Resumo:
Conceito de crescente popularidade no debate público e acadêmico brasileiro, o bolsonarismo tem sido objeto de vários trabalhos e tema de importantes interpretações do Brasil contemporâneo. Este artigo pretende analisar os contornos e os pressupostos do termo a partir da análise de um elemento a ele frequentemente atribuído: sua dimensão antissistêmica. Para tal, analisamos criticamente dois dos mais influentes livros sobre o bolsonarismo, de autoria de Marcos Nobre e Rodrigo Nunes, que privilegiam seu fundamental antagonismo ao sistema político brasileiro (e ao “ establishment ” em geral). A partir de uma análise do conceito de bolsonarismo construído pelos autores, argumentamos que tal construção conceitual em torno do eixo sistema-antissistema sublima um dos seus elementos centrais, a radicalização autoritária da direita tradicional, ao pressupor (a) uma reiteração do dualismo Estado-sociedade (típico de longeva tradição do pensamento político brasileiro); (b) uma sobreposição de diferentes atores do campo das direitas (ultradireita, direita tradicional, nova direita, bolsonaristas); e (c) uma importação pouco mediada de conceitos e contextos relativamente exógenos ao caso brasileiro.
Palavras-chave: Bolsonarismo; Ultradireita; Pensamento político-social brasileiro; Interpretações do Brasil contemporâneo; Crise democrática no Brasil
Abstract:
A concept of growing popularity in the Brazilian public and academic debate, Bolsonarism has been the subject of several studies and important interpretations of contemporary Brazil. This article aims to analyze the contours and presuppositions of the term based on the analysis of an element often attributed to it: its anti-systemic dimension. To this end, we critically analyze two of the most influential books on Bolsonarism, by Marcos Nobre and Rodrigo Nunes, which focus on its fundamental antagonism to the Brazilian political system (and to the “establishment” in general). Based on an analysis of the concept of Bolsonarism constructed by the authors, we argue that this conceptual construction around the system-antisystem axis sublimates one of its central elements, the authoritarian radicalization of the traditional right, by presupposing (a) a reiteration of the state-society dualism (typical of a long tradition of Brazilian political thought); (b) an overlapping of different right-wing actors (ultra-right, traditional right, new right, Bolsonaro); and (c) an unmediated import of concepts and contexts that are relatively exogenous to the Brazilian case .
Keywords: Bolsonarism; Far-right; Brazilian political and social thought; Interpretations of contemporary Brazil; Democratic crisis in Brazil
Introdução
Durante a pré-campanha de Jair Bolsonaro à Presidência, ainda em meados de 2017, começou a difundir-se o conceito de “bolsonarismo”, que logo se tornaria rótulo predileto de jornalistas e cientistas políticos para designar o movimento liderado pelo ex-capitão 2 . Ora relativo ao “conjunto de ideias” e às “performances políticas” dos seus adeptos, ora adotado como preferência eleitoral, ora ainda entendido como índice de devoção ao líder, nova faceta do velho populismo brasileiro, o bolsonarismo impôs-se na terminologia corrente, passando de termo difuso a conceito especializado, quase como se fosse evidente por si mesmo. Adotado amiúde como contraparte radicalizada do “lulismo”, e derivando dele sua aparente validade imediata, o conceito ainda carece de precisão 3 . Não raro, o bolsonarismo aparece como reflexo imediato da empiria – algo cuja existência, de tão inequívoca, não chegaria a demandar justificação.
Apesar, ou por causa, de sua flagrante deflação teórico-conceitual, houve uma relativa corrida nas ciências humanas brasileiras, desde o primeiro momento, para contar-lhe a história, desvendar-lhe os segredos e apresentar a chave interpretativa do bolsonarismo, que pudesse decifrar aquilo que permaneceria autoevidente em sua existência e enigmático em seu devir. Ele existe, portanto, e isso não se prestaria à dúvida, mas as certezas e as convergências cessariam quanto ao processo de sua gênese, aos sentidos de sua emergência e aos possíveis efeitos de sua difusão.
Entre as inúmeras interpretações sobre como e por quê emergiu o fenômeno político, há ao menos duas que merecem destaque preliminar precisamente por elidir a gênese do bolsonarismo e, com isso, suprimir a historicidade do processo. De um lado, a inscrição do bolsonarismo na longuíssima duração do “autoritarismo brasileiro” termina por construir uma versão em que parece se tratar de mais uma atualização da velha e renitente substância autoritária, transversal aos cinco séculos de história do país (Schwarcz, 2019 ). Nessa chave, teríamos o autoritarismo como ontologia brasileira, um modo genérico de ser do país, de que o bolsonarismo seria apenas uma entre tantas variantes. Acenando a versões menos nuançadas das interpretações do Brasil, a hipótese do bolsonarismo como espelho do modo de ser nacional, o telos necessário de uma viagem redonda , permanece rente a uma intuição corriqueira quando da emergência do fenômeno: estaríamos diante da real e autêntica manifestação da verdade do que o país sempre teria sido, mesmo quando sob a aparência de eventuais avanços. Bolsonarismo como forma de manifestação de uma ontologia, como verdade última e contínua de um longo processo histórico: essa é a primeira forma de ocultar sua historicidade, radicalizando sua presença como primeiro motor da História.
Por outro lado, o bolsonarismo aparece como patologia coletiva, desvio de massas manipuladas pelas redes e igrejas (Castro Rocha, 2021a ). Na chave de uma “dissonância cognitiva coletiva”, limita-se a agência das pessoas e simplificam-se de tal forma os conflitos sociais e a dinâmica das identidades ideológicas que, por fim, o bolsonarismo restaria apenas como delírio. Nesse caso, o problema não reside em reconhecer o papel prolífico e a presença difusa do delírio no mundo social e político, mas em tomá-lo como marca exclusiva de uma identidade pública atribuída a alguma alteridade radical. Por essa via, a tessitura necessariamente complexa e diversa da história, densa de intencionalidades, contradições e contingências, soçobra diante da unilateralidade de uma massiva e aterradora ilusão. A ênfase na suposta descoberta das fontes primevas do discurso bolsonarista, como o livro Orvil , funciona antes no sentido da edificação de um mito de origem do que como parte de um processo de reconstrução histórica da trajetória da direita brasileira, o que poderia eventualmente sugerir hipóteses interpretativas para o protagonismo de Bolsonaro.
A nosso ver, seria preciso situar o bolsonarismo entre essas duas alternativas extremas, apreender sua concretude além do mero delírio coletivo e aquém da substância autoritária trans-histórica. Nem ontologia, nem falsa consciência. Nesse plano intermediário, a crítica do bolsonarismo não pode prescindir da reconstrução de sua gênese histórica. E ali nos aproximamos da tese sobre a qual incidirá a análise a seguir, sobre o suposto caráter antissistêmico do bolsonarismo.
Na busca pelos pressupostos e implicações da interpretação do bolsonarismo como antissistema, pretendemos reconstruir os usos e sentidos do conceito de bolsonarismo e perceber como ele incide no debate da última década sobre crise democrática e ascensão das direitas no país. Para tanto, concentramo-nos em duas das interpretações de maior fôlego sobre o conceito, de Marcos Nobre e Rodrigo Nunes.
A escolha pela análise dos livros — e não da mobilização do conceito pela imprensa ou por lideranças políticas, por exemplo — decorre do enquadramento teórico deste trabalho, que pretende inserir as duas contribuições em um debate mais amplo sobre as interpretações contemporâneas do Brasil. Como argumentamos em outro artigo (Chaloub e Lima, 2018 ), um dos caminhos atuais do pensamento político-social brasileiro consiste em reconstruir analiticamente produções que, por sua pretensão de totalidade e desejo de intervenção na conjuntura, possam ser enquadradas como esforços contemporâneos de interpretação do Brasill. Longe de opor análises de conjuntura a trabalhos acadêmicos especializados, trata-se de buscar interpretar as linguagens políticas e a imaginação social a eles subjacente. Neste artigo, lemos as obras de Marcos Nobre e Rodrigo Nunes a partir dessa perspectiva. A despeito de suas especificidades e nuances de estilo, ambas as obras são atravessadas por um sentido convergente que permite identificá-los como variantes de uma mesma linhagem 4 . No centro desse campo teórico está o conceito de bolsonarismo.
Para analisá-lo, recorremos à História dos Conceitos , de Reinhart Koselleck ( 2006 ). A análise do conceito de bolsonarismo é, desse modo, relacionada à historicidade das construções teóricas e às disputas políticas em torno do léxico político, o que nos termos do historiador alemão é definido a partir da relação entre “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” (Koselleck, 2006 ). O objetivo é reconstruir uma parte relevante das disputas políticas e conceituais da política brasileira contemporânea, de modo a perceber como elas articulam, mesmo que de forma não evidente, pressupostos normativos e representações históricas, apontando, com isso, para projetos de futuro.
Tomamos, assim, suas obras como material para compreender a construção de certas imagens e interpretações públicas do bolsonarismo. Se existem, por um lado, outros caminhos metodológicos, como o de analisar o próprio discurso de Jair Bolsonaro ou de seus apoiadores, esforços sem dúvida importantes, propomos neste artigo uma via diversa: analisar o bolsonarismo a partir de interpretações construídas por autores críticos ao fenômeno. Temos, assim, a vantagem de perceber os efeitos mais amplos do novo protagonismo da ultradireita, do movimento político liderado pelo ex-presidente e da crise democrática brasileira sobre o imaginário político e a esfera pública brasileira, o que expõe, de forma indireta, mas não menos produtiva, os efeitos dos discursos, ações e performances da ultradireita brasileira. Entre os escritos sobre bolsonarismo analisados, trataremos mais detidamente da caracterização do fenômeno como antissistêmico, não apenas por sua centralidade nas mencionadas obras, mas também por entendermos que se trata de um caminho particularmente profícuo para acessarmos as leituras de conjuntura que sustentam a formulação do conceito. Afinal, para tratar de perspectivas antissistêmicas, é necessário definir, mesmo que de forma minimalista, traços do sistema contra o qual essa perspectiva se volta.
A seleção das obras dentro da bibliografia mais ampla sobre bolsonarismo se explica, portanto, pela centralidade que os autores conferem à dimensão antissistêmica do bolsonarismo. Por um lado, os dois livros se afastam das duas vertentes da bibliografia já mencionadas anteriormente: tanto a que privilegia uma chave mais culturalista, preocupada com a longa duração do autoritarismo brasileiro (Schwarz, 2019 ), quanto a que valoriza a “dissonância cognitiva” dos “bolsonaristas” (Castro Rocha, 2021 , 2023 ). Por outro, os livros pretendem conjugar uma análise da crise do sistema político brasileiro, ausente em boa parte das obras que tratam das direitas contemporâneas no Brasil (Cassimiro, 2018 ; Messenberg, 2018 ; Pinheiro-Machado e Vargas-Maia, 2023 ; Gonçalves e Caldeira Neto, 2020 ; Rocha, 2021a ; Cesarino, 2022 ; Chaloub, 2023 ; Barboza Jr e Casarões, 2023 ), com uma análise mais aprofundada do campo das direitas, o que não se encontra nos trabalhos mais preocupados com a “crise da democracia” (Biroli, Machado e Vaggioni, 2020 ; Lynch e Cassimiro, 2022 ; Limongi, 2023 ; Alonso, 2023 ). A construção do conceito de bolsonarismo como antissistêmico tem, nesse sentido, um papel fundamental na articulação daquelas duas dimensões, além de embutir, como veremos, problemas e limites para a análise dos fenômenos abordados.
A seguir, argumentamos que a ênfase na oposição ao sistema sublima um dos elementos centrais da conjuntura, a radicalização autoritária da direita tradicional, e produz (a) uma reiteração do dualismo Estado-sociedade (típico de longeva tradição do pensamento político brasileiro); (b) uma sobreposição de diferentes atores do campo das direitas (ultradireita, direita tradicional, nova direita, bolsonaristas); e (c) uma importação pouco mediada de conceitos e contextos relativamente exógenos ao caso brasileiro. Sem ignorar que a retórica antissistema é um traço central de vários atores ostensivamente próximos a Jair Bolsonaro, assim como ocorre com outras lideranças globais da ultradireita, e que ocorreu uma mudança das elites políticas brasileiras da última década, argumentamos que a ênfase na oposição entre sistema e antissistema naturaliza as representações da ultradireita sobre sua própria trajetória, retrata como homogêneo um campo diverso e simplifica a construção da coalizão de ultradireita vitoriosa nas eleições de 2018.
O bolsonarismo e o sistema
A popularização do argumento sobre a existência de um amplo sentimento antissistema na sociedade brasileira remonta às mobilizações de Junho de 2013. Os formuladores da interpretação buscam nos persuadir de que teria havido no país um processo societário de amplo alcance, evidenciado em 2013 e hipostasiado cinco anos depois, quando da eleição de Jair Bolsonaro. Assim como as leituras centradas no conceito de polarização , a tese tende a tomar a sociedade brasileira como unidade de análise: a polarização tem como referente a sociedade como um todo, assim como o sentimento antissistema também teria se difundido a partir dela, atravessando-a de alto a baixo.
Parece-nos que ao situar a gênese do bolsonarismo no âmbito indistinto da sociedade, sem maiores diferenciações de caráter sociológico ou mesmo ideológico, arrisca-se perder de vista o nervo central do antagonismo político da última década no Brasil. A tese da polarização pressupõe, via de regra, uma relativa equivalência entre lulismo e bolsonarismo que, no limite, legitima o segundo ao distorcer o primeiro. Assim, a experiência notoriamente moderada de um governo de coalizão liderado por um partido de esquerda aparece na mesma métrica que uma política da ultradireita conduzida abertamente para esgarçar e destruir a democracia e o Estado de direito. Algumas críticas recentes do populismo, de corte liberal ou pós-estruturalista, costumam induzir a essa equivalência (Lamounier, 2016 ). Em meio à polarização generalizada, ou à difusão de um sentimento antissistema, a inflexão autoritária do campo da direita no Brasil passa a segundo plano, quando não termina diluída como efeito secundário de macroprocessos sociais que lhe ultrapassam: não seria um fenômeno do campo da direita, mas sim da sociedade . Assim o que precisaria ser explicado — o devir autoritário da direita — passa a ser negligenciado ou, quando muito, tratado como epifenômeno.
Os limites da tese da polarização foram devidamente assinalados pela falsa simetria que inevitavelmente embute (Nunes, 2022 ). Já a caracterização do bolsonarismo como parte de uma ideologia ou de um movimento antissistêmico ainda precisa passar pelo crivo de uma análise crítica — tarefa que pretendemos contribuir com este artigo. De partida, cabe notar que a dissolução do antagonismo político nos parece ainda mais proeminente na versão antissistema do que na hipótese da polarização. Nesta última, ainda que a falsa equivalência entre os dois polos implique um rebaixamento da compreensão da conjuntura específica onde emerge o bolsonarismo, persiste em seu horizonte ao menos alguma dinâmica antagonística entre esquerda e direita (mesmo que sob forma distorcida). Quando se enfatiza o caráter antissistêmico não apenas do bolsonarismo enquanto tal, mas também do processo de sua gênese, temos um deslocamento decisivo da luta política, que sai do eixo esquerda/direita, ou do eixo liberal-conservadorismo/socialismo, e passa a operar no registro sistema-antissistema. Nesse registro, percebe-se uma relativa dessubjetivação da política, quando ao menos um dos contendores é “o sistema”, isto é, uma estrutura que atua para além da agência intersubjetiva ordinária. Se a luta política passa a se travar entre a difusa revolta antissistema, de um lado; e o sistema, de outro, com seus mil nomes (Estado, neoliberalismo, república, “pemedebismo”), então somos praticamente impelidos a olhar com mais empatia para o campo antissistema, ou ao menos a legitimá-lo a priori — o que fragiliza a construção de uma perspectiva crítica sobre a gênese do bolsonarismo.
Essa perspectiva também impede uma melhor compreensão dos complexos mecanismos de produção do fenômeno, que passam não apenas por fora do sistema, mas decorrem de uma reacomodação de forças e relações dentro do próprio “sistema”, com a radicalização de alguns atores da direita tradicional contra certos pressupostos da ordem de 1988 sem que tenham, contudo, assumido a defesa explícita de uma ruptura constitucional. Por outro lado, no afã de “levar a sério os atores”, procedimento teórico-metodológico sem dúvida indispensável, parte da bibliografia acaba por naturalizar suas visões de mundo e tomar as narrativas dos atores como fatos, lendo-as como transparentes e sinceras .
Nesse movimento, a oposição liberais-antiliberais, por meio da qual certa intelectualidade brasileira visava reduzir a democracia e os processos de democratização ao arranjo liberal (Lamounier, 2016 ), transmuta-se na díade sistema-antissistema, com uma inversão de valência — nesse caso, é uma fração influente da intelectualidade do campo da esquerda que termina por simplificar a dinâmica das insatisfações, demandas e carências ao limitá-la ao “sentimento antissistema” (Nobre, 2022 ; Nunes, 2022 ; Safatle, 2017 ).
Duas das melhores obras sobre política brasileira contemporânea foram publicadas em 2022 pelos filósofos Marcos Nobre e Rodrigo Nunes. Representantes sofisticadas das interpretações do bolsonarismo como um fenômeno antissistêmico, as obras são relevantes para expor os vínculos entre essa tese e certo padrão de interpretação da cena política brasileira da última década. Ao estabelecer uma relação entre novidade e crise, elas apresentam uma teoria sobre a erosão democrática da ordem de 1988. Pretendemos analisar três aspectos das duas obras, todas com ênfase na caracterização da crise política brasileira e do bolsonarismo como alimentados por um sentimento antissistêmico: (a) as interpretações sobre Junho de 2013; (b) as relações entre as direitas hegemônicas após a redemocratização e as “novas direitas”; (c) as analogias entre o cenário brasileiro e o norte-americano.
O lugar de Junho
As obras tomam as mobilizações de Junho de 2013 como ponto de partida para a compreensão da conjuntura em que ascendeu a ultradireita, o que se dá a ver pelos termos quase idênticos empregados no subtítulo do livro de Nobre: “De junho de 2013 ao governo Bolsonaro”, e no título do ensaio de encerramento da coletânea de Nunes, “Como chegamos aqui? De junho de 2013 a Bolsonaro”. Ambas pretendem desconstruir criticamente a narrativa de uma relação causal linear entre os protestos de rua de 2013 e a eleição presidencial de 2018, tal como apresentada pelos que interpretam Junho de 2013 como o “ovo da serpente” da ultradireita nacional (Chauí, 2013 ; Santos, 2013 ; Souza, 2015 ; Lima e Hajime, 2016 ).
Curiosamente, contudo, e mesmo que se mostrem atentos a mediações entre os dois eventos, Nobre e Nunes terminam por endossar, com sinal invertido, a vinculação entre Junho de 2013 e o bolsonarismo que principiam por criticar. Não mais, evidentemente, uma relação linear que atribui “fascismo” ou complotismo direitista às mobilizações, mas o esforço de compreender como o clímax do sentimento antissistema no país teria sido melhor aproveitado pelas hostes da ultradireita do que pelos protagonistas do campo da esquerda.
Vejamos os termos do debate, antes de passarmos a seus pressupostos e implicações. Desde Imobilismo em movimento (Nobre, 2013 ), Nobre pensa a política brasileira a partir da distinção entre sistema político e sociedade, chegando mesmo a falar em “blindagem do sistema político contra a sociedade” (Nobre, 2013 , p. 11), “desconexão entre sociedades e sistemas políticos” e em uma “atitude de absoluto fechamento [do sistema político] à sociedade” (Nobre, 2022 , p. 31). Ilustrando a convergência de perspectivas, Nunes articula que “o sistema responde[u] ao choque de 2013 reforçando ainda mais sua autonomia em relação à sociedade” (Nunes, 2022 , pp. 167-8), em um quadro global de “relativo descompasso entre instituições políticas e sociedade” (Nunes, 2022 , p. 13). As noções empregadas não dão margem a qualquer ambiguidade acerca da radical exterioridade que se postula entre as duas entidades (sistema e sociedade): blindagem, desconexão, fechamento, autonomia e descompasso.
Uma vez erigida a dicotomia, e transformada no eixo-síntese das tensões políticas e sociais do país, Junho de 2013 passa a ser o momento crucial de uma encruzilhada política em que a esquerda governista e o sistema teriam ampliado de vez o abismo que os separaria do “impulso social antissistema”, dos “sentimentos antissistêmicos” (Nobre, 2022 , p. 19; Nunes, 2022 , p. 51). Ali, pois, em Junho de 2013, teria se dado o desenlace fundamental a partir do qual o bolsonarismo se tornaria possível (ainda que não necessário), o evento decisivo em que os lados teriam sido escolhidos e no qual a luta política (ou a renúncia à luta política) teria resultado no progressivo entrelaçamento dos “desejos antissistêmicos” com o campo da direita e da ultradireita (Nunes, 2022 , p. 77):
Com a esquerda não petista neutralizada e o PT cada vez mais identificado com o establishment, o caminho ficaria livre para que a direita pudesse se reivindicar como legítima herdeira de 2013
(Nunes, 2022 , p. 187).
Sob crescente hegemonia da direita e, a partir de 2018, da extrema direita, a energia social de Junho foi canalizada para uma organização em termos de uma oposição extrainstitucional
(Nobre, 2022 , p. 19).
No contexto de quatro vitórias sucessivas em eleições presidenciais, entre 2002 e 2014, é persuasiva a história de uma cooptação da esquerda, ou de grande parte dela, pelo “sistema”. Talvez nem se trate propriamente de cooptação, mas antes de servidão/identificação voluntária (Oliveira, 2010; Vianna, 2009). Parece igualmente verossímil a ideia de que, na fenda aberta por Junho de 2013, a incapacidade da esquerda foi, senão o fator decisivo, ao menos um componente crucial do desenrolar dos acontecimentos. Pelos vacilos da esquerda, a luta pela hegemonia da “energia social de Junho” teria sido vencida pela ultradireita. Não nos cabe discordar do inventário de erros atribuídos ao Partido dos Trabalhadores (PT), que os autores citados, e tantos outros, costumam elencar (Nunes, 2022 ; Nobre, 2022 ). Cabe, antes, um questionamento sobre os termos mesmos do debate: houve luta pela hegemonia da “energia social de Junho”? Ou ainda, o que é a “energia social de Junho”? É razoável subsumir Junho de 2013 à eclosão de um irrefreável sentimento antissistema? E se Junho tiver mesmo sido um momento de fervor antissistêmico, é razoável projetar esse impulso como o aspecto determinante da história que se lhe seguiu? Em outros termos, a disputa (ou a não disputa) sobre a herança de Junho de 2013 constitui o feixe decisivo de antagonismo político que explica a gênese do bolsonarismo?
Nunes e Nobre partilham de uma concepção de “energia social” que permanece pouco desenvolvida em seus trabalhos. Nesse sentido, Nunes associa a “energia emergente” à “irrupção de um sentimento antissistêmico informe, mas potente” (Nunes, 2022 , p. 119), enquanto Nobre cita “uma energia social de protesto dispersa e difusa” (Nobre, 2022 , p. 130). A potência sem forma daquela “energia” apareceria assim como um dado da realidade que espera sua tradução política. Ela teria sido canalizada, a posteriori , dada a impermeabilidade do sistema (e da esquerda institucional), para uma direita supostamente antissistêmica, mas a ideia de uma indeterminação ideológica originária das manifestações desponta como um dado da realidade que prescindiria de argumentação. Apesar da sua vaga identidade, a energia social, relativamente inerte, teria se deixado “vampirizar”, entre outros, pelo lavajatismo (Nobre, 2022 , p. 19). Nesse quadro, o vínculo entre Junho de 2013 e a emergência do bolsonarismo seria pensado a partir da dissociação entre conteúdo (a revolta) e forma (a roupagem ideológica) – restando não resolvida a questão de saber como uma energia social “informe”, “difusa” e “dispersa”, mas sempre pressuposta como radicalmente democrática, teria se tornado antidemocrática.
Note-se que a vitória final do “impulso social antissistema” teria adquirido uma coloração direitista ao longo do tempo, não por necessidade, mas por uma série de contingências. Não obstante a bem fundamentada recusa dos filósofos a qualquer leitura teleológica da história, que atribuísse ao início do processo algo que apenas se veio a saber ao final (Nunes, 2022 ; Nobre, 2022 ); e não obstante o louvável pressuposto democrático radical que orienta suas leituras, segundo o qual se deve sempre refutar um tratamento do demos como sujeito político irreflexivo e heterônomo – parece-nos possível identificar, na forma como se afirma o primado do sentimento antissistema, a premissa de uma virtude intrínseca às expressões e manifestações do povo. Como se a autenticidade do povo enquanto sujeito político estivesse necessariamente atrelada a um dado sentimento e a mais nenhum outro. E, principalmente, como se não houvesse distinções e conflitos políticos no interior mesmo do povo. Dessa forma, projeta-se que aquilo que uma parte do povo sente é a verdade da sua posição enquanto povo, e a vitória política da ultradireita passa então a ser encarada como o resultado de sua maior aptidão, ao menos conjuntural, para perceber o efetivo sentimento do povo – e tudo isso, não custa lembrar, em um contexto de eleições francamente divididas. Sobre a outra parte do povo, que não entra no argumento, pouco se diz. Os trechos a seguir ilustram, a nosso ver, o encadeamento acima mencionado:
Se a extrema direita, ao recorrer à desinformação ou a qualquer outro subterfúgio, conseguiu mobilizar as paixões antissistema de milhões de pessoas que se sentem desassistidas e deixadas para trás, é porque esses sentimentos existem . Isso é, a mensagem da extrema direita só é convincente porque um grande número de pessoas acredita que há, de fato, algo profundamente errado com o sistema político e econômico atual
(Nunes, 2022 , p. 59).
Mas a força ‘de fora do sistema’ que se mostrou em Junho de 2013 foi não apenas ignorada pelo sistema político como não conseguiu se ‘constituir estruturalmente’ […]. Esta a origem mais profunda do travamento que acabou por levar à eleição de Bolsonaro em 2018: o sistema partidário fez de tudo para conter e dissipar a energia social de Junho […]
(Nobre, 2022 , p. 71).
É importante, de fato, não reduzir o apoio massivo a Bolsonaro à desinformação ou ao (auto)engano, mas entre a adesão política motivada por erro ou ilusão e aquela derivada da legítima revolta social, há muitas possibilidades. Afirmar a existência de algum nexo profundo necessário entre a “resposta política” da ultradireita e o “descontentamento social” equivale, no limite, a afirmar uma relação de expressividade imediata entre o povo e suas privações, demandas e urgências. Como se tudo o que o povo fosse capaz de expressar derivasse, por necessidade, dessa cadeia de interesses objetivos. Aqui importa menos que o “povo” seja na verdade uma parte do povo, mas sim a suposta necessidade daquela expressão: o problema do argumento reside, em termos rousseaunianos, em confundir a vontade geral (infalível por definição) com as escolhas do povo (sempre falíveis), como se estas não se inscrevessem no plano radicalmente contingente da linguagem e da retórica. Em suma, como se a linguagem fosse um mediador neutro dos afetos, tornando-os assim autoevidentes para seus portadores. Não é porque há “algo profundamente errado com o sistema político e econômico atual” que toda e qualquer manifestação política de “milhões de pessoas” deriva daquele bem fundado descontentamento. Podemos identificar uma certa intuição materialista implícita quando Nunes associa a emergência do bolsonarismo a uma “demanda verdadeira”, afirma suas “raízes suficientemente profundas” e endossa o lugar comum de que “o bolsonarismo é maior que Bolsonaro” (Nunes, 2022 , p. 8) – mas seria o caso de considerar que a dialética entre base e elite, ou entre sociedade e sistema, não se move necessariamente apenas em um sentido.
Nesse sentido, afirmar que a ultradireita conseguiu mobilizar as paixões antissistema “porque esses sentimentos existem” é uma petição de princípio: restaria precisamente explicar se tais sentimentos realmente existem, como eles se expressam, e por que eles constituiriam a variável determinante da conjuntura aberta em Junho de 2013. Se é convincente a tese de que o “impulso social antissistema” não teria necessariamente que se traduzir em uma política de ultradireita, falta a essa teoria crítica assumir a fundo a avaliação recíproca de que tampouco a adesão política a tal campo teria necessariamente que partir de sentimentos antissistema: assim como o telos de um processo político é indeterminado e aberto a priori , também seria analiticamente prudente suspender o juízo sobre seus pontos de partida, quase sempre múltiplos, complexos e contraditórios.
O lugar das direitas
O sentimento antissistema surge, nos dois livros, como consequência do fechamento da ordem política de 1988, supostamente incapaz de absorver novos atores e formas de expressão da sociedade civil. Junho de 2013 seria a expressão de um potencial democrático não absorvido por um Estado impermeável às demandas democráticas da sociedade.
Distintamente de boa parte da bibliografia internacional, os trabalhos têm a inegável virtude de ressaltar como a crise democrática não se resolve com um passado idílico, ou pela pura fé nas instituições, próxima a soluções de cima para baixo. Ambos também contribuem com interessantes reflexões sobre as novas formas discursivas e organizacionais da ultradireita. Há, contudo, nos dois livros uma leitura excessivamente homogeneizante do período posterior à redemocratização, que, sobretudo no livro de Nobre, acaba reduzido ao conceito de peemedebismo, o qual, entre outros problemas, ignora clivagens ideológicas relevantes entre os atores políticos, centrais para a compreensão da crise democrática, e acaba por representar o cenário político como um grande e indistinto “centrão”, pautado apenas por cálculos instrumentais de curto prazo 5 . Os autores expulsam pela porta um olhar para as instituições pautado pelo predomínio das ações racionais e estratégicas, mas acabam por reintroduzir a concepção pela janela, já que esquerda e direita, para além dos duros conflitos públicos entre os atores, se dissolvem em um mundo de “conciliações”, no qual as características do sistema se impõem a todos os atores.
O “sistema”, sobretudo para Nobre, é identificado às instituições políticas, em uma separação estanque entre “sociedade civil” e “Estado”, que sintomaticamente retoma uma longa tradição do pensamento social e político brasileiro, pautada por conceitos como patrimonialismo e populismo e ávida por interpretar o Estado como lugar dos vícios e a sociedade como terreno das virtudes. A ordem de 1988 ganha tintas próximas ao conceito de estamento, tal como formulado por Raymundo Faoro, e atribui-se ao Estado uma autonomia e um alheamento persistentes perante uma sociedade civil que se veria à margem das grandes decisões e disputas. Tal qual a conceituação faoriana sobre o Estado, a lógica política do “conservadorismo democrático”, típica do peemedebismo, soa como impossível de ser manobrada por meio de reformas ou transformações graduais: frente a ela, só nos restaria a ruptura. Nobre expõe bem o argumento quando afirma que “não existe reforma do peemedebismo desde dentro. Pode-se ocupá-lo pela esquerda […]. Mas não é possível uma reforma do peemedebismo enquanto tal” (Nobre, 2022 , p. 169). E encontramos também na obra de Nunes, nas passagens em que teoriza sobre os nexos atuais entre realismo e radicalismo, afirmações análogas sobre o imperativo de uma transformação radical inscrita nas coisas (Nunes, 2022 ).
A ausência de gradações e distinções dos momentos anteriores, e mesmo posteriores a 2013, acaba por construir a ideia de um colapso inevitável, o que simplifica um processo atravessado por nuances e movimentos diversos, assim como faz do confronto entre defensores e opositores do sistema o grande eixo da política brasileira. Constrói-se, desse modo, uma versão simplificada da crise democrática brasileira. Entendemos que parte da dificuldade de articular essas duas dimensões passa pela escassa teorização sobre o conceito de crise. Por vezes, o termo é definido como sinônimo de um esgotamento (Lima e Medeiros, 2018; Chaloub e Lima, 2018 ) intrínseco ao regime posterior à redemocratização (Nobre, 2022 ; Nunes, 2022 ; Safatle, 2017 ). Em outros momentos, como simples desvio de um sistema estruturalmente estável, no qual os problemas são motivados por desvios, equívocos ou incompreensões de atores (Limongi, 2023 ). Note-se que a leitura do esgotamento tem grande afinidade com a tese das invasões bárbaras , segundo a qual as ameaças à ordem política e social viriam sobretudo de atores externos, fundamentalmente diversos e em tudo alheios aos até então hegemônicos, ao passo que a dimensão endógena da crise decorreria dos frágeis mecanismos de defesa contra esses potenciais invasores.
A ênfase na dimensão externa ao sistema ignora outra dimensão central da crise: a da radicalização autoritária das direitas tradicionais . Parte central das duas últimas décadas pode, a nosso ver, ser melhor explicada pela análise de um processo anterior de esgarçamento de consensos mínimos, construídos ao longo da redemocratização e aceitos pela maior parte das elites políticas. Não se trata, contudo, de um discurso antissistema ou extrassistema, como sugerido por Nobre e Nunes, mas de um processo no qual protagonistas da cena política passaram a atacar parte dos pactos não ditos e, por vezes, a defender soluções francamente autoritárias. O processo não se restringe à retórica golpista de Aécio Neves, quando do não reconhecimento do resultado eleitoral de 2014, ou mesmo da mais longeva radicalização do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que já nas campanhas de 2010, com José Serra, levara ao centro do debate eleitoral temas globalmente identificados com a extrema-direita, como a criminalização do aborto e a defesa da redução da maioridade penal – mesmo que tais momentos sejam inflexões relevantes na ordem política brasileira. Trata-se de um processo de crescente normalização e mobilização de discursos críticos à própria ordem democrática brasileira.
Nobre, contudo, parece atento apenas aos “novos” atores e protagonistas, quase sempre tomados como externos ao “sistema”, menosprezando o papel das elites tradicionais na sua profunda crise. Parte da escolha passa, como vimos, pela centralidade dada a 2013. Não há, porém, como compreender os movimentos dos últimos anos sem atentar para a mudança nos confrontos entre direita e esquerda, assim como para as dinâmicas internas ao “sistema”, que não podem ser reduzidas, como em seus livros, à formação de uma coalizão que encontraria sua coesão antes na disputa contra o sistema do que no combate à esquerda:
[…] a tese explicativa fundamental que apresento para o período da crise aguda do peemedebismo, o período 2015-18, diz que nesse momento se formou uma oposição extrainstitucional com razoável unidade, grande força política e razoável capacidade de mobilização. Não se tratou de oposição a um partido ou a um governo, mas de uma oposição antissistema, antiestablishment. Atacava o governo de plantão, por certo, qualquer que fosse o nível de governo ou o partido no poder. Mas não era oposição a um governo determinado. A origem da formação dessa oposição extrainstitucional pode ser encontrada sobretudo - ainda que não exclusivamente - nos diferentes movimentos dos anos 2000, que vieram a ser conhecidos posteriormente como ‘novas direitas’
(Nobre, 2022 , p. 129).
A formulação destoa dos discursos produzidos pelos próprios atores, sejam eles da direita tradicional, das “novas direitas” ou do campo bolsonarista. Ao lado de uma retórica antissistema, que não equivale necessariamente a uma trajetória política antissistema, todos reservam parte central dos seus discursos à crítica do petismo, do comunismo e das esquerdas. Mesmo que se confira centralidade ao discurso antissistema, é difícil concordar com a ideia de que o campo progressista teria sido atacado por sua natural identificação com o sistema ou com a ordem dominante. Até mesmo porque protagonistas e operadores do peemedebismo, para ficarmos com o conceito de Nobre, não apenas foram poupados, como tomaram postos ao lado da coalizão liderada por Jair Bolsonaro.
A essa altura, cumpre destacar que, apesar de partilharem de um núcleo conceitual comum, Nobre e Nunes não concebem o “sistema” necessariamente da mesma maneira. Os fundamentos teóricos dos quais partem é distinto, assim como algumas de suas implicações. Na obra do primeiro, a ideia de “sistema” e o estrito dualismo entre sistema e sociedade parecem caudatários da teoria habermasiana sobre a relação entre mundo-da-vida e subsistemas (econômico e político) – e Nobre deixa de lado o subsistema econômico, trabalhando com uma homologia entre “sistema” e o subsistema político. Por sua vez, Nunes adota uma concepção mais geral do “sistema” como “establishment”, compreendida por vezes como a ordem capitalista em sua totalidade. Neste ponto, ao se distanciar do dualismo característico da “teoria do pemedebismo” de Nobre, a obra de Nunes parece mais sensível às ambivalências e contradições da dinâmica política nacional 6 .
A influência quase ilimitada do “sistema político” sobre a sociedade, na qual estariam os demais atores políticos, leva Nobre a simplificar sua análise dos “novos atores” da direita. Se, por um lado, ele reitera que é necessário distinguir, por razões “teóricas” e “práticas” a “nova direita” do bolsonarismo, ele, por outro lado, acaba definindo as “novas direitas” apenas por sua dificuldade de encontrar um lugar na ordem política do peemedebismo.
E, no entanto, apesar da perda relativa de controle da política pelo sistema político, não se formou naquele momento um polo de poder alternativo ao próprio sistema político, seja à direita, seja à esquerda. Ao mesmo tempo, a reação do sistema político foi de clara recusa de qualquer tipo de reforma, de recusa a qualquer abertura para novas vozes surgidas na sociedade e, de diferentes maneiras, politicamente articuladas - fossem elas de uma nova direita ou de uma nova esquerda. Foi assim que essas novas forças se tornaram antiestablishment, antissistema. Como não encontraram canalização institucional possível, o único caminho possível foi o de se organizar em termos de uma oposição extrainstitucional. E foi aí que a decisão do PT como líder do condomínio peemedebista naquele momento de cerrar fileiras com o sistema político contra esses impulsos antissistema foi determinante para que eles fossem organizados e canalizados pela direita, em sentido amplo. A característica histórica da esquerda como força antissistema passou, assim, para as mãos da direita. Mas não para as mãos da direita tradicional, encastelada no sistema político, regida pela lógica do peemedebismo. Para as mãos das ‘novas direitas’, justamente
(Nobre, 2022 , pp. 130-131). 7
Nobre menospreza a radicalidade de vários dos atores da “nova direita”, vários deles militantes ultraliberais críticos não apenas da democracia brasileira, mas de boa parte das experiências democráticas do pós-1945. Se, por um lado, é relevante diferenciá-los do bolsonarismo, corre-se o risco de não compreender seu pensamento e performance sem a devida atenção à sua radicalidade. Tomando o livro de Camila Rocha, principal inspiração do autor, como referência, fica claro como o horizonte utópico dos ultraliberais não é a democracia liberal, mas uma ordem ultraindividualista, pautada pela redução do Estado a limites que inviabilizam os pactos democráticos do pós-guerra. A ênfase na sua recusa ao sistema oculta os traços da nova ordem proposta por tais personagens.
Toda a atenção devotada à dimensão político-institucional não expõe, por outro lado, como são tratados, nos discursos e nas performances desses atores, as práticas, instituições e personagens que também contestam o sistema, mas à esquerda. Quando o principal movimento social da “Nova Direita”, o Movimento Brasil Livre (MBL), se organiza para intervir no campo cultural, ele o faz por meio do linchamento público de artistas de vanguarda, como os organizados na exposição do Queermuseu . Nobre desconsidera como a retórica antissistema da “nova direita” frequentemente defende, em linguagem reacionária, a substituição da ordem política 1988 por um outro “sistema”, fundado em valores contrários a direitos consolidados ao longo das últimas décadas.
A construção de uma coalizão de ultradireita, entre a direita tradicional radicalizada e a extrema-direita, liderada por Bolsonaro, não decorreu do fechamento do sistema ou da incapacidade da esquerda de dialogar com as ruas: havia afinidades eletivas entre aqueles campos e uma terminante recusa a reconhecer qualquer ator que soasse minimamente progressista. Sempre foram as esquerdas – sejam as moderadas ou as mais radicais – e não o “sistema”, os inimigos fundamentais da “nova direita”.
O lugar do Brasil no mundo
Ademais, outro traço saliente da teoria da gênese antissistêmica do bolsonarismo reside na inscrição do caso brasileiro como uma manifestação particular da crise da democracia representativa liberal enquanto tal, tornada aguda a partir do colapso financeiro de 2008. Por um lado, há pouca margem para contestar que as mobilizações de Junho de 2013 no Brasil se inscrevem em um ciclo global de revoltas, ou que a ascensão da ultradireita no país guarda íntima relação com um fenômeno mais abrangente que transcende as fronteiras nacionais. Se tudo isso resta evidente, mais importante do que constatar e reproduzir a óbvia determinação do local pelo global seria especificar as peculiaridades e mediações singulares por meio das quais o universal se concretiza enquanto particular. Sabemos desde há muito, por longeva tradição da crítica dialética local, que não convém tomar a periferia do “sistema” como mero ponto de aplicação, muito menos como mera incubadora de desvios, do padrão geral (Schwarz, 2021 ; Cardoso, 2003 ; Lima, 2015 ). Não apenas o aparente desvio periférico pode lançar luzes inauditas sobre a norma, desvendando engrenagens cruciais de seu funcionamento, como também muitas vezes a suposta universalidade não passa da imposição de um caso particular a outros casos particulares.
Aqui, importa identificar um viés comum da teoria do antissistema: a crise do neoliberalismo que se abate sobre países periféricos costuma ser interpretada nos termos do debate norte-americano, o que implica alguns curtos-circuitos decisivos para a compreensão de contextos políticos nacionais radicalmente distintos. A transplantação imediata de noções, como “neoliberalismo progressista”, da filósofa Nancy Fraser, para o Brasil corre o risco de revelar mais sobre a filiação teórica do autor que as emprega do que sobre o caso particular interpretado (Nunes, 2022 ; Nobre, 2022 ). E esse exemplo específico guarda vínculo estreito com alguns pressupostos importados que funcionariam como atalhos traiçoeiros para a análise da vida política em contexto periférico como o brasileiro. Assim como as teorizações sobre o populismo de Lula ou de Bolsonaro quase sempre aparecem como denúncias, mobilizando-se o conceito (de populismo) como uma dupla síntese, seja da reiteração histórica do secular passado populista (denúncia da persistência do arcaico), seja da forma comum subliminar a uma disputa política rebaixada (denúncia dos efeitos simplificadores da polarização); também a crítica do neoliberalismo de Lula ou de Bolsonaro embute quase sempre uma denúncia, nesse caso, sobre a persistência ou a morbidez do “sistema”. Em Nunes, o neoliberalismo parece persistir sob a forma do “neoliberalismo desde baixo”, tal como teorizado por Veronica Gago, enquanto em Nobre reitera-se o diagnóstico de um declínio do neoliberalismo progressista (Gago, 2014 ; Nunes, 2022 ; Nobre, 2022 ) 8 .
Para além de debater se “neoliberalismo progressista” constitui rótulo adequado ou não para caracterizar os anos PT, cumpre investigar se o suposto sentimento antissistema no Brasil tem o mesmo referente que seu congênere norte-americano. Ou seja, trata-se de perguntar: estamos lidando com um único e mesmo sistema? Ou, pelo contrário, o sistema nos Estados Unidos (EUA) ou na Europa Ocidental é consideravelmente distinto do brasileiro? Em caso de resposta afirmativa, emergem outras questões relevantes: em que medida podemos compreender o ciclo global de revoltas antissistema em sua unidade, se os sistemas são, afinal, diversos em suas particularidades? Até que ponto a identificação de um movimento antissistema local não esconde a importação espúria de categorias próprias de outras paragens?
Aportamos, assim, no debate sobre os contextos de emergência dos fenômenos do trumpismo e do bolsonarismo. E ressalte-se, mais uma vez, que se deve guardar em mente a diferença entre a reconstrução histórica dos processos de gênese de um fenômeno político e a análise de seus elementos intrínsecos constitutivos. Por isso, ainda que se possa constatar a presença de elementos táticos, retóricos e ideológicos no bolsonarismo que permitam a analogia com o trumpismo, não se deve extrair daí a conclusão de que os contextos são necessariamente análogos ou se deixam determinar pelas mesmas grandes causalidades abrangentes.
Em uma palavra, se o trumpismo emerge como uma política antissistema no contexto norte-americano, não quer isto dizer que o mesmo se possa dizer, sem qualificações, para o caso do bolsonarismo, pela simples razão de que o sistema dos EUA, aquilo contra o qual ele se volta, não existe no Brasil. O vínculo entre establishment econômico-financeiro, grandes redes de mídia e Partido Democrata (isto é, o laço efetivo de afinidade política e cultural – e de interesses econômicos – que vincula um partido político a Wall Street e a boa parte dos mass media ), contra o qual se volta o movimento antissistema trumpista, não tem qualquer paralelo na realidade brasileira. Daí o ruído em tomar de empréstimo a noção de “neoliberalismo progressista”, aplicando-a à experiência política do PT. No Brasil, pelo contrário, um análogo possível, guardadas as devidas proporções, do Partido Democrata seria o PSDB dos anos 1990 – feitas todas as ressalvas às diferenças nos sistemas político-partidários, nos sistemas eleitorais e na própria dimensão e capilaridade dos partidos. Na realidade brasileira, não há um “sistema” tal como existe em padrões norte-americanos. Identificar o PT como um análogo local do Partido Democrata para, no passo seguinte, aproximar o “sistema” de ambos os países, parece-nos produzir um equívoco analítico de graves proporções 9 .
E assim como o sistema não é o mesmo nos dois casos, tampouco vale a analogia para a composição do suposto campo antissistema, o que se pode depreender diretamente dos dados eleitorais. Enquanto nos EUA a base do trumpismo é sobretudo rural e habita cidades de pequeno e médio porte, mantém-se a hegemonia liberal nas grandes cidades e particularmente nas Costas Leste e Oeste, o que configura certo caráter de revolta do middle-man norte-americano contra os ricos, cultivados, cosmopolitas; já no Brasil, as vitórias eleitorais mais significativas de Jair Bolsonaro na eleição de 2018 ocorreram em regiões altamente urbanizadas, nas capitais mais ricas e populosas do país, entre os extratos mais abastados e formalmente instruídos da população (Nicolau, 2019 ).
Soa plausível, a essa altura, a hipótese de que pode haver um componente de importação indevida no modo como se costuma empregar a dinâmica sistema-antissistema enquanto métrica das relações políticas no Brasil contemporâneo. A opção teórica pelo eixo sistema-antissistema desloca, pois, a centralidade do antagonismo entre esquerda e direita. Se nos EUA, em contraponto à América Latina e à Europa Ocidental, e por diversos motivos históricos e institucionais, a luta política não costuma se travar a partir de uma dinâmica entre esquerda e direita, o mesmo não se aplica à cultura política do Brasil. Tratar o bolsonarismo como antissistema, em vez de enfatizar sua face de ultradireita, esconde, sob nomeação aparentemente neutra e empiricamente orientada, diversas implicações cruciais para o mapeamento das coordenadas políticas locais. A importação de coordenadas ideológicas estranhas à vida política local termina, pois, por sublimar um elemento determinante para a compreensão da radicalização autoritária da direita tradicional no país, o que dilui especificidades cruciais ao longo do processo histórico recente, marcos da inflexão autoritária no âmbito mesmo do “sistema”.
Considerações Finais: outro olhar para o bolsonarismo
No conceito de bolsonarismo analisado, o antissistema tende a se sobrepor ao antipetismo, ou mesmo ao antiesquerdismo, como afeto determinante do bolsonarismo. Assim fazendo, a intensa e crescente rejeição às práticas políticas do PT ao longo dos treze anos em que liderou a coalizão governista passa a segundo plano, assim como o ódio à esquerda que gracejou na última década. Pode-se argumentar que o “petismo”, alvo do antipetismo, deve ser lido como uma metonímia para algo mais abrangente – a esquerda como um todo, ou até mesmo o “sistema”. De todo modo, as escolhas categoriais, longe de representarem sutilezas terminológicas, dizem muito sobre os postulados normativos dos autores e explicitam, em meio às querelas hermenêuticas, uma disputa pelo sentido histórico – não apenas do passado.
Interpretar, por exemplo, que as políticas anticorrupção da última década, uma das fontes notórias do bolsonarismo, teriam uma resultante eminentemente antissistêmica implica situar em segundo plano antagonismos políticos centrais para suas identidades políticas. Em grande medida, implica amenizar a relevância das instrumentalizações espúrias do sistema de justiça. Como se este tivesse sido um componente lateral da política anticorrupção.
Preterir o uso do termo antidemocrático para qualificar o bolsonarismo também consiste em escolha com implicações políticas de monta. Em vez da denúncia imediata do caráter autoritário explícito nas mais diversas manifestações da ideologia bolsonarista, tratá-la como antissistema direciona a crítica para os limites e injustiças do sistema, o que, como vimos, normaliza a gênese do bolsonarismo e acaba por nublar a responsabilidade de vários dos seus protagonistas. Nesse quadro, o bolsonarismo representaria o desenlace de uma desvirtuação perversa posterior vis-à-vis ao legítimo e potencialmente emancipatório sentimento antissistema. Sobressai nessa leitura o componente trágico na trajetória de uma genuína luta antissistema que teria redundado, acidentalmente, em autoritarismo. Distintamente da pouca ênfase no protagonismo e nas consequências de ações, e visões de mundo, da direita, há um forte elemento de responsabilização política e moral do campo da esquerda, que não teria percebido o potencial transformador da conjuntura, empurrando as massas sequiosas por mudanças radicais para a ultradireita.
Pressupõe-se, enfim, que aquele impulso antissistema bem poderia ter sido canalizado para a esquerda – não tivesse sido inviabilizado pelo apego institucionalista, e pelos vícios conciliatórios, do governo liderado pelo PT. Então na presidência, o partido teria impedido o surgimento de uma “nova esquerda” à imagem e semelhança da “nova direita”, mas nesse caso teríamos uma leitura reducionista do “sistema”, não apenas ignorando as posições institucionais ocupadas pela direita partidária, como a força de uma direita não explicitamente partidária em instituições centrais da sociedade brasileira, como as Forças Armadas e o Judiciário. Por outro lado, esse pressuposto, da virtualidade radical emancipatória de um conjunto de afetos que teria terminado por alimentar a direita autoritária, não apenas ignora o fato de que na sociedade capitalista a construção de uma hegemonia de esquerda é sempre mais difícil de conseguir, e de reproduzir, do que uma hegemonia de direita. Ignora também o dado de que o intitulado sentimento antissistema esteve, ao menos desde 2013, mais inclinado para a direita – como mostram os resultados eleitorais desde então.
A ultradireita sem dúvida se aproveita de um rebaixamento dos horizontes de expectativa do discurso da esquerda nas últimas décadas para muitas vezes se afirmar como força de transformação, o que ocorre para além das fronteiras brasileiras. Por mais que seja sempre possível elencar apostas equivocadas e problemas, não se trata, contudo, de um fenômeno restrito às más escolhas ou à miopia dos atores, mas de um cenário produzido por limitações estruturais mais amplas. Essas podem não ser imutáveis, e podem exigir novas práticas, mas por certo ultrapassam as possibilidades de um ator isolado, de um momento político ou de uma cena nacional.
Mais do que um fenômeno externo e contrário ao sistema, o bolsonarismo é uma das faces da construção de uma nova coalizão, que produz, por sua vez, um novo eixo para a ordem de 1988. Do mesmo modo que a crise econômica de 1998 abriu as portas para o fim da coalizão entre o neoliberalismo do PSDB e o liberal-conservadorismo do Partido da Frente Libera (PFL) e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), construída a partir do Plano Real, os efeitos da crise de 2008 e dos eventos de 2013 possibilitaram a construção de uma nova coalizão, a substituir a anterior, composta pela esquerda e pelo liberal-conservadorismo de uma miríade de elites políticas. A ruptura decorre, em boa medida, da radicalização do liberal-conservadorismo, predominante nas elites políticas após a redemocratização, que passa a atacar, aberta ou veladamente, pressupostos centrais da ordem de 1988 e a criminalizar mesmo as vertentes mais moderadas da esquerda. Com este movimento, ocorreu a mudança do eixo político brasileiro para a direita, o que produziu, por sua vez, a normalização de discursos e atores antes relegados, em razão de sua pouca influência, às franjas mais à direita do cenário político.
O rearranjo possibilitou uma renovação de elites, políticas e intelectuais, assim como uma mudança de repertórios. Nada mais eloquente, nesse sentido, do que um deputado de longa trajetória política, mas sem qualquer prestígio em seus inúmeros mandatos, que se destaca como liderança carismática da nova coalizão. Há, por certo, como em toda mudança substancial da ordem política, o surgimento de novos protagonistas, mas boa parte do movimento se faz por dentro e a partir do sistema político, não por fora dele. Convém não tomar a retórica de novidade dos atores (que por tanto tempo foi típica de uma esquerda hoje identificada por muitos ao sistema) como dado objetivo da sua identidade e de seus objetivos.
O bolsonarismo é o esforço de construir uma base popular desta nova coalizão de ultradireita, composta por uma direita radicalizada e por novos protagonistas de extrema-direita, a partir do carisma de uma liderança de clara identidade de extrema-direita, como bem expressam suas performances e discursos (Cohn, 2022). Com os anos, o carisma buscou se rotinizar (Weber, 2003), em esforço repleto de dificuldades e ainda distante de seu fim, como expressa sua difícil relação com a dinâmica partidária. Não se pode apreender o bolsonarismo como único arranjo possível da nova coalizão, que talvez comporte novas formas de atuação, mas convém levar a sério sua resiliência, mesmo ante as condenações judiciais de seu líder.
Sua feição é incompatível não apenas com a Constituição de 1988, mas com as experiências democráticas do pós-1945. Destacam-se, contudo, em meio à coalizão bolsonarista, diversas linguagens políticas, algumas das quais podem assumir, por vezes, ares de normalidade. Indicar a oposição do bolsonarismo à ordem política atual não implica, todavia, tomá-lo como produto necessário dessa maldição inerente ao sistema, ou como sua simples negação. Trata-se de uma deriva dialética da ordem democrática construída após a redemocratização, produto de suas virtudes e limites, que foi em boa parte construída por seus protagonistas, previamente pertencentes às elites políticas. Não foram, contudo, quaisquer protagonistas, mas aqueles pertencentes às direitas tradicionais. Do mesmo modo que, entre os novos atores, a reivindicação de um pertencimento ostensivo às direitas é parte fundamental das identidades públicas e performances do grupo.
Delimitar o conceito de bolsonarismo, e fundamentar sua crítica, não apenas permite uma interpretação com mais nuances do passado recente, marcado pelas distintas temporalidades da última década, mas também ilumina possíveis desdobramentos em um cenário no qual o eixo da ordem política permanece à direita, apesar dos resultados eleitorais de 2022. Neste sentido, olhar para as clivagens, tensões e conflitos da ordem política brasileira expõe aspectos perdidos no amplo conceito de “sistema”. Por outro lado, mesmo quando as interpretações almejam vislumbrar a perspectiva da totalidade, e precisamente com o fim de melhor contemplá-la, convém olhar para as ambiguidades constitutivas das relações entre o bolsonarismo e o “sistema”. Elas apontam para além das dinâmicas lineares de mera oposição, superação ou recusa.
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1
Este artigo é financiado pela Bolsa de Produtividade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pelo programa Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e pelos editais de iniciação científica de 2022 e 2023 da FAPERJ e de 2022 da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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2
Em pesquisa no mecanismo de buscas da página do jornal Folha de S.Paulo na internet, a primeira menção registrada ao termo “bolsonarismo” é de junho de 2017. Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1893641-bolsonaro-arrebata-direita-jovem-e-nordestina-com-ideologia-pa-pa-pa.shtml .
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3
A emergência do bolsonarismo como uma espécie de conceito antitético assimétrico em relação ao lulismo não será aqui propriamente desenvolvida e requer um estudo à parte. Em um contexto de difusão da categoria de lulismo, transformar Bolsonaro em um “ismo” parece resultar de desdobramento intuitivo da sensação de polarização, para além de reproduzir a tendência de analisar a vida política nacional na chave do personalismo. Mas se o lulismo adquiriu maior densidade conceitual, especialmente pelos trabalhos de André Singer (Singer, 2012 ; Singer, 2018 ), o bolsonarismo ainda não parece ter tido rendimento analítico equivalente – apesar da extensa produção sobre o tema desde 2018.
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Cumpre assinalar que se trata de obras com formas distintas: enquanto Limites da democracia (Nobre, 2022 ) se apresenta como um estudo de fôlego sobre a política brasileira contemporânea da década pós-2013, em continuidade à obra anterior de Nobre sobre o “pemedebismo” ( Imobilismo em movimento , 2013), Do transe à vertigem (Nunes, 2022 ), por sua vez, é uma coletânea de ensaios de filosofia pública. Malgrado, contudo, as diferenças em termos de formato, sistematicidade e amplitude histórica das obras, entendemos que suas afinidades justificam a aproximação aqui defendida: elas partilham um esforço comum de interpretar a política nacional a partir de perspectivas inscritas no campo da filosofia política (e da teoria crítica, com suas variantes), nublando a fronteira entre análise empírica e estudos teórico-normativos. E a partir desse terreno comum, ambas as obras desenvolvem, como argumentaremos, diagnósticos similares do tempo presente e empregam, notadamente, um conceito afim de bolsonarismo para compreender a ascensão da extrema-direita no país.
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“Pemedebismo” é a fórmula empregada por Nobre para tratar do modo de gerir o presidencialismo de coalizão brasileiro a partir de meados dos anos 1990, com a formação de supermaiorias parlamentares e de um amplo sistema de vetos que reduziria em muito a margem de manobra dos governos. Para além da variável “governabilidade”, predileta de uma ciência política mainstream, Nobre enfatiza que o arranjo pemedebista asseguraria a viabilidade de governos por meio da imposição de limites estreitos a quaisquer políticas transformadoras. Trata-se, pois, da imagem-síntese de um sistema político que impediria qualquer atuação política no sentido de um aprofundamento do processo de democratização do país – em suma, um sistema político disfuncional em sua funcionalidade, gerente do “imobilismo em movimento”.
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A passagem seguinte é ilustrativa do modo como, por vezes, Nunes complexifica a dinâmica sistema-antissistema com outras “linhas de antagonismo” – mesmo que as alusões a estas prescindam de maiores desdobramentos: “O que muda de 2015 em diante é que o material que estava suspenso na mistura de 2013 decanta, e as linhas de antagonismo se tornam ao mesmo tempo mais claras e complexas. Ainda havia um sentimento forte de rejeição ao sistema político, como evidenciado pelo apoio popular aos caminhoneiros. Mas essa linha de antagonismo agora era atravessada pela polarização entre petismo e antipetismo, que tenta se reafirmar como aspecto principal, e por um jogo complexo de alianças, cooptações e simbioses entre elementos do sistema político e setores sociais, organizados ou não” (Nunes, 2022 , p.182).
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Ainda que mais atento à centralidade do componente discursivo na distribuição de papéis e posições no antagonismo político, a argumentação de Nunes converge com o diagnóstico de Nobre: “A nova extrema direita logrou explorar tanto o rechaço ao ‘politicamente correto’ quanto os pânicos morais característicos do conservadorismo tradicional e se posicionar como a voz dos desejos antissistêmicos ao mesmo tempo que associava a esquerda – que, verdade seja dita, pouco fez para se ajudar – ao establishment, a uma cultura uncool e ultrapassada” (Nunes, 2022 , p. 77).
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Se o “neoliberalismo progressista” implicaria um programa de acomodação entre uma política econômica neoliberal e uma agenda progressista para questões de gênero e raça, o “neoliberalismo desde abajo ” resultaria da difusão e capilarização de uma concepção radicalmente competitiva e individualista do homo economicus. No primeiro caso, o referente ainda são governos, partidos, programas de governo, políticas públicas, etc.; no segundo, trata-se de pensar o neoliberalismo menos como agenda política e mais como modo de reprodução social.
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Há diversos momentos, particularmente na obra de Nunes, em que interpretações do cenário global de crise do capitalismo no pós-2008 parecem ser imediatamente transplantadas para a realidade brasileira, com evidente prejuízo para a compreensão das especificidades do caso local. Eis dois exemplos: “ao identificar a apropriação indevida de recursos por diversos ‘outros’ (países, etnias, religiões, culturas) como fonte do problema, e a luta para impedir esses ‘outros’ de acessarem tais recursos como a solução, a extrema direita conta uma história que se adequa muito bem a um mundo no qual a desigualdade cresce, os recursos diminuem e aqueles que estão na base da pirâmide social são forçados a uma luta cada vez mais encarniçada por sobras cada vez mais escassas” (Nunes, 2022 , p. 68); “a distribuição de riqueza e a representação política se tornaram tão desequilibradas nas últimas décadas que qualquer tentativa de reequalizá-las não tem como não parecer radical comparada ao que temos agora” (Nunes, 2022 , p. 70).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Maio 2024 -
Aceito
23 Jul 2024