Acessibilidade / Reportar erro

Sistemas de classificação racial em disputa: comissões de heteroidentificação em três universidades públicas brasileiras1 1 Gostaria de expressar minha gratidão aos dois pareceristas anônimos que me levaram a afinar os argumentos do texto, ao tempo em que propiciaram a tomada de conhecimento de uma literatura internacional sobre o tema do colorismo, conceito que tem ganhado visibilidade pública cada vez maior nos EUA, onde foi forjado, bem como entre nós. Embora não compartilhe de todas as observações críticas que foram feitas nos pareceres, deixo aqui pública minha dívida com as mesmas, na medida em que me fizeram repensar algumas das minhas conclusões. Ao mesmo tempo, agradeço também a colegas com os quais venho discutindo essa temática ao longo dos últimos anos, em especial a Laura Moutinho e Antonádia Borges, pelas contribuições que elas deram aos argumentos aqui avançados. Tudo isso, contudo, não me exime das possíveis fragilidades da metodologia empregada ou das análises realizadas, que são de minha inteira responsabilidade.

Systems of racial classification in dispute: Heteroidentification committees in three brazilian public universities

Sistemas de clasificiación racial en disputa: Comisiones de heteroidentificación en tres universidades públicas brasileñas

Resumo

Nesta pesquisa procuro analisar como a introdução de comissões de heteroidentificação (CHI) nas universidades federais tem sido acompanhada de discussões sobre quem tem ou não direito às ações afirmativas, em narrativas raciais que redimensionam os sistemas de classificação por raça/cor em disputa no país. Interessa-nos neste artigo analisar o sistema inicialmente utilizado pelo Estado quando da implantação das ações de reparação para a população negra e as mudanças por que tem passado. Nessas narrativas, que ameaçam a categoria negro, duas figuras são recorrentes: o “branco fraudador” das cotas e o “pardo claro” não reconhecido como negro pelas CHI. Este artigo busca mostrar como os vários debates indicam o efeito das mudanças demográficas e simbólicas que a política de ações afirmativas tem suscitado, tanto no interior das universidades como para além delas.

Palavras-chave:
Universidade; Racismo; Sistema de classificação de raça/cor; Ações afirmativas; Comissões de heteroidentificação

Abstract

In this article I analyze how the introduction of heteroidentification commitees in federal universities has provoked discussions about who is or is not entitled to benefit from affirmative action, producing racial narratives that resize the system of classification according to race/colour initially used by the State in the implementation of reparation for the black population. These narratives revolve around two emblematic figures: the “white fraudster” of quotas and the “light brown person” who is not recognized as black by committees which believe that only blacks and browns with dark skin are deserving of dedicated university places because of the prejudice that they have suffered. I do not decide who is right in this struggle, but rather show how the existence of the debate itself is an indicator of demographic and symbolic changes within universities and beyond.

Keywords:
university; racism; race/colour classification system; affirmative actions; heteroidentification committees

Resumen:

En esta investigación trato de analizar cómo la introducción de las comisiones de heteroidentificación (CHI) en las universidades federales ha suscitado discusiones sobre quién tiene o no derecho a la acción afirmativa, produciendo narrativas raciales que redimensionan el sistema de clasificación por raza/color utilizado inicialmente por el Estado en la implementación de acciones de reparación para la población negra. En esas narrativas, que amenazan la categoría negro, dos figuras son recurrentes: el “blanco estafador” de cuotas y el “moreno claro” que no es reconocido como negro por las CHI. Este artículo busca mostrar cómo la existencia del debate en sí mismo es un indicador de cambios demográficos y simbólicos que la política de acciones afirmativas han suscitado, dentro y fuera de las universidades.

Palabras claves:
universidad; racismo; sistema de clasificación de raza/color; acciones afirmativas; comisiones de heteroidentificación

Introdução

Em matéria do portal G1 de 12 de fevereiro de 2019, pertencente à cadeia de meios de comunicação Globo, vários estudantes autodeclarados pardos protestaram em frente à reitoria da UFPE por terem sido considerados brancos por uma Comissão de Heteroidentificação da universidade, durante o processo seletivo de acesso. Para realçar o teor verossímil da denúncia, a matéria veiculava diversas fotos de estudantes para defender que, com traços evidentemente mestiços, eles poderiam plausivelmente ser classificados como pardos. Entre as fotografias, destacou-se a de um senhor negro de pele escura que se apresentava como pai de um dos jovens reprovados na averiguação. Toda a cena estava construída para que os leitores percebessem (e sentissem) o que era compreendido como uma injustiça pelos denunciantes. Assim, por exemplo, nas imagens publicadas, as e os estudantes preteridas/os portavam cartazes que faziam referência à sua autoclassificação (“Eu me declaro pardo/a”; “Sou parda, sou cotista, quero estudar”) ou ao limbo em que eles entraram ao serem recusados (“O que eu sou?”).

No domingo, dia 09 de junho de 2019, o programa televisivo Fantástico, veiculado pela TV também do grupo Globo, apresentou uma reportagem sobre fraudes que estariam ocorrendo em vagas reservadas para negros em concursos públicos e em universidades federais. O caso mais espetacular apresentado foi o de um jovem branco, de olhos verdes, que havia fraudado uma foto em que aparece de pele preta e de olhos escuros, para ingressar em um concurso público no INSS usando as vagas reservadas para pessoas negras. A reportagem mostrou fotos de redes sociais do jovem, filmaram a fachada de seu prédio de classe média alta e a reação do Judiciário que anulou o concurso por fraude.

Às margens da segunda década de nosso século, um programa de televisão e mesmo um portal de notícias on-line não garantem qualquer acesso privilegiado ao estado de espírito de uma sociedade, mas oferecem pistas para pensarmos nas formas como se dão as resistências conservadoras por parte de quem era hegemonicamente responsável por ditar as pautas públicas do país há pouco tempo. Para além dos desdobramentos jurídicos do segundo caso e da aparente rigidez do processo de verificação do primeiro, as duas matérias indicam transformações em um sistema classificatório de raça/cor que se tinha como hegemônico no Brasil. Este modo polarizado de tratar o assunto sintetiza um complexo fenômeno que tem sido estudado e debatido por pesquisadores e militantes da luta antirracista desde os anos 1930: as fronteiras entre os pretos e os pardos em termos de características fenotípicas e em termos de percepção e vivência de discriminação e racismo.

A tônica da segunda matéria e de várias denúncias que tem servido de justificativa para a criação de comissões de verificação em diversas instâncias em que há previsão de reserva de vagas para negros recaiu sobre o lado fraudulento e de má-fé, resumido na figura do fraudador que seria inerente a quaisquer processos seletivos com ações afirmativas. O recurso ao black face tem sido relatado tanto nos meios de comunicação como em trabalhos acadêmicos e em documentos produzidos pela militância antirracista. Constatam-se casos de candidatos evidentemente brancos que tentam se passar por negros através de expedientes como o bronzeamento artificial, a adoção de penteados afro, a coloração de fotos, o uso de roupas africanas etc.

A primeira matéria citada na abertura deste artigo aponta para outros atores: jovens que se veem como negros, mas que não são reconhecidos como tais pelas Comissões de Heteridentificação (CHI). Para eles, a figura central do debate é a do pardo que se supõe negro e que não é assim visto pelos grupos encarregados da avaliação ou, por vezes, pelos grupos de pressão que estão se constituindo no interior das universidades como público engajado (os coletivos negros, por exemplo, que têm exercido um papel importante nas denúncias de fraudes). Esses mesmos dilemas aparecem no filme documentário Autodeclarado - Dear Brown People, dirigido pelo cineasta Maurício Costa (2022)AUTODECLARADO - Dear Brown People. 2022. Filme documentário, dirigido por Maurício Costa, Brasil, Bretz Filmes. , em que diversos atores sociais envolvidos com a questão defendem pontos de vista diferentes acerca dos processos de heteroidentificação em curso na maioria das universidades públicas.

Neste artigo, pretendo trazer à baila alguns temas e dilemas que essa discussão desperta. Além disso, procurarei demonstrar que ao menos três fatores sustentam o processo atual de criação de comissões de heteroidentificação, a saber:

a) As denúncias de fraudes que Coletivos de estudantes passaram a fazer nas universidades públicas, que levaram a uma publicização do tema, pressionando as reitorias e o Ministério Público Federal a se posicionarem a respeito;

b) O fato de que professores negros e membros dos movimentos negros e antirracistas tenham passado a ocupar postos nas administrações universitárias, favorecendo uma maior preocupação das universidades com o bom funcionamento das ações afirmativas, incluído nesse cenário, o combate às fraudes.

c) O papel fomentador do Judiciário, que usa como pertinente para as universidades a legislação específica aos concursos públicos para provimento de cargos no serviço público federal. As diversas normativas no âmbito do STF, que especificam a necessidade de comissões de heteroidentificação para tais concursos, somadas à pressão social pela constituição dessas comissões que tendem a neutralizar as resistências contrárias no interior das administrações universitárias.

Nas próximas páginas, estes tópicos serão analisados de forma aprofundada. Concomitantemente, procurarei dar inteligibilidade às disputas entre diferentes sistemas classificatórios por raça e cor no âmbito das políticas de ações afirmativas em três universidades federais, onde realizei pesquisa de campo.

Do ponto de vista metodológico, tenho participado de diversos eventos e debates sobre o tópico em instâncias as mais variadas, o que me tem propiciado um ponto de observação privilegiado de argumentos e posições de diferentes atores. Além disso, realizei entrevistas com distintas categorias de agentes envolvidos com as CHI nas universidades estudadas, sendo três (um de cada universidade) com professores responsáveis institucionais pelo processo de aferição das autodeclarações dos candidatos optantes por cotas e seis membros da comunidade que integraram algumas das CHI nas três universidades. Para expandir o universo de análise, foram também entrevistados dois candidatos que tiveram suas autodeclarações recusadas em comissões de duas das instituições analisadas. Sendo uma pesquisa eminentemente qualitativa, na qual a observação de base etnográfica cumpriu um papel importante, não se pretende, pois, reivindicar qualquer veleidade de representatividade sobre o que está ocorrendo nas comissões de heteroidenticação pelo país, para além daquelas que foram objeto da pesquisa aqui reportada.

Por fim, cabe realçar ainda não apenas a consulta a uma vasta documentação produzida pelas diferentes CHI, como também as inúmeras conversas informais com diferentes agentes envolvidos (universitários ou não), além da análise de lives, entrevistas dadas a órgãos de comunicação ou a sítios da internet.

As evidências empíricas que temos atualmente podem ser usadas tanto para demonstrar a pertinência de que há fraudadores como também que alguns candidatos pardos acabam sendo ejetados das competições por serem considerados brancos. Nosso objetivo é contribuir para o conjunto de estudos comparativos e de abrangência nacional sobre a questão, a fim de que futuramente seja possível relacionar a atuação das CHI às vicissitudes das políticas de ações afirmativas no país. Mais especificamente, neste artigo abordam-se alguns resultados de uma pesquisa que está sendo realizada em três diferentes universidades federais (uma da região Nordeste, outra da região Sudeste e a última da região Sul) sobre o modo de operacionalização das CHI, com especial atenção para as concepções de raça/cor agenciadas em suas decisões.

Como dito, a discussão a seguir não pretende esgotar todos os meandros da temática. Tampouco se pretende representativa do que está ocorrendo nas diferentes universidades brasileiras. O que se quer aqui é mais modesto e vai no sentido de fazer emergirem dilemas e ambiguidades apontados por diversos atores sociais em relação a esse novo fenômeno que são as CHI. Esperamos assim ensejar a realização de novas pesquisas sobre o tema, ajudando-nos a melhor entender algumas das transformações produzidas pelas ações afirmativas no contexto universitário do país.

O sistema classificatório em questão

Os debates suscitados a partir da instauração das comissões de heteroidentificação recolocam o problema da classificação racial em brancos, pretos e pardos. Trata-se de uma definição fundamental para determinar quem pode legitimamente demandar acesso às vagas reservadas pelas políticas afirmativas.

Por ser a questão mais perene e definidora da sociedade brasileira, a discussão sobre a questão racial foi um dos problemas fundantes das ciências sociais entre nós. Desde fins do século XIX, muitos autores que pensavam a nacionalidade o faziam através das discussões sobre as raças (Skidmore 1989SKIDMORE, Thomas E. 1989[1976]. Preto no Branco - Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra . , 1994SKIDMORE, Thomas E. 1994. O Brasil Visto de Fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra .). Há certo consenso de que desde os anos 1930, com a publicação de Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre (1995FREYRE, Gilberto. 1995 [1933]. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record.) e a sua defesa enfática da mestiçagem como prova de ausência de racismo no país, a discussão ganha nova roupagem (Munanga 2008MUNANGA, Kabenguele 2008. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica.). Desde então, investe-se em interpretar o racismo e o sistema de classificação de raça/cor no país. Grosso modo, é possível identificar ao menos três posições interpretativas. Há quem defenda a ideia de que o preconceito no Brasil seria mais social que racial, reforçando assim, em parte, as teses de Gilberto Freyre (1995)FREYRE, Gilberto. 1995 [1933]. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record.. Dentre estes, temos Artur Ramos (2001RAMOS, Arthur. 2001 [1940]. O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia., 2004RAMOS, Arthur. 2004 [1949]. A mestiçagem no Brasil. Trad. Waldir Freitas Oliveira. Maceió: Edufal.), Donald Pierson (1971PIERSON, Donald. 1971. Brancos e pretos na Bahia. São Paulo: Editora Nacional.), e outros. Há aqueles para os quais o racismo presente na sociedade seria herança de um passado colonial e escravocrata - em torno desta tese estavam autores tão diferentes entre si como Florestan Fernandes (1978FERNANDES, Florestan. 1978 [1964]. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. São Paulo: Ática.), Guerreiro Ramos (1995)RAMOS, Alberto Guerreiro. 1995. Patologia social do branco brasileiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ . e Luis Costa Pinto (1953COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. 1953. O Negro no Rio de Janeiro: Relações de Raças numa Sociedade em Mudança. São Paulo: Companhia Editora Nacional.). Uma terceira posição entendia o racismo no Brasil como ambíguo: ora definido como preconceito de cor (Thales de Azevedo 1953AZEVEDO, Thales. de. 1996 [1953]. As elites de cor numa cidade brasileira. Um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. Salvador: Edufba.), ora como racismo de marca (Oracy Nogueira 1998NOGUEIRA, Oracy. 1998. Preconceito de Marca: As Relações Raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP.), podendo assim oscilar em função da estratificação social e posição de classe dos sujeitos envolvidos.

Neste artigo, irei me ater a esta terceira linha por ser ela a que mais é mobilizada no debate analisado. Com efeito, em seus escritos, esses autores espelham muitos dos termos do debate atual sobre as comissões de heteroidentificação. Nogueira (1998NOGUEIRA, Oracy. 1998. Preconceito de Marca: As Relações Raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP.), por exemplo, propunha uma visão de que o racismo não atingia a população negra de igual forma, mas sim com graduações a depender da cor da pele. Ao propor uma caracterização do racismo brasileiro como racismo de marca (em oposição ao racismo de origem vigente nos EUA), ele queria chamar a atenção para o fato de que o racismo se modulava de forma cromática, ou seja, os mais escuros sofriam maior preconceito que os mais claros. Da mesma forma, Azevedo (1975)AZEVEDO, Thales. de. 1996 [1953]. As elites de cor numa cidade brasileira. Um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. Salvador: Edufba. chamava a atenção para as interrelações entre preconceito de cor e ascensão social, mostrando como raça e classe se cruzavam na Bahia dos anos 1950, a ponto de o preconceito ser negociado em caso de maior prestígio ou riqueza.

Em grande medida, muitos dos defensores do uso da heteroidentificação como critério de seleção dos optantes por cotas nas universidades públicas que entrevistamos aderem a esta visão. Um professor responsável pela implementação das CHI em uma das universidades estudadas, declarou que por ele “apenas os pretos teriam direito às ações afirmativas, uma vez que são eles os que mais sofrem preconceito”. Da mesma forma, Frei Davi, militante e coordenador da Ong Educafro, em entrevista, afirma que o problema para as comissões seriam os “pardos brancos”, pois os “pardos pretos” e os “pardos pardos” seriam reconhecidos facilmente. Para ele, os “pardos brancos” não se reconheciam como negros antes das ações afirmativas: “querer se reconhecer agora seria uma espécie de oportunismo”. Oportunismo que tanto nas redes sociais como na literatura acadêmica tem ganhado o nome de “afroconveniência”, ou seja, quando pessoas vistas por outras como brancas reivindicam uma identidade negra para obter vantagens.

Essas afirmações põem em xeque algo que vinha sendo construído pelo movimento negro desde os anos 1970: a tese de que pretos e pardos eram “negros” (Gonzalez & Hasenbalg 1982GONZALEZ, Lélia & HASEMBALG, Carlos. 1982. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero.; Nascimento 1982NASCIMENTO, Abdias. 1982 [1978]. O genocídio do negro brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Nascimento 1985NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1985. “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. Afrodiáspora: Revista do mundo negro, n. 6-7, Ipeafro.). Esta perspectiva sustentava-se em diversos estudos que demonstravam como pardos e pretos estariam próximos em quase todos os índices de mensuração de desigualdades. Os trabalhos de Hasenbalg (1979)HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminações e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. e Hasenbalg e Silva (1984HASENBALG, Carlos & SILVA, Nélson do Valle. 1988. Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ., 1992HASENBALG, Carlos & SILVA, Nélson do Valle. 1992. Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Rio Fundo.) foram fundamentais para tal percepção. A partir de dados estatísticos e censitários, esses autores demonstraram que as assimetrias no país entre brancos e não brancos é persistente desde o final da escravidão e que as disparidades entre pardos e pretos em termos de desigualdades sociais são de pouca relevância estatística. Por tal razão, defendia-se que seria mais pertinente analisar comparativamente a situação dos brancos em relação aos não brancos e unificar a luta por igualdade com políticas de ações afirmativas para negros (pretos e pardos).

Esses estudos seriam importantes na argumentação de intelectuais dos movimentos negros nascentes que passariam a utilizar a categoria “negro” como o somatório dos pretos e pardos na sociedade (Nascimento 1982NASCIMENTO, Abdias. 1982 [1978]. O genocídio do negro brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Gonzalez 1984GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje: 223-244, Anpocs.; Gonzalez & Hasenbalg 1982GONZALEZ, Lélia & HASEMBALG, Carlos. 1982. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero.; Nascimento 1985NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1985. “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. Afrodiáspora: Revista do mundo negro, n. 6-7, Ipeafro.), influenciando inclusive as análises do IBGE (Osório, 2003OSORIO, Rafael Guerreiro. 2003. O Sistema Classificatório de Cor e Raça do IBGE. Brasília: Ipea.).

Por outro lado, enquanto as estatísticas mostram uma proximidade de situação entre pretos e pardos, há quem problematize a existência de diferenças nas interações entre esses grupos e na experiência subjetiva desses indivíduos. Em suma, por um lado, haveria um racismo estrutural que atingiria de igual forma os pretos e os pardos, mas, ao mesmo tempo, clivagens marcariam distintamente as relações entre pardos e pretos.

Para Maggie (1989MAGGIE, Yvonne. 1989. “Introdução”. In: Catálago, Centenário da Abolição. Rio de Janeiro: UFRJ.), por exemplo, o racismo no Brasil é não só do tipo gradualista (com uma escala descendente de valores que vai do mais claro ao mais escuro), como queria Nogueira (1998NOGUEIRA, Oracy. 1998. Preconceito de Marca: As Relações Raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP.), como também relacional (clareamos os nossos próximos e escurecemos as pessoas mais distantes). Sansone (1996SANSONE, Lívio.1996. “Nem Somente Preto nem Negro: O Sistema de Classificação Racial no Brasil que Muda”. Afro-Ásia, Salvador, n. 18:165-187., 2003SANSONE, Lívio.2003. Negritude sem etnicidade. Salvador: Edufba .), por sua vez, postula a existência de espaços sociais com relações raciais “duras” e “moles”: nas áreas moles não haveria maiores conflitos entre brancos e negros, enquanto nas duras, sim. Para Telles (2004TELLES, Edward. 2004. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. Princeton: Princeton University Press.), o racismo brasileiro seria marcado concomitantemente por relações horizontais (consideradas mais fluidas) e verticais (vistas como mais rígidas).

Da mesma forma, em seu estudo sobre os pardos, Daflon (2017DAFLON, Veronica Toste. 2017. Tão longe, tão perto: identidades, discriminação e estereótipos de pretos e pardos no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X.) afirma que eles teriam uma percepção da discriminação menos racializada que os pretos, sobretudo nos estratos mais altos da população; para esta autora, isto demonstraria que, embora pretos e pardos sofram racismo no Brasil, estereótipos racistas são mais frequentemente dirigidos contra os pretos. Moutinho (2004MOUTINHO, Laura. 2004. Razão, “cor” e desejo. São Paulo: Editora Unesp.), Campos (2013CAMPOS, Luiz Augusto. 2013. “O Pardo como dilema político”. Insight/Inteligência, out./dez, edição 63, Acesso em 20/07/2022. disponível em disponível em https://inteligencia.insightnet.com.br/o-pardo-como-dilema-politico/,
https://inteligencia.insightnet.com.br/o...
) e Silva e Leão (2012SILVA, Graziela Moraes & LEÃO, Luciana de Souza. 2012. “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, n. 80: 117-133.) acrescentam ainda outra dimensão. Para estes autores, a despeito das ambiguidades em termos de identificação das discriminações raciais, não haveria ausência de consciência sobre o racismo nem por parte de pretos, nem por parte de pardos.

Tudo isso levou os autores de uma pesquisa de opinião sobre o racismo no Brasil (Folha de S. Paulo-Datafolha 1995FOLHA DE SÃO PAULO-DATAFOLHA. 1995. Racismo Cordial. São Paulo: Editora Ática.) a considerarem o racismo no país como um “racismo cordial”, um racismo que, nas palavras de Florestan Fernandes (1978FERNANDES, Florestan. 1978 [1964]. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. São Paulo: Ática.), tem preconceito de ter preconceito.

Na pesquisa que temos conduzido, as diversas posições sobre o racismo e sobre quem, de fato, merece as ações afirmativas, tocam em questões cruciais no debate sobre as comissões de heteroidentificação. Acreditamos que, graças às políticas de ações afirmativas e às lutas antirracistas nas instituições superiores de ensino, os problemas atuais redimensionam esse antigo debate, dando-lhe novas proporções e contornos.

Conforme nos mostram Bailey, Fialho e Loveman (2018BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício M. & LOVEMAN, Mara. 2018. “How States Make Race: New Evidence from Brazil”. Sociological Science, 5:722-751.), o papel do Estado tem sido fundamental para a legitimidade de algumas categorias de classificação racial (pardo e negro) após a adoção de ações afirmativas. Embora as bases de dados por eles utilizadas cubram apenas o período que vai dos anos 1990 até 2008, suas análises parecem indicar um crescimento da legitimidade das categorias pardo e negro entre os não brancos (ao contrário da categoria preto), ao mesmo tempo em que cristaliza a percepção de si dos brancos. Esses resultados parecem confirmar o que outros estudos vêm apontando há algum tempo (Telles 2004TELLES, Edward. 2004. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. Princeton: Princeton University Press.; Sansonne 2003): o sistema de classificação racial no Brasil está em transformação.

Da mesma forma, Silva e Almeida (2021SILVA, Antonio José Bacelar da & ALMEIDA, Alba Riva Brito de. 2021. “The subject, the other, and black political identities among Afro-Brazilians”. Social Identities. DOI:10.1080/13504630.2021.1952861.
https://doi.org/10.1080/13504630.2021.19...
), partindo de um ponto de vista psicanalítico de cores lacanianas, mostram que a assunção de uma identidade “negra” aumenta à medida que jovens pretos e pardos passam a militar em organizações antirracistas, o que os leva a rechaçar simbolicamente a condição de “outro” estereotipado, à qual os negros foram historicamente associados desde a época da colonização. Isto implica uma ressignificação e valorização da história a partir da perspectiva negra, de uma estética corporal desde os símbolos vistos como negros, bem como a reivindicação de uma ancestralidade africana. Vemos aqui uma proximidade com as discussões de autores como Clóvis Moura (1994MOURA, Clovis.1994. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi., 1998MOURA, Clovis.. 1988. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática .), que pregava a revalorização das lutas negras do passado, ou com os trabalhos de autores marcados pelas ideias psicanalíticas, tais como Franz Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba .) e Neusa Santos Souza (2019SOUZA, Neusa Santos. 2019. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: LeBooks.), os quais pontuavam as dificuldades de os sujeitos negros criarem uma autopercepção positiva de si mesmo devido à influência do racismo e do colonialismo sobre eles, o que tenderia a criar uma espécie de dupla consciência (Du Bois 2021DU BOIS, William. E. B. 2021. As Almas do Povo Negro. São Paulo: Veneta.) dos sujeitos negros, em que o fato de ser negro coloca-se como avesso e limite do pretenso exercício da cidadania plena. Nesse sentido, o que as pesquisas citadas anteriormente mostram é que estaria havendo entre a população negra e militante um processo de superação desses entraves e traumas através da busca identitária que tenta conciliar aspirações subjetivas individuais com o processo coletivo de construção de uma identidade negra que visa à luta contra o racismo.

Estes autores nos mostram a fluidez do processo de construção das identidades negras no Brasil atual. Dentre os aspectos dessa fluidez, as gradações em termos de cor da pele tornam-se um elemento importante no debate atual. Essa discussão é influenciada tanto pelas ambiguidades classificatórias raciais do país quanto pelo debate norte-americano sobre colorismo (discriminação pela tonalidade da cor da pele).

Assim, para autores como Hall (2018HALL, Ronald Edward. 2018. “The Globalization of Light Skin Colorism: From Critical Race to Critical Skin Theory”. American Behavioral Scientist, 1-13. e 2023HALL, Ronald Edward. 2022. Interdisciplinary Perspectives on Colorism Beyond Black and White. New York: Routledge.) e Reece (2021REECE, Robert L. 2021. “The Future of American Blackness: On Colorism and Racial Reorganization, The Review of Black Political Economy”, 48(4), 481-505. https://doi.org/10.1177/00346446211017274.
https://doi.org/10.1177/0034644621101727...
), estaria havendo uma reestruturação das relações raciais também nos Estados Unidos. Por conta de mudanças demográficas (aumento da população latina) e sociais (ascensão social de alguns grupos de negros), estaria se consolidando uma dimensão colorista no país, em que grupos negros de pele clara discriminariam grupos negros de pele mais escura, alvo ainda mais intenso do racismo branco. Isto, que existiu desde a época escravocrata, estaria se reforçando a ponto de aproximar o sistema de relações raciais norte-americana do sistema vigente na maioria dos países latino-americanos. Hall (2021),HALL, Ronald Edward. 2021. The Historical Globalization of Colorism. Cham: Springer Nature Switzerland. inclusive, postula que esta seria uma nova tendência na maioria dos países com diversidade racial.

Não temos espaço aqui para discutir as implicações dessas ideias, mas o fato é que o debate chega ao Brasil com força nos anos 2000 (Devulsky 2021DEVULSKY, Alessandra. 2021. Colorismo. São Paulo. Jandaíra.), ocupando um lugar importante em redes sociais e em grupos de jovens militantes, impactando por sua vez as discussões sobre as ações afirmativas no interior das universidades públicas.

A origem de uma política classificatória: o papel do Judiciário

A criação de comissões de heteroidentificação tem uma história relativamente longa. A implementação de ações afirmativas para negros na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade Estadual da Bahia (Uneb), ainda no início dos anos 2000, suscitaram polêmicas relacionadas a fraudes. Recorda-se reiteradamente o caso de dois irmãos gêmeos não univitelinos em que um foi aceito e o outro não pela comissão de verificação da UnB. A repercussão negativa desses casos levou tanto ao encerramento das atividades de algumas CHI como a uma decisão por não implementá-las de todo. A chamada Lei de Cotas 2012 imprime uma alteração nesse quadro.

A adoção da Lei 12.990 de 2014 estipulando a adoção de 20% de reservas de vagas para candidatos negros em concursos públicos na esfera federal tornou mais patente a preocupação com as fraudes. O próprio texto da lei já trazia esta preocupação ao estipular que:

Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis (Lei 12.990 de 09/06/2014).

Uma das consequências dessa lei foi a elaboração pelo Ministério do Planejamento da orientação normativa nº 3, de 1 de agosto de 2016, normatizando e impondo a realização de heteroverificação com base no fenótipo para os candidatos aos concursos públicos. Poucos dias depois, em 07 de agosto de 2016, o Conselho do Ministério Público Federal elabora uma normativa para todos os Ministérios Públicos do país no sentido de:

Art. 1º. Os membros do Ministério Público brasileiro devem dar especial atenção aos casos de fraude nos sistemas de cotas para acesso às universidades e cargos públicos - nos termos das Leis nºs 12.711/2012 e 12.990/2014, bem como da legislação estadual e municipal pertinentes -, atuando para reprimi-los, nos autos de procedimentos instaurados com essa finalidade, e preveni-los, especialmente pela cobrança, junto aos órgãos que realizam os vestibulares e concursos públicos, da previsão, nos respectivos editais, de mecanismos de fiscalização e controle, sobre os quais deve se dar ampla publicidade, a fim de permitir a participação da sociedade civil com vistas à correta implementação dessas ações afirmativas.

Isto seria reforçado pelo STF em 2017 ao julgar a constitucionalidade da Lei 12.990 de 2014, sublinhando a ideia de que a heteroidentificação poderia ser utilizada lado a lado da autoidentificação dos candidatos para coibir possíveis fraudes. Nesse sentido, o relator dessa ADC nº 41 retoma o mesmo argumento do relator da famosa ADPF sobre o sistema de cotas em Brasília (julgada em 2012, mas só publicada em 2014):

13. Este Supremo Tribunal também reconheceu, naquele julgamento, a legitimidade da autoidentificação e da heteroidentificação como formas de se aferir o grupo étnico-racial a que pertence o candidato. O procedimento previsto no art. 2º, caput e parágrafo único, da Lei n. 12.990/2014, compatibiliza-se com o decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186. Decidiu-se, então, que a identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, mas que, para coibir fraudes, é legítima a utilização de mecanismos adicionais, como elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça, o requerimento de declarações assinadas, o uso de entrevistas, a exigência de fotos e a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato (Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, STF, 08/06/2017).

Desse modo, a utilização de critérios fenotípicos para definir que “negro” (pretos e pardos) e “indígenas” sejam os beneficiários das políticas de ações afirmativas ganha legitimidade jurídica nesses documentos. A decisão do STF em 2017, na Ação Declaratória de Constitucionalidade supracitada, reitera esse respaldo pelo Judiciário:

Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, e fixou a seguinte tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa (ADC 8 jul. 17).

Ainda nesse sentido, no segundo semestre de 2018, o MPF de Brasília entrou com uma ação civil junto à Justiça Federal com um

Pedido para que a União seja condenada a regulamentar o procedimento de verificação (heteroidentificação ou heteroverificação) complementar à autodeclaração dos candidatos que concorrem às vagas reservadas para negros nos termos da Lei n. 12.711/2012, em prazo que permita a aplicação da heteroidentificação nos processos seletivos das instituições federais de ensino.

Outros Ministérios Públicos estaduais entrariam com ações semelhantes para obrigar universidades públicas específicas a implementar processos de heteroidentificação em suas políticas de ações afirmativas. Mesmo em casos de ações civis não deliberadas, no âmbito das administrações superiores universitárias, as sugestões dos Ministérios Públicos acabam sendo vistas como mandatórias. Na esteira ou não dessas recomendações, têm sido criadas comissões de heteroidentificação que validam os resultados dos processos seletivos de ingresso na graduação e na pós-graduação. Um pró-reitor de uma das universidades estudadas chegou a mencionar em uma conversa informal que estava entre dois fogos: de um lado, a ameaça do Ministério Público e, do outro lado, a perspectiva de uma enxurrada de processos legais que surgiriam com as exclusões de candidatos pela Comissão de Heteroidentificação, que viria a ser criada logo depois de nossa conversa. Seus dois temores não deixavam de se ancorar em matérias inefáveis, mas sensivelmente perturbadoras, pois em ambas (ainda que quiméricas), a universidade e seus gestores teriam que se haver com a justiça.

A maioria das comissões atualmente existentes foi criada após a ADC de 2017 citada anteriormente. De fato, Santos (2021SANTOS, Sales Augusto. 2021. “Mapa das Comissões de Heteroidentificação Étnico-racial das Universidades Federais Brasileiras”. Revista da ABPN, v. 13, n. 36:365-415.) mapeou as diferentes comissões em universidades federais até 2020 e percebeu que a maioria delas foi criada após 2017. Na medida em que o Judiciário se posicionou favoravelmente à heteroidentificação baseada em uma avaliação em termos de traços físicos exteriores (deixando em segundo plano as questões econômicas, culturais e de ascendência), outros atores sociais reivindicaram que esses critérios fossem utilizados pelas comissões de verificação. Com isso, os traços fenotípicos foram ganhando preponderância nesse debate.

De todo modo, o que parece ser relevante aqui é a primazia dos mecanismos jurídicos diante de outras fontes institucionais que vinham problematizando há mais tempo a definição do que é ser negro, com a consequente possibilidade de ser beneficiário das cotas. Outro caso anedótico bastante citado é o do Instituto Federal do Pará (IFPA). Relata-se que se procurou fixar, no edital de seleção de setembro de 2019, os critérios fenotípicos que deveriam nortear as avaliações das comissões de heteroidentificação. Tentando se resguardar de futuros processos judiciais, o edital estipularia como proceder à avaliação através de uma tabela que rapidamente foi associada a quadros classificatórios lombrosianos utilizados no início do século XX para identificação dos indivíduos da raça negra pelas instituições policiais. Críticas de diversos setores da academia e do próprio movimento negro levaram à retirada dessa tabela do edital uma semana depois de sua publicação. No entanto, paira em certas conversas o temor de que tais critérios sejam usados de forma implícita e não oficial por membros de comissões de heteroidentificação em diferentes instituições públicas. Em conversas informais ou nas entrevistas realizadas, argumentava-se que a lei determina que as comissões observem apenas as características fenotípicas dos candidatos, como a cor da pele, a textura dos cabelos, o formato dos lábios e do nariz. Em muitos casos, explicava-se que assim procediam para secundar a determinação do STF no que diz respeito aos concursos para cargos públicos. A lei age aqui como um potente instrumento de legitimidade e de convencimento. Convencimento que se dá, inclusive, pelo receio de abertura de inquéritos no Ministério Público Federal em caso de universidades que não implantam as CHI.

As denúncias de fraudes como estopim de mudanças

Em março de 2018, dezenas de alunos negros ocuparam a reitoria de uma das universidades estudadas exigindo que se voltasse atrás na decisão de mudar os critérios das comissões de heteroidentificação. Eram contrários a aceitar que provas de ascendência negra pudessem ser usadas pelos candidatos para demonstrar que eram negros para fins de ingresso na graduação. Após longas negociações, que contaram com a participação de líderes dos movimentos negros (por exemplo, a ocupação foi visitada pelo coordenador da Educafro, entidade que tem tido um papel importante na organização de denúncias de fraudadores das ações afirmativas) e do Ministério Público Federal, a universidade aceitou que as comissões utilizassem apenas os critérios fenotípicos dos candidatos para julgar se suas autodeclarações eram pertinentes. Meses antes, em julho de 2017, um coletivo negro recém-criado denunciou formalmente à reitoria casos de supostas fraudes de alunos brancos que se passaram por negros durante a seleção de entrada na graduação. Inicialmente foram denunciados 430 casos, dos quais a universidade considerou 345 como suspeitos (Bueno & Batista 2020BATISTA, Neusa & FIGUEREDO, Hodo Apolinário Coutinho de. 2020. “Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. Cadernos de Pesquisa [online], 50, n. 177, pp. 865-881. [Acessado 20 de julho de 2022] . Disponível em: <https://doi.org/10.1590/198053147264>. Epub 28 Out 2020. ISSN 1980-5314. https://doi.org/10.1590/198053147264.
https://doi.org/10.1590/198053147264http...
).

Em outra das universidades aqui estudadas, foi a criação de um coletivo negro - por iniciativa de uma ex-aluna que estava realizando pós-graduação em uma universidade em que já havia coletivos negros e bancas de heteroidentificação - que trouxe o debate sobre essas comissões para o centro das atenções. Após audiências públicas organizadas pelo Ministério Público Federal com técnicos, professores, alunos e gestores, o Ministério Público fez a recomendação para que fossem implantadas comissões de heteroidentificação de imediato, em novembro de 2019. Posteriormente, em janeiro de 2020, o mesmo Ministério Público intimou a administração da universidade a explicar por que não havia ainda previsto as comissões de heteroidentificação. Isto levou ao compromisso da administração de implantar as comissões para o ano de 2021, o que de fato ocorreu.

No plano nacional, segundo os dados coletados por Santos (2021SANTOS, Sales Augusto. 2021. “Mapa das Comissões de Heteroidentificação Étnico-racial das Universidades Federais Brasileiras”. Revista da ABPN, v. 13, n. 36:365-415.), nos anos de maior atividade dos grupos denunciantes, houve denúncias de 1.186 casos de fraudes em 12 universidades federais em 2016 e de 1.341 casos também em 12 universidades em 2017. Entre 2013 e 2020, teriam existido cerca de 3.957 denúncias em 51 diferentes universidades, o que demonstra a pertinência de tornar as comissões de heteroidentificação presentes em praticamente todas as instituições de ensino superior federais e, ao mesmo tempo, diminuir a visão negativa que se tinha desses mecanismos de controle até então. Diversos atores participaram desse processo, desde os coletivos, presentes em muitas das universidades, até algumas ONGs que mobilizaram os estudantes nas denúncias dos potenciais fraudadores. Dentre estas últimas, a Educafro, através de seu líder Frei Davi, teve papel crucial nas mobilizações estudantis de denúncia dos fraudadores.

A existência de fatos concretos de pessoas que deliberadamente se montam ou se reivindicam como pardos para obter acesso às vagas reservadas para os negros tem uma grande repercussão. Casos de pessoas louras com olhos azuis são usados para mostrar o quanto as comissões são necessárias para tornar real o acesso da população negra às cotas, ou seja, a existência de casos concretos de fraude cria um sentimento de que as fraudes precisam ser combatidas com medidas que as coíbam. O sentimento de injustiça legitimaria a pertinência e a necessidade das comissões de heteroidentificação.

Além da mobilização histórica é preciso reconhecer que as denúncias se tornaram mais frequentes por conta do uso das redes sociais para checar os perfis das pessoas e compará-los com as declarações dos candidatos sob suspeita. Assim, em junho de 2020, diversos coletivos de alunos negros criaram perfis no Twitter com nomes sugestivos, tais como “#Fraudadores das Cotas”, “#Afroconveniência”, entre outros, para denunciar quem supostamente havia fraudado o sistema de cotas. O movimento começou na Universidade Federal de Juiz de Fora e rapidamente se disseminou para muitas outras universidades no país, onde coletivos negros criaram perfis com os mesmos nomes, difundindo dezenas de fotos e perfis de alunos considerados fraudadores.

Em um dos grupos de internet que acompanho, esses debates geraram inclusive ameaças de processos na justiça e o que, no linguajar próprio da internet, convencionou-se chamar de linchamento virtual. Afinal, tornou-se comum que os perfis desses alunos fossem invadidos por acusadores, gerando polêmicas acirradas sobre o direito das pessoas negras que estava sendo burlado, quem tinha direito ou não às cotas, o que era ser negro etc.

Os critérios para que os integrantes desse grupo lançassem suspeições sobre alguém eram os mais variados, sendo os mais comuns a cor da pele julgada muito clara, o estilo de vida de classe média, com ostentação de aparelhos celulares caros etc. Este foi o caso de um jovem acusado de burlar as ações afirmativas no curso de Medicina em uma das universidades estudadas por conta da cor de sua pele e de seu estilo de vida verificado na internet. Houve, em seguida, uma ampla divulgação nas redes sociais do nome e da foto do aluno denunciado. Para acalmar a situação, alguns professores da própria universidade vieram a público se manifestar em favor do aluno, afirmando ser ele oriundo de escola pública e de uma família negra.

A Pró-reitoria de Graduação veio a público, pouco depois desse incidente, para esclarecer que a Comissão de Heteroidentificação estava em vias de ser instalada e que

A Pró-Reitoria de Graduação não compartilha da abordagem utilizada pelo referido perfil no Twitter por considerar que, com a exposição dos casos realizada sem a devida instalação dos procedimentos adequados para a apuração da Instituição e do MPF, não há respeito ao direito da ampla defesa e ao contraditório dos denunciados.

Os gestores da universidade, temendo que as denúncias com a exposição dos denunciantes pela internet pudessem respingar juridicamente sobre si, procuraram tornar pública sua posição contra essas práticas, ao mesmo tempo em que asseguravam seu compromisso com a instalação futura de comissões de heteroidentificação como método de controle contra as fraudes. Em suma, nota-se que as denúncias de fraudes cumpriram um papel importante na mobilização pela defesa das comissões de heteroidentificação.

As universidades brasileiras finalmente se diversificam

As ações afirmativas para as populações negra e de baixa renda nas universidades públicas tiveram início em 2001, gerando modificações na composição social e racial destas instituições. Assim, segundo pesquisas realizadas pela Andifes (Associação de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), o percentual de alunos de graduação “brancos” passou de 59,4% a 43,3%, entre 2003 e 2018. No mesmo período, a porcentagem de “pardos” passou de 28% para 39,2% e a de “pretos” de 5,9% a 12%. Estes valores correspondem de forma aproximada ao percentual de cada grupo de cor na população brasileira segundo dados do IBGE, sobretudo se considerarmos, como faz esta instituição, as categorias “pretos” e “pardos” como componentes da categoria “negros” (em 2018, a composição por raça/cor no Brasil era de 43,1% de “brancos”, 46,% de “pardos” e 9,3% de “pretos”).

Para o que nos importa aqui, essa maior presença negra nas universidades trouxe consigo experiências sociais e subjetivas que podem ser vistas como novas no ambiente universitário brasileiro, marcado até os anos 2000 pela predominância de jovens brancos de classe média. Ora, são justamente os jovens negros que não apenas reivindicam mudanças no sistema universitário (currículos etc.), como também denunciam as fraudes nos sistemas de cotas, uma vez que, como vimos, para eles, brancos estariam se passando por negros para poderem se beneficiar de um sistema de seleção preferencial.

Em um cenário de certa ambiguidade classificatória em termos de pertencimento racial, como afirmam alguns analistas sobre a realidade brasileira, a adoção de políticas públicas favoráveis a pretos e pardos parece estar incitando diversos segmentos a se autoclassificarem como pardos. Ao menos esta é uma das hipóteses que demógrafos e sociólogos têm defendido para explicar o crescimento da população preta e parda nos censos das duas últimas décadas (Petruccelli & Saboia 2013PETRUCCELLI, José Luis & SABOIA, Ana Lúcia. 2013. Características Étnico-Raciais da População. Classificações e Identidades. Rio de Janeiro: IBGE.).

Para o que nos interessa aqui, essa mudança demográfica das universidades ensejou ainda a criação de coletivos estudantis negros (Ratts 2011RATTS, Alex. 2011. “Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica”. Nguzu - Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Estadual de Londrina (NEAA-UEL), ano 1, n. 1, mar.-jul.; Guimarães, Rios & Sotero 2020GUIMARÃES, Antonio Sérgio A.; RIOS, Flavia & SOTERO, Edilza. 2020. “Coletivos Negros e Novas Identidades Raciais”. Novos estudos CEBRAP [on-line], v. 39, n. 2.), os quais exercem papel fundamental na mobilização em torno da criação das CHI. Não há estatísticas a respeito do número de coletivos nas universidades brasileiras, mas uma primeira aproximação pode ser feita pelos dados do I Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (Enecun), entre 13 e 15 de maio de 2016, na UFRJ. Estiveram presentes, segundo dados de matéria publicada no site de notícias Esquerda Diário de 14/05/2016, em torno de 700 pessoas. Número significativo, se considerarmos as dificuldades de financiamento para eventos dessa ordem.

Em relação ao número de professores negros nas universidades federais também há enormes lacunas e faltam dados oficiais a este respeito. Contudo, matéria publicada no Correio Braziliense de 20 de novembro de 2021, a partir de dados do Censo Educacional, estima que o percentual de professores negros seria de cerca de 17% do total de professores. Em alguns casos, há professores e professoras negros/as ocupando cargos de poder no interior das reitorias (reitores/as, pró-reitores/as etc.). Essa transformação demográfica e racial certamente tem influenciado no desenrolar das políticas afirmativas nas universidades. A título de exemplo, das três IFES onde venho realizando o trabalho de campo, uma tem o reitor e o pró-reitor de graduação negros, outra tem o pró-reitor de questões estudantis negro e a terceira tem técnicos negros no setor responsável pelas políticas de ações afirmativas. Embora não possamos reduzir a implantação das comissões exclusivamente a este fato, certamente isto tem repercussões no modo como as bancas estão sendo implantadas nessas universidades.

O modo de funcionamento das comissões

Não há um modelo único de comissões no país, uma vez que cada universidade tem a autonomia para decidir qual o formato se adequa às suas necessidades. Contudo, podemos dizer que, por força de algumas determinações legais impostas pelo Ministério Público e por resoluções do STF, há regras comuns a serem cumpridas.

A primeira delas é que apenas critérios fenotípicos devem ser utilizados na avaliação dos candidatos. Embora legalmente só os concursos para provimento de vagas de funcionários públicos federais devam utilizar esses critérios, por associação, os termos de ajustamento de conduta assinados a partir da incitação do Ministério Público obrigam as universidades a só levarem em conta os critérios físicos, sem poderem usar outras formas de validação, como, por exemplo, provas de ascendência direta. Por esta razão, a maioria das comissões tem como praxe a filmagem do candidato em uma sala em que ele é observado pelos membros da banca, mas sem interações diretas além de um questionário predefinido pela instituição. A ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), inclusive, realizou um encontro em maio de 2018 para definir algumas diretrizes para as comissões que foram ou viriam a ser criadas. O documento, denominado “Carta de Curitiba”, traz uma série de recomendações, tais como filmagem do processo para ser usado em caso de judicialização, assinatura e leitura de uma declaração de pertencimento aos grupos pretos e pardos pelo candidato, decisões de indeferimento por unanimidade das bancas (o que nem sempre ocorre), composição das bancas entre três e cinco membros, manutenção de um clima de cordialidade e de respeito à dignidade dos candidatos etc.

Nas três universidades em estudo, apenas uma delas delibera por maioria dos membros da banca, composta por três membros. Nas outras duas, as deliberações para exclusão dos candidatos são por unanimidade, o que, por vezes, cria atritos entre os avaliadores. Pelo relato de participantes das comissões, alguns ganham a fama de muito liberais, por aprovarem candidatos com traços afro-brasileiros considerados menos evidentes pelo restante da banca; outros são vistos como muito rígidos, defendendo que só os pretos deveriam ser beneficiados. Há também os casos de membros que aprovam todos os candidatos, por considerarem que a autoclassificação deveria ser respeitada. Como vemos, no interior de algumas comissões há disputas interpretativas sobre o critério a ser usado e sobre quem tem direito às cotas, e a subjetividade dos avaliadores e dos candidatos é um elemento importante no modo de funcionamento das bancas.

Ainda quanto ao funcionamento das comissões, dentre as três que tenho estudado, uma tem sua composição formada obrigatoriamente por indivíduos de diferentes categorias de raça/cor, de diferentes gêneros e com diferentes origens regionais. O objetivo aqui é o de dar expressão à diversidade de visões sobre como identificar quem é branco e quem é negro (pretos e, sobretudo, pardos). Apesar de nas outras duas universidades as exigências para a composição das bancas serem distintas, os coordenadores dos setores responsáveis declararam que, na medida do possível, buscavam compor as bancas de forma a garantir a representatividade de gênero e de membros da sociedade civil.

Em todas as três universidades havia a possibilidade de os candidatos recusados entrarem com recursos para serem avaliados por uma nova banca, com avaliadores diferentes dos que os tinham avaliado na primeira vez. Em conformidade com as regras jurídicas da ampla defesa, exigidas pelo STF e pelo Ministério Público, esta possibilidade recursal tem sido uma importante base legal para as defesas das bancas nos processos em que candidatos não aprovados têm judicializado a questão.

O sofrimento como categoria política e de justiça (do reconhecimento social?)

O que parece mover muitos dos atores sociais envolvidos nessas discussões é uma preocupação com os princípios de justiça que organizam a sociedade brasileira. Para muitos não seria justo que pessoas de pele clara, ou sem traços negros evidentes, possam se beneficiar das cotas sem terem sentido formas de sofrimento e de discriminação que são próprias da população negra. O ingresso por meio de fraude retiraria uma vaga de alguém negro, o que implicaria mais sofrimento.

Diversos autores contemporâneos têm chamado a atenção para o papel do “sofrimento” nas relações sociais. Boltanski (1995), em seu estudo sobre as cartas de presos para o jornal Le Monde, mostrou o quanto o regime discursivo e de denúncias do sofrimento alheio pode moldar um sentimento de compaixão partilhado.

O argumento do sofrimento maior dos negros mais escuros ocupa, nesse sentido, um lugar importante na lógica discursiva dos que defendem a primazia desse grupo nas políticas de reparação, pois, segundo eles, é o sofrimento vivenciado que justifica as ações afirmativas, daí a inadequação criminosa de brancos se reivindicarem como negros. Esta argumentação traz como questão de fundo a mensuração do sofrimento. Para os seus defensores, tal mensuração se dá sobretudo a partir das desigualdades associadas à raça/cor, consideradas como fonte primeira das injustiças, independentemente de outros fatores (origem familiar ou de classe, gênero etc.).

Embora a raça/cor tenha primazia nas avaliações dos defensores das comissões, critérios subjetivos de outras ordens ajudam a compor seus entendimentos e deliberações. Em uma discussão que teve lugar em um dos grupos de Whatsapp que venho acompanhando, uma denúncia feita contra um estudante era justificada pelo fato de ele ter equipamentos eletrônicos da Apple e de sua família ser considerada abastada em razão dos bens ostentados nas redes sociais. Aqui não se negava o fato de o aluno ter traços negros, mas de ele ser aparentemente de família de classe média que pôde protegê-lo do sofrimento que atinge os negros de tez mais escura e mais pobres.

Por outro lado, essa discussão sobre o sofrimento maior dos pretos pode isolar a raça como ordem classificatória independente. Em uma das universidades estudadas, uma aluna entrevistada disse ter sido “expulsa” de uma reunião de um coletivo feminista por ela ser julgada muito clara, uma “afro-bege”. Em outra universidade, ouvi relatos de que, em uma reunião do conjunto de coletivos negros para decidir os passos na mobilização pela implantação de bancas de heteroidentificação, os alunos pretos teriam solicitado a saída da sala dos alunos pardos e brancos, vistos como mais conciliadores com as propostas da reitoria, a qual gostaria que o critério da ascendência direta (um pai ou mãe preto ou pardo) também fosse levado em conta nas averiguações.

Temos nestas duas situações acima esboçadas a reatualização de um quadro sobre o qual antropólogos teceram diversos argumentos no século passado. O debate analítico e o sofrimento visto em nosso trabalho de campo mostram os desdobramentos relacionados às caracterizações sociológicas do racismo no Brasil: mais de marca que de origem, como queria Oracy Nogueira (1998NOGUEIRA, Oracy. 1998. Preconceito de Marca: As Relações Raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP.), ou mais estrutural e produtor de um amálgama de pretos e pardos, como argumentava Carlos Hasembalg (1978) e parte considerável do movimento negro até bem recentemente.

A forma pública como se dá essa reatualização é através do debate em torno do que se convencionou chamar de “colorismo” (Khalema, 2020KHALEMA, Nene Ernest. 2020. “Affirming blackness in ‘Post-racial’ contexts: on race, colorism, and hybrid identities in Brazil”. African and Black Diaspora: An International Journal 13:3, 330-342.), em que se distinguem os pretos como os mais legítimos dentre os negros (na acepção do IBGE) para se beneficiarem das políticas afirmativas e de combate ao racismo. Legítimos sobretudo quando se pensa no sofrimento desde a escravidão, passando pelas situações corriqueiras do dia a dia (a ação policial ocupa um lugar importante nos debates de grupos de jovens que pude acompanhar). O colorismo (Hall 2021HALL, Ronald Edward. 2021. The Historical Globalization of Colorism. Cham: Springer Nature Switzerland.) sustentaria que nem todos os negros sofrem da mesma maneira o racismo. Pretos e pardos mais escuros, sobretudo quando vêm de estratos socialmente mais baixos, seriam os beneficiários legítimos das políticas de reparação, por conta de sua dor maior causada pelo preconceito e o racismo. Para uma das minhas entrevistadas, isto se traduziria em um sofrimento encarnado no corpo, marcado pelo estigma maior entre nós da cor da pele.

De todo modo, o par conceitual injustiça e sofrimento exerce um papel central nas argumentações em torno das CHI. Muitas das discussões nas redes sociais e em grupos de Whatsapp que pude acompanhar giravam em torno do sentimento de injustiça experimentado pela presença de estudantes brancos que haviam sido aprovados usando as cotas para negros. Nessas falas aparece o sentimento de que estaria ocorrendo nas universidades o mesmo que em outras esferas da vida social, em que os brancos excluiriam os negros da riqueza e do prestígio. Alguns depoimentos que colhi vão nessa mesma direção, legitimam as comissões como atitude pedagógica e reparatória para a população negra, pois mostraria que com mobilização era possível garantir que os direitos conquistados não seriam espoliados pela população branca. Quanto aos brancos pobres, um de meus entrevistados defendeu que eram necessárias cotas para eles, mas sem prejuízo para as ações afirmativas para negros.

Por outro lado, o sofrimento é também mobilizado por estudantes e candidatos autoclassificados pardos que se sentem excluídos. Um jovem que teve sua autodeclaração recusada por uma banca me disse que estava sem saber o que era agora. Aprendera que era pardo desde a infância, por conta da mãe e da avó negras. Seus pais eram pequenos agricultores e não tinham recursos, o que em sua visão significava que ele compartilhava as dificuldades da maioria dos estudantes pretos. Com a sua exclusão do processo seletivo ele não sabia mais o que pensar sobre si ou que identidade reivindicar. Ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade das comissões de heteroidentificação, discorda do fato de que pessoas como ele, com forte presença negra na sua experiência existencial, não sejam assim reconhecidos.

Em sua família, o sentimento também era de revolta. Seu tio paterno, professor de história na rede estadual de ensino e de cor parda escura, concedeu-me uma entrevista e mostrou-me o processo que havia sido levado à justiça, no qual se podiam ver fotos de familiares, aparentemente pretos, inclusive em situações reunindo o conjunto da família, como festas de aniversários etc. Para ele, a recusa de seu sobrinho era uma injustiça por duas razões. Primeiro, por ele ser pardo, filho de uma família negra. Embora não fosse nenhum militante e não tivesse uma consciência racial muito forte, não se podia negar o fato de ele ser pardo, algo evidente para ele e para toda a família. O segundo ponto era o fato de a família do candidato ser muito pobre, sem meios de pagar pelos estudos do filho em uma faculdade privada. Era, para ele, uma injustiça social também, pois estava fechando as portas da universidade para um jovem pardo pobre. Temos aqui uma outra dimensão das identidades negras, a familiar. Em pesquisa realizada em fins dos anos 1990, pude discutir como o modo como famílias negras se veem nem sempre dialoga com os discursos identitários militantes (Neves 2000NEVES, Paulo S. C. 2000. “A Questão Negra em Sergipe: visões de militantes e de não militantes”. In: XXIV ANPOCS, Caxambu.).

Inversamente, há relatos de pessoas com a pele clara e os olhos verdes ou azuis que estariam ocupando as vagas reservadas para negros. Um professor, membro de uma dessas comissões, mencionou o caso de uma jovem que se dizia negra por ter tido uma babá negra na infância. Certamente esses casos provocam um sentimento de injustiça e de que algo está errado na aplicação das políticas afirmativas nas universidades.

Da mesma forma, os relatos de jovens oriundos de famílias negras, de baixa renda e ostentando uma identidade negra, mas recusados nas comissões, também não deixam de ser algo que provoca comoção. Um professor preto de uma universidade paulista que implantara recentemente as ações afirmativas em alguns cursos me relatou sua perplexidade diante das reações que as figuras do fraudador e do pardo despertam no ambiente universitário. Ele se disse preocupado com o fato de alunas pardas, que haviam participado ativamente da proposta de criação das cotas, estarem sendo contestadas em sua negritude no interior de coletivos feministas negros, mobilizados em torno da baixa representatividade de mulheres pretas. A preocupação desse professor tinha dupla fonte. Por um lado, se condoía com o sofrimento causado às suas alunas, por outro, acreditava que sem a mobilização dos pardos os movimentos de estudantes negros teriam pequeno peso naquele momento em sua universidade.

As comissões parecem promover uma “instabilidade identitária” em indivíduos que se autodeclaram pardos. Embora na maioria das vezes o entendimento de si desses candidatos como negros seja ratificado, nos casos de não confirmação desta autoclassificação reposiciona-os em uma identidade branca não reivindicada. A publicização de casos de pessoas que, apesar de terem pais negros, são barradas nas comissões pode levar alguns a evitarem a seleção pela via das cotas.

Sistemas classificatórios em disputas

A experiência recente com as CHI tem multiplicado os posicionamentos no debate acerca do escopo e do alcance dessas bancas. As perspectivas distintas não se reduzem a uma oposição entre quem sustenta ou não o recurso ao fenótipo para chancelar o acesso às políticas afirmativas. Há uma produção constante de narrativas raciais que se estabilizam - mesmo que temporariamente - em sistemas classificatórios diferentes e em disputa. Novas formas de classificar a si e aos outros do ponto de vista da raça/cor produzem expansões e mudanças nos já complexos arranjos de relações raciais no país. Aquilo que Guimarães (2004GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2004. “Preconceito de Cor e Racismo no Brasil”. Revista de Antropologia, USP, v. 47, n. 1.; 2012GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2012. “The Brazilian System of Racial Classification”. Ethnic and Racial Studies, v. 35, n. 7:1157-1162. e 2018GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2018. “Recriando Fronteiras Raciais”. Sinais Sociais, v. 12, n. 34:21-43.), na esteira de Omi e Winant (1994OMI, Michal & WINANT, Howard. 1994. Racial Formation in the United States. 2. ed. New York: Routledge .), ajudou a difundir entre nós como a “formação racial” brasileira é desafiada e problematizada de forma sem precedentes, a partir das políticas de ações afirmativas e da instauração de CHI nas instituições de ensino superior. Ao caráter argumentativo e investigativo do ambiente acadêmico são acrescidas guinadas epistêmicas e ontológicas, que reposicionam constantemente o debate e seus analistas.

Como vimos anteriormente, as interpretações sobre o racismo no Brasil costumavam pontuar uma ambiguidade entre um padrão de desigualdades que se perpetua e atinge pretos e pardos de igual modo (Nascimento 1978NASCIMENTO, Abdias. 1982 [1978]. O genocídio do negro brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Hasenbalg 1979HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminações e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.; Hasenbalg & Gonzalez 1982GONZALEZ, Lélia & HASEMBALG, Carlos. 1982. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero. e outros) e um sistema de interações sociais mais fluidas, horizontais (Telles 2004TELLES, Edward. 2004. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. Princeton: Princeton University Press.), moles (Sansone 1996SANSONE, Lívio.1996. “Nem Somente Preto nem Negro: O Sistema de Classificação Racial no Brasil que Muda”. Afro-Ásia, Salvador, n. 18:165-187.), em que pretos e pardos nem sempre têm o mesmo estatuto. No contexto atual de existência de políticas de reparação para negros, veem-se emergir novos e complexos sistemas classificatórios de raça/cor.

Há lógicas diferentes, que atuam no nível do racismo brasileiro, e narrativas diferentes sobre o racismo em disputa, inclusive no interior do que se poderia afirmar como uma comunidade negra. O quadro que aqui construímos de maneira analítica nos leva a entender a emergência de novas identidades raciais e novas formas de interpelar o racismo, interpretar as relações raciais no país e a própria identidade nacional. As narrativas raciais que temos não foram criadas pelas comissões de heteroidentificação. Seus primórdios são muito anteriores. Porém, a partir das CHI, essas narrativas se reatualizam a partir da transversalidade das políticas públicas, em particular, políticas de educação.

Os exemplos de desfaçatez de fraudadores ou de sofrimento de jovens pardos excluídos são bastantes reais e comprovados. Contudo, para o que nos interessa nesse momento, o importante é sublinhar que esses fatos são usados tanto pelos defensores das bancas de heteroidentificação como por seus opositores como um recurso discursivo e de denúncia (Boltanski 1994) para obter a simpatia do público para uma causa: a visibilidade da extensão das fraudes, em um caso, ou as exclusões de negros das seleções, no outro. Essas visões em disputa expressam padrões classificatórios diferentes, não a respeito do racismo em si, mas acerca da forma mais adequada e eficaz para combatê-lo. Para uns, só pretos ou quase pretos são os negros aos quais se destinam as políticas públicas. Para efeito de políticas públicas, se deveria dar prioridade aos pretos e pardos de pele escura, pois. Para outros, a ancestralidade e os traços físicos dos pardos não escuros devem ser levados em conta, quando mais não seja pelo fato de que eles também sofrem os efeitos do racismo.

Se, por um lado, o modo de classificação explícita na primeira acepção contesta o modelo adotado nas políticas de ações afirmativas utilizado como bandeira pelo movimento negro dos anos 1970 em diante, por outro lado, ao longo da pesquisa, repetiu-se reiteradamente a afirmação de que pretos e pardos são negros. A ambiguidade aparece em casos limites em que alguns pardos são classificados como brancos, à revelia de suas autoclassificações e histórias familiares. Esses casos, embora provavelmente não sejam os mais frequentes, adentram a narrativa de que temos falado, pois acionam por outras vias a reparação que se está querendo promover com a política pública. Relatos de participantes de comissões que ficam constrangidos quando conversam com os pais negros de estudantes não reconhecidos como brancos não são raros. As normas e as diretrizes que impedem o uso de critérios outros além dos fenotípicos (a exemplo da ascendência direta) são bastante nítidas, porém o embaraço se instala naqueles que duvidam em parte dos mecanismos ora construídos. Nesses movimentos e nessas discussões, o debate se adensa e se enriquece, em uma disputa travada entre pessoas interessadas em controlar as fraudes nas universidades. Não temos acesso senão aos sintomas dessa disputa, como vimos até aqui. De todo modo, estamos atentos ao fato de que elas emergem e reconfiguram a cena e as narrativas sobre o racismo no Brasil a partir da oportunidade epistêmica e política que as ações afirmativas instituíram. Esperemos que pesquisas futuras possam mapear e dimensionar as várias narrativas raciais no mundo universitário e como elas têm dialogado com as transformações da sociedade brasileira das últimas décadas.

Interseccionalidade e Justiça

Como se vê, o debate sobre quem tem ou não direito às ações afirmativas vai além da discussão jurídica que muitas vezes tem sido a tônica dos argumentos pró e contra as CHIs. Afinal, as ações afirmativas devem reparar danos morais ou desigualdades sociais? Esse dilema perpassa muitos dos debates que pude acompanhar ao longo do trabalho de campo que realizei para escrever este texto.

Na esteira do pensamento de Nancy Fraser (2010)FRASER, Nancy. 2010.. Scales of Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing World. New York: Columbia University Press., que prega a indissociabilidade entre demandas por reconhecimento e demandas por redistribuição, pode-se dizer que há um consenso tácito entre os diversos atores que entrevistei ou que acompanhei em eventos públicos ou em redes sociais de que estas duas dimensões são importantes. A questão é: como conciliar esses dois princípios? Ainda segundo Fraser (2010)FRASER, Nancy. 2010.. Scales of Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing World. New York: Columbia University Press., esse dilema é próprio da nossa época, em que neoliberalismo, globalização e capitalismo marcado pela primazia dos interesses do capital financeiro colocam novos desafios para as lutas sociais emancipatórias.

Na literatura especializada percebe-se uma certa oposição entre autores que, muitas vezes influenciados por ideias psicanalíticas ou pela psicologia social, darão maior prioridade ao modo como os sujeitos vivenciam o racismo, o que os leva a pôr em evidência tensões no interior dos grupos vítimas do racismo (Hall 2021HALL, Ronald Edward. 2021. The Historical Globalization of Colorism. Cham: Springer Nature Switzerland.).

Na outra ponta dessa tensão, autores como a própria Fraser (2010)FRASER, Nancy. 2010.. Scales of Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing World. New York: Columbia University Press., Haider (2019HAIDER, Assad. 2019. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta .) e outros, vão pôr em evidência o lado político das estratégias identitárias dos atores sociais, argumentando que, embora importante, a busca identitária deve propiciar a articulação de alianças políticas antirracistas, antissexistas etc. Além disso, esses discursos poderiam esconder outras desigualdades, algo que autoras feministas negras (Hill Collins 2004COLLINS, Patricia Hill. 2004. Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism. New York: Routlegde.; Gonzalez 1984GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje: 223-244, Anpocs.; Davis 1983DAVIS, Angela Y. 1983. Women, Race and Class. New York: Vintage.) denunciavam no movimento feminista: ao estabilizar uma identidade de “mulher universal” sem levar em conta as diferenças entre mulheres brancas e negras, este movimento deixava de mostrar que estas últimas, muitas vezes, eram exploradas pelas primeiras. Assim, para elas, necessitava-se de uma teoria do justo que incorporasse o fato de que as desigualdades são múltiplas e interseccionais, exigindo ações que integrem classe, gênero, raça, cor da pele etc. Nesse sentido, alguns grupos vêm chamando a atenção para o fato de que são as mulheres negras, assim como a população trans, as que mais sofrem os efeitos do racismo no país, o que tem incitado novas formas de ações afirmativas, focadas na população transgender, nos portadores de deficiências ou em mulheres negras... Embora este não seja o foco deste texto, essas novas tendências mostram o quanto as ações afirmativas têm levado segmentos da sociedade brasileira a repensar nossas estruturas sociais e simbólicas.

Esse debate nos interpela de forma direta, haja vista a ambiguidade das injustiças raciais entre nós. As ofensas e as discriminações perceptíveis nas relações interpessoais atingem de forma mais aguda os indivíduos de pele escura, com gradações de cor importantes, enquanto as desigualdades estruturais tendem a atingir de igual modo os pretos e os pardos.

Ora, é essa tensão que parece estar aflorando nas CHIs. Afinal, o que deve ser considerado nos processos de decisão sobre quem tem ou não direito às ações afirmativas? A experiência do racismo vivido subjetivamente ou o racismo estrutural que delimita os lugares possíveis para pretos e pardos na sociedade? Esta não é uma escolha fácil e atravessa todo o debate sobre a heteroidentificação nas instituições universitárias do país.

A evolução desse debate dependerá tanto de opções políticas de gestores, militantes e outros atores envolvidos nas discussões quanto de resultados de pesquisas empíricas que possam embasar as decisões a serem tomadas. Esperamos que este texto possa ajudar nesse processo, ao mesmo tempo em que incite a realização de novas pesquisas.

Conclusão

Talvez uma boa maneira de finalizar este texto seja refletir sobre os impactos de toda essa discussão para as universidades. Independente dos debates acerca do justo e da classificação racial no Brasil que essas comissões incitam, há também efeitos práticos que necessitam ser averiguados por pesquisas futuras. A questão que parece relevante do ponto de vista acadêmico e político é discutir os desdobramentos desse debate, tanto para a vida universitária quanto para as transformações no chamado sistema classificatório racial e nas persistentes práticas racistas no país. Por exemplo, em relação à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde o debate sobre a criação das comissões de heteroidentificação foi acirrado, tendo a reitoria sido ocupada por diversos dias, Batista e Figueredo (2020BATISTA, Neusa & FIGUEREDO, Hodo Apolinário Coutinho de. 2020. “Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. Cadernos de Pesquisa [online], 50, n. 177, pp. 865-881. [Acessado 20 de julho de 2022] . Disponível em: <https://doi.org/10.1590/198053147264>. Epub 28 Out 2020. ISSN 1980-5314. https://doi.org/10.1590/198053147264.
https://doi.org/10.1590/198053147264http...
) trazem dados muito elucidativos. Em 2018, após a implantação das comissões de heteroidentificação, o número de alunos negros que conseguiu se matricular caiu em relação aos anos anteriores: em 2015 foram 911 matriculados; em 2016, 1076; em 2017, 1117; e em 2018, 436 (Batista & Figueredo 2020:876). Para os autores haveria aí uma prova de que as vagas estariam sendo preenchidas por “pessoas efetivamente negras (com fenótipo de pessoas preta ou parda)” (:878). No entanto, seria mais prudente reconhecer que os dados fornecidos pelos autores e as parcas informações que temos não nos permitem ter uma visão cristalina sobre o que está ocorrendo nas universidades após a adoção das comissões de heteroidentificação. No caso da UFRGS, que utiliza uma nota de corte na sua seleção, o efeito foi a redução do número de candidatos autodeclarados negros que se matricularam, seja por autoexclusão de pardos, temerosos de não se verem reconhecidos como tal pelas CHIs, ou por medo dos fraudadores de serem excluídos do processo.

Um representante da administração de uma universidade paulista reconheceu problema semelhante ao dizer que, uma vez que a fraude era reconhecida e que o/a aluno/a era desligado/a, nem sempre era possível alocar essa vaga para outro aluno, optante pela cota ou não. Para ele, apesar disso, havia aí um efeito pedagógico que deveria ser privilegiado, pois a intenção era evitar possíveis fraudes no futuro.

Em um texto bastante conhecido sobre os negros de pele clara, Suely Carneiro (2004CARNEIRO, Sueli. 2004. “Negros de pele clara”. In: Portal Geledès Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ ). Acesso em 20/07/2022.
https://www.geledes.org.br/negros-de-pel...
) cita os perigos de classificá-los como brancos ou mestiços, uma vez que isto significa relegitimar o discurso da mestiçagem como estratégia de embranquecimento. Tomamos como exemplo o caso da família de artistas Pitanga, em que a atriz Camila é mais clara que seu irmão (de pai e mãe) Rocco, também ator. Para ela, entender que tanto Camila quanto Rocco são negros é uma forma de lutar contra o racismo à brasileira.

Além disso, não há critérios consensuais para a classificação racial. Pesquisas de base estatística realizada por pesquisadores do IBGE (Petruccelli & Sabóia 2013PETRUCCELLI, José Luis & SABOIA, Ana Lúcia. 2013. Características Étnico-Raciais da População. Classificações e Identidades. Rio de Janeiro: IBGE.) têm demonstrado que tanto a autoclassificação quanto a heteroidentificação são processos subjetivos em que a origem socioeconômica e regional dos atores envolvidos (tanto de quem realiza quanto de quem é classificado) são elementos relevantes.

O que está ocorrendo nas universidades brasileiras talvez seja algo que diga respeito não só a efeitos pedagógicos das políticas de cotas, mas também ao dilema de se saber o que é ser negro no Brasil, ou seja, de se saber mais sobre as inúmeras e diversas experiências de enfrentamento ao racismo e suas relações com a formação das subjetividades contemporâneas. Por trás desse dilema, outros têm se delineado acerca do que caracteriza o Brasil enquanto nação. Certamente, a virada política do país à direita nos últimos anos terá consequências na evolução desse debate no futuro. Mas esta já é uma outra história.

Referências bibliográficas

  • AUTODECLARADO - Dear Brown People 2022. Filme documentário, dirigido por Maurício Costa, Brasil, Bretz Filmes.
  • AZEVEDO, Thales. de. 1996 [1953]. As elites de cor numa cidade brasileira. Um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio Salvador: Edufba.
  • BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício M. & LOVEMAN, Mara. 2018. “How States Make Race: New Evidence from Brazil”. Sociological Science, 5:722-751.
  • BATISTA, Neusa & FIGUEREDO, Hodo Apolinário Coutinho de. 2020. “Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. Cadernos de Pesquisa [online], 50, n. 177, pp. 865-881. [Acessado 20 de julho de 2022] . Disponível em: <https://doi.org/10.1590/198053147264>. Epub 28 Out 2020. ISSN 1980-5314. https://doi.org/10.1590/198053147264.
    » https://doi.org/10.1590/198053147264» https://doi.org/10.1590/198053147264
  • CAMPOS, Luiz Augusto. 2013. “O Pardo como dilema político”. Insight/Inteligência, out./dez, edição 63, Acesso em 20/07/2022. disponível em disponível em https://inteligencia.insightnet.com.br/o-pardo-como-dilema-politico/,
    » https://inteligencia.insightnet.com.br/o-pardo-como-dilema-politico/,
  • CARNEIRO, Sueli. 2004. “Negros de pele clara”. In: Portal Geledès Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ ). Acesso em 20/07/2022.
    » https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/
  • COLLINS, Patricia Hill. 2004. Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism New York: Routlegde.
  • COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. 1953. O Negro no Rio de Janeiro: Relações de Raças numa Sociedade em Mudança São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • DAFLON, Veronica Toste. 2017. Tão longe, tão perto: identidades, discriminação e estereótipos de pretos e pardos no Brasil Rio de Janeiro: Mauad X.
  • DAVIS, Angela Y. 1983. Women, Race and Class New York: Vintage.
  • DEVULSKY, Alessandra. 2021. Colorismo São Paulo. Jandaíra.
  • DIAS, Gleidson R. M. e TAVARES JUNIOR, Paulo R. F. 2018. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos Canoas: IFRS.
  • DU BOIS, William. E. B. 2021. As Almas do Povo Negro São Paulo: Veneta.
  • FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas Salvador: Edufba .
  • FERNANDES, Florestan. 1978 [1964]. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. São Paulo: Ática.
  • FOLHA DE SÃO PAULO-DATAFOLHA. 1995. Racismo Cordial São Paulo: Editora Ática.
  • FRASER, Nancy. 2010.. Scales of Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing World. New York: Columbia University Press.
  • FREYRE, Gilberto. 1995 [1933]. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob regime da economia patriarcal Rio de Janeiro: Record.
  • GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje: 223-244, Anpocs.
  • GONZALEZ, Lélia & HASEMBALG, Carlos. 1982. Lugar de Negro Rio de Janeiro: Marco Zero.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2004. “Preconceito de Cor e Racismo no Brasil”. Revista de Antropologia, USP, v. 47, n. 1.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2012. “The Brazilian System of Racial Classification”. Ethnic and Racial Studies, v. 35, n. 7:1157-1162.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. 2018. “Recriando Fronteiras Raciais”. Sinais Sociais, v. 12, n. 34:21-43.
  • GUIMARÃES, Antonio Sérgio A.; RIOS, Flavia & SOTERO, Edilza. 2020. “Coletivos Negros e Novas Identidades Raciais”. Novos estudos CEBRAP [on-line], v. 39, n. 2.
  • HAIDER, Assad. 2019. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje São Paulo: Veneta .
  • HALL, Ronald Edward. 2018. “The Globalization of Light Skin Colorism: From Critical Race to Critical Skin Theory”. American Behavioral Scientist, 1-13.
  • HALL, Ronald Edward. 2021. The Historical Globalization of Colorism Cham: Springer Nature Switzerland.
  • HALL, Ronald Edward. 2022. Interdisciplinary Perspectives on Colorism Beyond Black and White New York: Routledge.
  • HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminações e Desigualdades Raciais no Brasil Rio de Janeiro: Graal.
  • HASENBALG, Carlos & SILVA, Nélson do Valle. 1988. Estrutura social, mobilidade e raça Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ.
  • HASENBALG, Carlos & SILVA, Nélson do Valle. 1992. Relações raciais no Brasil contemporâneo Rio de Janeiro: Rio Fundo.
  • KHALEMA, Nene Ernest. 2020. “Affirming blackness in ‘Post-racial’ contexts: on race, colorism, and hybrid identities in Brazil”. African and Black Diaspora: An International Journal 13:3, 330-342.
  • MAGGIE, Yvonne. 1989. “Introdução”. In: Catálago, Centenário da Abolição Rio de Janeiro: UFRJ.
  • MOURA, Clovis.1994. Dialética radical do Brasil negro São Paulo: Editora Anita Garibaldi.
  • MOURA, Clovis.. 1988. Sociologia do negro brasileiro São Paulo: Editora Ática .
  • MOUTINHO, Laura. 2004. Razão, “cor” e desejo São Paulo: Editora Unesp.
  • MUNANGA, Kabenguele 2008. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra Belo Horizonte: Autêntica.
  • NASCIMENTO, Abdias. 1982 [1978]. O genocídio do negro brasileiro 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1985. “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. Afrodiáspora: Revista do mundo negro, n. 6-7, Ipeafro.
  • NEVES, Paulo S. C. 2000. “A Questão Negra em Sergipe: visões de militantes e de não militantes”. In: XXIV ANPOCS, Caxambu.
  • NOGUEIRA, Oracy. 1998. Preconceito de Marca: As Relações Raciais em Itapetininga São Paulo: EDUSP.
  • OSORIO, Rafael Guerreiro. 2003. O Sistema Classificatório de Cor e Raça do IBGE Brasília: Ipea.
  • OMI, Michal & WINANT, Howard. 1994. Racial Formation in the United States 2. ed. New York: Routledge .
  • PETRUCCELLI, José Luis & SABOIA, Ana Lúcia. 2013. Características Étnico-Raciais da População. Classificações e Identidades Rio de Janeiro: IBGE.
  • PIERSON, Donald. 1971. Brancos e pretos na Bahia São Paulo: Editora Nacional.
  • RAMOS, Alberto Guerreiro. 1995. Patologia social do branco brasileiro. Introdução crítica à sociologia brasileira Rio de Janeiro: UFRJ .
  • RAMOS, Arthur. 2001 [1940]. O negro brasileiro Rio de Janeiro: Graphia.
  • RAMOS, Arthur. 2004 [1949]. A mestiçagem no Brasil Trad. Waldir Freitas Oliveira. Maceió: Edufal.
  • RATTS, Alex. 2011. “Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica”. Nguzu - Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Estadual de Londrina (NEAA-UEL), ano 1, n. 1, mar.-jul.
  • REECE, Robert L. 2021. “The Future of American Blackness: On Colorism and Racial Reorganization, The Review of Black Political Economy”, 48(4), 481-505. https://doi.org/10.1177/00346446211017274.
    » https://doi.org/10.1177/00346446211017274
  • SANTOS, Sales Augusto. 2021. “Mapa das Comissões de Heteroidentificação Étnico-racial das Universidades Federais Brasileiras”. Revista da ABPN, v. 13, n. 36:365-415.
  • SANSONE, Lívio.1996. “Nem Somente Preto nem Negro: O Sistema de Classificação Racial no Brasil que Muda”. Afro-Ásia, Salvador, n. 18:165-187.
  • SANSONE, Lívio.2003. Negritude sem etnicidade Salvador: Edufba .
  • SILVA, Antonio José Bacelar da & ALMEIDA, Alba Riva Brito de. 2021. “The subject, the other, and black political identities among Afro-Brazilians”. Social Identities DOI:10.1080/13504630.2021.1952861.
    » https://doi.org/10.1080/13504630.2021.1952861
  • SILVA, Graziela Moraes & LEÃO, Luciana de Souza. 2012. “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, n. 80: 117-133.
  • SKIDMORE, Thomas E. 1989[1976]. Preto no Branco - Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro Rio de Janeiro: Paz e Terra .
  • SKIDMORE, Thomas E. 1994. O Brasil Visto de Fora Rio de Janeiro: Paz e Terra .
  • TELLES, Edward. 2004. Race in another America: the significance of skin color in Brazil Princeton: Princeton University Press.
  • SOUZA, Neusa Santos. 2019. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social Rio de Janeiro: LeBooks.
  • 1
    Gostaria de expressar minha gratidão aos dois pareceristas anônimos que me levaram a afinar os argumentos do texto, ao tempo em que propiciaram a tomada de conhecimento de uma literatura internacional sobre o tema do colorismo, conceito que tem ganhado visibilidade pública cada vez maior nos EUA, onde foi forjado, bem como entre nós. Embora não compartilhe de todas as observações críticas que foram feitas nos pareceres, deixo aqui pública minha dívida com as mesmas, na medida em que me fizeram repensar algumas das minhas conclusões. Ao mesmo tempo, agradeço também a colegas com os quais venho discutindo essa temática ao longo dos últimos anos, em especial a Laura Moutinho e Antonádia Borges, pelas contribuições que elas deram aos argumentos aqui avançados. Tudo isso, contudo, não me exime das possíveis fragilidades da metodologia empregada ou das análises realizadas, que são de minha inteira responsabilidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com