Open-access EDUCAR PARA A DEMOCRACIA: FILOSOFIA E DEMOCRACIA A PARTIR DOS ESCRITOS DE ERIC WEIL SOBRE A EDUCAÇÃO**

EDUCATING FOR DEMOCRACY: PHILOSOPHY AND DEMOCRACY FROM ERIC WEIL’S WRITINGS ON EDUCATION

RESUMO

Este artigo analisa o papel da filosofia na educação para experiências democráticas a partir dos escritos de Eric Weil sobre a educação. Para tanto, ele inicia com a pergunta pela educação na sociedade moderna, a partir de seus dois conceitos: a “razão delirante” e o “evangelho da violência pura”. O primeiro remete à racionalidade científica de nossa civilização, o segundo exprime a linguagem própria de movimentos neopopulistas de feição fascista. Os dois representam desafios prementes à educação e, ao mesmo tempo, formas de recusa do discurso sensato. Por último, ancorado na visão weiliana da democracia como espaço de discussão pública, retoma o tema pensando o papel da filosofia para a educação e para a democracia.

Palavras-chave: Democracia; Educação; Filosofia; Razão delirante; Violência

ABSTRACT

This paper analyzes the role of philosophy in education for democratic experiences from Eric Weil’s writings on education. It begins with the question of education in the modern society from two of Weil’s concepts: “delusional reason” and the “gospel of pure violence”. The first refers to the scientific rationality of our civilization; the second expresses the language of neo-populist movements of a fascist nature. Both represent pressing challenges to education and, at the same time, forms of refusal of sensible discourse. Finally, anchored in the Weilian vision of democracy as a space for public discussion, the text considers the role of philosophy for education and democracy.

Keywords: Democracy; Education; Philosophy; Delusional reason; Violence

1. Introdução

Há alguns anos, Olga Pombo (2000), ao reunir escritos de Hannah Arendt, Eric Weil, Bertrand Russell e José Ortega y Gasset sobre educação, deu ao volume o título Quatro Textos Excêntricos e justificou essa escolha com o fato de que, nesses filósofos, o tema constitui uma questão “fora do centro”. Uma justificativa que, no entanto, não se aplica tão bem a Eric Weil. De fato, ao contrário do que sugere a intérprete lusitana, a educação não ocupa um espaço puramente acidental na obra weiliana.1 Nosso argumento pode se assentar tanto no papel desempenhado pela educação na primeira parte da Filosofia política quanto nos diferentes escritos de Weil sobre o tema.2

O tema da educação em Eric Weil está longe de ser um assunto estranho aos interessados em sua filosofia.3 O específico desta pesquisa é a sua atenção quase exclusiva aos trabalhos do autor interessados diretamente no assunto, recortando, do universo dos problemas propostos, duas questões que nos oferecem uma chave de leitura razoável não apenas para a interpretação do seu pensamento, mas acima de tudo para a compreensão do nosso tempo, a saber, o papel da filosofia para a educação e o valor desta última para a vivência democrática. Em suma, o objetivo deste artigo é pensar a relação entre educação, filosofia e democracia, partindo dos textos weilianos sobre a educação.

Para alcançarmos nosso escopo, estruturamos este artigo em três momentos distintos. Nos dois primeiros, refletimos sobre a educação na sociedade moderna a partir dos conceitos de “razão delirante” (Weil, 2012, p. 31) e “evangelho da pureza violência” (Weil, 2020, p. 8). Na linguagem do autor, a primeira expressão remete à racionalidade científica que modelou a nossa civilização, já a segunda exprime a linguagem própria de movimentos neopopulistas de feição fascista. Em Weil, as duas constituem desafios prementes à educação ao mesmo tempo que figuram como formas de recusa do discurso sensato. Ademais, o filósofo considera em níveis diferentes tanto as insuficiências de uma linguagem tornada “pensamento técnico” (Weil, 2012, p. 294) quanto daquela que só “reconhece o imperativo” (Weil, 2012, p. 512). Se, por um lado, Weil destaca os limites dessas linguagens diante da questão do sentido, por outro, podemos confrontá-las com as condições da discussão que deve animar as democracias modernas. Seguindo essa segunda possibilidade, o terceiro momento deste texto ancora-se na visão weiliana da democracia como espaço de discussão livre, universal, racional e razoável, para retomar o papel da filosofia para a educação e para a democracia.

A relevância do tema sofre de uma “triste atualidade”, se observarmos o quadro geral das atuais crises democráticas. Nesse cenário, a filosofia de Eric Weil tem o mérito de conceder o devido destaque a temas fundamentais, às vezes olvidados nas análises correntes, como, por exemplo, a própria importância da educação para a democracia e o resgate do diálogo como virtude e registro fundamental da linguagem política (cf. Castelo Branco, 2021a).

2. A educação como problema na sociedade da “razão delirante”

Os escritos weilianos que tratam da educação formam um conjunto diversificado, constituído por resenhas, artigos e conferências, e apresentados em meios igualmente distintos como, por exemplo, os periódicos estadunidenses Confluence e Daedalus e a célebre revista francesa Critique.4 Evidentemente, considerando o caráter específico de uma resenha ou os limites próprios de uma publicação ou de uma palestra, é bastante compreensível que esses textos tenham recortes variegados e apontem para objetivos às vezes difíceis de conjugar. No entanto, em que pesem as diferenças marcantes entre esses trabalhos, alguns pontos são frequentes nas análises de Weil e servem de base para articular a moldura dentro da qual desejamos desenvolver nossos argumentos.

Naquele que talvez seja o texto mais citado dos escritos de Eric Weil sobre o tema, a saber, “A educação enquanto problema do nosso tempo”, o autor começa destacando duas ideias que, apesar de transmitirem certa “generalidade”, têm a função de demarcar com precisão a perspectiva na qual ele deseja se manter. Com efeito, já nas primeiras linhas, Weil recorda o fato de que a educação é uma temática incessantemente discutida em fóruns com os mais diferentes perfis, dimensões e finalidades, ao mesmo tempo que aponta para o atual papel das técnicas pedagógicas e para os debates que giram ao redor destas. Porém, para Weil, a dificuldade está no fato de que tanto as instituições devotadas à educação quanto aqueles que sublinham a importância das técnicas de ensino, lidam frequentemente com receitas, mas nem sempre dispõem da clareza necessária à compreensão do problema. Dito de outro modo, só muito raramente preocupam-se com a pergunta: “o que é educação?” (Weil, 2021a, p. 38). É essa precisamente a questão que compete ao filósofo.

A pergunta pela educação, como todo fato significativo, só alcança seu verdadeiro sentido tomada dentro de um quadro referencial e histórico específico. Dessa maneira, não surpreende que em diferentes épocas e lugares as respostas a essa questão tenham variado tanto, apontando, às vezes, para a formação do honnête homme, do gentleman, do der edle Charater ou mesmo do der grosse Mann. No presente, a questão deve ser considerada no confronto com as características constitutivas da sociedade moderna. Numa palavra, a reflexão sobre a educação requer, necessariamente, a pergunta acerca do seu sentido em uma cultura modelada pela ciência e pela técnica, e em uma sociedade na qual, ao menos nos países ocidentais, “praticamente toda a população é instruída” (Weil, 2021a, p. 39).

Weil dedica toda a segunda parte da sua Filosofia política à análise da sociedade moderna; porém, para a questão com a qual nos ocupamos aqui, o que expõe em textos como “A ciência e a civilização ou o sentido do insensato” (Weil, 2021a, pp. 53-85) e “A filosofia é científica?” (Weil, 2020), tem particular relevância, porquanto ressalta um aspecto fundamental à formulação do nosso raciocínio. Nesses escritos, o filósofo sublinha justamente o papel capital da ciência moderna, descrevendo-a sempre à semelhança de Jano, com uma face apontando para a théoria e outra para a práxis (cf. Weil, 2021a, pp. 55-56). Evidentemente, essas duas faces representam esferas distintas, a primeira expressando o ideal mantido por uma determinada ideia de “ciência desinteressada”, e a outra, o interesse que ela desperta na civilização moderna (cf. Breuvart, 1989).5 No entanto, se essa feição bifurcada constitui uma questão para quem se empenha em compreender a ciência, ela não representa problema algum para aqueles que se beneficiam cotidianamente de seus avanços. Para Weil, o ponto pode ser posto em termos simples: com a ciência, nós alcançamos o sonho cartesiano, tornamo-nos senhores e donos da natureza, mas não sabemos o que fazer com essa realização (cf. Weil, 2021a, p. 54).

Grosso modo, o filósofo ressalta o fato de que as transformações gestadas em torno da ciência moderna não se reduzem a questões de modelos epistemológicos, mas consistem, fundamentalmente, em uma concepção de mundo substancialmente nova (cf. Buée, 1989, p. 87). Trata-se, portanto, da matéria-prima para uma nova Weltanschauung, na qual a imagem do mecanismo suplanta a noção de Deus.6 Com efeito, se na Lógica da filosofia a categoria Deus pode ser saudada como “a mais moderna das categorias antigas, a mais antiga das modernas” (Weil, 2012, p. 268), é somente na categoria da Condição, aquela do discurso próprio da ciência moderna, que a modernidade encontra suas bases definitivas.7 E é sobre esse novo alicerce que a experiência humana, coletiva e individual, pode ser interpretada. Em outras palavras, a ciência passa a desempenhar, além de tudo, o papel de instância de legitimação no campo social e político, ora complementando, ora contrariando outras instâncias legitimadoras, como, por exemplo, a religião.

Consequentemente, conhecer, para o homem moderno, não tem tanto a ver com uma visão abrangente, capaz de compreender o conjunto da realidade (cf. Weil, 2012, p. 599), incluindo as suas contradições, em um plano sempre mais amplo e englobante, mas se liga ao domínio das relações de causalidade que atravessam os fenômenos – entendendo, a princípio, fenômenos naturais e estendendo-se, progressivamente, àqueles históricos e sociais. O conhecimento lida, assim, não com um sentido abrangente, mas, acima de tudo, com a possibilidade de controlar causas em função de efeitos previsíveis e desejáveis, o savoir pour prévoir, conforme a fórmula do positivismo do século XIX. Por conseguinte, aos olhos do homem moderno, não só o mundo, mas também a sociedade e, em decorrência, a educação, são tomados de um modo inteiramente distinto das visões pré-modernas.

Ainda no que concerne à sociedade, é a partir da perspectiva traçada pelo método científico que ela passa a se compreender nos seus moldes modernos. Não se trata simplesmente de reconhecer o papel das novas ciências sociais para a autocompreensão da sociedade, mas, antes de tudo, da necessidade de pensar que parte dos alicerces dessa mesma sociedade fixa-se sobre as bases dispostas pelo método e pela linguagem das ciências. Enfim, somente partindo de uma visão centrada na imagem do mecanismo, isto é, do conhecimento das partes e das suas relações, é possível chegar à descrição da sociedade como uma “organização racional do trabalho”, descrição na qual o caráter “racional” assenta também no tipo de racionalidade característica das ciências modernas.

“A ciência é o principal suporte de nossa vida econômica, social e política” (Weil, 2021a, p. 55). Com esses termos, Weil apresenta de forma inequívoca o moderno valor social da ciência (cf. Castelo Branco, 2021b). Na verdade, encontramos em sua obra uma relação dialética entre ciência e sociedade. De um lado, a ciência configura a sociedade ao lhe conferir o modelo epistemológico sobre o qual se constrói o edifício cognitivo – e mesmo normativo – que constitui o conhecimento objetivo. De outro lado, a sociedade modela a ciência ao vincular o valor desta aos seus préstimos à satisfação dos interesses sociais, ou seja, ao que a ciência pode acrescentar ao progresso material da sociedade. Em resumo, como corolário dessa relação, o próprio conhecimento será visto e justificado segundo o método científico e em função do progresso material auspiciado pela sociedade moderna.

Os termos do problema podem finalmente assumir sua verdadeira dimensão, pois se, ao fim e ao cabo, a educação tem sempre a ver também com uma determinada forma de inserção do indivíduo em “seu mundo”, hoje ela lida necessariamente com a colocação do sujeito diante das pressões próprias da configuração moderna de nossa sociedade e das suas exigências em vista do seu progresso material. Em outras palavras, a educação deve preparar o indivíduo para entrar no mecanismo social e para colaborar – em uma função específica – para o seu funcionamento.

Eric Weil não propõe um modelo de educação que isole o indivíduo das pressões da sociedade moderna. Antes o contrário, ela deve capacitá-lo para, em meio a essas pressões, lidar com a questão do sentido suscitada pelo problema da sua liberdade. O paradoxo reside no fato de que a cultura modelada pela racionalidade da ciência moderna – que Weil chama também de “razão delirante” (Weil, 2012, p. 31) – não dispõe, em seu repertório, dos termos necessários à elaboração da pergunta pelo sentido e pela liberdade; logo, trata-a como um falso problema.8 Nessa perspectiva, a educação deve se restringir ao universo da técnica, identificando-se com a mera instrução, quer dizer, com a capacitação para operar instrumentos sempre mais sofisticados, o que, quando muito, exige a habilidade de calcular os meios mais eficazes para os fins desejados.

Weil considera irrenunciável o papel da instrução para a inserção do indivíduo na sociedade moderna, sua crítica se dirige especificamente à postura que defende a redução da educação ao campo específico da instrução técnica.9 Encontramos uma bela síntese do juízo weiliano na evocação do nome de Thorstein Veblen, em um texto intitulado “Em defesa das humanidades”. Com efeito, ali o autor de The theory of the leisure class é tomado como figura que incorpora algumas ideias correntes da sociedade moderna ao dizer, por exemplo, que “do ponto de vista da eficácia econômica em sentido amplo, as humanidades são anacronismos nocivos”, e que as línguas clássicas não passam de “uma informação substancialmente inútil” (citado em Weil, 2021a, p. 126).

Curiosamente, a reflexão weiliana acompanha as teses de Veblen, mas para chegar a conclusões opostas. Na realidade, não é mais possível negligenciar o fato de que o desenvolvimento técnico reduziu e continua a reduzir o tempo que o homem dedica à produção (Weil, 2021a, p. 129). Entretanto, se Veblen acerta ao ver que, neste cenário, “os passatempos se tornaram um dos produtos mais importantes da civilização industrial”, sua análise nem sempre alcança a extensão real do problema, pois “agora, tudo se passa como se desenvolvêssemos uma civilização do ócio generalizado” (Weil, 2021a, p. 130). Se Weil concorda com Veblen quanto ao fato de que nós dispomos hoje de muito mais tempo livre que os nossos antepassados e de que em uma sociedade que produz o ócio haverá sempre lugar para atividades não produtivas, diverge no que concerne à natureza dessas atividades, pois, enquanto para Veblen elas podem se reduzir a divertimentos e práticas esportivas, para o nosso filósofo, o homem moderno continua sujeito à “objetiva necessidade de pensamento” (Weil, 2021a, p. 131), ou seja, ele considera que

não seria ruim se os cidadãos tomassem suas decisões não porque esse ou aquele candidato lhes parece simpático, mas porque entenderam, se não todos os problemas técnicos, ao menos as questões essenciais e evitaram os discursos obscuros; que homens e mulheres não seguissem charlatões e excêntricos, mas escolhessem entre ideias, das quais podem ao menos se aproximar, se não puderem realizá-los completamente: que pudessem distinguir os fatores históricos das explicações míticas; se as pessoas no comando procurassem no passado o que levou ao sucesso ou ao fracasso (ou o que causou a ruína de certos atores políticos), se os juízos morais e mesmo estéticos não fossem confundidos com preferências privadas e gostos pessoais, os pensadores e os artistas não fossem tomados por loucos e autênticos especuladores que contam com a ignorância do público ou com o seu medo de perder o último trem. (Weil, 2021a, pp. 130-131)

Tudo isso continua a valer na sociedade do ócio. E é em vista da formação de indivíduos dotados dessas capacidades, ou seja, dispostos à “objetiva necessidade de pensamento”, que Weil conclui que as “humanidades” continuam necessárias não apesar da ciência, da técnica e da instrução, mas devido ao papel que elas desempenham em nossa sociedade, porque “só as humanidades podem tratar questões sobre o valor das ocupações humanas – incluindo as próprias ciências –, porque as ciências são incapazes de refletir sobre as questões que concernem ao homem, considerado como um sujeito agente, pensante e senciente, e não como um objeto de análise fatorial e causal” (Weil, 2021a, p. 126).

Enfim, se a técnica possibilitou a nossa emancipação de uma vida inteiramente dedicada à satisfação de necessidades, nem ela nem a ciência que a fundamenta são capazes de guiar-nos em nossa moderna liberdade. Segundo a formulação de Weil, “nós nos perguntamos em que nos podem servir [...] todo esse nosso poder atual e futuro, se ignoramos como usá-los” (Weil, 2020, p. 8). Vivemos, então, o risco do “tédio que nasce da insatisfação do interesse satisfeito”? (Weil, 2021a, p. 45).10 Weil se distancia de Veblen definitivamente ao destacar o tédio como figura moderna da violência, pois se na sociedade do ócio ou do lazer, uma vez

obtido tudo o se pode razoavelmente desejar, as pessoas se mostram ainda insatisfeitas, se todo mundo compartilha do mesmo sentimento de insatisfação, então, pode desencadear-se o recurso a coisas desrazoáveis. Podemos concordar num ponto, apenas nesse, a saber, que a violência é o único verdadeiro passatempo. (Weil, 2021a, p. 44)

3. Educação e filosofia diante do anúncio do “evangelho da violência pura”

Se em seus trabalhos sobre a educação Weil considera o problema confrontando-o com o quadro posto pela sociedade moderna, pelo papel da ciência e pela consequente centralidade da instrução técnica, sua análise será ampliada na conferência “O futuro da filosofia”, proferida para professores de filosofia da cidade de Nice, em 1974. O tema geral da comunicação é a legitimidade da filosofia e para abordá-lo o autor procede a uma reflexão “a partir da perspectiva daqueles que duvidam do sentido da ocupação dos filósofos” (Weil, 2020, p. 5). Se este expediente pede a retomada de alguns pontos sobre os limites da racionalidade científica, a novidade reside na apresentação de outra forma de recusa da filosofia, desta vez na figura do “anticientificismo” (Weil, 2020, p. 6).

No que concerne ao valor da ciência, Weil volta a sublinhar a importância das “certezas” que dispomos no domínio dos fatos, ao mesmo tempo que recorda a nossa falta de orientação no campo das escolhas e das ações. As suas ideias ficam particularmente patentes quando pergunta se “o político e o físico agem no mesmo sentido da palavra ‘agir’” (Weil, 2020, p. 7).

Quanto ao “anticientificismo”, Weil o considera uma reação ao fato de que a ciência e a tecnologia, garantindo-nos o domínio de um terreno específico, tiraram-nos nossas certezas em outras esferas, como aquela dos valores, isto é, o campo daquele “saber mais profundo do que qualquer conhecimento científico calculista e que nos diz onde se encontram o bem e o mal, o que é preciso procurar e o que devemos evitar se quisermos levar uma vida sensata porque fez, feliz porque sensata” (Weil, 2020, p. 8).

Em que pese à oposição entre eles, cientificismo e anticientificismo compartilham da mesma atitude de rejeição da filosofia. De um lado, diz-se, ela não é científica (Weil, 2020, p. 6), de outro, ela passa a ser considerada ciência, “ao menos em suas pretensões”, e mesmo “ciência das ciências” (Weil, 2020, p. 8), como racionalidade englobante acima das racionalidades particulares e parciais.

Para o anticientificismo, portanto, a filosofia tem pouco ou nada a dizer quando se trata do mundo da vida. Ao máximo, ou ela transmite um saber tradicional, a ideia que um dado grupo tem acerca da sua própria forma de vida, naturalmente um grupo empenhado em manter suas vantagens à custa de outros grupos, ou invoca a racionalidade da consciência para não ver o que se esconde sob essa racionalidade.

A filosofia, em uma palavra, é apenas uma tela de proteção, uma ideologia, e seus representantes, subjetivamente convencidos da “verdade” das suas declarações, longe de corrigir o erro e a mentira objetiva da sua ideologia, apenas agravam o seu caso. A filosofia não é razão, ela é no máximo racionalização. (Weil, 2020, p. 8)

Tomado em um nível distinto, o problema se mostra particularmente candente, pois a filosofia, ao menos para Weil, é, antes de qualquer coisa, a busca de um discurso coerente, quer dizer, de um discurso preso à realidade e em vista da sua compreensão. O que essa segunda rejeição levanta é justamente a recusa dessa coerência em nome de um “pensamento emancipado” (Weil, 2020, p. 8), livre dos limites impostos pela coerência racional, lógica e científica. Em outros termos, a filosofia é vista como uma justificativa que destrói a liberdade, o desejo, a revolta, a criatividade, e que se mostra, por isso, injustificável diante do tribunal da vida.

Contudo, mesmo para quem recusa o discurso coerente

É preciso uma fundamentação, um fundamento último; mas esse fundamento não aparecerá sobre o écran do discurso discursivo, racional, científico; também não se encontrará mais por trás desse écran uma verdade que não seja física, mas metafísica. Logo, a verdade não é deduzida, mas se revela de forma imediata, ela se apresenta, quer dizer, ou ela é percebida no instante particular, ou jamais será percebida. (Weil, 2020, p. 8)

É o terreno propício ao anúncio do “evangelho da pureza da violência” (Weil, 2020, p. 8). Nessa “nova mensagem”, tudo pode tornar-se valor e sentido absolutos aos olhos e ao coração dos “fiéis” no chamado, na pregação, na invocação, no oráculo, em uma palavra, na linguagem livre de todas as restrições de uma razão, “inconsciente do inconsciente que a põe em marcha” (Weil, 2020, p. 8). É, portanto, essa nova linguagem que desvela o sentido autêntico. Propõe-se, finalmente, a aceitação dos abismos que a razão almejava esconder e a filosofia queria esquecer. Ceder à atração dessa linguagem é a garantia de uma felicidade total.

Em resumo, segundo essa visão, a filosofia seria sempre o instrumento de legitimação de uma ideologia dominante, a “lógica de uma ideia”, parte da sustentação de uma determinada concepção de mundo. Assim, torna-se imperativo recusá-la na mesma medida com que se procura a verdadeira liberdade. E uma vez abandonado o discurso coerente, resta o recurso à linguagem do mito, com frequência utilizando o acervo do vocabulário religioso, como, para citar um exemplo ainda não superado, faz Hitler em algumas passagens de Mein Kampf: “Estejam certos de que colocamos a fé em primeiro lugar e não o conhecimento! É preciso ser capaz de crer em uma causa. Só a fé cria o Estado. O que leva os homens a lutarem e morrerem por ideias religiosas? Não o conhecimento, mas a fé cega” (citado em Deligne, 2022, p. 36).11

O caráter mítico-religioso dessa nova linguagem não é acidental, embora devamos precisar que, seguindo as análises weilianas, o termo “religião” seja entendido aqui em um sentido formalizado, secularizado, pós-cristão (Weil, 1991, p. 46), cujo significado se refere a crenças fundamentais sobre as quais não se pode discutir.12 Porém, dizer que essas crenças não podem tornar-se objeto de discussão é afirmar que, nesse domínio, o argumento é inútil, ou, o que é o mesmo, que ninguém se deixa convencer pela razão.

Para exemplificar seu argumento, Weil recorre ao adepto do nazifascismo como figura da impossibilidade de discussão acerca de crenças, ou, para olhar a moeda pelo outro lado, da rejeição do argumento razoável. Para o filósofo, se disséssemos a um nazista: “vocês não são razoáveis”, talvez ele respondesse simplesmente que “a razão é algo da nossa religião, mas que a religião deles não reconhece a existência disso” (Weil, 1993, p. 111).13 As referências a Hitler e ao nazifascismo não são fortuitas em um texto sobre Eric Weil; afinal, este seu “mestre involuntário”14 representa a personalidade que incorpora o “evangelho da violência”, a ponto de poder chamá-lo simplesmente o “evangelho hitleriano” (Weil, 1982, p. 51).

No limite, essa nova linguagem proclama que “toda coerência é falsa coerência” (Weil, 2020, p. 8), um desafio incontornável à busca de um discurso coerente, como é o caso da filosofia. Não por acaso, a violência – entendida como recusa da razão – deixa de ser uma mera questão para a filosofia para tornar-se o seu “problema capital”, isto é, o problema a partir do qual todos os demais serão pensados.

Se no terreno das ciências o controle dos fatos nos leva ao domínio das evidências e, por isso, à impossibilidade de uma discussão, o anúncio da violência pura obsta ainda mais radicalmente qualquer chance de diálogo, descartando de antemão o debate sobre crenças e princípios. Numa palavra, ciência e violência não dão conta das contradições constitutivas da vida humana: emudecendo, no caso da ciência presa ao conhecimento dos fatos; negando-as, no caso da violência, pela eliminação de toda visão de mundo diferente, como no exemplo daquele que “saca a sua arma ao ouvir a palavra cultura”.15

Ancorados na obra de Eric Weil, é possível definir a partir dessas conclusões, logicamente por via negationis, o valor da filosofia para a educação. Enquanto o discurso científico procura “avançar com segurança em um puro monólogo” (Weil, 2021b, p. 4), podemos dizer que – usando as metáforas de Adriana Cavarero (2005) – o “evangelho da violência” persegue o caráter uníssono da massa a entoar hinos bélicos – imagem comum nos movimentos neopopulistas –; já à filosofia interessa a plurifonia da realidade, a voz da pluralidade, nem sempre harmoniosa, às vezes confundida com uma verdadeira “cacofonia”.16 Caberia, então, retornar à interrogação weiliana sobre o tipo de ação do físico e do político para salientar o fato de que, diferentemente do primeiro, o segundo age em um terreno repleto de contradições, em campos desprovidos da segurança das evidências e que devem estar completamente abertos à discussão dessas diversas vozes.

4. A filosofia na educação ou educar para a discussão e para a democracia

Se a filosofia é importante para a educação, essa importância está também na sua constitutiva abertura à contradição das muitas vozes presentes na realidade. Certamente não se trata de pensar que a filosofia – ou, para falar de forma mais precisa, que algum filósofo – ensine ou admita que uma proposição e sua negação possam ser verdadeiras ao mesmo tempo, se todos os termos forem tomados no mesmo sentido (Weil, 2021b, p. 5). Enunciando o problema de modo mais simples, para Weil, o mundo excede o domínio da lógica, pois, pensando apenas no universo dos diferentes sistemas filosóficos, temos de reconhecer que

a lógica comum falha porque não tem princípios reconhecidos por todos e a partir dos quais poderíamos formalmente esclarecer a contradição e assim resolvê-la, porque cada sistema possui os seus próprios primeiros princípios, irredutíveis (irredutíveis para eles) – e não dispomos da vantagem do grande critério das ciências empíricas, pois não podemos nos dirigir a dados universalmente reconhecidos nem podemos imaginar um experimentum crucis que decida validamente entre duas diferentes hipóteses: o que é decisivo para um filósofo sequer é real para outro, e a hipótese científica, estabelecida pela observação e pela experimentação (mais exatamente, que é considerada estabelecida desde que não contradiga a observação e a experimentação), essa hipótese não tem absolutamente lugar no domínio da filosofia, que não possui uma esfera delimitada de dados nem de métodos de pesquisa e de decisão. (Weil, 2021b, p. 5)

Logo, se à filosofia for concedido indicar seu domínio, seu método e sua lógica, ela deve primeiramente destacar que fala de tudo ou que ao menos pretende ter esse direito, que suas regras não são específicas, mas decorrem daquela “lógica mais comum, mais geral (quer dizer, não da lógica generalizada pela formalização, mas daquela comum a todos), a lógica do diálogo” (Weil, 2021b, p. 4). Para Weil, a filosofia se caracteriza também por se ater a essa lógica “mais comum”. A filosofia, portanto, ao invés de excluir a “discussão viva na qual os homens se opõem” (Weil, 2021b, p. 4),17 procura compreendê-la, não para encontrar uma forma de síntese “mais alta e mais profunda” (Weil, 2021b, p. 3) capaz de fazer calar todo discurso no “silêncio vazio” (Weil, 2012, p. 27), mas para a construção de um mundo no qual seja sempre possível o esforço da compreensão.

É evidente que essa tarefa se revela particularmente difícil quando nos deparamos com a coabitação de um ideal educativo centrado na instrução, de um lado, com um discurso mítico-pseudorreligioso, de outro. Segundo Weil, uma condição que marca a “esquizofrenia” de nossa civilização (Weil, 2021a, p. 66),18 ao mesmo tempo que realça o caráter imprescindível da formação humanista e especificamente do ensino de filosofia para a educação.

Dito isso, a afirmação da necessidade da filosofia precisa ainda ser elucidada, retornando, em respeito aos limites definidos por Weil, à pergunta acerca da educação. Se, como vimos, a questão recebe diferentes respostas consoante o contexto em que é posta, em nossa sociedade,

é preciso ser capaz de pensar retamente, de chegar a conclusões razoáveis a partir de premissas dadas na realidade viva e vivida, não nos exercícios de lógica formal: o bom cidadão “sabe quando sabe e quando ignora; não confunde uma opinião com um conhecimento seguro”, sabe julgar mesmo e sobretudo quando os dados são muito complicados para uma análise formal; ele tem o tipo de imaginação que lhe permite sair dos trilhos rotineiros. É preciso ser capaz de exprimir-se: não há democracia sem comunicação, sem a arte de saber falar e escrever, de escutar e ler; a evolução de nossa sociedade tranca o especialista na prisão de seu jargão, isolando-o de seu próximo, daquele que fala a linguagem de uma outra especialidade; não é preciso grande arte ou ciência profunda, mas sem as qualidades de espírito e as qualidades morais (a sinceridade, por exemplo) que o comércio entre os homens demanda por meio da palavra, a comunicação e, com ela, a comunidade se desfazem. É preciso saber julgar com pertinência: não basta conhecer a própria poética na ponta dos dedos para ser poeta, é normal que as ideias nas quais o aluno se aprofunda na escola lhe deem apenas o vício do orgulho intelectual se o professor não o remeter continuamente à complexidade da vida real. É preciso saber escolher entre os valores: discernir o valor autêntico e comprometer-se com ele. (Weil, 2021a, pp. 26-27)

São termos extraídos do volume organizado por James Bryant Conant e um comitê de doze professores de Harvard, e que Weil elogia sobretudo pelo “senso de realidade” (Weil, 2021a, p. 26). As capacidades demandadas pelo relatório excedem em vários pontos os limites da mera instrução e o papel da filosofia na educação assume finalmente um caráter que não podemos descurar.

As capacidades expostas em General Education in a Free Society não implicam simplesmente o homem como ser singular, em sua vida privada, mas concernem ao ser humano enquanto membro de uma sociedade regida por regras gerais. Isso significa, fundamentalmente, a formação de um sujeito preparado não só para colaborar no funcionamento do mecanismo social e em função do progresso material, mas sobretudo para a participação de uma discussão livre, universal, racional e razoável, entendida como “modo de organização sistemática da vida da sociedade (moderna) enquanto espaço humano governado pelo Estado” (Bobongaud, 2011, p. 146). Em outros termos, a formação de um indivíduo às voltas com o debate público na busca ativa de conciliação entre o princípio da eficácia e a noção de justiça (cf. Canivez, 2006).

Weil trata dessa discussão em planos distintos, destacando, por um lado, a estrutura política do parlamento e dos partidos políticos (Weil, 2011, pp. 260-261),19 e, por outro, o espaço ocupado por “órgãos intermediários” (Weil, 2021a, p. 205) formados por associações de interesse como sindicatos e organizações sociais. No entanto, subjaz a esses dois níveis aquele mais fundamental: “uma discussão de alguma forma arqui-tetônica (fundadora) e arqueo-lógica (que se põe no princípio de toda lógica – da vida sociopolítica)” (Bobongaud, 2011, p. 153). Nesse nível basilar, a discussão permite trazer à consciência o que constitui o essencial das convicções de uma nação e as aspirações da opinião pública.

Preparar o sujeito para participar dessa discussão – em qualquer um desses níveis – excede os fins de uma educação meramente tecnicista, entendendo, antes de qualquer coisa, que tomar parte nos processos públicos de deliberação coletiva “corresponde a uma modalidade de ação política” (Canivez, 1999, p. 28). Não surpreende, portanto, que Weil, ao trazer os princípios elencados no relatório de Harvard, chame particular atenção para a relação entre a capacidade de exprimir-se e a democracia. Talvez muitos considerem a observação do filósofo de que “não há democracia sem comunicação” uma verdade lapalissada, mas justamente por isso é essencial retomá-la, afinal – como ele alerta em outro espaço –, “as verdades evidentes são facilmente esquecidas e negligenciadas” (Weil, 2021a, p. 104).20

Levando então em conta a afirmação weiliana em “A democracia em um mundo de tensões” de que “o método essencial da democracia é a discussão” (Weil, 2021a, p. 190), o nosso problema ganha traços definitivos, uma vez que nem a instrução tecnicista nem o “evangelho da violência” oferecem qualquer fundamento para um verdadeiro debate – que evidentemente pressupõe, entre outras coisas, a capacidade de comunicação – no “mundo da vida” (cf. Weil, 2021a, p. 191). Logo, em Weil, a democracia é, antes de tudo, um regime que repousa sobre a discussão; isso significa que, para o nosso autor, o fundamento da democracia é a razão (e não a virtude como em Montesquieu) (Weil, 2021a, p. 191), entendida não no sentido de uma “razão-substância”, mas de “uma razão que se realiza e se capta na ação” (Weil, 2011, p. 154). No caso concreto da experiência democrática, denota a condição de que todos renunciem à violência e estejam prontos a se deixar convencer por argumentos razoáveis em um ambiente de discussão.

A insistência weiliana sobre a liberdade e a coerência que devem caracterizar essa discussão é absolutamente coerente com o conjunto do seu pensamento e indicativa de algumas dificuldades peculiares às atuais vivências democráticas. Um exemplo nítido do quadro das nossas experiências correntes pode ser encontrado na indiferença que, nas últimas décadas, acompanhou as discussões políticas no Ocidente, e que, em muitos casos, culminou em taxas elevadíssimas de abstenção eleitoral, mesmo em países com uma consolidada tradição democrática. Em grande medida, procurou-se justificar essa situação pela especialização das linguagens e pela influência dos conhecimentos técnicos na condução dos problemas coletivos. Se hoje assistimos à substituição dessas circunstâncias pela linguagem passional e mesmo mítica, é porque passamos de um problema a outro, talvez ainda mais preocupante.

Enfim, o que está em jogo é a própria manutenção da democracia que, é sempre bom lembrar, “não resiste a toda prova, tensão e injustiça por uma espécie de graça de estado” (Weil, 2021a, p. 225), mas unicamente pelo compromisso dos seus adeptos. No entanto, se Weil estiver correto ao asseverar que “não basta falar de democracia para que os cidadãos sejam capazes, ou pelo menos desejosos, de tomar parte nas discussões que regulam o destino da comunidade” (Weil, 2011, p. 211), resta a pergunta sobre os caminhos a serem tomados para salvaguardá-la.

É neste ponto que excele a afirmação weiliana de que “sem ela [a educação], falar de democracia (em qualquer acepção que se dê a essa palavra tão controversa) é um escárnio” (Weil, 2021a, p. 25). Porque somente sujeitos capazes de pensar, exprimir-se, julgar e agir poderão comprometer-se com ela. E só pessoas educadas, não meramente instruídas, terão essas capacidades. Então, a educação compreendida a partir dos princípios postos no relatório de Harvard, é ela mesma conditio sine qua non da própria democracia, e para essa educação a filosofia é essencial pelas razões já aludidas.

Em última instância, para Eric Weil, a educação é uma questão constitutiva da democracia, ou seja, uma prerrogativa do Estado constitucional democrático. Usando termos atuais, ela necessariamente compõe a agenda de todo governo democrático, que, de outro modo, submeter-se-ia ao risco de perder as próprias bases de sua legitimação. Nas conclusões de “Limites da democracia”, essa ideia é exposta cabalmente nos seguintes termos:

a democracia – é assim que podemos resumir tudo o que precede – não é exclusivamente o sistema de governo instituído e controlado pelo povo; é ainda, e talvez sobretudo, se considerarmos a situação presente da maior parte da humanidade, o sistema de governo concebido em vista da educação do povo para a democracia. (Weil, 2021a, p. 223)21

4. Considerações finais

Eric Weil, como outros pensadores do século passado, reconhece nas figuras modernas da violência um caráter problemático inédito na história da filosofia ocidental, à luz do contexto específico da “crise da razão” que revirou a reflexão filosófica desde o fim do século XIX e que alcançou seu cume nas grandes tragédias do século XX. A novidade da filosofia weiliana reside na radicalidade que o problema adquire para o autor. Com efeito, entendida como o “outro da razão”, a violência aparece sob diferentes aspectos, todos entendidos, no entanto, sob a cifra de uma forma de recusa, não mais animada pela ignorância, mas com “pleno conhecimento de causa” (Weil, 2012, p. 28).

Essa recusa não é simplesmente “irracional”. Antes o contrário. Ele assume uma forma própria de racionalidade para refutar a razão. Evidentemente, para que a fórmula se torne clara, Weil adjetiva os termos, pondo em confronto “razão razoável” e “razão delirante” (Weil, 2012, p. 31). O problema assume seu formato definitivo sob o signo da vitória do homo faber, ou da “razão delirante”, como imagem ideal do “homem da rua e da praça pública” (Weil, 2012, p. 30).

Modernamente, esse sujeito desfruta de tudo aquilo que o desenvolvimento científico e técnico possibilita, mas desprovido de um princípio concreto para guiar a sua liberdade. Pensando em uma escala abrangente, o principal resultado desse quadro é a condição de um indivíduo “essencialmente insatisfeito” (Weil, 2011, p. 113), ouvinte ideal para a pregação do “evangelho da violência pura”.

Grosso modo, tanto a “razão delirante”, subjacente ao tecnicismo, como o “evangelho da violência”, motor do que foi designado também como “anticientificismo”, não preparam minimamente o sujeito para participar das discussões públicas em torno dos problemas coletivos. Por seu turno, a filosofia, entendida como a procura de um discurso coerente, ou seja, de um discurso capaz de dar conta da realidade e de suas contradições, se faz justamente na procura de algo do gênero. Isso porque seu método, se nos for permitido usar o termo, assemelha-se justamente a um diálogo entre muitas e diferentes vozes. Ela não está à procura de um monólogo baseado quer na certeza da evidência, quer na convicção ideológica e clarividente de uma escolha cega.

Logo, é absolutamente imprescindível que a educação dê espaço à filosofia. Não para apresentá-la como herança cultural, doutrina, conjunto de opiniões ou ideologia, mas como aquela busca de coerência que a caracteriza como “ciência do sentido” (Weil, 2012, p. 598) que prepara os homens às regras do diálogo e da discussão que podem finalmente surgir quando se renuncia à violência.

É parte constitutiva de uma experiência democrática a preocupação com uma educação atenta à discussão pública. Com efeito, se entendemos a discussão “como vitrine ideal do sistema democrático” (Bobongaud, 2011, p. 159), precisamos pensar também que “os cidadãos podem ser tão ignorantes sobre os negócios públicos que não percebam a importância dos problemas envolvidos, nem desejem opinar sobre eles” (Weil, 2021a, p. 185). Por isso, retomando o que dissemos acima, um Estado democrático é também um Estado que educa para a discussão livre, universal, racional e razoável, base da própria democracia. Agora entendemos o papel que Weil assinala ao Estado quando assevera, já no fim da Filosofia política que “com risco de chocar, é preciso dizer que a teoria antiga (aristotélica, em particular) do Estado como instituição moral e educativa é verdadeira” (Weil, 2011, p. 300), afirmação deveras chocante para a consciência política moderna, mas inteiramente coerente com a filosofia daquele que foi saudado também como “o último dos filósofos clássicos” (Sichirollo, 1990, p. 79).

  • **
    Pesquisa realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq - Processo 409234/2022.2.
  • 1
    As palavras de Michel Soetard parecem refletir a mesma perspectiva de Pombo quando inicia sua comunicação no Colóquio Internacional de Chantilly afirmando que “não podemos dizer que a educação tenha um lugar primordial na obra de Eric Weil” (Soetard, 1984, p. 289). Porém, Pier Franco Taboni, cujo ponto de vista compartilhamos, demonstra que a relação do tema com a estruturação do sistema weiliano pode ser muito mais complexa. Para o intérprete italiano: “histoire e humanités, como dizem claramente as datas dos três escritos De l’intérêt [que l’on prend à l’histoire] [1935], L’Anthropologie [d’Aristote] [1946] e L’idée d’éducation [dans l’enseignement américain] [1946], são as ordens de reflexão nas quais o sistema filosófico de Weil foi gestado. Logo, por um lado, histoire e humanités batizam o sistema e, deste ponto de vista, o introduzem; por outro lado, o sistema dá sentido completo à reflexão sobre histoire e humanités e sobre todos os outros argumentos contemporâneos ou posteriores às grandes obras teóricas da abundante produção ensaística de Weil” (Taboni, 1992, pp. 10-11). Ver também Deligne (2022, pp. 221-223).
  • 2
    A Filosofia política é seguramente a principal referência para a compreensão da educação em Weil. Nesse sentido, acompanhamos, até certo ponto, o que estabelece Soetard (1984, p. 289) ao dizer que o que filósofo expressa em outros escritos apenas explicita as teses expostas na obra de 1956. No entanto, a nosso ver, essa visão deve ser completada também pelo que desenvolve Taboni (1992, p. 32): “A Filosofia política indica de modo inteiramente claro nas ciências exatas e sociais o que forma a instrução, enquanto para a educação limita-se a dizer que essa é educação à razão, à liberdade, à moralidade, mas não precisa do que essa educação liberal deve nutrir-se. Os ensaios sobre as humanités preenchem essa lacuna. As disciplinas humanistas são campo de tirocínio e linfa vital da educação liberal, enquanto determinam a relação entre cultura e moral. Ao mesmo tempo, as disciplinas científicas são restituídas ao seu papel indispensável, mas subordinado, de ‘ciências auxiliares’, e ‘ciências ancilares’ das disciplinas educativas propriamente ditas, limitando-se a lhes fornecer conhecimentos exatos que a pesquisa humanista não pode negligenciar, não querendo continuar a ser mera erudição”.
  • 3
    Diferentes abordagens têm sido exploradas pelos intérpretes de Weil. Sobre a relação entre instrução e educação, podemos recorrer às publicações de Canivez (1985), Taboni (1992) e Castelo Branco (2018); no que tange ao tema a partir da reflexão moral, há o trabalho de Bernardo (2011a); já com especial atenção à Filosofia política, os artigos de Soares (1995; 2008), Perine (2004, pp. 35-70) e Nguyen-Dinh (1996); Saldías (2014), por sua vez, concentra-se nas noções de cultura e humanidades e no papel das universidades; por fim, há leituras que procuram abranger amplamente o conjunto do pensamento weiliano, como as de Soetard (1984), Assis (2016a; 2016b) e Carneiro (2021). Naturalmente, em coerência com o autor estudado, todas essas diferentes análises assumem como pano de fundo o papel capital da violência na filosofia weiliana.
  • 4
    Na revista Confluence, o filósofo publicou “Education as a problem for our time” (Weil, 1957), já em Daedalus apareceram os textos “Science in Modern Culture or the meaning of meaninglessness” (Weil, 1965), “The languages of the Humanitic Studies” (Weil, 1969), “Humanistic Studies: their object, methods and meaning (Weil, 1970) e “Supporting the Humanities” (Weil, 1973). Em Critique, o filósofo expôs “L’idée d’éducation dans l’enseigment américain” (Weil, 1946), sua elogiosa resenha para General Education in a Free Society, volume organizado por James Bryant Conant. É também importante recordar a sua participação no congresso The Crisis of the University, realizado em Veneza, em 1973, onde apresentou “Le rôle des Universités. Les humanités et l’enseignement supérieur de masse” (Weil, 1993, pp. 143-156). Esses e outros textos de Weil compõem o livro Escritos sobre educação e democracia, publicado pela EDUFT (Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/editora/article/view/12084/18812).
  • 5
    Para precisar o uso do vocábulo “ciência”, vale trazer as palavras do autor (Weil, 2021b, p. 4): “É evidente que, assim compreendida, a ciência é um ideal: nós temos ciências, mas não temos a ciência. O que nós possuímos são conhecimentos organizados neste ou naquele domínio: física, biologia, sociologia, história, ciência jurídica, etc. Com certeza, observamos certa penetração recíproca entre as ciências, mesmo entre aquelas que tradicionalmente pertencem a famílias diferentes: métodos estatísticos podem ser úteis na crítica literária, uma psicologia da compreensão pode dar maior clareza aos processos fisiológicos. Porém, não é menos verdadeiro que a crítica não coincide com a matemática nem a fisiologia com a psicologia: seus domínios e seus métodos continuam diferentes, mesmo quando for aconselhável consultar colegas de outra especialidade ou de outra faculdade” (Weil 2021a, pp. 77-78).
  • 6
    Sobre a modernidade em Weil, enviamos aos trabalhos de Gilbert Kirscher (1992, pp. 75-112), Etienne Ganty (1997) e Judikael Castelo Branco (2014).
  • 7
    Segundo o resumo de Edoardo Raimondi (2018, p. 132): “Na sua Lógica da Filosofia, Weil parece ter dado um essencial destaque à nona categoria ali exposta, aquela da Condição, dentro da qual se revela o pano de fundo essencial da nossa situação moderna: vivemos em um mundo de condições históricas, culturais, materiais, não reconhecendo o sentido do que se define como incondicionado”.
  • 8
    Nesse sentido, Weil considera que “as ciências da natureza não passam de vana curiositas quando lidamos com o sentido da vida humana” (Weil, 2021a, p. 117).
  • 9
    A respeito, Weil sintetiza a sua posição em um parágrafo lapidar: “O fato é que em nenhum lugar a instrução, sozinha, pode substituir a educação: em si mesma, a instrução não basta para formar seres humanos capazes de dar um sentido à própria existência, senão aderindo cegamente a charlatões morais e políticos, a essas espécies de profetas que se tornaram uma legião e cujo sucesso, na maioria das vezes, se origina em apelos a tradições meio arruinadas que, mesmo quase esquecidas, continuam a ser transmitidas através de padrões morais ou estéticos, atitudes, imagens, modelos que nunca são explicitamente formulados” (Weil, 2021a, p. 129).
  • 10
    Como o filósofo explicita em termos peremptórios: “A aparição de tal tédio é um fato histórico e não depende, quanto ao essencial, da psicologia individual como fato que caracteriza a saciedade: ele nasce lá onde os homens adquiriram a livre disposição de uma parte importante do tempo de sua vida, no qual eles podem voltar para si mesmos, refletir sobre o que eles ‘no fundo’ procuram, e julgar o sentido ou o não-sentido de seus objetivos e da busca que eles realizam conjuntamente” (Weil, 1999, p. 73).
  • 11
    Sobre a linguagem do nazismo podemos também recorrer à asserção de Patrice Canivez (1998, pp. 9-10), segundo a qual “o nazismo revela uma atitude que pretende moldar o mundo em função de um mito. A linguagem de um Hitler não se destina a justificar seu projeto [...]. É a linguagem de um ser que se abstrai do mundo humano, de um indivíduo para o qual o mundo não passa de uma matéria para manipular. [...] Essa linguagem não é a expressão de uma verdade”.
  • 12
    Sobre as relações entre religião e política, enviamos aos artigos de Castelo Branco (2022) e Costeski (2018).
  • 13
    Neste ponto, o filósofo retoma um tema tradicional do pensamento moderno, qual seja, os limites da tolerância diante de discurso religioso – entendido aqui no sentido explicitado: “se o adepto do totalitarismo se recusa a levar a sério a nossa religião, por que faríamos concessões à sua? Se ele se recusa a discutir conosco, se se recusa a partir do princípio que a discussão é preferível à violência, não há razão para nos recusarmos a combatê-lo quando preciso” (Weil, 1993, p. 112).
  • 14
    A expressão, segundo Livio Sichirollo (1997, p. 32), teria sido usada por Weil dirigindo-se ao amigo Massimo Barale: “Acontece, em filosofia, que os mestres involuntários ensinem mais do que tantos mestres voluntariosos. Meu mestre involuntário foi Adolf Hitler”.
  • 15
    A imagem é usada duas vezes por Eric Weil. A primeira, já na “Introdução” da Lógica da filosofia: “O pensamento deve estar bem avançado para que alguém possa declarar que saca seu revólver assim que ouve a palavra civilização” (Weil, 2012, p. 92). Depois, em “A cultura”, texto publicado postumamente: “Um chefe da SS declarou um dia, numa reunião pública: ‘quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver’. Podemos supor que ele não falava de cultura com conhecimento de causa, mas o seu caso é muito instrutivo. Por que alguém detestaria a cultura e o homem culto a esse ponto? Se lhe perguntássemos, é provável que nos respondesse com um simples ‘porquê’ ameaçador” (Weil, 2021a, p. 179). Em nítido eco do texto do dramaturgo alemão Hanns Johst, autor de Schlageter. A peça foi montada pela primeira vez em comemoração ao aniversário de 44 anos de Adolf Hitler, em 20 de abril de 1933. No texto, Johst põe na boca de uma das personagens (Thiemann): “wenn ich Kultur höre... entsichere ich meinen Browning!” (Ato 1, Cena 1); frase que resume a antítese da proposta weiliana.
  • 16
    Para o que tange à plurifonia, trata-se de uma neologia de Cavarero (2019, p. 121) para “assinalar um nome específico à voz da pluralidade enquanto distinta da voz da massa oposta a ela”. Já a “cacofonia” aparece no texto de Cavarero como referência à sugestão de Roland Barthes.
  • 17
    Na categoria da Discussão, Weil dispõe um belo perfil desse sujeito: “O homem na atitude da discussão é o homem que conversa, isto é, que fala com o outro para que o outro lhe responda, e que está seguro de que o outro, todo outro, tem o mesmo desejo. A luta é proibida, essa luta tão mais antiga que a linguagem que ela é a atitude comum ao homem e ao animal (o homem que prefere a luta brutal). Esses homens saíram do isolamento da Verdade, do falar do não sentido que se destrói, do sermão do verdadeiro-e-falso, dos discursos das certezas que são impermeáveis uma à outra. Eles podem e devem conversar, cada qual para tentar impor ao outro seu ‘ponto de vista’. Para nós, eles vivem numa comunidade, a do Estado; quanto a eles, enxergam-se como indivíduos opostos um ao outro por seus interesses, mas que podem e devem falar um com o outro, um contra o outro” (Weil, 2012, p. 180).
  • 18
    “Podemos nos perguntar também se a nossa civilização deve se tornar mais sensata ou se, deixada ao seu próprio movimento, ela não se tornará ainda mais esquizofrênica; se continuando na estrada indicada pelos fatos observados, ela não caminha rumo ao domínio por amor ao domínio, sem nos dizer, com uma objetividade científica e livre de toda consideração de valor, quais valores deveriam nos guiar no uso desse domínio. Os medos e o mal-estar do nosso tempo estão aí para mostrar que não se trata de um problema vazio e de pura especulação” (Weil, 2021a, p. 66).
  • 19
    Sobre os partidos e a representação política em Weil, enviamos ao texto de Pedro Dias, no qual se destaca, acertadamente, a relevância do fato de que Weil se concentra, “no par representante/representado, naquele dos dois que não pode agir (se compreendermos a ação do representante como enquadrada institucionalmente, como no caso dos Estados constitucionais)” (Dias, 2014, p. 254).
  • 20
    No resumo de Raimondi (2022a, p. 205): “Substancialmente, os regimes democráticos têm que compartilhar o pressuposto antropológico segundo o qual o homem enquanto tal é um ser essencialmente razoável, em condições ‘de aceitar e de respeitar essas condições’ [da discussão] e de ‘fazer-se’ razoável através da garantia de acesso à educação, voltada à ‘universalização’ dos próprios modos de pensar, falar, viver e agir”.
  • 21
    Sobre as considerações do problema educativo nas reflexões de Weil acerca da democracia, cf. Raimondi, 2022b, pp. 361-362.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2023
  • Aceito
    30 Jun 2023
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