Resumo
O artigo se propõe a apresentar dois eixos comuns a dois autores paradigmáticos da interpretação da formação social brasileira: Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. De um lado, evidencia-se os caminhos que buscaram para velar e diluir o antagonismo entre dominados e dominadores, o que passou pela modernização do discurso conservador que acompanhou a amplitude e a intensidade das tensões sociais. De outro lado, destaca-se as saídas que estes autores sugeriram para acomodar as crescentes tensões entre as oligarquias regionais. Para tanto, mostramos que ambos idealizaram o passado colonial com o intuito de forjar uma narrativa sobre a cultura nacional que legitimasse um equilíbrio mais estável das estruturas de poder no Brasil, coincidindo com suas defesas da segregação social.
Palavras-chave: Conservadorismo; Segregação Social; Oliveira Vianna; Gilberto Freyre
Abstract
This paper presents two axes common to two paradigmatic authors of the Brazilian social formation: Oliveira Vianna and Gilberto Freyre. On the one hand, it highlights the paths taken to obscure and dilute the antagonism between the ruling elite and the oppressed, which involved modernizing the conservative discourse inherent to the breadth and intensity of social tensions. On the other, it points to the solutions proposed by these authors to accommodate the growing tensions between regional oligarchies. In this regard, the text demonstrates how both idealized the colonial past to forge a “national culture” discourse that could legitimize a more stable balance of power structures in Brazil, coinciding with their defense of social segregation.
Keywords: Conservatism; Social Segregation; Oliveira Vianna; Gilberto Freyre
Introdução
Oliveira Vianna e Gilberto Freyre foram dois importantes personagens da História do Brasil na primeira metade do século XX, sendo que Gilberto Freyre se manteve ativo também durante boa parte da segunda metade deste século. Estes autores não apenas possuem reflexões que desde sua origem têm tido ampla repercussão acadêmica, evidenciada pela existência de diversos trabalhos que com elas dialogam, como também participaram ativamente da política nacional. Enquanto Oliveira participou do Ministério do Trabalho entre 1932 e 1940, Gilberto Freyre foi chefe de gabinete do governo de Pernambuco no final dos anos 1920 e deputado federal entre 1946 e 1950 (Weffort, 2006).
Foram vistos como destacados intelectuais representantes dos grupos conservadores no Brasil da primeira metade do século XX, o que lhes rendeu críticas de autores como Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes. Ao passo de o primeiro ter acusado Oliveira Vianna de reproduzir no Brasil a ideologia colonialista de inferioridade e incapacidade do povo brasileiro (Sodré, 1958), Fernandes (1965) afirmou que a tese de Freyre era como que uma defesa do indefensável, que seria a existência de uma democracia racial no país.
Existem diferenças substanciais em suas interpretações sobre a formação social brasileira, sendo a questão racial aquilo que mais salta à vista num primeiro momento. Oliveira Vianna apresentou uma narrativa abertamente racista para fundamentar uma suposta superioridade do branco. Gilberto Freyre deu relevância positiva à participação do negro na formação da cultura nacional (Weffort, 2006)1, sem que isto tenha impedido o autor de elaborar estratégias para preservar a segregação social, pedra angular da estrutura de poder no Brasil.2
A divergência sobre o caráter da cultura nacional também esbarra na forma como estes dois autores avaliam a contribuição do latifúndio para o processo de construção da identidade nacional. Enquanto Vianna entende que a grande propriedade passa, após a independência, a apresentar uma tendência centrífuga que se opunha à formação da unidade nacional, Gilberto Freyre confere ao latifúndio uma capacidade permanente de influenciar de maneira positiva a identidade nacional (Ricupero, 2010).
A partir destas posições, entendemos que, diferentemente de Oliveira Vianna, Freyre enaltece o latifúndio ou, nos seus termos, a casa-grande e até mesmo o sobrado patriarcal, como um espaço a partir do qual se poderia propor formas e articulações políticas adequadas à pacificação dos conflitos que esgarçavam o país naquele início de século XX, ao mesmo tempo em que acreditava que estes espaços continuavam a ser centros de aproximação dos antagonismos. Além disso, valorizar este espaço das tradições políticas e sociais do Brasil apontava para o reconhecimento das qualidades culturais de todos os que conviviam naquele espaço, como eram os negros, e que foram e continuavam a ser capazes de prolongar as tradições “democráticas” que se desenvolvera no Brasil ao longo dos séculos de colonização escravista.
Todavia, nossa hipótese é de que, a despeito dessas divergências, não há, em Gilberto Freyre, um afastamento completo do conservadorismo de Oliveira Vianna. Acima de tudo, Freyre nos parece muito mais se adaptar à conjuntura daquele início de segundo quarto do século XX do que propor a abertura de espaços de convivência livre e de valorização social para todas as pessoas.
A continuidade entre Freyre e Vianna foi indicada, mas não desenvolvida e aprofundada, por Nelson W. Sodré quando considerou que a obra de Gilberto Freyre “representava a apologética da mesma classe a que Oliveira Viana servira tão bem” e revelava “distanciamento do povo, alheamento ao povo, profundo desprezo pelo povo” (Sodré, 1956, p. 22; Sodré, 1959, p. 8). Nesse sentido, o principal objetivo deste artigo é mostrar como a interpretação destes autores apresentam convergências, sobretudo no que se refere ao conservadorismo, ao mesmo tempo que há uma adaptação importante representada pela interpretação de Freyre. A esta adaptação estamos chamando de modernização do conservadorismo de Gilberto Freyre em relação ao de Oliveira Vianna.
O pensamento conservador não é homogêneo e, por isto, é difícil generalizar suas posições. No entanto, há consenso sobre a relevância que os conservadores reservam ao passado. Sobre o conservadorismo, nossa base é a reação contrária à Revolução Francesa, tanto por Edmund Burke, na Inglaterra, como por Johann Gottfried von Herder, no que viria a ser a Alemanha. Sternhell (2006) chama esta corrente de reação à Revolução Francesa e ao Iluminismo de anti-iluminista: uma linha de pensadores que não é contra a modernidade, mas propositores de uma outra modernidade. Queremos sublinhar este fato: embora a pretensão maior do pensamento conservador seja manter algo imutável, preservar uma tradição, isto não significa que o pensamento conservador seja contrário a mudanças. Burke é explícito com relação a isto quando afirma: “Assim, pelo emprego de métodos da natureza na conduta do Estado, aquilo que melhoramos não é nunca completamente novo, e aquilo que conservamos não é nunca completamente velho” (Burke, 1982, p. 69).
Assim, a História é um recurso a partir do qual o presente (e mesmo o futuro) é visto como continuidade do passado (Sternhell, 2006). Para os conservadores, a ideia central é a de coexistência, e não a de sucessão (Ricupero, 2010). Este passado confere ensinamentos aos quais os homens devem obedecer para poderem fazer seu futuro: as tradições moldam o comportamento social dos indivíduos. Trazendo esta forma de pensar para o Brasil, o que devemos responder é: que tradição os conservadores brasileiros pretendem manter? Ao nosso olhar, o seu ponto central é a placidez, para Oliveira Vianna, e a plasticidade e acomodação, para Gilberto Freyre.
Para perseguir seu objetivo, o artigo está dividido da seguinte maneira. Além desta introdução, apresentamos as interpretações Oliveira Vianna e Gilberto Freyre sobre dois temas centrais. Uma delas são as relações entre dominadores e dominadores, tema latente numa época de grandes tensões sociais. Nesta seção, destacaremos não só traços comuns na interpretação destes dois gigantes do pensamento conservador brasileiro, também algumas particularidades que evidenciam como os grupos dirigentes se adaptaram às mudanças sociais. Numa segunda seção, este artigo analisa de que forma as propostas destes autores se articulavam às suas posições de controle social sem deixar de possuírem traços comuns, como era a construção de um novo pacto político (conciliação) entre as oligarquias regionais brasileiras. Subvertendo uma frase forte que circula nos meios críticos ao estado de desastres que o Brasil vivencia, poderíamos dizer que o que destacamos aqui é que esses dois autores defendiam “paz entre os senhores, guerra aos nossos inimigos”.
A busca pelo controle das tensões sociais: dominados vs dominadores
Nesta seção, evidenciaremos que tanto Oliveira Vianna quanto Gilberto Freyre buscaram realçar uma suposta harmonia entre opressores e oprimidos, dominadores e dominados. Oliveira Vianna construiu sua interpretação tendo como elemento central o grande domínio rural. Gilberto Freyre, por sua vez, fez sua explanação a partir da plasticidade do português, o que permitiria a construção de uma sociedade capaz de selecionar e integrar indivíduos às camadas privilegiadas.
Oliveira Vianna: grande domínio rural e placidez
A narrativa histórica elaborada por Oliveira Vianna tem um caráter antissocial.3 Nessa narrativa, a classe dominante, chamada por ele de “nobreza rural”, notadamente a do Centro-Sul, é considerada a responsável pela formação histórica brasileira. Os principais acontecimentos são atribuídos a essa classe: o movimento de colonização do interior, a mineração, a independência e o Império.
Nesta narrativa, a “plebe”, a “ralé”, a parte “inferior” dentre os “mestiços”, nada têm de contribuição ativa para as transformações históricas na Colônia portuguesa na América, e no Brasil após a independência, porque esta população não teria demonstrado reação política, tampouco teria construído instituições de solidariedade nem democráticas. Como consequência, a sociedade brasileira seria plácida, isto é, sem conflitos entre as diferentes classes. Os conflitos existentes são entre os diferentes grupos familiares da classe dominante, os “clãs parentais”, posteriormente levados a desavenças entre as diferentes frações regionais da classe dominante, os “oligarcas”.
Segundo o autor, a população seria politicamente apática porque vivia de modo pacífico no interior do “clã”: “à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade” (Vianna, 1922, p. 166). Para Oliveira Vianna, o indivíduo comum precisa dessa ordem superior e é incapaz de viver sem ela. O indivíduo do povo não consegue agir por si mesmo, por sua própria vontade. Mais ainda, teme qualquer situação em que tenha que tomar decisões “sem sugestão de um superior reconhecido e aceito”, pois “constitui para ele uma grave e dolorosa preocupação, um motivo íntimo de angústia, de inquietação, de tortura interior” (Vianna, 1922, p. 173). Não sabendo como agir, busca e se acolhe sob as ordens do senhor. “O grande senhor rural é o seu protetor, o seu amigo, o seu chefe admirado e obedecido. Nunca o seu inimigo, o seu antagonista, o seu opressor” (Vianna, 1922, pp. 322-323).
Com isto, Oliveira Vianna pôde argumentar que a história do Brasil ocorreu em repleta paz, sem conflitos. Essa seria a grande singularidade da formação social brasileira e, por isto, não era possível esperar que fossem criadas, no Brasil, as liberdades civis e laços de solidariedade nacionais como consequência da simples cópia das mesmas instituições democráticas vigentes nas sociedades anglo-saxônicas.
Portanto, incapacidade política da população rural comum, exclusão da “plebe” em acontecimentos marcantes para a reconstituição da História do Brasil e inexistência de conflitos no interior do “elemento nuclear” da formação colonial explicitam o caráter antissocial da narrativa de Oliveira Vianna e sua crença na impossibilidade de a população poder perseguir sua liberdade e lutar por condições mais igualitárias de vida. “O que a análise de Oliveira Vianna sugere é a completa falta de competência da grande maioria do povo brasileiro para participação ativa - mesmo que só como eleitores - na vida política” (Silva, 2004, p. 181). Deste modo, a ação autoritária do Estado seria essencial. Somente ele poderia conduzir a “massa popular”.
O pressuposto da análise de Oliveira Vianna está na ideia de complexo cultural, o qual gera uma capacidade política no respectivo povo. Assim, os povos teriam capacidades políticas distintas e hierarquizadas, pois instituições democráticas encontradas nos anglo-saxões exigiriam “uma cultura política incomparavelmente mais evoluída e apurada” (Vianna, 1987, vol. I, p. 70). Esta capacidade política dependeria, “de um lado, da estrutura morfológica do grupo e, de outro, do grau de consciência da solidariedade social entre os membros da comunidade” (Vianna, 1987, vol. I, p. 72).
O motivo determinante da passividade está na instituição sui generis na formação da nacionalidade brasileira: o grande domínio rural. A partir da forma como Oliveira Vianna compreende a composição e função desse “elemento nuclear”, emerge a percepção do brasileiro pacífico e, portanto, da placidez como característica singular e edificante da sociedade constituída a partir da colonização. Dois aspectos da formação social são essenciais neste caso: “função simplificadora do grande domínio rural” e “gênese dos clãs e do espírito de clã”.
Na composição social do grande domínio rural, segundo Oliveira Vianna, há três “classes”: a “família senhorial”, os “agregados” e os “escravos”. No que diz respeito à relação entre estas três classes, Oliveira Vianna examina as condições de “insolidariedade” entre a primeira e a segunda, elencando dois fatos principais que levaram à falta de solidariedade: a escravidão e a liberdade dos agregados. Devido à escravidão, os agregados foram tornados prescindíveis à realização das atividades produtivas no domínio do senhor. Desta maneira, não havia motivo algum que compelisse o senhor a estabelecer relações de solidariedade econômica com o agregado. Esta situação também era condicionada pela independência econômica do grande domínio rural, pois tal independência significava que o senhor prescindia de tudo o que fosse produzido pelos agregados. Além disso, a independência econômica do grande domínio rural enfraquece, segundo o autor, a possibilidade de existência das classes industrial, comercial e de uma classe média de pequenos proprietários. Quanto ao lado do agregado, segundo Oliveira Vianna, este também não tem motivo algum para estabelecer relações de solidariedade com o senhor. Para o autor, esse trabalhador tem total liberdade para mover-se, trocar de domínio, sobreviver em meio à terra “vasta” e à facilidade de alimentos oferecida pelo meio.
Desta formação social sem solidariedade, na qual “cada família é uma República”, formou-se o homo colonialis: um sujeito “amante da solidão e do deserto, rústico e antiurbano, fragueiro e dendrófilo, que evita a cidade e tem o gosto do campo e da floresta” (Vianna, 1987, vol. I, p. 102). Isto é, “o brasileiro é fundamentalmente individualista”, um “individualismo familiar e patriarcal” (Vianna, 1987, vol. I, p. 107,110). Como consequência, “os hábitos de cooperação e colaboração destas famílias na obra do bem público local não podiam formar-se”. Não se forma nem uma tradição de espírito público e nem uma tradição democrática (Vianna, 1987, vol. I, p. 108).
Contudo, ausente economicamente, a solidariedade em torno do grande domínio rural se forma por meio da necessidade de defesa da população comum contra a “anarquia branca”, constituindo o “clã-patriarcal” (Vianna, 1922, p. 156). A “anarquia branca” se caracterizava pela incapacidade das instituições públicas, sobretudo as instituições jurídicas, de sobreporem-se ao poder dos senhores locais. Até a guerra dos emboabas, esse estado de “caudilhismo”4 se caracterizava pela submissão das instâncias públicas municipais ao “mandonismo”, isto é, à capacidade de força armada do senhor local. Disso resultava que o indivíduo do povo se sentia obrigado a associar-se a um ou outro senhor para estar protegido contra ações arbitrárias dos demais. É essa situação que liga toda a população, não conjugada por laços de solidariedade econômica, por meio da “solidariedade de clã à oligarquia fazendeira”.
Portanto, é esse modo de organização social básica, e de suma importância para a história política do Brasil, na qual reina a paz e a convivência é pacífica, que leva à apatia política do povo, diferentemente do que ocorrera na Europa anglo-saxônica. Sem enfrentar conflitos com seus superiores, o indivíduo comum não adquiriu consciência política e não se deparou com condições que o induzisse a formar, com outros, instituições de solidariedade para garantir sua proteção.
O autor ignora toda participação popular em movimentos de rebelião que ocorreram no período de independência e no período regencial. Como veremos, para ele, estes movimentos foram apenas manifestações da anarquia branca. Ignora, com isto, todo o conteúdo reivindicatório da população diretamente à realização dos ideais das revoluções liberais.
Gilberto Freyre: plasticidade e dominação
Diferentemente de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre não invisibilizou as contribuições de negros e indígenas para a formação da cultura nacional. Pelo contrário, enalteceu suas participações na construção da família, da culinária, da adaptação ao trópico, das relações sociais e, dentre várias outras coisas, das instituições políticas que fundamentaram o nascimento de uma cultura tão vibrante e a tal ponto superior à cultura europeia que se teria formado uma nova civilização nos trópicos (Freyre, 1937, p. 47).5 O caráter nacional da cultura brasileira estaria, portanto, indissociavelmente ligado à comunhão entre portugueses, indígenas e africanos ou, de outro modo, entre escravos e senhores. Para Gilberto Freyre, o contato cotidiano e doméstico entre eles criou vínculos sociais e culturais que driblaram a dominação violenta e abriram um espaço para que se desenvolvessem afetos espontâneos entre essas duas partes.
Freyre argumentou que essa cultura que se foi criando ao longo dos séculos, marcada pela miscigenação racial e de costumes, era capaz de acomodar os mais severos antagonismos, sobretudo através do patriarca. Assim, o horror do cotidiano, violento e opressor, foi transformado pela lente do autor em um ambiente de acomodação e reelaboração das tensões pelos próprios elementos humanos que constituíam aquela realidade (Freyre, 1933, p. 391). Todavia, esse tom aparentemente conciliador que destacou, sobretudo, a contribuição africana para a formação da cultura brasileira, deve ser relativizado (Freyre, 1933, pp. 113-114).
Embora a obra de Gilberto Freyre tenha sido recebida como um avanço com relação às gerações anteriores, abertamente racistas, como era Oliveira Vianna, esse aspecto de sua interpretação não deve ser analisado de modo isolado. Gilberto Freyre possuía interesses que requeriam um amplo cessar-fogo. Revitalizar o protagonismo do Nordeste exigia que este cumprisse papel relevante na acomodação das tensões sociais Brasil afora.
A estabilização da estrutura de poder brasileira na explosiva conjuntura das primeiras décadas do século XX, marcada por tensões antigas e pela emersão de tensões sociais relativamente novas na história do país, como eram as greves nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, exigia basicamente dois tipos de medida. De um lado, era necessário elaborar um novo pacto entre as oligarquias regionais, o que analisaremos na seção seguinte deste artigo. De outro, era necessário adotar medidas que enfrentassem as insatisfações populares. Todavia, a questão naquele momento era justamente como fazê-lo - e a obra de Gilberto Freyre oferece algumas sugestões.
O reconhecimento do negro como elemento central da cultura nacional, porém sempre com o cuidado de apresentá-lo sob a tutela do branco, talvez expressasse uma sugestão sobre como proceder nas inúmeras situações de tensão social na década de 1930. Em alguma medida, a obra de Freyre pode ser compreendida como um guia sobre como lidar com as tensões entre dominadores e dominados, sobretudo com o elemento do trabalho em suas dimensões cultural e social, o que no Brasil está fortemente associado à escravidão do elemento indígena e, principalmente, do africano. Em outras palavras, balizado pelo passado colonial e escravista, o encadeamento lógico de Casa-grande e senzala e Sobrados e mucambos parece sugerir o uso de técnicas sociais para preservar a segregação social baseada em fundamentos raciais e culturais.6
A própria sequência dos livros parece sugerir os princípios e as técnicas necessárias para se adaptar a estas em um mundo que se urbanizou e afastou as camadas dominadas das dominantes. Principalmente no ambiente urbano, em que a pessoa do patriarca aburguesado já não era mais tão presente na vida íntima do trabalhador, seria preciso leis que regulassem a vida no ambiente de trabalho e a sua existência cultural (Freyre, 1936, pp. 33-34). Não apenas a suposta confraternização tradicional entre dominadores e dominados não estava associada às manifestações de contestação e rebeldia, como também era necessário que esse contato possuísse um caráter de tutela e vigilância, que era o caminho que levaria à seleção, de um lado, e ao mando arbitrário, de outro.
Ainda que Gilberto Freyre afirme que o africano deva ser considerado um colonizador do Brasil tanto quanto o português (Freyre, 1933, pp. 417-418), em momento algum ele abre espaço para que o africano e o indígena disputassem a liderança do processo de seleção cultural com o português. Um escravo ou escrava jamais selecionaria, sob qualquer ponto de vista, um senhor ou uma senhora por esta ou aquela atribuição. A narrativa de Freyre apresentou apenas processos que transcorreram no sentido inverso, destacando sempre a liderança do português e valorizando a capacidade da cultura ibérica de se amalgamar às outras sem se despir da sua posição de comando (Freyre, 1933, p. 69).
Em Casa-grande & senzala, Freyre afirmou que a singular predisposição do português ao hibridismo se devia ao seu próprio passado cultural, que não se definia como europeu nem africano (Freyre, 1933, p. 65). Antes, o amálgama desses dois elementos era o que fundamentava a sua plasticidade do português e a própria formação de sua cultura nacional. Características como a capacidade de defender e adaptar o catolicismo sem perder seus fundamentos, também a capacidade de preservar a vida agrícola sem negar a vocação para o comércio, balizavam o que era necessário para ser “bom” (Freyre, 1937, p. 47). Assimilar parte das culturas de povos dominados ao mesmo tempo em que; (i) se preservava os fundamentos de sua própria cultura, (ii) se mantinha o domínio social e político e (iii) se construía uma economia agrícola e exportadora, teria feito do português o colonizador ideal dos trópicos.
Em Nordeste, o autor explicitou que os portugueses teriam selecionado indígenas e, mormente, africanos que possuíam traços “eugênicos”, os quais eram os elementos culturais e de fisionomia, por ele caracterizados, como bons. A massa de escravizados se fazia não só de indivíduos que na África já realizavam trabalhos braçais, como também era constituída daqueles que pertenciam a frações sociais dominantes em suas respectivas sociedades, ao que o autor parece atribuir, automaticamente, superioridade (Freyre, 1937, p. 158).7
Assim, segundo Gilberto Freyre, o português foi construindo uma sociedade capaz de acomodar antagonismos que, através da sua capacidade de selecionar indivíduos das camadas dominadas, como eram os escravos, possuía rasgos democráticos. O contato direto entre senhores e cativos domésticos estimulara a criação de afetos espontâneos que teriam sido responsáveis por amortecer tensões e, assim, viabilizar aproximações sociais, mas restringidas aos africanos que possuíam os traços eugênicos. Só estes seriam capazes de aproximar genuinamente senhores e cativos, especialmente aquela minoria selecionada para os afazeres domésticos que exigiam maior proximidade e, na interpretação do autor, permitiam o nascimento de afetos (Freyre, 1937, p. 155). Apenas a seleção lenta e criteriosa do africano pelo português/senhor se associava à democratização racial e social que o autor tanto dourava.
Gilberto Freyre não abre brechas para que se compreenda que o processo de seleção étnica, social e cultural tenha escapado ao controle do colonizador. Para o autor, foram os portugueses que selecionaram as peças que compõem a cultura brasileira, cuja principal herança seria a plasticidade. Assim, o colonizador português, notadamente no Nordeste, teria transferido sua principal e melhor característica à civilização brasileira, que seria a capacidade de equilibrar antagonismos.
Com o intuito de dar maior concretude ao que dizemos, destacamos um exemplo notável apresentado por Gilberto Freyre sobre a capacidade e os critérios dos colonizadores para decidir sobre a posição social da população negra. Tanto em Sobrados e mucambos como em Nordeste, há um caso bastante ilustrativo de um tipo peculiar de mobilidade racial e social. O tom da pele negra com que o capitão Silva Pedroso era identificado pela sociedade patriarcal e pelo Estado dependia fundamentalmente da sua fidelidade às leis e à ordem vigente. Isto é, na medida em que o capitão se afastava da defesa da hierarquia rígida do Exército e se associava à defesa dos interesses populares e nacionalistas à época da Independência, sua pele enegrecia radicalmente (Freyre, 1936, pp. 753-756).
Essa linha móvel traçada a partir da conveniência do branco e controlada pelo branco era precisamente aquilo que, para Gilberto Freyre, determinava a construção de uma democracia racial. O ritmo lento desta construção era explicado, em boa medida, como uma função da incapacidade do negro cacogênico em se livrar dos traumas do cativeiro que o impediam de desenvolver a plasticidade da cultura patriarcal (Freyre, 1937, p. 135, grifos nossos). Isto é, o negro revoltado com o sistema patriarcal não se ajustaria, por definição, àquilo que havia de melhor na cultura brasileira; a plasticidade.
Controlar as fraturas da estrutura de poder era uma tarefa que exigia ação organizada por parte das camadas dominadoras. A profusão das mais diversas formas de tensão social exigia respostas contundentes e eficazes, sem que isto significasse o uso único e exclusivo da violência. Nesse sentido, a obra de Gilberto Freyre apresenta uma série de exemplos de seleção de escravos baseada em traços culturais que possui certa semelhança com a promulgação de algumas leis do início do governo Vargas (Araújo, 2013, p. 85). De um lado, senhores de engenho selecionavam escravos eugênicos para o serviço doméstico em detrimento de uma maioria fadada ao serviço da lavoura. De outro, instituiu-se uma lei que obrigava que ao menos 2/3 da mão de obra das fábricas brasileiras fosse composta de trabalhadores nacionais. Assim, limitava-se a presença dos estrangeiros, a maior parte dos trabalhadores industriais que naquele início de século haviam organizado sindicatos combativos de viés anarquista.8
Em outros termos, o que se afirma aqui é que, a partir dos critérios e dos interesses das camadas dominadoras, se traçava fronteiras movediças entre o que seria e o que não seria permitido. De tal modo, a peneiragem sociocultural ou, como Gilberto Freyre denominava, a construção da democracia étnica, seria lenta, segura e gradual. A construção desta democracia não se daria senão através da seleção de indivíduos que teriam a sua fidelidade aos patriarcas e aos valores patriarcais atestada cotidianamente.
A mobilidade dessa sociedade, que Gilberto Freyre expressaria através dos casos dos negros que ascendem a postos elevados do Exército e, particularmente, através dos mulatos bacharéis, era regida pelos interesses dos patriarcas brancos. Eram estes que determinavam se uma pessoa negra ou, em termos mais amplos, uma pessoa disposta a se rebelar contra os desígnios arbitrários dos dominadores, era excluída ou inserida no círculo de privilégios.9
Isto é, o grau da aproximação social entre os antagonismos era regido não só pelo controle do elemento dominante sobre o processo, mas também pelo risco potencial de se desestabilizar a ordem patriarcal.10 De tal modo, quanto mais apegado o indivíduo negro era às tradições de matriz africana e mais fortes seus laços de solidariedade com a comunidade negra, maiores as possibilidades de se ser identificado como um risco à estabilidade da ordem branca e patriarcal.11
Acomodação e conciliação entre os dominadores
À semelhança da seção anterior, evidenciaremos as continuidades modernizadoras do conservadorismo entre Oliveira Vianna e Gilberto Freyre12, mas nesta enfatizaremos a articulação das oligarquias regionais. Para isso, evidenciaremos como estes autores buscaram evitar que os conflitos intestinos destas oligarquias abrissem espaço para maior participação popular na vida política brasileira. De um lado, Oliveira Vianna fez uma narrativa exaltando governos autoritários sustentados a partir da fração dominante do Centro-Sul. De outro lado, Gilberto Freyre defendeu a existência de uma cultura patriarcal nacional capaz de conter processos de modernização com potencial centrífugo, revitalizando o papel do Nordeste dentro de uma possível coalizão das oligarquias brasileiras.
Oliveira Vianna: reorganização das oligarquias no poder central
Oliveira Vianna notou a “autonomia de organização e subsistência” do “clã bandeirante” nos três primeiros séculos de colonização. Cada senhor de terras e escravos, “o caudilho”, mantinha sua própria capacidade coercitiva, que era usada tanto para a expansão da colonização interiorana como para o combate entre os próprios senhores. Essa capacidade coercitiva, segundo o autor, crescera mais que a capacidade coativa do poder público, permitindo que o senhor de terras e escravos ignorasse e desobedecesse ordens da metrópole. Oliveira Vianna considera esse quadro, de predomínio do poder pessoal sobre o poder do Estado e de rivalidades entre os senhores nas quais o Estado é incapaz de intervir, como uma situação de “anarquia branca”.
Para Oliveira Vianna, o movimento de centralização e cerceamento do “caudilhismo”, iniciado no século XVIII, teria sido interrompido após o fim do Primeiro Reinado com a promulgação do Código de Processo de 1832, o qual concedia novamente aos senhores locais o direito de nomeação jurídica municipal. Oliveira Vianna critica a medida por dois ângulos. Primeiro, pela sua origem: uma transplantação de leis originárias em outros países, sem a devida precaução sobre a sua propriedade na formação social brasileira. Segundo, por suas consequências: “dessa contrafacção do self-government americano não é, porém, a ordem que sai, como não podia sair; mas, sim, a intranquilidade, a violência, a desordem e, por fim, a anarquia” (Vianna, 1922, p. 234).
Esse é o principal problema sobre o qual se debruça Oliveira Vianna no livro Instituições políticas brasileiras: “o estudo dos complexos relativos às instituições de direito público e particularmente o problema dos ‘empréstimos’ de regimes políticos estrangeiros, através da imitação de suas Chartas ou sistema de normas constitucionais” (Vianna, 1987, vol. I, p. 65). Oliveira Vianna também chamava esses empréstimos de “imitação” ou “transplantação”. Para o autor, os liberais brasileiros de fins do século XIX, cujo principal expoente foi Rui Barbosa, teriam se eximido da tarefa de estudar historicamente a tradição política brasileira. Como consequência, esses liberais ignoravam a inadequação das instituições políticas anglo-saxãs ao “complexo cultural” brasileiro. Na prática, criava-se uma autonomia municipal sem formação do espírito público e de uma tradição democrática, levando ao fortalecimento dos poderes locais diante do poder central e ao reforço à “anarquia branca” (Vianna, 1987, vol. II, cap. I-II).
Perguntamos: se, como vimos acima, para Oliveira Vianna, o brasileiro do povo é um indivíduo que procura um chefe, que vive pacificamente sob a guarda deste, por que então conferir maior poder político local ao senhor causaria tantos danos? Porque é com a anarquia instaurada na relação entre senhores que Oliveira Vianna se preocupa. É a unidade deles em favor de uma ordem nacional que o autor objetiva. Esta que, para Oliveira Vianna, deveria ser realizada por cima, acomodando os interesses das frações regionais da classe dominante - sem que isto implicasse em superação da segregação social. Por isso o autor se refere à “desordem”, mas jamais à insubordinação do indivíduo comum ao seu senhor. Não é dessa insubordinação, para o autor, que sai a desordem. Nem poderia sê-lo, dado que o indivíduo do povo vive pacificamente sob a guarda de seu chefe.
Segundo Oliveira Vianna, os próprios liberais ficaram surpresos com o estado de desordem causado pela descentralização e recuaram através do Ato Adicional de 1834. A retirada dos poderes dos “caudilhos” locais, no entanto, não foi em favor do poder central, nacional, mas das províncias. Apesar de considerar os benefícios desse recuo, para Vianna essa solução mostrou outro perigo. O “caudilhismo” não desaparecera, apenas fora concentrado na província. Com isto nasce “o caudilho provincial, o chefe dos chefes da caudilhagem local. Hoje chamá-lo-íamos oligarca” (Vianna, 1922, pp. 238-239). Ainda mais poderosas, essas oligarquias significavam uma ameaça à vigência do poder central nas províncias.
Essa ameaça somente foi extirpada com a centralização realizada pelo Segundo Reinado. A partir da lei de interpretação de 1841, o poder central teria, segundo Oliveira Vianna, atingido o estado de “paz interior”, o “império do direito” e mantido e difundido “a ordem pública” por todo o país.
Da interpretação de Oliveira Vianna, depreendemos que, para atingir a “paz interior”, fora necessário apenas combater o poder do “caudilho”, primeiro o local e depois o provincial, pois a “única força viva do mundo político entre nós é o senhor de terras”. Controlar estes, “principalmente os dos pampas e os dos sertões, uns e outros dotados de extrema combatividade”, era toda a atividade necessária para manter a unidade nacional (Vianna, 1922, p. 247). Não se cogitava jamais considerar as insatisfações da população demonstradas com as revoltas da primeira metade do século XIX.
Em realidade, Oliveira Vianna enxerga todo o período de instabilidade política desde a independência até o Segundo Reinado como de ameaça à unidade nacional - à acomodação dos interesses das diferentes frações regionais da classe dominante -, uma ameaça fundamentalmente causada pelo desentendimento entre as frações locais ou provinciais da classe dominante. Mais precisamente, as revoltas eram resultantes da insubordinação dos senhores, sobretudo de outras regiões que não a Centro-Sul, caracteristicamente destemidos (Vianna, 1987, vol. I; p. 134).
Para Oliveira Vianna, interessava a unidade nacional realizada por cima; pelo contrato entre os senhores latifundiários; uma ordem pública que incorpora apenas a classe dominante. Ou seja, o controle do poder local através do poder público se efetiva mediante uma nova forma de realização do poder da oligarquia rural, agora concentrado no poder central (Vianna, 1922, p. 265).13 Oliveira não intencionava retirar do senhor de terras o poder político. Aliás, o autor não concebia a possibilidade de governar sem esses senhores, pois “Num país em que os elementos dirigentes têm esse relevo e essa estatura: ou se governa com eles, ou sem eles não se governa” (Vianna, 1923, p. 216).
Contudo, essa centralização, mesmo restrita às oligarquias regionais, também não é homogênea. Dado o caráter aguerrido dos oligarcas do norte e do sul, cabe ao senhor do Centro-Sul, verdadeiros representantes do caráter pacífico do brasileiro14, a tarefa da centralização (Vianna, 1922, p. 356).
Querendo conservar a forma de poder concentrada na classe de senhores de grandes domínios rurais, Oliveira Vianna louva o “absolutismo imperial de D. Pedro II” como a “melhor garantia da liberdade política de um povo” no qual “domina exclusivamente a política de clã” (Vianna, 1922, p. 269), elogiando-o como “nobre ditadura”. Ou seja, por trás do véu de garantia às liberdades do povo, o autor expõe, de fato, o autoritarismo como forma de garantir a governabilidade oligarca, cujo objetivo é assegurar a unidade nacional por cima, a unidade entre as frações regionais da classe dominante, acomodando os conflitos entre elas.
Segundo o autor, era necessário, primeiro, garantir o problema da autoridade, da ordem. E, para tanto, devia-se abdicar “dos excessos do liberalismo republicano ou os delírios do teorismo democrático, o que equivaleria para a nacionalidade a anarquia, a desintegração e a morte” (Vianna, 1922, p. 356).
Liberalismo político e democracia não eram vistos como pertinentes a toda a humanidade, mas como criações de outras culturas e, por isso, impróprios à sociedade brasileira. De acordo com Silva (2004), era comum entre os ideólogos do Estado autoritário dos anos 1920 imputar aos ideais liberais presentes na Primeira República a origem da situação de desordem então existente. Para Silva (2004), realizar uma análise conjuntural que identifica uma situação “catastrófica” foi um pré-requisito para a proposição de um Estado autoritário.
Disto resulta a valorização do período do Segundo Reinado e do conteúdo oligárquico do Império, “pois ao descrever a debilidade do sentimento de liberdades públicas e o artificialismo da ideia de Estado na mentalidade da população, sugere que a destruição do Império eliminou o único agente que poderia enraizá-los” (Brandão, 2007, p. 100). Esse agente, para Oliveira Vianna, é o poder central, que no Segundo Reinado era conduzido pelo Imperador. Desta maneira, ao mesmo tempo que o autor argumenta que o poder central é necessário para controlar os poderes municipais e das províncias, também concebe o poder central como representativo da “nobreza rural” e formado por elementos dela. A isso estamos denominando reorganização do poder oligárquico no centro.
A maior expressão dessa proposta de Oliveira Vianna, é seu argumento quanto a seleção dos “homens de 1.000”, cuja origem é a própria classe dominante, realizada pelo Imperador durante o Segundo Reinado. No capítulo sobre a seleção dos homens de 1.000 fica explícito que Oliveira Vianna valoriza um suposto equilíbrio entre duas tendências dentro dessa da “nobreza rural”: a tradição individualista consolidada na formação social brasileira, e a benevolência de alguns de seus membros a qual apenas o poder central pode fortalecer. Para usar as metáforas do autor, um equilíbrio entre os filhos de Marta e os de Maria. Os primeiros “levedam e fecundam […] a vida das sociedades, enchendo-a de muita coisa bela e preciosa”. Os filhos de Maria, benévolos, têm o papel de evitar as “imprevidências e excessos” da tradição individualista. O equilíbrio que se realiza por meio do fortalecimento do poder central (Vianna, 1987, vol. I, cap. XIV).
Portanto, ainda que para Oliveira Vianna a identidade nacional era uma obra a ser realizada, sobressai na interpretação do autor a valorização de elementos formados no passado: a placidez, a nobreza rural, e o equilíbrio entre a tradição individualista e a benevolência estimulada pelo poder central. Essas instituições teriam sido, segundo Vianna, abaladas pelas instituições liberais da República e pelo fim do regime de trabalho escravo, abrindo um período de “desorganização profunda e geral” (Vianna, 1922, p. 56). Estamos, assim, qualificando o que tem sido visto na bibliografia, a exemplo de Ricupero (2010), como uma dupla avaliação de Oliveira Vianna sobre o papel do latifúndio. Em nossa interpretação, o autor está propondo a coexistência entre o poder latifundiário e o fortalecimento do poder central.
A pretensão dessa narrativa histórica era valorizar os elementos herdados do passado como os instrumentos para a construção da identidade nacional. Uma proposta de identidade nacional construída a partir de cima e uma interpretação do passado que dissimula a violência constituidora da segregação social e garantidora do poder latifundiário.
Gilberto Freyre: a complementaridade das oligarquias regionais
O pensamento antiliberal e conservador brasileiro na década de 1920, que tinha em Oliveira Vianna talvez o seu maior expoente, creditava a marginalização de estados e suas respectivas camadas dominantes ao crescente poder das regiões cafeeiras. Todavia, o debate público não se prendia a questões estritamente objetivas (Mesquita, 2018, p. 29-ss.). A partir do tom altissonante próprio do calor do debate político, representantes do conservadorismo extrapolavam as dimensões mais circunscritas ao poder em direção a aspectos simbólicos. Articuladamente à disputa pelo poder, afirmavam que a modernização do país liderada pelas oligarquias cafeeiras apontava para a desagregação de tudo o que havia de melhor na cultura brasileira, como seria a sua capacidade de acomodar conflitos de classe, raça e região, entre outros (Freyre, 1936, pp. 513-514).
O teor ideologicamente carregado do debate público associava de maneira pejorativa as oligarquias cafeeiras, sobretudo a paulista, à modernização que atravessava todas as relações no país e que, sob os olhos conservadores, significava a implantação do caos numa terra tradicionalmente estável. Isto é, o aumento das tensões sociais e políticas eram diretamente associadas ao livre mercado, à impessoalidade da lei, ao trabalho assalariado, aos sindicatos e a outros aspectos que coincidiam com a ascensão da hegemonia do capital cafeeiro e, ao mesmo tempo, com a decadência das demais oligarquias, sobretudo as do Nordeste (Mesquita, 2018, p. 30-ss).
A busca por espaços às oligarquias que não se baseavam na economia cafeeira e a proposição de uma nova composição de forças conservadoras para estabilizar a estrutura de poder no Brasil era o rio subterrâneo que atravessava a obra de Gilberto Freyre.15 O seu apelo ao caráter nacional da cultura patriarcal representava justamente uma crítica à concentração do poder político e econômico por parte dos cafeicultores.
Na opinião de Freyre, era urgente resgatar costumes e práticas desenvolvidas por senhores de terras durante a escravidão para preservar a ordem. Nesse sentido, um dos eixos de sua proposta residia na identificação de que a plasticidade acomodava antagonismos e impedia que conflitos entre as oligarquias adquirissem maior radicalidade. Esses eram procedimentos fundamentais para a formação de articulações nacionalmente capilarizadas, unindo patriarcas em torno de atividades urbanas e rurais (Freyre, 1936, p. 200; p. 396-399).
A apresentação desse passado tentava legitimar o compartilhamento dos espaços nacionais de controle e de tomada de decisão com outras oligarquias no início do século XX (Freyre, 1937, p. 52). Em boa medida, a obra de Gilberto Freyre consiste em um exercício intelectual e político que valorizava a cultura patriarcal brasileira enquanto forma adequada para se dominar um país de proporções continentais e portador de uma estrutura economicamente especializada e socialmente heterogênea. O horizonte de Freyre era de que, sem o apoio dos diversos patriarcados regionais de um país ainda esmagadoramente rural, a oligarquia cafeeira não conseguiria reconduzir o país à acomodação das tensões, como se em algum momento de sua história o Brasil tivesse convivido com algum tipo de acomodação, tal como o autor enunciou. Freyre dissimulava, assim, a história social brasileira marcada pelo genocídio das populações indígenas e africanas escravizadas, o que revela um caráter profundamente paradoxal de sua obra.
O que a interpretação de Freyre sugeria era a revitalização do controle arbitrário e tutelar sobre as populações rural e urbana, apesar de essa tutela, como argumentamos na seção acima, não pudesse mais ser expressa sem constrangimentos. De tal modo, a incorporação das oligarquias marginalizadas dos centros de poder dentro de um novo pacto se baseava, em boa medida, na proposição de que o controle das tensões deveria ocorrer longe dos rigores da lei ou, de outro modo, dentro dos rigores do ambiente doméstico. Esta seria uma etapa fundamental para, por exemplo, determinar o alcance territorial e setorial das leis trabalhistas na medida em que estabeleceria os limites territoriais da modernização dos conflitos sociais que assombravam conservadores por todo o país.
As oligarquias marginalizadas dos centros de decisão precisavam apresentar elementos que justificassem a sua participação em um novo pacto político em torno do poder central e articulado às principais lideranças econômicas do país. Era necessário contribuir para o controle sociocultural de todos os grupos sociais organizados que traziam problemas ao avanço da concentração de poder e riqueza (Freyre, 1936, pp. 403-404).
Mais particularmente, as tensões sociais que emergiam no campo e nas cidades eram abordadas como uma ameaça à cultura patriarcal, e as oligarquias não admitiriam constrangimentos aos mecanismos que fundamentavam a preservação de seu poder. Não se autorizaria que se restringisse a sua maneira particularmente violenta de acomodar conflitos nem que se opusesse à sua versão da história que, perante todas as circunstâncias, deveria ser compreendido como um processo espontâneo e, pois, particularmente bom de se construir uma democracia. De tal modo, se pretendia falsear um passado caracterizado pela violência e pela exclusão, ao mesmo tempo em que se apresentava as tensões como frutos do modelo liberal implantado pelos cafeicultores nas fábricas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Isto é, a estratégia de Freyre para justificar um novo pacto oligárquico consistia, do ponto de vista discursivo, na mistificação do passado e do presente. A capacidade de controle social de uns, supostamente comprovada por uma paz social na colônia, preenchia a inépcia de outros, atestada pelo caos por qual o país passava.
A acomodação desses conflitos, que se baseava na visão de que o Estado seria uma versão ampliada do patriarca (Freyre, 1936, p. 475), necessariamente envolveria maior participação das oligarquias mais fortemente associadas à cultura patriarcal. Nesse sentido, o Nordeste, berço da cultura patriarcal brasileira e grande responsável pela sua preservação através dos séculos, teria um assento natural no Estado brasileiro que ajudara a construir e desenvolver desde, pelo menos, o Império. Em suas palavras, “foram os homens da Bahia e do extremo Nordeste que se tornaram, juntamente com os da baixada fluminense, os grandes senhores da política, da diplomacia e da administração do império […] adoçados pela civilização do açúcar; suavizados pelo chá tomado em pequeno” (Freyre, 1937, p. 183).
A amplitude do poder central se associava a uma atuação mais descentralizada que oferecia liberdade para que os poderes locais atuassem conforme suas tradições (Mesquita, 2018, pp. 213-214). De tal modo, as propostas de Freyre buscavam revitalizar o Pacto Oligárquico na medida em que propunha a incorporação do patriarcado rural como elemento fundamental da ordem. Numa conjuntura de grande inquietação social, inclusive no campo, era necessário interromper toda forma de contestação social, fosse à fórceps, ou integrando a cultura não-hegemônica à ordem legal, domesticando-a na medida do possível. Não se podia tolerar que o questionamento aos privilégios desestabilizasse a segregação social e a estrutura agrária, dois grandes pilares da estrutura de poder no Brasil (Bastos, 2006, pp. 198-199).
Era, portanto, a partir da cultura patriarcal fundada na colônia que se iria contrapor a modernidade “liberal” que ameaçava a capacidade das oligarquias de controlar o tempo social dentro do seu próprio domínio, o qual extrapolava o ambiente doméstico na medida em que o próprio poder central se confundiria com a ideia de um grande patriarca.
A ênfase sobre o Nordeste, portador de enorme população rural e economicamente incapaz de acompanhar a expansão industrial de São Paulo e Rio de Janeiro (Furtado, 1959), residia na sua capacidade para controlar o avanço da tensão social nos centros urbanos, que se adensavam rapidamente. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista discursivo, a região era fundamental para identificar os elementos genuína e patriarcalmente nacionais e utilizá-los como instrumentos de combate ao modelo “liberal” de gestão dos conflitos sociais e políticos no Brasil. A valorização dos critérios patriarcais de vida tinha como um de seus principais objetivos a definição e legitimação do estabelecimento das regras formais e não-formais das relações sociais no Brasil. Sobretudo, no que se refere à modulação e controle do ímpeto do movimento trabalhista no país, aos olhos de Gilberto Freyre era preciso reestruturar a fronteira entre a esfera pública e a privada. De outro modo, era necessário impor um ritmo mais lento à mudança das relações sociais no Brasil, ao que Gilberto Freyre, por exemplo, recorreu às tradições do tempo ibérico e em contraste à cultura anglo-saxã, associadas à modernidade capitalista que supostamente guiava o Brasil ao caos (Pallares-Burke, 2005).16
Em suma, a conciliação entre as oligarquias regionais no Brasil, de fato, representou uma possibilidade factível para controlar, de forma articulada, o ritmo da modernização no país. Essa estratégia favoreceria o controle de diferentes tempos e intensidades da mudança social, o que era fundamental para estabilizar uma estrutura de poder heterogênea que, a despeito da sua dinâmica comunicante tão bem observada por Gilberto Freyre, foi tantas vezes confundida como uma dualidade. Isto é, o controle das dinâmicas políticas e sociais dependia de uma variada gama de instrumentos e medidas, como seria o controle do fluxo de trabalhadores rurais para as cidades, assim como dependia do conjunto de leis que estabelecia as regras, ou a ausência delas, que definiam os direitos dos trabalhadores e a possibilidade de se acessar a propriedade da terra. Para tanto, era necessário articular as inúmeras dinâmicas locais dentro de um órgão central, o Estado nacional, que articulasse e assegurasse os privilégios das várias oligarquias brasileiras, com especial ênfase às das regiões Nordeste e Sudeste.
Considerações Finais
As interpretações desses dois ícones do pensamento conservador brasileiro apresentam muitos elos comuns. Para ambos, o principal objetivo repousava na repactuação da articulação entre as oligarquias regionais no Brasil, que naquele momento era dominada pelo café. Todavia, ambos compreendiam que alcançar este horizonte dependia do controle sobre as pressões sociais que emergiam em todo o país. Era preciso elaborar propostas, portanto, que evidenciassem as possíveis contribuições das diferentes oligarquias marginalizadas em um novo arranjo capaz de conter as tensões.
Ambos apontaram a superioridade do homem branco e, em particular, do patriarcado brasileiro sobre os demais tipos sociais. Todavia, a maneira como se apresentou o argumento é bastante diferente. Enquanto Oliveira Vianna explicitamente destacou a força como qualidade necessária para submeter e pacificar o povo, o que teria dado ao Brasil uma forma política avessa à democracia, Gilberto Freyre defendeu que o Brasil era uma civilização particular que lentamente rumava à construção da democracia. Isto é, a partir de um verniz democrático, propôs um controle violento aos que não se ajustavam à ordem e propôs uma adesão seletiva daqueles que se teme, o que seria mediado por uma maciça tutela sobre o povo pobre, sobretudo da população negra. Nesse sentido, se modernizou o discurso com o intuito de inibir o conflito como instrumento de construção da democracia.
De modo semelhante, as propostas dos autores para aproximar as oligarquias possuíam tanto continuidades como alterações profundas. Embora ambos vislumbrassem uma ordem social segregada a partir de critérios e tradições que remontam à colônia, havia grandes diferenças no tocante às formas de convivência social e ao “respeito” à hierarquia regional então prevalecente. Se, de um lado, Oliveira Vianna propunha que as oligarquias “do sul e dos sertões” fossem marginalmente integradas em um governo mais alinhado ao Centro-Sul, Gilberto Freyre propôs abertamente o protagonismo do Nordeste.
Em suma, a modernização do discurso conservador não apenas sofisticou e aperfeiçoou os mecanismos de controle social, como também aproveitou o peso da população rural do Nordeste no Brasil como instrumento econômico para acomodar, ao menos temporariamente, as tensões sociais.
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1
Em Racismo e cultura, Frantz Fanon (2018) destacou a necessidade do racismo em acompanhar a evolução das formas. Para ele, “O racismo não pôde esclerosar-se. Teve de se renovar, de se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cultural que o informava.” (p. 79). Embora este artigo não aborde “apenas” a necessidade do racismo se adaptar aos novos tempos no Brasil, mas a todo um sistema de dominação, a posição de Fanon é fundamental na medida em que demarca a percepção de que as estruturas de poder não conseguem sobreviver sem acompanharem e, na medida do possível, encapsularem, as mudanças históricas, reelaborando-as em seu benefício próprio.
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2
A partir de Fernandes (1965), entende-se que a segregação social no Brasil se processa para e pela população branca, que exclui os não-brancos, sejam estes indígenas ou negros, dos espaços de decisão e dos espaços de valorização social. Este processo envolve o uso de técnicas discriminatórias pela população branca com intuito de vedar que os demais estoques raciais, como diz o autor, acessem posições e espaços sociais valorizados e associados ao poder. Isto é, controlam-se horizontes culturais e formas de ser a partir da criminalização e/ou da discriminação de expressões culturais, como a capoeira, o candomblé e o samba, que não se identificam com os grupos sociais hegemônicos, fundamentalmente brancos. A segregação social, portanto, assume uma articulação complexa que envolve aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais em que se fecha o circuito que confere poder e viabiliza a valorização social apenas aos brancos.
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3
Florestan Fernandes (1975) associou o caráter antissocial das burguesias brasileiras, distribuídas entre as várias oligarquias regionais, ao que ele caracterizou como bloqueios a aspectos construtivos da ordem social competitiva. Isso significa que, para o autor, o processo amplo de modernização que poderia ter sido colocado em marcha por uma revolução verdadeiramente burguesa no Brasil foi preservado dentro de estreitos interesses materiais e de um horizonte cultural provinciano próprio das oligarquias, que tinha na manutenção de seus privilégios um dos seus principais denominadores comuns. Logo, o termo antissocial se refere precisamente à manutenção de uma determinada estabilidade do poder social, econômico, político e cultural.
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4
“Caudilhismo” é usado entre aspas no texto por ser uma expressão encontrada nos escritos de Oliveira Vianna.
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5
Valendo-se de Norbert Elias, Lima (1989) sugere que o termo civilização é geralmente usado para exprimir pretensões expansionistas em que a noção de cultura reflete a busca pelo controle de fronteiras políticas e culturais. Nesse sentido, a defesa da ideia de civilização exprimia a necessidade de se enquadrar as tensões dentro de parâmetros aceitáveis aos grupos sociais dominantes.
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6
Lima (1989, p. 198-205) observa não apenas que cultura e raça se equilibram como forças explicativas da interpretação de Gilberto Freyre, como também destaca que esse equilíbrio fundamenta uma cultura baseada em valores fluídos, isto é, na plasticidade. Afinal, a força cultural do português residiria na sua capacidade de se adaptar a diferentes climas, relevos, tipos raciais etc., o que em si mesmo seria um traço da sua formação étnica, baseada na mistura do europeu com o semita, o mouro etc. Ou seja, a raça é uma força constituinte da sua cultura e da sua herança para a cultura brasileira - o que em muito se assemelharia ao “evolucionismo conservador de Oliveira Vianna” (p. 207).
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7
É importante destacar que, para Gilberto Freyre, o termo usado para se contrapor a eugênico era cacogênico. Essa expressão abarcava todas as formas de ser e parecer que se afastavam da confraternização com os colonizadores portugueses e com o ser de modo sofisticado. O termo cacogênico, portanto, estava associado mais diretamente à força bruta, à rebeldia e outros traços similares.
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8
É importante destacar que a Lei dos 2/3 foi complementada por lei que estimulava a presença de estrangeiros nas zonas rurais do país, onde predominava uma ausência quase completa das leis trabalhistas, dado que as conquistas de direitos laborais se restringiam às ocupações tipicamente urbanas.
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9
A ampliação do escopo dos grupos sociais que seriam estranhos às tradições plásticas do Brasil foi apresentada de maneira mais decidida apenas em Ordem e Progresso, quando há uma apresentação mais exaustiva de pessoas brancas e de famílias eugênicas, digamos, que teriam sido subvertidas por ideologias estrangeiras. Porém, é importante destacar, Gilberto Freyre sugere explicitamente em várias passagens que as convicções oriundas de ideologias estrangeiras geralmente eram demolidas pela inércia das tradições patriarcais brasileiras, levando que pessoas que haviam sido radicais na juventude recobrassem a sensatez e passassem a adotar de modo progressivo posturas mais plásticas.
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10
Uma crítica a essa posição, que romantiza e legitima a interrupção dos conflitos sociais com potencial para instabilizar a ordem, se encontra em Florestan Fernandes. Esse autor denominou essa intolerância diante de potenciais e reais manifestações autônomas de contestação de “medo-pânico” (Fernandes, 1975, p. 25-251).
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11
Alguns trabalhos de história social oferecem insumos muito ricos para se pensar como o medo de que a população negra se organizasse e promovesse uma oposição organizada se acomodou em um período de avanço da contestação social e cultural às camadas dominantes. Um deles é o de Oliveira (2015), que apresentou informações sugestivas sobre a perseguição e tutela do Estado sobre o candomblé, tradicionalmente identificado com a organização das populações de matriz africana no Brasil durante a escravidão. Outro trabalho seria o de Liberac (2001), que identificou o esforço do Estado para se restringir a identificação da capoeira à signos de resistência cultural e orgulho dos povos originários da África. Além disso, de modo a identificar a tutela social sobre a população negra no Brasil no futebol paulistano, ver o trabalho de Streapco (2010).
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12
Por “continuidades modernizadoras” estamos querendo dizer que se continuou a perseverar pela manutenção do controle das estruturas de poder, mas incorporando novas técnicas de controle social. Isto é, a continuidade das tensões evidenciava a necessidade de adaptação dos grupos dirigentes, que deveriam não apenas compreender a insuficiências das antigas técnicas de mero desprezo cultural e perseguição policial, e deveriam buscar a sua modernização, que se refletiria jurídico-institucionais. De tal modo, observa-se que, era necessária uma aliança que desenvolvesse quais seriam os limites e as formas dessas novas técnicas.
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13
Essa reorganização do poder patriarcal no governo central é indicada por Carvalho (1993, pp. 29-30).
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14
“Populações Meridionais concentra-se, pois, na ‘evolução e estrutura das instituições políticas do grupo centro-meridional e, por extensão (dado o papel histórico desse grupo), do povo brasileiro em geral’; e pretende deixar de fora tudo o que, a juízo do autor, não tenha contribuído para a formação dessa mentalidade política”. (Brandão, 2007, p. 84).
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15
Parafraseando Antônio Candido (2001, p. 50), argumentamos que a narrativa do passado colonial de Gilberto Freyre sempre propôs, como um rio subterrâneo em sua obra, um horizonte para a estabilização da estrutura de poder daquele segundo quartel do século XX.
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16
Gilberto Freyre elabora o ethos do brasileiro, cuja originalidade não é superada em nenhum momento, mas apenas adaptada às novas circunstâncias: “Ao estabelecer relações entre sociedade, tempo passado e ethos (como fundamento de sua interpretação do Brasil), Gilberto Freyre cria um problema relativo à qualidade dos valores que, supostamente, seriam característicos dos brasileiros. Ora, se são característicos dos brasileiros, estamos diante de valores que batem mais forte em corações e mentes (Habermas, 1990) e servem para reunir e solidarizar seres humanos que individualmente enfrentam, dia a dia, as normas impessoais e abstratas das sociedades modernas. Seriam, então, valores próprios da construção de uma identidade nacional. Porém, se esses valores são identificados com valores típicos do modelo de uma sociedade definida como ‘tradicional’, Gilberto Freyre estaria operando de um ponto de vista estritamente sociológico, e interessado, talvez, na conservação de valores próprios de uma ordem tradicional” (Villas Bôas, 2006, pp. 35-36).
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Publicação nesta coleção
05 Set 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
03 Mar 2022 -
Aceito
28 Jun 2022