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Washington e a ordem hemisférica: explicações para a continuidade em meio à mudança

Washington and the hemispheric order: explanations for continuity amid change

Resumos

O artigo analisa os principais fatores que moldam as políticas dos Estados Unidos para assuntos hemisféricos no século XXI, situando-os historicamente no contexto das relações entre esse país e a América Latina. Enfatiza-se o papel dos Estados Unidos na liderança regional, nos laços com determinados países e sub-regiões, e aborda-se a resposta de Washington à proliferação de instituições regionais e a concorrência que podem fazer à Organização dos Estados Americanos (OEA). O estudo baseia-se em abordagens sobre a política externa dos processos decisórios, a fim de enquadrar e prever o futuro do entrosamento dos Estados Unidos com a América Latina.

Política externa dos Estados Unidos; Relações Interamericanas; Organização dos Estados Americanos; Instituições Regionais


This article analyzes the principal factors that are shaping U.S. policies toward Hemispheric affairs in the 21st century, situating these historically in the context of U.S.-Latin American relations. Emphasis is placed on the U.S. approach to regional leadership, to ties with particular countries and sub-regions, and to Washington's response to the proliferation of regional institutions and the degree to which these may compete with the Organization of American States. The study draws on approaches to the study of foreign policy making processes in order to frame and predict the future of U.S. engagement with Latin America.

U.S. Foreign Policy; Interamerican Relations; Organization of American States; Regional Institutions


PARTE I – ESTRATÉGIAS E POTENCIALIDADES DE ALGUNS PAÍSES PARA AS ORGANIZAÇÕES REGIONAIS

Washington e a ordem hemisférica: explicações para a continuidade em meio à mudança* * Este artigo, "Washington and the hemispheric order: explanations for continuity amid change", foi traduzido por Florencia Mendes Ferreira Costa.

Washington and the hemispheric order: explanations for continuity amid change

Philip BrennerI; Eric HershbergII

IProfessor de relações internacionais e de história na American University; PhD em ciência política pela John's Hopkins University

IIProfessor do Department of Government e diretor do Center for Latin American and Latin Studies na American University e ex-presidente da Latin American Studies Association

RESUMO

O artigo analisa os principais fatores que moldam as políticas dos Estados Unidos para assuntos hemisféricos no século XXI, situando-os historicamente no contexto das relações entre esse país e a América Latina. Enfatiza-se o papel dos Estados Unidos na liderança regional, nos laços com determinados países e sub-regiões, e aborda-se a resposta de Washington à proliferação de instituições regionais e a concorrência que podem fazer à Organização dos Estados Americanos (OEA). O estudo baseia-se em abordagens sobre a política externa dos processos decisórios, a fim de enquadrar e prever o futuro do entrosamento dos Estados Unidos com a América Latina.

Palavras-chave: Política externa dos Estados Unidos; Relações Interamericanas; Organização dos Estados Americanos; Instituições Regionais.

ABSTRACT

This article analyzes the principal factors that are shaping U.S. policies toward Hemispheric affairs in the 21st century, situating these historically in the context of U.S.-Latin American relations. Emphasis is placed on the U.S. approach to regional leadership, to ties with particular countries and sub-regions, and to Washington's response to the proliferation of regional institutions and the degree to which these may compete with the Organization of American States. The study draws on approaches to the study of foreign policy making processes in order to frame and predict the future of U.S. engagement with Latin America.

Keywords: U.S. Foreign Policy; Interamerican Relations; Organization of American States; Regional Institutions.

Este artigo analisa os principais fatores que moldam as políticas dos Estados Unidos para assuntos hemisféricos no século XXI, situando-os historicamente no contexto das relações entre esse país e a América Latina. Enfatiza-se o papel dos Estados Unidos na liderança regional, nos laços com determinados países e sub-regiões, e aborda-se a resposta de Washington à proliferação de instituições regionais e a concorrência que podem fazer à Organização dos Estados Americanos (OEA). O estudo baseia-se em abordagens sobre a política externa dos processos decisórios, a fim de enquadrar e prever o futuro do entrosamento dos Estados Unidos com a América Latina.

As relações dos Estados Unidos com a América Latina têm sido tradicionalmente caracterizadas por acentuados graus de assimetria. Desde a época da Doutrina Monroe, os Estados Unidos tendem a tratar a América Latina como seu "quintal", mesmo quando os líderes do país proclamaram os países da região como "bons vizinhos". Pior, às vezes, durante e depois da Guerra Fria, Washington via a América Latina como um laboratório no qual podia experimentar as táticas usadas posteriormente para subordinar outras regiões do mundo (Grandin, 2006). Ao longo da segunda metade do século XX, os objetivos econômicos, ideológicos e de segurança dos Estados Unidos reforçaram-se mutuamente, de tal forma a gerar uma paisagem emblemática dos diferenciais dramáticos de poder norte-sul.

Quando os governos latino-americanos resistiram a esse estado de coisas – como fizeram Cuba, a partir de 1959, Chile e Jamaica, durante os anos 1970, Nicarágua e Granada, durante a década de 1980 – a reação de Washington foi nítida e inequívoca.

Aos que desafiavam a hegemonia dos Estados Unidos esperava-se que "desaparecessem do planeta ao pôr do sol", parafraseando a caracterização do músico de rap Gil Scott Heron, sobre a postura do governo Reagan. Foi com esse espírito que o secretário de Estado Christian A. Herter deixou claro, em novembro de 1959, que o crime principal de Cuba foi desafiar a hegemonia dos Estados Unidos. Ele argumentou que seu país precisava derrubar o regime revolucionário de Cuba não porque fosse comunista (que não era), ou por causa de seus laços com a União Soviética (que ainda não existiam naquela altura). O confronto foi justificado porque Cuba "se desviou para uma direção ‘neutralista antiamericana de política externa que, se imitada por outros países latino-americanos, teria sérios efeitos adversos sobre o apoio do mundo livre à nossa liderança [...]" (United States. Memorandum from the Secretary of State, 1958-60). Perspectivas semelhantes guiaram formuladores de políticas dos Estados Unidos durante o restante da Guerra Fria, como ficou evidente no apoio de Washington a regimes amigos militares na América do Sul, dos anos 1950 aos anos 1980, e intervenções do país nos conflitos da América Central, na década de 1980.

Nas últimas décadas, é perceptível o processo de mudanças pelas quais o mundo vem passando. A Guerra Fria é agora um tema para historiadores e o capitalismo permanece, embora com diferentes graus de envolvimento do Estado na economia, em todo o hemisfério. Alguns latino-americanos alimentam aspirações sobre a transformação socialista de longo alcance, e há quase unanimidade quanto à oportunidade de desenvolvimento orientada para o mercado e a democracia eleitoral. Ainda assim, muitos governos da região resistiram com sucesso aos esforços das administrações George Bush (1989-1992) e Bill Clinton (1993-2000) para desenvolver uma zona de livre-comércio hemisférica sob os auspícios dos Estados Unidos.

Enquanto isso, a multipolaridade substituiu a paisagem unipolar que prevaleceu nas Américas durante a Guerra Fria. Tendo emergido de décadas de estagnação, o Brasil tornou-se uma grande potência regional, a sexta maior economia do mundo e um jogador visível nos assuntos mundiais. Mesmo sob uma sucessão de governos de esquerda, o Brasil procurou consolidar uma relação de cooperação com os Estados Unidos, consistente com a paisagem de mudanças do século XXI.

Apesar disso, muitos governos da região resistiram com sucesso aos esforços das administrações Bush e Clinton para desenvolver uma zona de livre-comércio do hemisfério sob os auspícios dos Estados Unidos. Mesmo em Havana, Caracas, Quito, La Paz e Manágua – capitais da aliança Alba onde um reflexo do antiamericanismo continua vibrante –, a retórica não viciou os esforços pragmáticos para manter ou desenvolver o comércio com os Estados Unidos e envolver o Brasil politicamente, diversificando concomitantemente o comércio, o investimento e os laços diplomáticos para outras partes do mundo. Ao mesmo tempo, em Washington, em um ambiente definido pela extensão imperial seguida das guerras de tributação no Oriente Médio e no sul da Ásia, a administração Obama proclamou desde o seu início um compromisso com a evolução das parcerias entre iguais nas Américas. A articulada mensagem da Casa Branca não tem sido tão apegada ao respeito e à reciprocidade desde o programa Aliança para o Progresso, que até então deveria ter sido um conjunto de assuntos hemisféricos distintamente diferente dos cinquenta anos anteriores.

No entanto, continuidades importantes resistem em meio a muitas mudanças e algumas delas resistem a explicações simples. Este artigo trata principalmente de uma dessas continuidades: a tendência dos Estados Unidos de continuar a negligenciar ou tratar como subordinados os países situados ao sul, tendência essa que perdura, apesar das intenções proclamadas pelo presidente Obama indicarem o contrário.

O artigo lida com esse aparente paradoxo, incidindo sobre as forças internas que impulsionam atitudes e políticas dos Estados Unidos em relação à América Latina1 1 Para visualização de quatro questões pontuais que possam estimular a atenção de um presidente dos Estados Unidos politicamente sensível, ver Lowenthal (2009). . Argumenta-se que, apesar dos desejos genuínos em algumas regiões de apertar o botão "reconfigurar" em posições políticas enraizadas em uma era de assimetria hemisférica, as forças importantes da política e da sociedade americanas moldaram os processos de formulação de políticas de forma a promover graus até então inexplicáveis de inércia no que diz respeito às relações dos Estados Unidos com a América Latina. A abordagem resultante para assuntos regionais – que prevemos se estenderá até o restante da segunda administração Obama, levando à frustração da América Latina – se tornou ainda mais aguda por causa do grau de otimismo que muitos líderes da região manifestaram sobre as perspectivas para os vínculos entre a América Latina e os Estados Unidos sob Obama.

Como as tensões estão cada vez mais presentes, uma tentação para Washington é optar por uma nova visão regional, conduzida por uma agenda comercial orientada para a Ásia e o Pacífico, como analisamos na penúltima parte deste artigo. Segundo essa abordagem, os Estados Unidos vão, tendo como base os acordos bilaterais comerciais existentes com o México, Colômbia, Peru e Chile, concentrar sua agenda regional em uma versão renovada do projeto neoliberal que, desde os anos Clinton, vinha sendo frustrada pela resistência sul-americana.

Como uma alternativa, não é totalmente impossível que o hemisfério adote um novo caminho, caracterizado pela cooperação e por parcerias em torno de um conjunto de questões prementes, incluindo energia, meio ambiente, desenvolvimento econômico e segurança, entre outros.

Mas um cenário muito mais provável, dadas as tendências na região e, em particular, as restrições na política de inovação nos Estados Unidos, é que o hemisfério irá bifurcar gradualmente em uma de duas maneiras: (1) entre os países latino-americanos do norte, ressentidos e subordinados aos Estados Unidos, e os do sul, que optam essencialmente por ignorar Washington; ou (2) entre os quatro principais países que fazem fronteira com o oceano Pacífico (Chile, Peru, Colômbia e México), que se esforçam para participar da nova Aliança do Pacífico em conjunto com os Estados Unidos e outros grandes países da região, que buscam uma causa comum por meio de instituições como a Unasul (União das Nações Sul-Americanas) ou a Celac (Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe) (Farnsworth, 2013).

Considerando que a agenda para o engajamento do Cone Sul e o Brasil é ditada em grande parte por aspirações econômicas, a abordagem de Washington para a América Central, e grande parte da região andina, é impulsionada por uma combinação da lógica da Guerra Fria e preocupações de segurança de curto prazo. Para explicar as continuidades que têm acompanhado as mudanças, examinam-se os condutores de políticas dos Estados Unidos para a América Latina, analisando as forças sociais que influenciam a política e as maneiras pelas quais os atores institucionais e os desafios da política definida nacionalmente dificultam o surgimento de formas alternativas de se engajar na região.

Isso é evidente nas atitudes americanas em relação a acordos regionais, especialmente na Organização dos Estados Americanos (OEA) e na Aliança do Pacífico. O futuro das relações da América Latina com os Estados Unidos deve ser analisado à luz de vários fatores. Um deles são as limitadas oportunidades disponíveis para uma administração que não tenha feito da América Latina uma prioridade e que é confrontada tanto por um Congresso como por filiais de burocracias executivas que impõem grandes obstáculos à mudança. Outro fator é que a persistência das ideologias econômicas sobre o comércio como uma panaceia para o desenvolvimento é um desafio não só para a América Latina como para os Estados Unidos. E um terceiro fator é um paradigma de segurança que parece impermeável à evidência empírica do fracasso.

Realismo em ação

Os sinais iniciais do presidente Obama sobre as relações entre Estados Unidos e América Latina eram de fato reprises de visões cooperativas que surgiram em meados da década de 1970, mas que foram descartadas em meio às turbulências na Nicarágua e em El Salvador, no final dessa década. As políticas da administração Clinton na região, desenvolvidas durante o momento de maior influência regional dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial – com a esquerda em desordem e o Consenso de Washington enquadrando decisões econômicas – não se afastaram de um paradigma realista. O mesmo aconteceu com as políticas do governo de George W. Bush, que retrataram a ascensão da Alba liderada por Chávez como um desafio inaceitável para os interesses dos Estados Unidos na região e, potencialmente, uma ameaça à segurança nacional. O triunfo eleitoral de Obama em 2008, no entanto, criou grandes expectativas de mudança.

Reforçando o clima de otimismo, a mensagem da campanha de Obama, "a mudança na qual você pode acreditar", ecoou em sua primeira apresentação na Cúpula das Américas, preparando o terreno para o que pareceu ser uma nova era nas relações entre Estados Unidos e América Latina:

Eu sei que as promessas de parceria não foram cumpridas no passado e que a confiança tem de ser conquistada ao longo do tempo. Enquanto os Estados Unidos têm feito muito para promover a paz e a prosperidade no hemisfério, temos, por vezes, sido desconsiderados, e, às vezes, buscamos ditar nossos termos. Mas eu prometo a vocês que nós buscamos uma parceria de iguais. (aplausos) Então, eu estou aqui para lançar um novo capítulo de alianças que vai ser sustentado ao longo da minha administração. (aplausos) (Obama, 2009).

Como os aplausos indicados na transcrição sugerem, o novo discurso foi recebido calorosamente pelos líderes da América Latina e do Caribe, tanto pelo reconhecimento de injustiças passadas, como pela promessa de criar conjuntamente uma agenda cooperativa para o hemisfério. Em muitos países latino-americanos, como em outros lugares do mundo, a própria persona de Obama como o primeiro presidente não branco sugere possibilidades sem precedentes enraizadas em uma nova capacidade dos Estados Unidos para criar empatia com potências menores.

No entanto, a atmosfera era outra, muito diferente, três anos depois, em Cartagena, na Colômbia, durante a Cúpula das Américas, quando a frustração da América Latina com a administração Obama irrompeu abertamente. Mesmo líderes dos países mais amigáveis lamentaram o fracasso de Washington para abordar as preocupações regionais sobre as suas políticas antinarcóticos ou a hostilidade com relação a Cuba. Enquanto o presidente dos Estados Unidos lamentava o grau em que alguns de seus colegas da região pareciam estar presos a uma mentalidade da Guerra Fria, foram as políticas e os discursos dos próprios Estados Unidos que não conseguiram evoluir para refletir as condições do século XXI. Em meados de 2013, a cascata de revelações sobre operações de espionagem na América Latina, promovida pela Agência de Segurança Nacional norte-americana, forneceu mais evidências de uma mentalidade imperial que continua vigente. O tumulto generalizado sobre a interceptação do avião do presidente boliviano Evo Morales na Europa, por causa de suspeitas dos Estados Unidos de que o ex-agente de segurança Edward Snowden poderia estar a bordo, evidenciou o abismo crescente entre os Estados Unidos e grande parte da região.

Com a administração Obama agora em seu segundo mandato, um "novo normal" parece ter sido estabelecido nas relações entre América Latina e Estados Unidos. Na maioria dos aspectos, a posição de Washington para a região parece ter mudado pouco em relação à política que prevaleceu noúltimo meio século. É uma abordagem que ainda tenta criar e impor controle hegemônico dos Estados Unidos por meio de três maneiras essenciais: (1) a agenda econômica dos Estados Unidos está concentrada em grande parte da chamada liberalização do comércio, com os principais componentes do Consenso de Washington ainda na linha da frente; (2) a agenda de segurança dos Estados Unidos enfatiza a integração de militares latino-americanos com o país e promove respostas militarizadas para o crime organizado e o tráfico de drogas com base em um proibicionismo e em um dogma antinarcótico; (3) a agenda política afirma visar à promoção da democracia de acordo com a Carta Democrática Interamericana, mas apenas alguns países são considerados falhos por seu autoritarismo, enquanto toleram-se golpes contra líderes democraticamente eleitos em outros casos, sugerindo que a agenda política real dos Estados Unidos apoia governos que aceitam sua liderança hemisférica e que não representam nenhum desafio.

A implementação de uma política hegemônica no que diz respeito a determinados países tem suas sutilezas. Por exemplo, a administração Obama tem sido menos abertamente cortante com o Brasil do que no passado, reconhecendo seu óbvio poder econômico. Quando o centro-esquerdista candidato Mauricio Funes Cartagena tornou-se presidente de El Salvador, em 2009, Washington aceitou graciosamente a sua ascensão ao poder. Por sua vez, Funes retribuiu o gesto apoiando os Estados Unidos na sua posição de não condenar o golpe em Honduras em 2009. Apesar dessas anomalias menores, a prática da administração Obama para a América Latina está mais marcada pela continuidade do que pela mudança.

Explicação sobre a continuidade da política de Obama

A política externa tem sido muitas vezes caracterizada como uma arena na qual a estabilidade é a regra e a mudança, a exceção. Como o teórico político Charles Hermann (1990, p.8) nota: "qualquer mudança política externa deve superar a resistência normal em estruturas e processos políticos, administrativos e de personalidades". Organizações burocráticas que lidam com a política externa têm sido muitas vezes citadas como barreiras à mudança, exigindo significativa mobilização da vontade política e recursos "para superar ou contornar as estruturas organizacionais e os processos comprometidos com a manutenção da política existente" (Herman, 1990, p.11). Outros teóricos, como Dan Wood e Jeffrey Peake, concentraram-se em fatores de restrição da ação presidencial, já que temas de política externa são frequentemente preteridos por questões que recebem maior atenção do público.

Apesar da percepção de uma ampla autoridade executiva para gerenciar a política externa, observa-se uma "economia da atenção presidencial, que se rege pelas realidades da escassez de recursos e esforços racionais, para angariar a aprovação pública favorável e o tratamento histórico", já que presidentes lutam para equilibrar interesses nacionais competitivos e manter sua popularidade (Wood e Peake, 1998, p.181). Em comparação com as questões internas, as de política externa raramente são ligadas aos círculos eleitorais vocais e aos poderosos grupos de interesse diretamente afetados pela política. Em parte, como resultado, "paradigmas de política" na arena dos negócios estrangeiros são particularmente resistentes à mudança, mesmo em meio a evidências de falha política (Hall, 1993, p.279).

Hermann identifica quatro fontes diferentes de mudanças políticas significativas. Em sua formulação, a mudança pode ser impulsionada por: (1) o "líder", ou seja, o presidente, que "impõe a sua própria visão do redirecionamento básico necessário na política externa"; (2) "defesa burocrática", na qual burocratas em posições-chave recebem sinais de que a política atual não está funcionando e criam a mudança; (3) "reestruturação interna", que ocorre quando"elites com poder para legitimar o governo querem mudar suas opiniões ou alternar-se na composição"; (4) "choques externos", "que resultam de acontecimentos dramáticos que remodelam significativamente o contexto em que a política é formulada" (Herman, 1990, p.11 e 12). Revendo cada um desses fatores no caso da política para a América Latina sob Obama, torna-se claro por que não ocorreu mudança no paradigma da política, como veremos a seguir ao desenvolver esses quatro itens.

O presidente e a Casa Branca

A Casa Branca insistiu em assumir a liderança da formulação da política para a América Latina, mas o principal conselheiro para a região até meados de 2012 (Dan Restrepo) não tinha experiência. Poucos atores importantes respeitavam seus julgamentos. Na verdade, o presidente recorreu a uma velha mão latino-americana, o embaixador Jeffrey Davidow, para organizar a participação dos Estados Unidos na Cúpula das Américas de 2009, papel que anteriormente teria sido responsabilidade do Conselheiro de Segurança Nacional para a América Latina. Além disso, os conselheiros políticos do presidente focavam cálculos eleitorais nacionais e estes dominavam a tomada de decisões em direção a uma região onde Obama não tinha experiência prévia e exibiu pouco interesse pessoal. Na ausência de uma visão estratégica para o entrosamento com a América Latina ou mesmo de uma inclinação para priorizar vizinhos do sul, e distraído pelas preocupações urgentes em casa e em outros lugares ao redor do globo, a opção padrão seria se aproximar da região para minimizar o atrito potencial com um punhado de setores domésticos influentes que tinham algum grau de interesse na política da América Latina.

O clima político em torno da presidência de Obama simboliza as maneiras pelas quais as questões prementes podem expulsar qualquer assunto particular de política externa, eliminando a possibilidade de uma mudança "conduzida por um líder" no caso do envolvimento dos Estados Unidos com a América Latina. Obama assumiu o cargo em meio a duas guerras asiáticas, um colapso financeiro e uma rede de bem-estar social desgastada, que funcionava mal. Diante de tais questões urgentes, a reforma da política dos Estados Unidos para a América Latina não estava na vanguarda do interesse do público nem do presidente e nem mesmo da equipe do núcleo de política externa. Dada a"economia da atenção presidencial" para as questões que irão determinar a popularidade do presidente, priorizadas na agenda presidencial, grande parte da política herdada de Bush foi simplesmente mantida.

A continuidade da política sob Obama resultou não só da falta de atenção por parte de um presidente dominado por assuntos mais urgentes, mas também de pressões geradas por atores que prestam considerável atenção às maneiras pelas quais os Estados Unidos se envolvem com a região. Uma mudança substancial da política de Obama não teria requerido apenas superar a inércia, removendo a atenção para longe de questões políticas mais prementes para reconsiderar e reorientar a posição do país, mas também superar essas influências poderosas.

Obama encontrou enorme oposição política na promoção de uma reforma significativa do sistema de saúde, a propósito, um dos maiores (ainda que insuficiente) pacotes de estímulo econômico na história dos Estados Unidos. Também enfrentou oposição ao empurrar o aumento da regulação do setor financeiro e ao estabelecer prazos para a retirada de tropas tanto do Iraque como do Afeganistão. Todas essas questões implicaram duras negociações e compromissos, e a forma como foram apresentadas na mídia do país recebeu grande atenção dos eleitores. Ao explicar a questão da "inércia", que muitas vezes define o tratamento presidencial de questões de política externa, Wood e Peake (1998, p.174) notam que "as criaturas políticas, os presidentes estão sempre conscientes dos riscos associados a ignorar ou assistir a novos problemas políticos".

Burocracia

Obama tinha pouca ajuda do Poder Executivo na formulação de uma política coerente. O bureau de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado (Western Hemisphere Affairs – WHA) foi prejudicado pelas maquinações de alguns senadores, especialmente Jim DeMint (republicano da Carolina do Sul) e Robert Menendez (democrata de New Jersey), que usaram suas prerrogativas senatoriais para "segurar" as nomeações de Arturo Valenzuela, como secretário-adjunto de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental, e de Thomas Shannon, como embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Como resultado, a secretária de Estado Hillary Clinton foi forçada a depender ad hoc de funcionários de fora do WHA, e, de fato, a política em si tornou-se ad hoc.

Uma série de atores resistentes a uma mudança da política também pode ser encontrada dentro do próprio Poder Executivo, já que muitos dos principais players que lidam com a política da América Latina na administração Obama têm se empenhado na elaboração dessa política na última década ou mais, enquanto os recém-chegados não eram uma presença forte em Washington nem do ponto de vista burocrático, nem intelectual. Nesse contexto, a "defesa burocrática" era uma fonte improvável de mudança política sob o governo Obama. Ao contrário, os burocratas da administração serviram para promover e impulsionar o paradigma da política dominante.

Um exemplo é a total continuidade do Plano Mérida, tanto do ponto de vista lógico como de conteúdo, ou seja, o pacote de política de segurança antinarcóticos, que se estendeu sob a administração Bush em resposta à propagação do crime organizado e da impunidade no México e na América Central. Apesar da ampla evidência sugerindo que as políticas foram exacerbando a insegurança e minando a governança democrática, tanto em Washington como em embaixadas dos Estados Unidos de toda a região, defensores burocráticos das agências de combate aos narcóticos, de inteligência e militares, apegados às suas armas, promoviam a continuidade da política. Outro exemplo foi a tendência das autoridades norte-americanas de reagir em vez de ignorar a retórica inflamada de líderes da Alba.

Outro exemplo especialmente infeliz de continuidade surgiu na América Central, onde o tempo e, novamente, ecos do passado repercutiram nas relações bilaterais. Apesar da simpatia da Casa Branca pelo governo do presidente Funes, de El Salvador, o pessoal do Departamento de Estado e da embaixada dos Estados Unidos em San Salvador não poderia ignorar a base política do presidente da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), partido político derivado da insurgência contra o qual os Estados Unidos declararam guerra durante os anos 1980 e 1990. Encorajado pela resposta dos Estados Unidos ao golpe militar de 2009 em Honduras e à destituição, em junho de 2012, do presidente do Paraguai, Fernando Lugo Méndez, o partido de oposição de direita manobrou para tirar vantagem de um confronto entre o Congresso de El Salvador e o Judiciário, para sugerir que o governo Funes havia ameaçado a sobrevivência da democracia – e, assim, implicitamente, convidando a um golpe de Estado. Nesse momento, a embaixada dos Estados Unidos e o Departamento de Estado emitiram declarações que pareciam apoiar os golpistas. Dessa forma, respondiam, em parte, às pressões de senadores como Menendez e Marco Rubio (republicanos da Flórida), apoiados fortemente pelo lobby linha-dura de Cuba. A resposta tépida do governo ao golpe hondurenho havia sinalizado a possibilidade de que direitistas do Congresso, em vez de potenciais reformistas do Poder Executivo, iriam apoiar as elites da América Central a desestabilizar a balança de poder em seus países. Que a resistência à mudança foi bem além de governos de esquerda, isso ficou evidente na rejeição agressiva do Departamento de Estado à mera sugestão do presidente da Guatemala Otto Pérez Molina – ecoada por vários governos da região – de que o paradigma da proibição das drogas precisava ser repensado em sua totalidade.

A política em relação à Colômbia oferece outro exemplo do poder da inércia. O secretário Valenzuela atuou como principal conselheiro de Segurança Nacional para Assuntos do Hemisfério Ocidental na Casa Branca, durante o governo Clinton, em um momento em que o plurianual Plano Colômbia foi concebido e implementado pela primeira vez como um componente importante da política dos Estados Unidos na América do Sul, eventualmente canalizando quase US$ 7 bilhões em um pacote abrangente de programas contra o tráfico de entorpecentes e grupos insurgentes. Como senador (democrata de Delaware), o vice-presidente Joseph Biden também tinha desempenhado um papel importante na formação original do Plano Colômbia, que enfatizava a militarização em maior medida do que o presidente colombiano Andrés Pastrana Arango tinha proposto. No debate parlamentar dos anos 2000 sobre o financiamento do plano, Biden foi um defensor democrático importante da posição de Clinton, argumentando veementemente contra a alteração proposta pelo senador Paul Wellstone (democrata de Minnesota) de diminuir a ajuda militar do Plano Colômbia e comprometer recursos adicionais dos Estados Unidos para a redução das drogas. O senador Biden afirmou que baseou sua posição em uma viagem à Colômbia, durante a qual havia passado "dois dias, 24 horas por dia" com o presidente Pastrana. A respeito disso, o senador declarou:

Temos um presidente que compreende que sua democracia está em jogo. Ele está disposto a arriscar sua vida, não figurativamente, literalmente [...]. Meus colegas, é muito básico. Há muita coisa em jogo [...] nós temos uma obrigação, no interesse dos nossos filhos e no interesse do hemisfério, para manter a mais antiga democracia em seu lugar, para dar-lhes uma chance de lutar para que evitem se tornar um Narcoestado. Lembrem-se de minhas palavras, se eles perderem, vamos colher uma tempestade no hemisfério sobre questões que vão muito além das drogas. Incluirá o terrorismo e uma série de questões sobre as quais não havíamos pensado (Congressional Record Daily, 2000).

Assim, mesmo antes dos ataques de 11 de Setembro, Biden articulou e defendeu uma moldura para a parceria entre Estados Unidos e Colômbia que tivesse como foco o contraterrorismo e não as ações contra os narcóticos.

Política interna

Na ausência de iniciativas do Poder Executivo, o Congresso dos Estados Unidos aproveitou a oportunidade para moldar a política para a região. O presidente Obama deu ordens para relaxar as restrições às viagens e às transferências de remessas de cubano-americanos à sua pátria. Mas ficou muito aquém do que os membros da OEA exigiam – restaurar a adesão de Cuba à organização e acabar com a política de hostilidade – ou o que as grandes mudanças ocorridas em Cuba poderiam ter gerado em resposta. A política de Cuba foi dominada na Casa por Ileana Ros-Lehtinen, uma republicana da Flórida que se tornou presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara em 2011 (e foi integrante do Comitê de Minoria em 2009 e 2010), e no Senado pelo senador Menendez, que adotava virulenta oposição ao governo cubano.

Da mesma forma, no caso de Honduras, membros ultraconservadores do Senado – liderados pelo senador Demint, como descrito acima – enfraqueceram a credibilidade do compromisso anunciado pelo presidente Barack Obama para a democracia. Eles mantiveram como refém a nomeação de Valenzuela e Shannon, exigindo que o presidente apoiasse o regime hondurenho que chegou ao poder em 2009 depondo Manuel Zelaya, o presidente democraticamente eleito, e ignorando a repressão assassina à dissidência que se seguiu ao golpe de Estado. Com a reprise da retórica da Guerra Fria, os conservadores tentaram situar as relações entre Estados Unidos e América Latina dentro de um paradigma de política maior, que classificou o poder usurpador da "esquerda" na América Latina como uma ameaça fundamental para os interesses norte-americanos.

O caso da Colômbia mais uma vez é um exemplo ilustrativo. O governo do presidente Alvaro Uribe Vélez foi escalado como um importante aliado dos Estados Unidos no meio de líderes socialistas hostis na Venezuela, na Bolívia, e, em certa medida, no Equador. Os Estados Unidos tiveram de ajudá-lo a se defender das forças revolucionárias de esquerda dentro de suas próprias fronteiras. Referindo-se às Farc como "rebeldes de esquerda", Ros-Lehtinen pediu o reforço das relações com a Colômbia por meio do aumento da cooperação militar, "quando os interesses dos Estados Unidos em todo o hemisfério estão sob ataque" (Congressional Record Daily, 2009).

Houve esforços de um grupo do Partido Democrata, no Congresso, e de organizações não governamentais com o objetivo de chamar a atenção para os graves problemas inerentes às posições do presidente Obama, e gerar pressão política para a mudança. Mas, apesar disso, não houve ações reais para modificar a política. No entanto, poderosos atores políticos opostos a qualquer mudança de paradigma da política procuraram ligar a América Latina a eleitorados nacionais importantes.

Atuando para um bloco de votação conservador da Flórida, os republicanos Ros-Lehtinen e Connie Mack, esse último integrante sênior do Subcomitê do Hemisfério Ocidental da Casa Branca, fizeram críticas abertas ao presidente Hugo Chávez e a outros chamados thugocrats [líderes de governos criminosos e fraudadores] latino-americanos centrais às suas agendas políticas. Depois da eleição de Obama, Mack patrocinou ou copatrocinou três projetos de lei relacionados com a Colômbia. Dado o status da Flórida como um estado que funciona como uma balança, cujo substancial número de votos tem desempenhado o papel histórico de eleger ou derrotar presidentes, os dois republicanos eram vistos como detentores do potencial para representar elevados custos políticos para qualquer reforma política que envolvesse as relações entre Colômbia e Estados Unidos.

Ao ligar o Acordo de Livre Comércio da Colômbia (Colombia Free Trade Agreement – CFTA) à redução do desemprego, os membros republicanos do Congresso também se esforçaram em relacionar a política dos Estados Unidos para a Colômbia a uma questão de fundamental importância para praticamente todos os setores domésticos, embora os defensores domésticos primários do CFTA fossem as corporações multinacionais que ganhavam significativamente a partir de sua aprovação. Jogando com a opinião pública, no meio de uma crise econômica aguda, senadores republicanos e representantes usaram discursos, resoluções e cartas para descrever o CFTA como uma maneira rápida e sem custo de criar empregos nos Estados Unidos e opor resistência potencial ao Executivo para a sua aprovação. Como o republicano, representante da Califórnia, Dreier afirmou:

Temos uma taxa de desemprego superior a 10% e pensamos – tanto democratas como republicanos – que é uma ideia muito boa para o presidente se concentrar na criação de empregos e no crescimento econômico. [...] Ele tem uma excelente oportunidade para adotar o caminho que eu acredito que seria o mais forte, o mais ousado e o mais dinâmico para o crescimento econômico, e isso significa enviar para o Capitólio três acordos comerciais pendentes: Panamá, Colômbia e Coreia do Sul (Congressional Record Daily, 2010).

Poderíamos ter esperado o crescimento da população latina nos Estados Unidos para criar pressão social a fim de recalibrar as relações com a América Latina, mas essa comunidade é dividida. Cubano-americanos se concentram em Cuba ou em países que acreditam ser aliados de Cuba. Mexicano-americanos, o maior segmento de latinos étnicos, tendem a não se concentrar em política externa e a se preocupar com questões domésticas, como a economia, o emprego, o acesso aos cuidados de saúde e educação, e com a imigração. Mesmo quando os latinos não cubanos se preocupam com questões de política externa, a administração Obama tende a ignorá-los, assumindo que eles não vão votar em republicanos.

Choques externos

Com relação à Colômbia vários choques podem ter atingido a política, inclusive o fato de o governo colombiano cometer graves violações aos direitos humanos, o ressurgimento de grupos paramilitares, a extensa evidência de continuidade nas conexões governamentais com os paramilitares, os níveis recordes de produção de coca andina em um momento em que o apoio antidrogas dos Estados Unidos também estava perto de seu pico, e o escândalo envolvendo o serviço de inteligência interna da Colômbia, o Departamento Administrativo de Segurança (DAS, na sigla em espanhol) em 20092 2 Sobre o escândalo envolvendo paramilitares infiltrados no DAS, matando um acadêmico e espionando oponentes do presidente Uribe, ver BBC News: Latin America and Caribbean (2011). .

No entanto, nenhum desses fatores exógenos representou um choque suficiente para impulsionar a grande mudança política, exemplificando que os paradigmas de política externa podem suportar os "testes de realidade" de dados que demonstram o fracasso da política. Hall (1993, p.280) sugere que – embora "um paradigma de política possa ser ameaçado pelo aparecimento de anomalias, ou seja, pelos desenvolvimentos que não são totalmente compreensíveis [...] dentro dos termos do paradigma" –, muitas vezes, eles são ampliados para incorporar tais anomalias. Ao insistir sobre a eficácia da política dos Estados Unidos para a Colômbia com relação ao alcance de uma série de objetivos estabelecidos e, geralmente, desculpando a violação de direitos humanos do governo colombiano, o presidente Obama, de forma eficaz, desviou a atenção de acontecimentos que poderiam ser catalisados em uma mudança política para uma dimensão diferente da que havia sido estabelecida pelas duas administrações anteriores. No que diz respeito às metas de redução de medicamentos e estratégias da política, relatórios de peritos sobre a "manipulação de dados e diagnósticos [...]", a fim de consolidar o "sucesso da estratégia", sugerem que as autoridades americanas têm-se esforçado para moldar a realidade a fim de adequá-la ao paradigma da política (Meza, 2010).

A política sob Obama se torna mais fácil de entender quando se compreende os paradigmas da política externa dos Estados Unidos como resistentes à mudança, moldada por atores e grupos entrincheirados "nos bastidores". Essa política é alterada apenas quando potenciais "condutores" de mudanças – decorrentes da liderança executiva, da burocracia da política externa, do eleitorado nacional, ou de choques externos – intervêm para superar a inércia política geral. Dada a "economia da atenção" e o limitado capital político do presidente, bem como a falta de peso da política externa para a América Latina do ponto de vista da maior parte da população do país, não é surpreendente que Obama não use essa influência limitada para empurrar uma mudança na política para a América Latina, uma região sobre a qual os eleitores americanos tendem a prestar pouca atenção. Na América Latina, ele teria certamente enfrentado resistência significativa, inclusive de políticos titulares que dominam um dos Estados americanos mais críticos para manter a presidência. Tampouco é provável que o impulso para a mudança política viesse de uma política externa burocrática, composta principalmente de atores que, em administrações anteriores, desempenharam papéis-chave na definição e na promoção do quadro que definiu as relações entre Estados Unidos e América Latina na última década. Finalmente, a relação fundamental com a Colômbia, assim como com o México, envolvido em violência e criminalidade, exemplifica como a política externa dos Estados Unidos é resistente às "anomalias" empíricas que devem desafiar sua validade. Em vez de reavaliar o paradigma de política para levar em conta essa realidade, os políticos, sob Obama, insistiram no sucesso do quadro, a ponto de negociar os fatos para se ajustar à teoria. A inércia prevaleceu sobre a mudança que talvez se acreditasse que um dia aconteceria.

Uma estratégia emergente dos Estados Unidos direcionada ao regionalismo?

A inércia em Washington não implica uma ausência de mudança nas relações entre Estados Unidos e América Latina. De fato, o terreno das relações internacionais no hemisfério permanece em estado de mudança. Padrões de interação da América Latina com o país serão dependentes de uma série de fatores, trajetórias abrangentes de relações bilaterais e da tendência de mudanças rápidas no cenário do regionalismo. Com relação aos fatores específicos de cada país, será especialmente significativa a dinâmica de cooperação entre Estados Unidos e México sobre questões relacionadas com a segurança sob o governo Peña Nieto, devido ao antagonismo popular ao Plano Mérida, bem como os resultados das eleições presidenciais na Colômbia, El Salvador e Honduras durante 2014.

No que diz respeito às configurações regionais, incertezas não faltam. Uma delas diz respeito ao destino da Venezuela liderada pela aliança da Alba, a qual sucessivas administrações dos Estados Unidos têm combatido, na sequência da morte do presidente Chávez, em março de 2013. Outra se relaciona com a trajetória dos blocos e das organizações regionais que surgiram nos últimos anos, como a Unasul e a Celac – que excluem Estados Unidos e Canadá –, e com a relação entre essas entidades e a OEA.

Tradicionalmente, a OEA havia sido o instrumento preferido de Washington para a cooperação hemisférica, uma reivindicação que persiste na imaginação dos países da Alba que se irritaram com as pressões dessa organização sobre questões relacionadas com os direitos humanos. Na realidade, as administrações recentes dos Estados Unidos têm feito pouco para reforçar a relevância da OEA e vêm minando repetidamente a liderança do secretário-geral José Miguel Insulza. A fracassada Cúpula das Américas, em Cartagena, em 2012 – durante a qual o presidente Barack Obama foi pego totalmente de surpresa pela crítica em coro dos países latino-americanos sobre a política de drogas, Cuba e outras questões –, ressaltou o grau em que a OEA tem sido enfraquecida e deixado de servir como uma ferramenta para a hegemonia norte-americana.

A disposição do governo de Obama em atender às concessões políticas exigidas por parte dos governos latino-americanos, especialmente com relação à participação de Cuba, irá determinar se haverá outra cúpula da OEA em 2015, ou se, em vez disso, deixará de existir um local institucional para reunir os líderes de todos os países do hemisfério. Oficialmente, o Executivo continua empenhado na OEA, citada por um porta-voz do Departamento de Estado em 2013 como "a organização multilateral preeminente, que fala para o hemisfério"3 3 Mark Toner, porta-voz do Departamento de Estado, citado por Zolotoev (2011). . Mas espera-se resistência do Congresso e da burocracia, e, possivelmente, do secretário de Estado John Kerry, que ainda no Senado juntou vários de seus colegas de ambos os partidos políticos para publicar uma carta aberta ao Departamento de Estado em 2012, alegando que a OEA "está deslizando para uma paralisia administrativa e financeira" que poderá levar à sua "irrelevância" (Gómez, 2013).

Se os Estados Unidos são ambivalentes com relação à OEA, o prestígio da organização é ainda mais tênue para os países da Alba, para Cuba e, cada vez mais, para o Brasil. É nesse contexto que alguns latino-americanos defensores do fortalecimento da Unasul e da Celac veem essas entidades como facilitadoras de um aprofundamento da autonomia dos Estados Unidos. Washington tem sido cauteloso para não desafiar abertamente as iniciativas latino-americanas, mas alguns funcionários expressam privadamente desconforto por terem sido excluídos das discussões regionais conduzidas pelo Brasil e pela Venezuela. Essa preocupação pode explicar por que a administração Obama manifestou interesse em renovar os laços com os principais aliados latino-americanos sob a rubrica de mecanismos regionais de cooperação voltados para o interesse comum na Ásia e no Pacífico.

A aparente mudança para situar as relações da América Latina em um contexto mais amplo da Ásia-Pacífico tem sido largamente apresentada em termos econômicos, em vez de considerá-la pelo viés das políticas internas, embora represente também uma resposta ao aumento de vinte vezes do comércio da China com a região ao longo dos últimos quinze anos4 4 Ver Hershberg, "The global crisis and Latin American economies: an overview of impacts and responses". . Há também um sinal inequívoco de que a liberalização do comércio continua a ser um princípio fundamental de orientação do pensamento dos Estados Unidos sobre as relações econômicas no hemisfério, e, com efeito, permanece um paradigma que tem se destacado por décadas. O eixo central dessa mudança é a Parceria Transpacífico (Trans-Pacific Partnership – TPP), também conhecida como Acordo de Parceria Econômica Estratégica Transpacífico: um acordo de livre-comércio multilateral que visa reduzir as barreiras tarifárias e não tarifárias para impulsionar o comércio e o investimento. Originalmente formado por Chile, Brunei, Nova Zelândia e Cingapura, em 2006, hoje, mais cinco países estão negociando a participação no grupo: Austrália, Malásia, Peru, Estados Unidos e Vietnã. Outros, como o México, a Colômbia, o Canadá e o Japão, consideram fazê-lo.

Falando em uma conferência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em 2013, o subsecretário de Comércio Internacional dos Estados Unidos, Francisco Sánchez, se referiu

[...] ao quadro para o acordo da Parceria Transpacífico como um marco de realização porque ele contém todos os elementos considerados desejáveis para acordos comerciais modernos: remove todas as barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio, tem uma abordagem regional para promover o desenvolvimento da produção e da cadeia de suprimentos, e facilita a burocracia reguladora, limitando os fluxos transfronteiriços (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

O grau em que a Parceria Transpacífico tornou-se central para a visão dos tomadores de decisões políticas e para os laços dos Estados Unidos com a região é evidente em declarações oficiais. A repórteres – depois da visita do presidente Obama ao México e à Costa Rica, em maio de 2013 –, o conselheiro de Segurança Nacional para a América Latina, Ricardo Zuniga, ressaltou

[...] a relação estratégica entre Estados Unidos e México, que resulta em parte dos US$ 1,5 bilhão no comércio diário entre os dois países, e a economia de meio trilhão de dólares que existe conosco [...] bem como o nosso trabalho em instituições globais e em mecanismos globais, como o G-20 e a nossa [...] participação conjunta na Parceria Transpacífico.

Mas a inclinação em direção à Ásia-Pacífico como um ímã para os laços entre Estados Unidos e América Latina não se limita à citada parceria comercial. A crescente ênfase colocada sobre o fortalecimento dos laços dos Estados Unidos com a Aliança do Pacífico – composto por Chile, Colômbia, México e Peru – sugere que Washington pretende avançar em uma agenda regional mais ampla e alternativa. Essa mudança vem, não por coincidência, no momento em que a cooperação do hemisférico atinge Washington de forma tão evasiva e quando os crescentes sinais de desunião levam os condutores regionais de política a perceber uma oportunidade de interromper um projeto do Brasil – líder da América do Sul – de separar os membros da Aliança do Pacífico. A administração Obama tem sido encorajada com sinais de que o seu envolvimento com a Aliança é bem-vinda, declarando depois da visita de Biden à região, em maio de 2013, que "os Estados Unidos (desejam) desempenhar um papel de apoio, para assumir status de observador" (Sullivan, 2013). E enquanto essa declaração teve o cuidado de incluir o Brasil na lista de países com os quais as relações dos Estados Unidos podem ser reforçadas pela participação americana na Aliança, certamente não escapa a ninguém do Departamento de Estado que o Brasil e os países da Alba têm criticado fortemente essa iniciativa tão prejudicial do ponto de vista do regionalismo que eles têm defendido ativamente ao longo da última década.

Desenvolvido com uma preocupação permanente com a segurança regional, esse ponto de vista revive a abordagem focada no comércio, que moldou as preferências dos Estados Unidos para a América Latina do fim da Guerra Fria em diante. Essa abordagem havia sido esquecida ao longo da última década, após sua rejeição por uma (heterogênea) maioria dos países sul-americanos. A diferença é que agora, em vez de tentar convencer seus vizinhos do sul a conviver com um amplo bloco hemisférico liderado pelos Estados Unidos, Washington optou por incorporar países latino-americanos sintonizados com a sua agenda comercial, com foco centrado na Ásia e no Pacífico.

Recebido: 02/05/2013

Aprovado: 15/08/2013

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  • *
    Este artigo, "Washington and the hemispheric order: explanations for continuity amid change", foi traduzido por Florencia Mendes Ferreira Costa.
  • 1
    Para visualização de quatro questões pontuais que possam estimular a atenção de um presidente dos Estados Unidos politicamente sensível, ver Lowenthal (2009).
  • 2
    Sobre o escândalo envolvendo paramilitares infiltrados no DAS, matando um acadêmico e espionando oponentes do presidente Uribe, ver
    BBC News: Latin America and Caribbean (2011).
  • 3
    Mark Toner, porta-voz do Departamento de Estado, citado por Zolotoev (2011).
  • 4
    Ver Hershberg, "The global crisis and Latin American economies: an overview of impacts and responses".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Maio 2013
    • Aceito
      15 Ago 2013
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