantil, podendo explicar os achados da literatura que apontam para a assimetria entre produção e compreensão.

Palavras-chave:
aquisição de linguagem; pragmática; implicaturas escalares; teoria da otimidade; teoria da otimidade bidirecional

Abstract

When “or” is uttered in a sentence, in principle the readings “A or B, but not both” (exclusive) and “A or B and possibly both” (inclusive) are possible. Acquisition literature has detected an asymmetry in children's behavior. On the one hand, children up to 4;6 years old, unlike adults, accept the equivalent of “or” in contexts in which “and” would be more pragmatically appropriate to describe the situation. On the other hand, the results of production studies carried out with children acquiring English indicate that they produce “exclusive-or” before the age of four. Our work argues that Optimality Theory (OT) can explain this asymmetry in child language, in which production occurs before comprehension. Focusing on Brazilian Portuguese (BP), children's linguistic behavior in the production of “ou” was investigated. Two corpora of children's speech were analyzed: one with 119 hours of spontaneous recordings involving four children between 2;0 and 5;6 years of age, and another with 51 hours of recordings involving seven children between 4;3 and 9;0 years of age. The results corroborate the findings for English, with the first production of “exclusive or” observed at 2;4 years old. To account for the results, an OT-based analysis, extending Mognon et al. (2021)’s analysis for “some” to “ou”, is proposed. We assume that unidirectional optimization is unable to select a winning output and, for implicature calculation, it is necessary for bidirectional optimization to come into play. From this analysis, it will be argued that bidirectional optimization is acquired late in child development, which may explain the findings in the literature that point to the asymmetry between production and comprehension.

Keywords:
language acquisition; pragmatics; scalar implicatures; optimality theory; bidirectional optimality theory

Introdução

Este artigo explora as implicaturas escalares, focando na produção em contextos naturalísticos do item “ou” durante aquisição do português brasileiro (PB) por crianças de entre 2;0 e 9;0 anos de idade. A Teoria da Otimidade (OT) (Prince; Smolensky, 1993PRINCE, Alan; SMOLENSKY, Paul. Optimality theory: Constraint Interaction in Generative Grammar. Rutgers Center for Cognitive Science. Malden: John Wiley & Sons, Inc., 1993.) será utilizada para discutir a assimetria observada entre produção e compreensão de itens escalares durante a aquisição de linguagem. Conforme será apresentado, tal assimetria diz respeito aos achados que indicam que crianças em idade pré-escolar têm dificuldade para compreender usos exclusivos do conectivo, enquanto fazem proferimentos deste tipo antes dos três anos de idade.

O artigo está organizado da seguinte maneira: a seção “Implicaturas Escalares” introduzirá o fenômeno das implicaturas escalares, discutindo esse fenômeno também na fala infantil. Em seguida, a seção “A Teoria da Otimidade” discutirá as versões unidirecionais e bidirecionais da teoria, além da assimetria observada entre a produção e compreensão infantil de itens escalares sob a luz da OT. Na seção “Uma proposta de análise usando a OT para o ‘ou’” será apresentada uma proposta de análise para o conectivo com base numa análise para o quantificador “some”. Em seguida, a seção “O conectivo ‘ou’ no período de aquisição de linguagem” trará os dados e as análises desenvolvidas neste trabalho. Por fim, o trabalho será concluído.

Implicaturas Escalares

Para nossa discussão inicial, considere o exemplo a seguir:

(1) A: O João comeu todos os cupcakes?

B: Ele comeu alguns.

O proferimento de B sugere que João não comeu todos os cupcakes. Embora não haja, na fala de B, uma negação explícita, o uso do quantificador “alguns”, na resposta, indica ao interlocutor que João comeu alguns, mas não todos, os cupcakes. Considere agora o exemplo abaixo:

(2) Mãe: João, você quer ir ao cinema ou ao parque?

Criança: Ah...(decepcionado) eu queria ir nos dois!

A pergunta da mãe, com o conectivo “ou” sugere duas opções excludentes: ir ao cinema ou ir ao parque, mas não aos dois. A resposta da criança indica que ela entendeu que, nesse caso, não poderia ir aos dois.

Os exemplos acima ilustram casos de implicaturas, que, grosso modo, podem ser entendidas como “(i) o ato de significar ou implicar uma coisa dizendo outra ou (ii) o objeto deste ato” (Davis, 2019DAVIS, Wayne. Implicature.The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Fall 2019 Edition, Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/fall2019/entries/implicature/ . Acesso em: 18 ago. 2023.
https://plato.stanford.edu/archives/fall...
). Este fenômeno, central na pragmática linguística, continua sendo investigado teórica e experimentalmente. Grice (1975GRICE, Hebert Paul. Logic and Conversation. Syntax and Semantics, v. 3, p. 41-58, 1975.) é o pioneiro na análise das implicaturas, com contribuições fundamentais para o desenvolvimento da área.

Segundo Grice (1975GRICE, Hebert Paul. Logic and Conversation. Syntax and Semantics, v. 3, p. 41-58, 1975.), a conversação é um processo cooperativo guiado pelo Princípio da Cooperação: “faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito aceito ou pelo direcionamento da conversa em que você está envolvido” (p. 45). Esse princípio é sustentado por quatro máximas: quantidade, qualidade, relação e modo. Crucial para as implicaturas é a máxima de quantidade, que orienta: 1. Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversa). 2. Não faça com que sua contribuição seja mais informativa do que é requerido.

Quando um falante opta por itens menos informativos como “alguns” ou “ou”, sugere-se que ele queira negar os mais informativos “todos” e “e”, respectivamente. Esse uso implica a violação da Máxima de Quantidade, levando o ouvinte a inferir significados não explícitos. Por exemplo, caso seja proferido que “João comeu ‘alguns’ cupcakes”, subentende-se que não comeu “todos”. Analogamente, ao dizer que levará alguém “a um ou outro” local, implica que não o levará a ambos.

Os itens “todos” e “alguns” e “e” e “ou” estão relacionados semanticamente. Estes itens podem ser descritos como pertencentes a uma escala ordenada de acarretamento na forma <alguns, todos> e <ou, e>, de modo que o item menos informativo (ou mais fraco) à esquerda é usado para negar o item mais informativo (ou mais forte) à direita.

Na escala de acarretamento, um item mais forte implica um mais fraco: se João comeu todos os cupcakes, consequentemente comeu alguns. Porém, o inverso não é garantido; se comeu alguns, não necessariamente comeu todos.

Portanto, a noção de “informatividade” se relaciona com o fato de que itens considerados “mais informativos” são aqueles que delimitam espaços epistêmicos. Por exemplo, o proferimento de “todos” licencia um julgamento de valor de verdade sobre um único contexto delimitado, enquanto o proferimento de “alguns” é menos informativo, porque ainda há muitos contextos em aberto. Por consequência, itens mais informativos são aqueles cujo acarretamento para baixo garante a verdade de todos os itens acarretados.

Estas escalas são comumente chamadas de “escalas-Horn” dada a sua definição no trabalho de Horn (1972HORN, Laurence R. On the Semantic Properties of Logical Operators in English. Los Angeles: University of California, 1972.). É importante notar que as escalas podem ser compostas por itens com propriedades semânticas distintas, como quantificadores e conectivos, como foi visto com os itens mencionados.

A respeito do conectivo “ou”, foi discutida acima a leitura exclusiva “A ou B, mas não ambos”, onde apenas um elemento deve ser verdadeiro. Existe também a leitura inclusiva para o “ou”: “A ou B, e possivelmente ambos”, na qual é suficiente que um dos elementos seja verdadeiro, mas que ambos podem ser. Um caso ilustrativo é fornecido abaixo:

(3) Se você é aluno ou professor, tem desconto em nossa livraria.

Caso um cliente entre na loja e diga que é professor, receberá o desconto. Da mesma maneira, caso este mesmo cliente ou outro cliente diga que é aluno, também o receberá. Isso quer dizer que é possível usar “ou” em contextos em que pelo menos um dos conjuntos seja verdadeiro e também em contextos em que os dois conjuntos são verdadeiros.

No trabalho de Grice (1975GRICE, Hebert Paul. Logic and Conversation. Syntax and Semantics, v. 3, p. 41-58, 1975., p. 45), é argumentado que o significado básico (ou semântico) de “ou” é inclusivo, enquanto sua leitura exclusiva dependeria do cálculo de uma implicatura.

Como mencionado anteriormente, nosso trabalho investigará o comportamento de crianças adquirindo PB como língua materna com relação ao item escalar “ou”. No que se segue, serão apresentados achados da literatura sobre esse item. Os trabalhos discutidos foram conduzidos em outras línguas e, portanto, serão abordados os usos equivalentes de “ou” e “e” nestas línguas.

As implicaturas escalares na fala infantil

Há uma vasta literatura tanto em processamento linguístico adulto quanto em aquisição de linguagem que aponta para a facilidade que os adultos apresentam com o cálculo de implicaturas escalares1 1 Para estudos sobre o processamento linguístico de implicaturas em adultos ver Bott, Bailey & Rodner (2012); De Carvalho et al., (2016). Para estudos sobre a aquisição, ver Noveck (2001); Katsos & Bishop (2011); entre outros. e para a dificuldade que as crianças exibem ao calculá-las.

Os estudos feitos com crianças costumam reportar que, diferentemente dos adultos, elas tendem a aceitar sentenças subinformativas. Essas sentenças contêm o item mais fraco da escala (e.g., “ou”), mas são proferidas em situações em que o uso do item mais forte (e.g., “e”) seria mais adequado pragmaticamente, como discutimos abaixo.

No estudo de Tieu et al. (2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017.), esse comportamento foi investigado com 28 crianças francesas (3;7 a 6;6 anos, M=4;05) e 18 japonesas (4;7 a 6;6 anos, M=5;05), com 20 adultos franceses e 21 japoneses como controles. A pesquisa envolveu uma tarefa de julgamento de valor de verdade. Crianças observavam uma imagem e previam o desenrolar da história. Após a ação, julgavam a veracidade da sentença proferida por um fantoche.

Este estudo incluía duas condições: uma com um disjunto verdadeiro e outra com dois verdadeiros. Por exemplo, em um dos itens do teste, contou-se a história de uma galinha que tinha dois brinquedos (um ônibus e um avião) e os empurraria de uma montanha. Um fantoche previa a ação da galinha proferindo a sentença alvo: “a galinha empurrou o ônibus ou o avião”. Na condição de um disjunto verdadeiro, mostrava-se a galinha empurrando somente o ônibus; na outra, empurrando ambos. Depois de o fantoche proferir a sentença alvo, o experimentador descrevia a cena dizendo algo como “veja, a galinha empurrou aquilo! (apontando para o ônibus)”.

Tieu et al. (2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017.) encontraram resultados uniformes entre falantes japoneses e franceses, com crianças e adultos de ambas as línguas apresentando comportamentos similares. Na condição de um disjunto verdadeiro (galinha empurrando um brinquedo), a maioria dos adultos aceitou a sentença-alvo, mas a rejeitou quando ambos os brinquedos foram empurrados, indicando uma preferência pela leitura exclusiva de “ou” nesse contexto, como esperado.

Apenas 3 crianças apresentaram respostas similares aos adultos. A maioria exibiu comportamentos distintos: (i) aceitação da sentença-alvo em ambas as condições (batizadas como 'inclusivas') ou (ii) rejeição na condição de um disjunto e aceitação com dois disjuntos ('conjuntivas'). Tieu et al. (2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017., p. 141) reportam não terem encontrado diferenças significativas entre estes dois grupos de crianças.

Dada a similaridade entre as crianças 'inclusivas' e 'conjuntivas', os autores concluíram que elas interpretavam “ou” como “e”, indicando que ainda não haviam adquirido a semântica completa de “ou”. As crianças pareciam entender “ou” não como 'inclusivo' ou 'exclusivo', mas como uma conjunção que requer que ambos A e B sejam verdadeiros

Mais tarde, Skordos et al. (2020SKORDOS, Dimitrios et al. Do Children Interpret ‘or’ Conjunctively? Journal of Semantics , v. 37, n. 2, p. 247-267, May 2020.) replicaram o experimento de Tieu et al. (2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017.) com modificações: o estudo incluiu três condições, uma idêntica à original e duas novas. Na segunda, o protocolo foi modificado para excluir a descrição pós-proferimento do fantoche. Na terceira, além desta exclusão, aumentou-se o número de brinquedos de dois para três, mantendo a sentença-alvo com dois disjuntos.

No estudo de Skordos et al. com 126 crianças falantes de inglês (4;0 a 5;11 anos), os resultados na condição idêntica à de Tieu et al. foram similares. Também não houve diferença significativa na condição com o script alterado. Porém, na terceira condição, com mais brinquedos, menos crianças responderam de forma 'conjuntiva', com 31 classificadas como 'inclusivas', uma como ‘exclusiva’ e quatro como 'conjuntivas' (Skordos et al., 2020SKORDOS, Dimitrios et al. Do Children Interpret ‘or’ Conjunctively? Journal of Semantics , v. 37, n. 2, p. 247-267, May 2020., p. 11). Os autores sugerem que a remoção da descrição da cena e o acréscimo de um brinquedo explicam a variação.

O fato de que um brinquedo era sempre empurrado, conforme observado nas condições do experimento de Tiel et al., ilustra uma analogia com uma partida de tênis, na qual proferimentos como “o jogador A ou B ganhará” podem ser pragmaticamente inadequados (p. 13). Isso se deve à necessidade de um vencedor para que a partida termine, tornando proferir 'A ou B' em uma situação onde é certo que um dos disjuntos será empurrado, uma anomalia pragmática.

Introduzindo um terceiro brinquedo no experimento de Skordos et al., a previsão do fantoche podia ser falsa, cumprindo a condição de plausible dissent2 2 “Plausible dissent”, crucial em estudos de aquisição da linguagem e introduzida por Crain et al. (1996), assegura que experimentos forneçam contextos onde proferimentos possam ser validados ou refutados. Contextos em que tudo é verdadeiro não são ideais, pois confundem a tarefa de julgamento da criança. A inclusão de uma terceira opção no experimento de Skordos et al. ofereceu um cenário mais realista, permitindo situações onde a sentença-alvo poderia ser falsa, contrastando com as de apenas duas opções. e evitando julgamentos aleatórios. Os autores concluíram que as crianças não necessariamente interpretam “ou” como “e”, mas falham em calcular implicaturas, aceitando sentenças subinformativas em situações que exigiriam o uso do termo “e”. Isso sugere uma dificuldade em compreender o uso exclusivo de “ou”.

A partir dos trabalhos discutidos, é possível observar que, mesmo quando a metodologia do experimento é aperfeiçoada, os resultados ainda indicam um comportamento não adulto por parte das crianças. Por volta dos 4;6 anos de idade, elas ainda parecem ter dificuldade em calcular implicaturas escalares.

O estudo da produção de “ou” revela aspectos intrigantes. Pesquisas sobre produção espontânea infantil em inglês indicam que crianças, por volta de 2;6 anos, já usam “ou” em contextos típicos de significado exclusivo (Morris, 2008MORRIS, Bradley. Logically Speaking: evidence for item-based acquisition of the connectives and & or. Journal Of Cognition And Development , v. 9, n. 1, p. 67-88, 2008.; Jasbi; Jaggi; Frank, 2018JASBI, Masoud; JAGGI, Akshay; FRANK, Michae C. Conceptual and prosodic cues in child-directed speech can help children learn the meaning of disjunction. Proceedings of the 40 th Annual Conference of the Cognitive Science Society, 2018.). Essa discrepância entre compreensão e produção é notável. Surge então a questão: afinal, como se explicaria o fato de as crianças produzirem algo que ainda não compreendem?

Os resultados podem ser parcialmente explicados por fatores extralinguísticos, como artefatos nos designs experimentais que avaliam a compreensão infantil. No entanto, a disparidade entre comportamentos de crianças e adultos persiste mesmo após considerar esses aspectos. Ou seja, a disparidade se mantém mesmo quando a metodologia é aperfeiçoada, conforme abordado na apresentação do trabalho de Skordos et al. (2020SKORDOS, Dimitrios et al. Do Children Interpret ‘or’ Conjunctively? Journal of Semantics , v. 37, n. 2, p. 247-267, May 2020.). Além disso, a produção anteceder a compreensão não se restringe ao “ou”, mas também se aplica a outros itens escalares, como os equivalentes de “alguns”3 3 Para trabalhos de compreensão que reportam que as crianças não demonstram comportamento adulto diante implicaturas escalares com “alguns” e seu equivalente em outras línguas, o leitor é direcionado para Noveck (2001), Foppolo, Guasti & Chierchia (2012), entre outros. Já para um trabalho que observou que crianças falantes de inglês de entre 2;0 e 3;0 anos de idade já produzem “some” (“alguns”, em português) em contextos que licenciam implicaturas escalares, o leitor é direcionado para Eiteljörge, Poscoulos e Lieven (2018). .

Uma alternativa mais interessante de explicação não depende de fatores extralinguísticos e pode ser motivada linguisticamente, a partir de um modelo de gramática capaz de tratar a produção e a compreensão como processos que mobilizam os mesmos conhecimentos linguísticos de forma distinta, como o modelo proposto pela Teoria da Otimidade.

Na seção seguinte, será apresentada a Teoria da Otimidade e uma análise capaz de dar conta da assimetria encontrada entre a produção e a compreensão de itens escalares em contextos que podem licenciar implicaturas.

A Teoria da Otimidade

A Teoria da Otimidade unidirecional e bidirecional

A Teoria da Otimidade (OT), amplamente reconhecida em fonologia (Prince; Smolensky, 1993PRINCE, Alan; SMOLENSKY, Paul. Optimality theory: Constraint Interaction in Generative Grammar. Rutgers Center for Cognitive Science. Malden: John Wiley & Sons, Inc., 1993.), tem potencial para modelar fenômenos em sintaxe, semântica e pragmática (Othero; Menuzzi, 2009OTHERO, Gabriel de Avila; MENUZZI, Sergio. Distribuição de elementos leves dentro do VP em português: interação entre sintaxe, prosódia e estrutura informacional em teoria da otimidade. FÓRUM LINGUÍSTICO, Santa Catarina, v. 6, n. 1, p. 23-44, 2009.; Pires De Oliveira; De Swart, 2015PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; DE SWART, Henriëtte. Brazilian Portuguese noun phrases: An optimality theoretic perspective. Journal of Portuguese Linguistics, v. 14, n. 1, p. 63-93, 2015.; Legendre et al., 2016LEGENDRE, Géraldine et al. (ed.). Optimality-Theoretic Syntax, Semantics, and Pragmatics: From Uni- to Bidirectional Optimization. Oxford: Oxford Academic, 2016.), mas ainda é pouco explorada nestas áreas. Este trabalho apresenta uma análise semântico-pragmática, baseada na OT, para as implicaturas escalares em línguas infantis.

A seguir, serão apresentados os principais postulados da Teoria da Otimidade (OT). A OT integra o paradigma gerativista (Chomsky, 1981CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. [S.l.]: Foris Publications, 1981.) e o conexionista (Smolensky, 1988SMOLENSKY, Paul. On the proper treatment of connectionism. Behavioral and Brain Sciences, v. 11, n. 1, p. 1-23, 1988), assumindo os conceitos da Gramática Universal (GU) e a violabilidade das restrições gramaticais. Destaca-se, ainda, a interação paralela entre diferentes módulos gramaticais.

A gramática OT é baseada em restrições violáveis - diferentemente de modelos de gramática baseados em regras com princípios invioláveis -, e uma gramática pode ser definida como um conjunto de restrições ranqueadas de forma estrita. As restrições são inatas e são parte da GU, ou seja, todas as línguas naturais compartilhariam as mesmas restrições. Sendo assim, a diferença entre as línguas se daria por ranqueamentos distintos das restrições.

Dentro da OT, em sintaxe e semântica, a produção e a compreensão são modeladas como otimizações direcionais: a produção otimiza do significado para a forma (direção do falante), enquanto a compreensão otimiza da forma para o significado (direção do ouvinte). Esta abordagem, conhecida como Teoria da Otimidade Unidirecional, considera cada processo de otimização individualmente. Em contraste, a Teoria da Otimidade Bidirecional (Bi-OT) integra ambas as direções. Estes modelos, embora distintos, são complementares, refletindo diferentes processos cognitivos na mente dos falantes, conforme será explicado adiante.

No que se segue, será introduzida a arquitetura da gramática OT, além da exemplificação de como se dá uma análise na OT unidirecional. Em seguida, a Bi-OT será discutida.

A OT é composta por três componentes:

  • CON - O conjunto de restrições (“constraints”) violáveis compartilhadas entre a gramática de todas as línguas.

  • GENERATOR (GEN) - A função que gera outputs candidatos para um dado input.

  • EVALUATOR (EVAL) - A função que avalia qual é o candidato ótimo gerado por GEN com base na hierarquia de restrições em CON.

O fluxo do mapeamento entre um input e um output na OT é proposto da seguinte forma (adaptado de McCarthy (2001MCCARTHY, John. A Thematic Guide to Optimality Theory. Cambridge: Cambridge University Press , 2001., p. 10)):

‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ CON

‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ↓

(5) input → GEN → {candidato1, candidato2, …, candidaton} → EVAL → output

A partir de um input qualquer, GEN gera um conjunto potencialmente infinito de candidatos a output que são avaliados por EVAL em função das restrições em CON, resultando em apenas um único output vencedor4 4 Os termos “vencedor”, “ótimo” e “mais harmônico” serão utilizados de forma intercambiável para se referir ao candidato a output selecionado no processo de otimização. .

As restrições em CON são de dois tipos: “restrições de marcação” que requerem candidatos a output não marcados e “restrições de fidelidade” que demandam por correspondência entre input e output. Por consequência, o conflito entre restrições destes dois tipos é evidente, levando em conta que restrições de marcação podem demandar características do output que destoam da correspondência entre input e output e, por sua vez, restrições de fidelidade podem demandar por correspondências entre inputs e outputs marcados.

Na sintaxe OT, a direção do falante é levada em conta no processo de otimização, equivalendo à produção de uma forma. Nesta direção, enquanto o input é “constituído por estruturas argumento-predicado, traços funcionais e itens lexicais” (Legendre, 2001LEGENDRE, Géraldine. An Introduction to Optimality Theory in Syntax. In: LEGENDRE, Géraldine; GRIMSHAW, Jane; VIKNER, Sten. Optimality-Theoretic Syntax. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 3), o output consiste em sentenças linearizadas.

Na semântica OT, a abordagem difere da sintaxe, com a otimização levando à interpretação. Aqui, o input é a forma e o output, o significado. Dada a capacidade de GEN gerar inúmeros candidatos a output, a semântica OT postula que cada forma pode ter infinitas interpretações possíveis. A essa característica é dado o nome de “Hipótese da Interpretação Livre” (Hendriks; De Hoop, 2001HENDRIKS, Petra; DE HOOP, Helen. Optimality Theoretic Semantics. Linguistics and Philosophy, v. 24, n. 1, p. 1-32, 2001.). É papel da gramática decidir qual é a interpretação ótima para a forma dada como input.

Na OT, a direção da otimização é crucial para ativar restrições de marcação específicas, que só se aplicam ao output. Assim, certas restrições incidem apenas sobre formas ou significados. Essa dinâmica é fundamental para explicar as assimetrias observadas entre a produção e a compreensão de fenômenos linguísticos, já que nem sempre todas as restrições relevantes estão ativadas durante o processo de otimização. Esta propriedade ficará mais clara a partir da seção seguinte “A assimetria entre a produção e compreensão infantil sob a luz da OT: o caso das implicaturas escalares com some”.

A seguir, será detalhada a representação comum de uma análise na OT usando um tableau. Nele, o input aparece na célula superior esquerda, com candidatos a output listados aleatoriamente na mesma coluna. As restrições são dispostas no topo das colunas e ordenadas hierarquicamente, da mais alta (esquerda) para a mais baixa (direita). Então, supondo o ranqueamento C1 ≫5 5 O símbolo ≫ representa a dominação entre as restrições. Sendo assim, C1 ≫ C2 pode ser lido como “C1 domina C2”. C2, um input x e um conjunto de candidatos tal qual CAND = {candidatoA, candidatoB}, o Tableau 1 pode ser proposto:

Tableau 1 -
Exemplo de análise na Teoria da Otimidade

Conforme destacado, as restrições na OT têm dominação estrita. Assim, apesar de o candidatoB violar C2 duas vezes (representado pelos asteriscos), este ainda é o candidato vencedor (indicado pela “mão apontando” (☞)). Já o candidatoA viola C1, que é a restrição mais alta, apenas uma vez. Esta violação é fatal (indicada pelo asterisco acompanhado do sinal de exclamação), resultando na eliminação do candidato a output no processo de otimização.

A OT unidirecional considera as direções de otimização como processos separados, enquanto a Bi-OT as integra simultaneamente. Essa integração afeta a definição de input e output: na OT unidirecional, depende do nível de análise; na Bi-OT, associada à pragmática, considera-se que falantes e ouvintes tomam a perspectiva uns dos outros na produção e na compreensão (Blutner, 2000BLUTNER, Reinhard. Some Aspects of Optimality in Natural Language Interpretation. Journal of Semantics, Oxford, v. 17, n. 3, p. 189-216, 2000.). Assim, em vez de formas ou significados isolados, o input na Bi-OT é um par de forma-significado, representado como <f, s>.

Na literatura, é possível encontrar diferentes formulações para a Bi-OT. Relevante para nós é a chamada versão fraca da otimização bidirecional definida em Hendriks e Spenader (2006HENDRIKS, Petra; SPENADER, Jennifer. When production precedes comprehension: an optimization approach to the acquisition of pronouns. Language Acquisition , v. 13, n. 4, p. 319-348, 2006.) e Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.):

(6) Um par forma-significado <f 1 , s 1 > é ótimo no sentido fraco, se e somente se:

Não há outro par <f 1 , s 2 > bidireccionalmente ótimo no sentido fraco, tal que <f 1 , s 2 > satisfaça melhor as restrições do que o par <f 1 , s 1 >,

Não há outro par <f 2 , s 1 > bidireccionalmente ótimo no sentido fraco, tal que <f 2 , s 1 > satisfaça melhor as restrições do que o par <f 1 , s 1 >.

Segundo a definição em (6), em Bi-OT, um par forma-significado ótimo é determinado por sua conformidade com a hierarquia de restrições, preferindo violações menos graves (i.e., violações de restrições mais baixas). O algoritmo da Bi-OT fraca opera recursivamente: após selecionar o primeiro par ótimo, uma nova iteração busca outro par cuja forma e significado não pertencem ao par ótimo selecionado na primeira iteração.

A Bi-OT fraca, considerando múltiplos pares forma-significado como ótimos, alinha-se à divisão de trabalho pragmático de Horn (1984HORN, Laurence R. Toward a new taxonomy for pragmatic inference: Q-based and R-based implicature. In: SCHIFFRIN, Deborah. Meaning, Form, and Use in Context: Linguistic Applications/GURT '84. Washington: Georgetown University Press, 1984. p. 11-42.), que diz que formas marcadas tendem a ser usadas para significados marcados e formas não marcadas tendem a ser usadas para significados não marcados. Isso permite que a Bi-OT fraca aborde fenômenos como, por exemplo, a causatividade lexical (Mccawley, 1978MCCAWLEY, James David. Conversational implicature and the lexicon. In: COLE, Peter. Syntax and Semantics, vol. 9: Pragmatics . London; New York: Academic Press, 1978. p. 245-259.), permitindo a seleção de pares não marcados, como <João matou Pedro, DIRETA>, e marcados, como <João fez com que Pedro morresse, INDIRETA>6 6 O itálico é usado para denotar formas e a caixa alta para significados. .

Na seção seguinte será apresentada uma proposta de análise, partindo da OT, para tratar do fenômeno das implicaturas escalares. Além disso, será discutido como esta análise é capaz de capturar a assimetria mencionada anteriormente.

A assimetria entre a produção e compreensão infantil sob a luz da OT: o caso das implicaturas escalares com some

Conforme abordado anteriormente, a Bi-OT formaliza um elemento crucial da conversação: a tomada de perspectiva. Ao modelar produção e compreensão simultaneamente, a gramática permite que um usuário da língua escolha um par forma-significado ótimo, considerando o proferimento ideal para a situação sob discussão.

Utilizando a OT, Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.) desenvolveram uma análise das implicaturas escalares do termo “some” (“alguns” em inglês), abordando tanto a sua produção, em contextos que sugerem “alguns, mas não todos”, quanto a compreensão. As autoras tratam a produção e interpretação de “some” como um problema de otimização, envolvendo restrições de marcação e fidelidade.

Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.) defendem que a restrição de fidelidade decorre da polaridade das escalas-Horn, com limitantes superiores (como “todos”) e inferiores (como “alguns”). É apontado que essa polaridade evidencia uma dimensão que atinge um ápice (“apex”, no original). Por exemplo, na escala <warm, hot>, a dimensão culmina em um ápice que pode ser chamado de HEAT (p. 151). Com base nessa observação, elas propõem a restrição de fidelidade FaithHorn em (7), abaixo:

(7) FaithHorn: O elemento mais forte numa escala-Horn é mapeado ao ápice desta escala.

A restrição em (7), como é argumentado, seria aplicável às escalas-Horn em geral. A aplicação dessa restrição para a escala <some, all> e seu equivalente em outras línguas, resulta numa restrição mais específica denominada de “FaithAll”, como é visto em (8):

(8) FaithAll: O item all é mapeado a um significado exaustivo.

A restrição em (8) é violada se o item “all” é interpretado como um significado não exaustivo. Em outras palavras, se all não é usado para denotar conjuntos completos.

A restrição de marcação introduzida pelas autoras age apenas sobre formas, ou seja, ela só está ativa na direção do ouvinte (ou na interpretação). Essa restrição é baseada no Principio da Cooperação de Grice (1975GRICE, Hebert Paul. Logic and Conversation. Syntax and Semantics, v. 3, p. 41-58, 1975.) e na primeira submáxima da Máxima de Quantidade, como foi visto antes.

A restrição “Strength”, em (9), é baseada na tendência à informatividade pelo termo mais forte da escala7 7 Strength é baseada em restrições motivadas anteriormente na literatura para tratar de fenômenos de natureza distinta. Cf. Zeevat (2000). :

(9) Strength: Use o elemento mais forte na escala-Horn.

Esta restrição preza pela economia do ouvinte, uma vez que o item mais forte da escala é o item mais informativo, ou seja, é o item que delimita um número maior de situações. Por exemplo, “alguns” é menos informativo que “todos”, abrangendo tanto conjuntos incompletos quanto completos, enquanto “todos” se refere apenas a conjuntos completos. A justificativa é a de que quanto menos alternativas em jogo, maior é a economia do ouvinte.

Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.) ilustram uma situação em que um falante queira se referir a um conjunto completo de elementos, em que o significado a ser expresso é exaustivo. Por exemplo, quando há um conjunto com cinco rosas vermelhas e o falante quer dizer que todas as rosas são vermelhas. O ranqueamento proposto para as restrições é FaithAll ≫ Strength. A produção é representada pelo Tableau 2, abaixo:

Tableau 2 -
Produção de EXHAUSTIVE

É possível notar que, no Tableau 2, nenhum candidato viola FaithAll. Ao recorrer à definição em (8), é possível afirmar que “all” satisfaz esta restrição porque o quantificador é mapeado a um significado exaustivo, enquanto “some” satisfaz a restrição vacuamente porque FaithAll age apenas sobre o item mais forte da escala em questão. A restrição restante, Strength, é então responsável por selecionar o output mais harmônico por atribuir uma violação fatal ao candidato “some” por este não ser o item mais forte da escala.

Se o falante quisesse se referir a um subconjunto próprio, como querendo dizer que apenas três de cinco rosas são vermelhas, o input seria um significado não exaustivo. Esta produção pode ser capturada pelo Tableau 3:

Tableau 3 -
Produção de NON-EXHAUSTIVE

A partir do Tableau 3, observa-se que, para o input NON-EXHAUSTIVE, o output vencedor é a forma “some”, uma vez que “all” seria mapeado a um significado não-exaustivo, causando uma violação fatal de FaithAll. É importante notar que “some” não é o item mais forte da escala <some, all> e por isso viola a restrição Strength. Da mesma forma, “all” nunca violará Strength por ser o item mais forte desta escala.

Conforme argumentam Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.), os Tableaux 2 e 3 modelam adequadamente o processo de produção dos elementos da escala <some, all>, tanto pelas crianças quanto pelos adultos.

Na OT, o comportamento linguístico infantil não-adulto pode ser explicado de duas formas: (i) embora as restrições sejam inatas, o ranqueamento da gramática inicial das crianças difere da gramática-alvo adulta, exigindo o re-ranqueamento das restrições até que se alcance o ranqueamento da gramática alvo (Tesar; Smolensky, 2000TESAR, Bruce; SMOLENSKY, Paul. Learnability in optimality theory. Cambridge: Cambridge University Press , 2000.); (ii) mesmo com o ranqueamento adulto, a capacidade de otimização bidirecional em crianças depende do desenvolvimento cognitivo e da habilidade de tomar perspectiva do seu interlocutor, que é um processo recursivo (Hendriks; Spenader, 2006HENDRIKS, Petra; SPENADER, Jennifer. When production precedes comprehension: an optimization approach to the acquisition of pronouns. Language Acquisition , v. 13, n. 4, p. 319-348, 2006.; Mognon et al., 2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.).

Diferentemente da produção, em que Strength sempre penaliza o item mais fraco da escala, na compreensão esta restrição é vacuamente satisfeita por agir apenas sobre formas. Isto torna FaithAll a restrição responsável por selecionar o candidato vencedor.

O Tableau 4 representa a interpretação de “all” numa sentença como “all roses are red” (“todas as rosas são vermelhas”, em PB). Já o Tableau 5 representa a interpretação de “some” para representar uma sentença como “some roses are red” (“algumas rosas são vermelhas”, em PB):

Tableau 4 -
Compreensão de “all

Tableau 5 -
Compreensão de “some

No Tableau 4, a compreensão de “all” é adequadamente representada: a restrição FaithAll penaliza fatalmente o mapeamento de “all” para o significado NON-EXHAUSTIVE. Já no Tableau 5, observa-se dois vencedores para “some”. Ambos satisfazem vacuamente a restrição Strength, e FaithAll só afeta “all”. A otimização resulta na seleção de ambas as formas como outputs harmônicos, refletindo a ambiguidade em “some” entre as leituras “some and possibly all” (exaustiva) e “some, but not all” (não exaustiva).

A otimização unidirecional dá conta, então, da produção dos dois itens escalares (Tableaux 2 e 3) e da compreensão de all (Tableau 4) por crianças e adultos. Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.) pontuam que as análises nos Tableaux 2 e 3 são capazes de explicar os achados dos trabalhos de produção infantil que apontam para a produção adequada de ambos os itens escalares.

Já o Tableau 5, apresentando duas formas vencedoras, reflete estudos sobre a compreensão infantil que sugerem a dificuldade das crianças em mapear “some” apenas ao significado não-exaustivo. Elas também aceitam interpretações exaustivas de “some” para se referir a conjuntos não completos. Com ambas as formas consideradas aceitáveis, as crianças podem ter dificuldade em descartar o uso do quantificador em contextos em que seu uso é subinformativo.

Para que ela seja capaz de excluir esses usos, seria necessária a otimização bidirecional, que mapearia os pares <f, s> de forma adequada. Para o fenômeno em questão, tem-se os seguintes pares: <all, EXHAUSTIVE>, <all, NON-EXHAUSTIVE>, <some, EXHAUSTIVE>, <some, NON-EXHAUSTIVE>. O Tableau da otimização bidirecional no sentido fraco é diferente daquele utilizado na otimização unidirecional, como foi visto até aqui. Assumindo o mesmo ranqueamento (FaithAll ≫ Strength) e os pares acima, a otimização bidirecional pode ser representada pelo Tableau 6:

Tableau 6 -
Otimização bidirecional que dá lugar à implicatura gerada por some

A partir do Tableau 6, constata-se que o par <all, EXHAUSTIVE> é o primeiro par ótimo, uma vez que nenhuma restrição é violada por ele. A seleção dos pares ótimos na Bi-OT é indicada pelo “sinal de vitória” (✌). Ainda sobram mais três pares. Recapitulando a definição em (6a, b), todos os pares que contêm ou a forma ou significado ótimos do primeiro par vencedor (i.e., <all, NON-EXHAUSTIVE>) são bloqueados e são eliminados da competição pelo próximo par ótimo.

Na segunda linha, o par <all, NON-EXHAUSTIVE> é eliminado porque, além de violar a restrição mais alta FaithAll, “all” é a forma vencedora no primeiro par. Em relação à violação das restrições, ainda sobram os pares na terceira e quarta linhas que violam a mesma restrição. Contudo, o par da terceira linha (<some, EXHAUSTIVE>) não pode ser selecionado porque EXHAUSTIVE já foi selecionado no primeiro par ótimo. Resta então o quarto par <some, NON-EXHAUSTIVE>, cuja forma e significado ainda não haviam sido selecionados, sendo este o segundo par vencedor.

Levando em conta que o par <all, EXHAUSTIVE> captura a compreensão de “all” para se referir a conjuntos completos e que <some, NON-EXHAUSTIVE> captura a compreensão de “some” para se referir a conjuntos incompletos, então a seleção do segundo par representa o cálculo da implicatura escalar com “some”.

Enquanto a otimização unidirecional explica a produção de itens escalares, desambiguar a compreensão de “some” requer a otimização bidirecional. Considerando que esta última é cognitivamente mais custosa, compreender “some” seria mais difícil, para as crianças, do que produzi-lo. Essa análise captura a assimetria entre produção e compreensão do quantificador “some”.

Hendriks e Spenader (2006HENDRIKS, Petra; SPENADER, Jennifer. When production precedes comprehension: an optimization approach to the acquisition of pronouns. Language Acquisition , v. 13, n. 4, p. 319-348, 2006.) e Mognon et al. (2021MOGNON, Irene et al. Complex Inferential Processes Are Needed for Implicature Comprehension, but Not for Implicature Production. Frontiers in Psychology , v. 11, 2021.) argumentam que a otimização bidirecional exige um desenvolvimento adequado da Teoria da Mente. Esta habilidade, amplamente abordada na psicologia e ciências cognitivas, envolve a capacidade de alguém atribuir estados mentais a si mesmo e aos outros, facilitando a compreensão de pensamentos e sentimentos alheios.

Como vimos acima, na Bi-OT, a tomada de perspectiva é essencial. Caso a criança ainda seja incapaz de atribuir estados mentais ao seu interlocutor (ou a um interlocutor ideal), ela terá dificuldade em abandonar a otimização unidirecional, que considera apenas forma ou significado, para adotar a Bi-OT. A otimização bidirecional requer que os usuários da língua passem a tomar a perspectiva dos outros, para que a gramática possa ser capaz de selecionar pares de forma-significado disponíveis que poderiam ter sido veiculados, mas não foram. O passo que envolveria a teoria da mente seria o de assumir que o falante poderia ter usado uma forma diferente, se pudesse.

Na seção seguinte, será proposta uma extensão desta análise para o conectivo “ou”, que faz parte da escala <ou, e>.

Uma proposta de análise usando a OT para o “ou”

Como mencionado anteriormente, estudos sobre a compreensão e produção de “ou” em diferentes línguas infantis indicam um padrão similar ao observado com “alguns”. Enquanto crianças de cerca de 4;6 anos mostram dificuldades em inferir o significado exclusivo de “ou”, aquelas com 2;6 anos já fazem proferimentos que veiculam esse significado (MORRIS, 2008MORRIS, Bradley. Logically Speaking: evidence for item-based acquisition of the connectives and & or. Journal Of Cognition And Development , v. 9, n. 1, p. 67-88, 2008.)8 8 No trabalho de Morris (2008), além da contabilização dos resultados, não há uma seção detalhando exemplos de sentenças indicando quem as produziu e qual a idade da criança que a produziu ou a recebeu como input. Em uma das tabelas de codificação (p. 74), o autor codifica os usos exclusivos como “um ou outro, não ambos” seguido do exemplo “you can go to the table or to the free play area” (“você pode ir para a mesa ou para o parquinho”, tradução nossa, negrito no original). .

Para dar conta de tal assimetria, uma análise inspirada naquela esboçada acima será proposta, além da adaptação da restrição FaithHorn para a escala <ou, e>:

(10) FaithAnd: E é mapeado a um significado conjuntivo.

A restrição em (10) exige que os dois elementos ligados por “e” sejam verdadeiros. A violação de FaithAnd acontece, então, quando “e” é usado para descrever uma situação não conjuntiva, como o caso em que um dos elementos ligados pelo conectivo é falso. De forma similar ao trabalho apresentado na seção anterior, assume-se o ranqueamento FaithAnd ≫ Strength.

Em nossa análise, serão utilizadas as sentenças em (11) e (12), abaixo:

(11) Pedro estudou linguística e computação.

(12) Pedro estudou linguística ou computação.

Supondo que as sentenças em (11) e (12) digam respeito ao(s) curso(s) de graduação que Pedro teria cursado, a verdade de (11) requer que ele tenha cursado tanto linguística quanto computação. Já (12) permite as leituras inclusiva e exclusiva: Pedro pode ter cursado um ou ambos (inclusiva), ou no máximo um dos cursos (exclusiva). Assim, “ou” é interpretado como NÃO CONJUNTIVO. Nota-se uma similaridade entre “ou-inclusivo” e “e”, pois ambos implicam verdade quando ambos os disjuntos são verdadeiros, embora no caso “e” isso seja necessário.

Pode-se ilustrar a produção de um significado CONJUNTIVO, como aquele em (11) com o Tableau 7:

Tableau 7 -
Produção de CONJUNTIVO

No Tableau 7, FaithAnd é satisfeita pelo mapeamento de “e” ao significado CONJUNTIVO, enquanto “ou” satisfaz a restrição vacuamente por não ser considerado no mapeamento, uma vez que esta restrição age apenas sobre “e”. Já Strength é satisfeita por “e”, que é o item escalar mais forte em sua escala. Por outro lado, “ou” é o item menos informativo de sua escala e viola Strength, tornando esta restrição responsável por eliminar esse output como o menos harmônico.

A produção de um significado NÃO CONJUNTIVO, como aquele em (12) pode ser representada pelo Tableau 8:

Tableau 8 -
Produção de NÃO CONJUNTIVO

FaithAnd é violada por “e”, que não está sendo mapeado ao significado CONJUNTIVO, sendo a restrição decisiva para selecionar “ou” como o output vencedor, uma vez que elimina o candidato “e”. Mais uma vez, FaithAnd é vacuamente satisfeita por “ou”.

Para a compreensão de sentenças como as exemplificadas em (11) e (12), podem ser propostos, respectivamente, os Tableaux 9 e 10:

Tableau 9 -
Compreensão de “e”

Tableau 10 -
Compreensão de “ou”

A compreensão de “e” é capturada pelo Tableau 9, pois a restrição Strength não atua sobre formas, então ela é vacuamente satisfeita na compreensão de qualquer forma. Portanto, FaithAnd elimina o significado NÃO CONJUNTIVO para “e”.

No Tableau 10, por outro lado, foi observado novamente um caso em que a otimização não pode ser resolvida, uma vez que as restrições em questão são satisfeitas vacuamente, tornando a interpretação de “ou” ambígua pela possibilidade de ser compreendido em contextos similares àqueles em que “e” é compreendido, ou seja, em situações em que ambos os disjuntos são verdadeiros e em situações em que apenas um deles é verdadeiro.

Essa discussão sugere, portanto, que a compreensão de “ou-exclusivo” depende da Bi-OT, de modo análogo ao que foi discutido para o “some”. Essa intuição pode ser capturada pelo Tableau 11:

Tableau 11 -
Otimização bidirecional que dá lugar à implicatura gerada por “ou”

Os procedimentos para a análise no Tableau 11 são os mesmos que foram apresentados para o Tableau 6. Ainda partindo da definição de Bi-OT em (6a, b), todos os pares que contêm ou a forma ou significado ótimos do primeiro par vencedor (i.e., <e, CONJUNTIVO>), na primeira linha, são bloqueados e são eliminados da competição pelo próximo par ótimo.

Na linha seguinte, o par <e, NÃO CONJUNTIVO> é eliminado porque, além de violar a restrição mais alta FaithAnd, “e” é a forma vencedora no primeiro par. Em relação à violação das restrições, ainda sobram os pares na terceira e quarta linha que violam a mesma restrição. Contudo, o par da terceira linha (<ou, CONJUNTIVO>) não pode ser selecionado porque CONJUNTIVO já foi selecionado no primeiro par ótimo. Resta então o quarto par <ou, NÃO CONJUTIVO> cuja forma e significado ainda não haviam sido selecionados, sendo este o segundo par vencedor.

O par <e, CONJUNTIVO> captura a compreensão de “e” para se referir a significados conjuntivos (i.e., quando ambos os itens são verdadeiros), já o par <ou, NÃO CONJUTIVO> captura a compreensão de “ou” para se referir ao significado exclusivo do conectivo (i.e., quando no máximo um dos itens é verdadeiro). Assim, a seleção do segundo par representa o cálculo da implicatura escalar com “ou”.

Com a otimização bidirecional, “ou” não é mapeado para significados compatíveis com ambos os disjuntos sendo verdadeiros, priorizando “e” para esses casos. Em contraste, na otimização unidirecional, “ou” pode adquirir significados CONJUNTIVOS ou NÃO CONJUNTIVOS, gerando ambiguidade. Assim, “ou” torna-se exclusivo apenas na otimização bidirecional, posto que apenas o ranqueamento de restrições, na otimização unidirecional, é incapaz de selecionar apenas um output ótimo. A saída adotada captura os achados dos trabalhos de compreensão que indicam que as crianças não exibem comportamento linguístico adulto, assim como os trabalhos em produção que indicam que a produção de ou-exclusivo é similar a dos adultos.

Essa seção ilustrou como a Teoria da Otimidade (OT), especialmente através da Bi-OT, pode oferecer uma análise detalhada para o que acontece com os itens escalares “ou” e “alguns” na aquisição de linguagem. Discutiu-se como a otimização unidirecional é suficiente para explicar a produção de itens escalares como “alguns” e “ou” e a compreensão de “todos” e “e”, enquanto a otimização bidirecional é crucial para resolver ambiguidades na compreensão de “alguns” e “ou”. Esta distinção alinha-se com as etapas do desenvolvimento cognitivo infantil, partindo do pressuposto de que otimizar bidireccionalmente requer uma Teoria da Mente desenvolvida. Assim, a partir da OT é possível não só descrever a assimetria entre a produção e compreensão de itens escalares, mas também prover uma análise unificada pare este fenômeno.

Na seção seguinte, será abordado o nosso estudo que investigou a produção espontânea de “ou”, por crianças adquirindo PB como língua materna, em contextos analisados como propensos a disparar um cálculo de implicatura.

O conectivo “ou” no período de aquisição de linguagem

Até aqui, foi discutido o trabalho de Grice sobre implicaturas escalares, além da exploração de estudos sobre a compreensão e produção infantis, destacando uma assimetria na qual crianças produzem itens escalares de forma adulta antes de compreendê-los. A Teoria da Otimidade foi introduzida na seção anterior, abordando trabalhos que investigaram essa assimetria em estudos empíricos. Nesta seção, serão analisados dados longitudinais de corpora de fala, focando na produção de “ou” por crianças adquirindo o PB como língua materna, a fim de verificar se essas crianças exibem comportamento linguístico condizente com o comportamento adulto.

Materiais e métodos

Participantes e corpora

Neste trabalho, foram analisados três corpora de dados do português brasileiro: um de fala infantil e fala direcionada à criança (Santana-Santos); um de fala infantil e fala adulta semicontrolada (AlegreLong); e um de fala entre adultos (NURC). O corpus de fala adulta serviu como controle para a comparação da frequência do fenômeno de interesse na fala infantil e na fala direcionada às crianças, usando a fala adulta como padrão.

O corpus Santana-Santos (Santos, 2005SANTOS, Raquel Santana. A aquisição do ritmo em português brasileiro. São Paulo: FAPESP, 2005.) inclui gravações de crianças interagindo com adultos em contextos naturais, sem direcionamento para temas ou estruturas linguísticas específicas. Composto por 238 sessões, o corpus oferece uma base rica para análises longitudinais. As crianças estudadas são Helena (2;0-4;0), Leonardo (2;0-4;8), Luana (1;5-5;6) e Túlio (2;0-4;11), todas adquirindo o Português Brasileiro na região Sudeste do país.

O corpus AlegreLong (Guimarães, 1994GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. Desenvolvimento da linguagem da criança na fase de letramento.Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 26, n. 12, p. 103-110, 1994.), acessível via CHILDES, inclui 101 sessões audiovisuais de conversas entre crianças e adultos. Nestas sessões, crianças discutem tópicos do dia-a-dia sem orientação para estruturas linguísticas específicas. As crianças participantes são Alexandra (4;8-8;10), Camila (4;11-8;9), Carmela (4;3-8;5), Gabriel (5;9-9;0), Matheus (6;2-9;0), Natalia (5;4-8;9) e Rodrigo (5;5-7;7), todas falantes do Português Brasileiro da região Sul do país9 9 A pesquisa aqui reportada foi desenvolvida durante a pandemia de Covid-19. Por conta disso, tivemos que nos basear em corpora disponíveis online. Dada a escassa disponibilidade online de dados de produção espontânea de crianças e adultos falantes de PB, selecionamos aqueles que encontramos que continham mais informantes. Levando em conta que não foi encontrado registro de variação diacrônica para o fenômeno investigado na faixa temporal dos corpora utilizados, a discrepância do período de coleta de dados dos corpora não traz prejuízos para nossa análise. ,10 10 Até a idade final do corpus Santana-Santos (5;6 para a criança Luana), quase não são observadas produções do item “ou” com leitura inclusiva. Por esse motivo, decidimos analisar dados de crianças mais velhas (a partir dos 5 anos) para poder ter uma melhor ideia do que ocorre em um momento posterior do desenvolvimento. .

As idades das crianças do corpus AlegreLong complementam as das crianças do corpus Santana-Santos, provendo uma grande cobertura de alcance entre as idades (i.e., 2;0-9;0).

A Tabela 1 apresenta um sumário de informações dos dois corpora:

Tabela 1 -
Sumário dos dados dos corpora Santana-Santos e AlegreLong

Como mencionado, além dos corpora de fala infantil, foi utilizado também um corpus de fala entre adultos, extraído do Volume III do corpus NURC-Recife11 11 Os dados analisados abrangem três regiões do Brasil: Nordeste, Sudeste e Sul. Considerando que o fenômeno semântico-pragmático estudado não apresenta variação diatópica, a diversidade regional dos corpora não deve influenciar os resultados. Idealmente, seriam usados dados de apenas uma única região, mas a limitação de dados disponíveis online impôs uma abordagem mais abrangente. (et al., 2017SÁ, Maria Da Piedade Moreira et al. (org.). A Linguagem Falada culta na Cidade do Recife, vol 3: diálogos entre dois informantes. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras - UFPE, 2017.), que contém 20 inquéritos com conversas de 43 adultos com nível superior completo, coletados pelo PROJETO NURC/RE. O corpus envolve diálogos entre dois informantes (chamados “D2” na base de dados), com alguns comentários de um entrevistador. Nesses inquéritos, os falantes discutem temas variados (e.g., viagens, família, alimentação, entre outros) em sessões com duração média de 1 hora e 04 minutos. Cada inquérito equivale a uma sessão, em relação aos dados das crianças.

Codificação e procedimentos de análise

Foram incluídas todas as sentenças em que o conectivo “ou” foi proferido como uma disjunção12 12 Há casos em que “ou”, em português, é usado como um condicional como em “eu fico de olho no gato ou então ele come minhas plantas”. Neste exemplo “ou” pode ser parafraseado por uma expressão como “caso contrário”. Levando em conta que este uso não é nem inclusivo e nem exclusivo, não sendo associado às implicaturas escalares, ele não será discutido. Assim como expressões disjuntivas como “ora”, já que nosso foco recai sobre “ou”. . Não foram incluídas ocorrências de “ou” que não eram proferidas de forma espontânea, como em músicas ou quando o conectivo aparecia durante a leitura de uma história, além de usos de “ou” pelas crianças que consistiam na imitação do que foi dito pelo adulto.

Os dados foram classificados como “inclusivo” e “exclusivo”, como exemplificado na Tabela 2:

Tabela 2 -
Diretriz de codificação e exemplos para a codificação de “ou

Para a codificação, o contexto comunicativo de cada sentença foi meticulosamente considerado, procurando-se por pistas linguísticas ou contextuais que esclarecessem se o uso do conectivo era de natureza inclusiva ou exclusiva. Nossa abordagem metodológica adotou a estratégia de examinar o texto até, pelo menos, quatro linhas acima e abaixo da ocorrência do conectivo, buscando evidências claras de sua interpretação.

Seguindo o que é sugerido em Morris (2008MORRIS, Bradley. Logically Speaking: evidence for item-based acquisition of the connectives and & or. Journal Of Cognition And Development , v. 9, n. 1, p. 67-88, 2008., p. 74), e usualmente adotado na literatura, adotamos uma postura conservadora na codificação: na ausência de pistas linguísticas explícitas, como “não ambos”, ou de condições contextuais específicas que pudessem desambiguar o uso - por exemplo, a impossibilidade de se escolher ambos os elementos mencionados -, optamos por codificar a ocorrência como “inclusiva”. Levando em conta a dificuldade de considerar os usos como exclusivos, assumindo que estes partam do cálculo de uma implicatura, acreditamos que este cuidado nos ajudou a assegurar que apenas com evidências claras de exclusividade poderíamos codificar as produções como “exclusivas”.

Resultados

Corpus Santana-Santos

Apresentação será iniciada com o conjunto de dados coletados a partir de Santana-Santos. Nesse corpus, tanto usos exclusivos quanto inclusivos de “ou” foram observados na produção infantil, como ilustrado abaixo:

(13) Criança: Mãe, você vai tirar foto ou vai por a foto? (LE, 3;01;10)

(14) Mãe: Que lindo o macaquinho!

Criança: Mamãe, você me dá este ou este?

Mãe: Esta aqui é a zebra. (LU, 02;05;14)

Em (13), a partir dos proferimentos “tirar foto” e “por a foto”, foi observado, pelo contexto, que a criança está se referindo ao ato de fotografar ou gravar um vídeo e pergunta à mãe se ela fará um dos dois pelo uso de “ou” no lugar de “e”, sendo codificado como “ou-exclusivo”. Em (14), levando em conta que é um pedido em aberto para que a mãe passe um brinquedo para a criança, não excluindo a possibilidade que a mãe passe os dois brinquedos para ela, esse caso ilustra um uso de “ou-inclusivo”.

Na fala direcionada à criança, produzida por adultos, usos exclusivos (15) e inclusivos (16) também foram detectados:

(15) Mãe: Amelie é pequeninha ou é grande? (HE (mãe), 02;09;11)

(16) Mãe: O Halloween não tem nada a ver com cultura brasileira. [...]

Mãe: Tem que fazer festa de Saci-pererê, que é da nossa cultura, ou de São João.

(LU (mãe), 04;09;12)

No exemplo em (15), codificamos o uso como exclusivo levando em conta a impossibilidade de os dois disjuntos salientes serem verdadeiros ao mesmo tempo. Já em (16), podemos ver pelo proferimento que antecede a produção de “ou” que a mãe faz um contraste entre festas brasileiras e o Halloween, indicando que pode ser qualquer uma festa brasileira, usando o “ou” para indicar as possíveis opções.

Em apenas 16 das 238 sessões analisadas, foi observado o uso de “ou” pelas crianças, o que corresponde a 6,7% do total. Já no input (i.e., dados da fala do adulto com a criança), o uso de “ou” foi registrado em 97 sessões, o que equivale a 40,76% do conjunto de dados.

Na Tabela 3, abaixo, serão apresentados os dados das crianças e os dados encontrados no input, respectivamente:

Tabela 3 -
Produções de “ou” (inclusivo e exclusivo) pelas crianças (N = 4) - corpus Santana-Santos

Como é possível observar a partir da Tabela 3, todas as crianças produziram “ou”. Foi observado apenas um uso inclusivo de “ou”, como exemplificado em (14). Já o restante das produções infantis foram de “ou-exclusivo”. Além disso, as produções de Luana (LU) representam a maior parte dos dados, tanto no que diz respeito à sua produção quanto ao número de ocorrências de “ou” no input que recebeu, como se pode notar pela Tabela 3.

A análise dos dados revela que Túlio foi o primeiro a usar “ou-exclusivo” aos 2;04;18, seguido por Luana (2;05;14), Helena (2;10;15) e Leonardo (3;01;10). Luana inicialmente usou “ou-inclusivo” aos 2;05;14, recorrendo ao “ou-exclusivo” somente aos 4;03;12. Embora só tenha sido encontrada evidência nos dados de Luana, aparentemente o uso de “ou” se torna mais comum após os 4;0 anos de idade.

Corpus AlegreLong

No corpus das crianças mais velhas analisadas por nós, com dados coletados na base AlegreLong, também foram observados usos exclusivos (17) e inclusivos (18) de “ou”:

(17) Criança: É pra mim escrever ou pra mim desenhar?

Entrev.: Como tu quiseres.

Criança: Então eu vou desenhar. (CA, 06;05;27)

(18) Criança: Aqui, um bebê se machucou. (apontando para um desenho)

Criança: ou quebrou a perna. (AL, 06;08;15)

Em (17), a criança pergunta se precisa fazer uma coisa ou outra, portanto o proferimento foi codificado como exclusivo. A codificação como ‘exclusivo’ foi feita a partir da análise da resposta da criança, que decide que vai apenas desenhar. Além disso, essas entrevistas eram feitas de tal forma que a entrevistadora solicitava que a criança ou desenhasse ou escrevesse sobre um acontecimento que elas presenciaram. Já em (18), a criança parece não ter certeza sobre o que aconteceu com o bebê no desenho, deixando aberta a possibilidade de o bebê ter se machucado [de qualquer forma que seja] e de ter quebrado a perna, produzindo “ou-inclusivo”.

Nos dados dos adultos interagindo com as crianças, os dois usos também foram detectados. O “ou-exclusivo” é observado em (20) e o inclusivo em (21):

(19) Entrev.: Tu foste com bicicleta tua ou tu pegaste...?

Criança: Com a minha. (CA (entrevistadora), 08;03;16)

(20) Entrev.: E tu nunca brigaste com primo ou com a prima?

(CR (entrevistadora), 05;08;01)

Em (20), a pergunta deixa em aberto a possibilidade dos dois disjuntos serem verdadeiros, fazendo com que este proferimento seja codificado como “ou-inclusivo”.

Os dados desse corpus revelam uma tendência semelhante à que foi observada no corpus Santana-Santos: tanto as crianças quanto os adultos proferem mais frequentemente o “ou-exclusivo” em comparação ao “ou-inclusivo”, como pode ser observado abaixo (Tabela 4):

Tabela 4 -
Produções de “ou” (inclusivo e exclusivo) pelas crianças (N = 7) - corpus AlegreLong

Conforme observado nos dados de Santana-Santos, todas as crianças do corpus AlegreLong também produziram “ou”. No entanto, ao contrário dos achados anteriores, “ou-inclusivo” foi produzido por mais de uma criança, embora raramente (1 a 2 vezes).

A Tabela 4 indica também que os dados coletados em AlegreLong seguem tendência similar ao de Santana-Santos no que diz respeito à frequência de “ou-exclusivo”, que só foi encontrado em taxa similar ao “ou-inclusivo” nos dados de Gabriel (GA).

Dado o intervalo etário das crianças no corpus AlegreLong (4;3-9;0), é inviável determinar a idade específica de emergência do “ou-exclusivo” em suas falas. Embora seja possível notar a presença de “ou-inclusivo” na fala dessas crianças mais velhas, não são todas elas que o produziram e o número de produções é bastante baixo.

A partir da Tabela 5, abaixo, observa-se um sumário dos resultados encontrados nos dois corpora:

Tabela 5 -
Sumário dos resultados dos corpora Santana-Santos e AlegreLong

Nos corpora Santana-Santos e AlegreLong, “ou-exclusivo” predominou, com 96,7% e 80,9% das ocorrências, respectivamente. O “ou-inclusivo” mostrou-se raro em ambos os grupos. Em AlegreLong, as crianças usaram “ou-exclusivo” mais frequentemente que as crianças do corpus Santana-Santos, possivelmente devido a uma faixa etária mais avançada.

Por fim, serão apresentados os dados coletados na plataforma NURC/RE.

Corpus NURC/RE

O corpus NURC-Recife forneceu dados sobre a frequência de uso do “ou” em conversas entre adultos, servindo como referência para comparar com os dados infantis. Esses dados provêm de inquéritos com dois adultos com nível superior, falantes do PB de Recife, abordando temas variados como “animais”, “diversão” e “agricultura”. Ao total, foram analisados 20 inquéritos, envolvendo 43 participantes adultos13 13 Na literatura em PB, não foram encontrados dados quantitativos de “ou” que indiquem as taxas de uso de “ou-exclusivo” e “ou-inclusivo”. Portanto, foi necessário checar a produção adulta no que diz respeito à produção deste item para estabelecer algum parâmetro para os dados infantis. .

Na análise dos dados, foram encontradas 507 ocorrências de “ou”. Na Tabela 6 abaixo, as taxas de produção de “ou-exclusivo” e “ou-inclusivo” são apresentadas:

Tabela 6 -
Produções de “ou” encontradas na fala adulta (N = 43) - corpus NURC/RE

A análise dos dados do NURC/RE revela que, na fala adulta, “ou-exclusivo” (66%) é mais frequente que “ou-inclusivo” (34%), uma taxa menor quando comparada aos corpora Santana-Santos (96,7%) e AlegreLong (80,9%). Por outro lado, a frequência do “ou-inclusivo” é maior no NURC/RE (34%) do que em Santana-Santos (3,3%) e AlegreLong (19,1%).

A próxima seção será dedicada à discussão dos resultados.

Discussão

Os resultados apresentados nas seções anteriores indicam que as crianças não só parecem ser capazes de, desde cedo, produzir sentenças com usos de “ou” exclusivo, como também este é o tipo mais frequente nos dois corpora infantis que foram analisados.

Em seções anteriores, foram discutidos estudos como os de Tieu et al. (2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017.) e Skordos et al. (2020SKORDOS, Dimitrios et al. Do Children Interpret ‘or’ Conjunctively? Journal of Semantics , v. 37, n. 2, p. 247-267, May 2020.) sobre a compreensão de “ou” em diferentes línguas. Tieu et al. observaram que crianças interpretavam “ou” como “e”, enquanto Skordos et al. indicaram sua compreensão como “ou-inclusivo”. Por outro lado, trabalhos de produção, como os de Morris (2008MORRIS, Bradley. Logically Speaking: evidence for item-based acquisition of the connectives and & or. Journal Of Cognition And Development , v. 9, n. 1, p. 67-88, 2008.) e Jasbi et al. (2018JASBI, Masoud; JAGGI, Akshay; FRANK, Michae C. Conceptual and prosodic cues in child-directed speech can help children learn the meaning of disjunction. Proceedings of the 40 th Annual Conference of the Cognitive Science Society, 2018.), indicaram que crianças já produzem “ou” com interpretação exclusiva a partir dos 2;6 anos de idade.

Nos nossos dados de produção espontânea, foram encontradas similaridades com o que é encontrado na literatura. Tanto no corpus de Santana-Santos quanto no de AlegreLong, as crianças produziram sentenças com “ou-exclusivo” a taxas bem maiores do que a produção de “ou-inclusivo”. Os dados dos adultos interagindo com as crianças desses dois corpora vão na mesma direção.

Nossos dados revelam uma peculiaridade notável: diferentemente do usual em aquisição de linguagem, em que a compreensão geralmente precede a produção, nas implicaturas escalares ocorre o oposto. Foi proposta, portanto, uma análise baseada na OT. Para a produção de sentenças contendo “ou-exclusivo”, a otimização unidirecional é suficiente, uma vez que o cálculo da implicatura, sob a visão discutida, não é feito durante a produção. Ou seja, não é necessário que o falante tenha a intenção de implicar algo para realizar um proferimento exclusivo de “ou”, o ranqueamento de restrições da gramática é capaz de selecionar “ou” como output vencedor em contextos como esse. Assim, sob essa visão, o cálculo da implicatura é papel do ouvinte e não do falante. Vale destacar que isso não é o mesmo que dizer que o falante não possa ter uma intenção comunicativa de implicar algo, mas essa intenção não é relevante no processo de otimização unidirecional.

A implicatura escalar, portanto, não emerge do proferimento em si, mas da capacidade do ouvinte de assumir a perspectiva do falante, um processo formalizado pela OT bidirecional. Dada a natureza recursiva e os recursos cognitivos exigidos, presume-se que as crianças só consigam calcular implicaturas escalares quando habilidades como a Teoria da Mente estão suficientemente desenvolvidas.

Os estudos experimentais discutidos (TIEL et al., 2017TIEU, Lyn et al. On the Role of Alternatives in the Acquisition of Simple and Complex Disjunctions in French and Japanese. Journal of Semantics , v. 34, n. 1, p. 127-152, 2017.; SKORDOS et al., 2020SKORDOS, Dimitrios et al. Do Children Interpret ‘or’ Conjunctively? Journal of Semantics , v. 37, n. 2, p. 247-267, May 2020.) baseiam-se na premissa de que a produção e compreensão dependem apenas do mesmo conhecimento linguístico. No entanto, a OT propõe uma abordagem diferenciada: reconhece a necessidade do mesmo conhecimento linguístico, mas sugere que sua mobilização ocorre de maneira distinta na compreensão e produção, refletida na direção da otimização. Para o caso das implicaturas, espera-se que, além do ranqueamento das restrições relevantes, a criança seja capaz de otimizar bidirecionalmente para que possa fazer o cálculo da implicatura. Nesse quadro teórico, portanto, a diferença entre produção e compreensão não é apenas explicada; ela é prevista.

Conclusão

Desde o trabalho pioneiro de Noveck (2001NOVECK, Ira A. When children are more logical than adults: experimental investigations of scalar implicature. Cognition , v. 78, n. 2, p. 165-188, 2001.), o estudo sobre o cálculo de implicaturas escalares em crianças tem sido central na aquisição da linguagem, tanto em semântica quanto em pragmática. Diversas abordagens teóricas, respaldadas por pesquisas empíricas com crianças e adultos, têm explorado este tema. Esse campo de estudo não apenas avançou metodologias experimentais para fenômenos semânticos e pragmáticos, mas também ampliou nosso entendimento sobre o desenvolvimento linguístico infantil.

A maior parte destes trabalhos tem se voltado apenas para a compreensão, deixando lacunas no entendimento do comportamento linguístico infantil diante destas implicaturas, com poucos estudos sobre a produção pelas crianças de proferimentos que podem dispará-las.

Foi discutido como a OT pode reconciliar achados divergentes na literatura sobre compreensão e produção, especialmente em implicaturas escalares. Através da otimização unidirecional e bidirecional, foi identificada a assimetria entre produção e compreensão nesse fenômeno. É defendido que um conjunto comum de restrições, mobilizado de maneiras distintas conforme a direção da otimização, é adequado para explicar essas diferenças.

É importante deixar claro que o pressuposto de que a produção e a compreensão são processos distintos é central na OT. A incorporação dessa ideia ao caso das implicaturas resulta na análise de que a produção de itens escalares dependeria apenas da otimização unidirecional, que não é o mesmo que produzir uma implicatura. Por outro lado, a compreensão destes itens depende da otimização bidirecional, requerida para o cálculo da implicatura, que é gerada pelo ouvinte. Ou seja, diferentemente da visão canônica neo-griceana (Hirschberg, 1985HIRSCHBERG, Julia. A Theory of Scalar Implicature. 1985. Thesis (Ph.D. in Linguistics) - University of Pennsylvania, Philadelphia, 1985.) que toma como pressuposto que a geração da implicatura depende da intenção do falante, a proposta assumida neste trabalho parte do pressuposto de que a geração da implicatura depende da capacidade de o ouvinte tomar a perspectiva do falante. Por consequência, a adequação da OT para tratar o fenômeno é basilar e não é introduzida de forma ad-hoc14 14 Análises similares dentro da OT são propostas para outros fenômenos, como o “atraso do princípio B” (cf. Hendriks; Spenader, 2006). .

Ao longo deste trabalho, foi apresentada a Teoria da Otimidade não mais em seu lugar comum, que é nos estudos em fonologia, mas em análises semântico-pragmáticas, onde o quadro teórico ainda é bastante tímido. Os resultados de produção são explicados pelo fato de ser necessária apenas a otimização unidirecional. Este tipo de otimização é menos custoso por não depender da tomada de perspectiva e da iteração recursiva que é necessária no algoritmo da Bi-OT. Por ser menos complexo, as crianças seriam capazes, desde cedo, de fazer proferimentos que podem disparar implicaturas.

Os estudos sobre compreensão infantil são explicados, na perspectiva da OT, pela dificuldade das crianças em realizar a otimização bidirecional, um processo cognitivamente exigente que depende de habilidades como a Teoria da Mente. Estas habilidades amadurecem por volta dos 4;6 anos, idade na qual as crianças começam a superar as dificuldades no cálculo de implicaturas.

Nossos resultados indicam que crianças adquirindo o português brasileiro produzem o “ou-exclusivo” desde cedo, e, embora também utilizem o “ou-inclusivo”, fazem-no menos frequentemente. Esse padrão de produção reflete o dos adultos com quem interagem, que tendem a usar “ou-exclusivo” mais frequentemente do que o “ou-inclusivo”.

Este trabalho destaca a versatilidade e eficácia da Teoria da Otimidade em abordar a assimetria entre produção e compreensão na aquisição de linguagem. Foi argumentado que a OT, tradicionalmente aplicada em estudos fonológicos, também oferece insights substanciais em semântica e pragmática. Este trabalho não apenas avança no uso da OT em domínios linguísticos pouco explorados pela teoria, mas também estabelece seu rigor no tratamento de um fenômeno amplamente discutido sob outros vieses que ou enfrentam dificuldade no tratamento da assimetria discutida ou não são capazes de capturá-la.

Agradecimentos:

Gostaríamos de agradecer aos pareceristas anônimos e às editoras da revista pelos comentários e sugestões, que foram essenciais para o enriquecimento da versão final do texto. Todos os erros remanescentes são de nossa inteira responsabilidade. Agradecemos também a Professora Raquel Santana Santos que gentilmente nos concedeu um dos corpora utilizados neste trabalho. Esta pesquisa obteve financiamento da CAPES (processo n. 88887.342336/2019-00 para o primeiro autor e processo 306462/2020-6 para a segunda autora).

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  • 1
    Para estudos sobre o processamento linguístico de implicaturas em adultos ver Bott, Bailey & Rodner (2012BOTT, Lewis; BAILEY, Todd; GRODNER, Daniel. Distinguishing speed from accuracy in scalar implicatures. Journal of Memory and Language, v. 66, n. 1, p. 123-142, 2012.); De Carvalho et al., (2016DE CARVALHO, Alex et al. Scalar Implicatures: The Psychological Reality of Scales.Frontiers in Psychology, v. 7, 25 Oct. 2016.). Para estudos sobre a aquisição, ver Noveck (2001NOVECK, Ira A. When children are more logical than adults: experimental investigations of scalar implicature. Cognition , v. 78, n. 2, p. 165-188, 2001.); Katsos & Bishop (2011KATSOS, Napoleon; BISHOP, Dorothy V. M. Pragmatic tolerance: Implications for the acquisition of informativeness and implicature. Cognition, v. 120, n. 1, p. 67-81, jul. 2011.); entre outros.
  • 2
    Plausible dissent”, crucial em estudos de aquisição da linguagem e introduzida por Crain et al. (1996CRAIN, Stephen et al. Quantification Without Qualification. Language Acquisition, v. 5, n. 2, p. 85-153, 1996.), assegura que experimentos forneçam contextos onde proferimentos possam ser validados ou refutados. Contextos em que tudo é verdadeiro não são ideais, pois confundem a tarefa de julgamento da criança. A inclusão de uma terceira opção no experimento de Skordos et al. ofereceu um cenário mais realista, permitindo situações onde a sentença-alvo poderia ser falsa, contrastando com as de apenas duas opções.
  • 3
    Para trabalhos de compreensão que reportam que as crianças não demonstram comportamento adulto diante implicaturas escalares com “alguns” e seu equivalente em outras línguas, o leitor é direcionado para Noveck (2001NOVECK, Ira A. When children are more logical than adults: experimental investigations of scalar implicature. Cognition , v. 78, n. 2, p. 165-188, 2001.), Foppolo, Guasti & Chierchia (2012FOPPOLO, Foppolo.; GUASTI, Maria Teresa; CHIERCHIA, Gennaro. Scalar Implicatures in Child Language: Give Children a Chance. Language Learning and Development, v. 8, n. 4, p. 365- 394, 2012.), entre outros. Já para um trabalho que observou que crianças falantes de inglês de entre 2;0 e 3;0 anos de idade já produzem “some” (“alguns”, em português) em contextos que licenciam implicaturas escalares, o leitor é direcionado para Eiteljörge, Poscoulos e Lieven (2018EITELJÖRGE, Sarah; POUSCOULOUS, Nausicaa; LIEVEN, Elena. Some pieces are missing: implicature production in children. Frontiers in Psychology , v. 9, 2018.).
  • 4
    Os termos “vencedor”, “ótimo” e “mais harmônico” serão utilizados de forma intercambiável para se referir ao candidato a output selecionado no processo de otimização.
  • 5
    O símbolo ≫ representa a dominação entre as restrições. Sendo assim, C1 ≫ C2 pode ser lido como “C1 domina C2”.
  • 6
    O itálico é usado para denotar formas e a caixa alta para significados.
  • 7
    Strength é baseada em restrições motivadas anteriormente na literatura para tratar de fenômenos de natureza distinta. Cf. Zeevat (2000ZEEVAT, Henk. The asymmetry of optimality theoretic syntax and semantics. Journal of Semantics , v. 17, n. 3, p. 243-262, 2000.).
  • 8
    No trabalho de Morris (2008MORRIS, Bradley. Logically Speaking: evidence for item-based acquisition of the connectives and & or. Journal Of Cognition And Development , v. 9, n. 1, p. 67-88, 2008.), além da contabilização dos resultados, não há uma seção detalhando exemplos de sentenças indicando quem as produziu e qual a idade da criança que a produziu ou a recebeu como input. Em uma das tabelas de codificação (p. 74), o autor codifica os usos exclusivos como “um ou outro, não ambos” seguido do exemplo “you can go to the table or to the free play area” (“você pode ir para a mesa ou para o parquinho”, tradução nossa, negrito no original).
  • 9
    A pesquisa aqui reportada foi desenvolvida durante a pandemia de Covid-19. Por conta disso, tivemos que nos basear em corpora disponíveis online. Dada a escassa disponibilidade online de dados de produção espontânea de crianças e adultos falantes de PB, selecionamos aqueles que encontramos que continham mais informantes. Levando em conta que não foi encontrado registro de variação diacrônica para o fenômeno investigado na faixa temporal dos corpora utilizados, a discrepância do período de coleta de dados dos corpora não traz prejuízos para nossa análise.
  • 10
    Até a idade final do corpus Santana-Santos (5;6 para a criança Luana), quase não são observadas produções do item “ou” com leitura inclusiva. Por esse motivo, decidimos analisar dados de crianças mais velhas (a partir dos 5 anos) para poder ter uma melhor ideia do que ocorre em um momento posterior do desenvolvimento.
  • 11
    Os dados analisados abrangem três regiões do Brasil: Nordeste, Sudeste e Sul. Considerando que o fenômeno semântico-pragmático estudado não apresenta variação diatópica, a diversidade regional dos corpora não deve influenciar os resultados. Idealmente, seriam usados dados de apenas uma única região, mas a limitação de dados disponíveis online impôs uma abordagem mais abrangente.
  • 12
    Há casos em que “ou”, em português, é usado como um condicional como em “eu fico de olho no gato ou então ele come minhas plantas”. Neste exemplo “ou” pode ser parafraseado por uma expressão como “caso contrário”. Levando em conta que este uso não é nem inclusivo e nem exclusivo, não sendo associado às implicaturas escalares, ele não será discutido. Assim como expressões disjuntivas como “ora”, já que nosso foco recai sobre “ou”.
  • 13
    Na literatura em PB, não foram encontrados dados quantitativos de “ou” que indiquem as taxas de uso de “ou-exclusivo” e “ou-inclusivo”. Portanto, foi necessário checar a produção adulta no que diz respeito à produção deste item para estabelecer algum parâmetro para os dados infantis.
  • 14
    Análises similares dentro da OT são propostas para outros fenômenos, como o “atraso do princípio B” (cf. Hendriks; Spenader, 2006HENDRIKS, Petra; SPENADER, Jennifer. When production precedes comprehension: an optimization approach to the acquisition of pronouns. Language Acquisition , v. 13, n. 4, p. 319-348, 2006.).

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Brenda Laca Luciana Sanchez-Mendes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2023
  • Aceito
    12 Abr 2024
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
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