Resumo
Este artigo argumenta que, a fim de lidar com formas emergentes de governança e de política ambiental, as alegações desespacializadas e não situadas das iniciativas de dados abertos (open data) precisam ser interrogadas. Com base em uma etnografia com um projeto científico internacional na Amazônia brasileira, o artigo explora a coleta cotidiana de dados ambientais em campo como uma forma de criação do espaço, por meio de processos simultâneos de reterritorialização e desterritorialização. O artigo traz à luz o trabalho contínuo e as complexas estratificações e dobragens destas formações territoriais, bem como suas capacidades de fomentar mundos sociais e afetivos ambivalentemente diferenciados. Embora estes mundos emerjam de tecnologias de territorialização, eles não são totalmente definidos por elas. A seguir, o artigo aborda um caso contrastante de infraestruturas de dados e portais aparentemente virtuais em iniciativas de dados abertos, questionando que formas de territorialização eles poderão constituir. Ao final, apresenta a sugestão provisória de que a “abertura” não é uma forma espacial que o mundo supostamente assume, mas o próprio aparato de extensão, a maquinaria social e política de desterritorialização e reterritorialização.
Palavras-chave:
Dados ambientais; Smart Earth; Território; Espaço
Abstract
This article argues that in order to get to grips with emergent forms of environmental governance and politics, the de-spatialised and un-situated claims of open data initiatives need to be interrogated. Drawing on ethnographic work with an international scientific project in the Brazilian Amazon, the article explores the everyday collection of environmental data in the field as a way of making space, through simultaneous processes of re-territorialisation and de-territorialisation. It brings to light the ongoing labour and complex layering and folding of these territorial formations, as well as their capacity to foster ambivalently differentiated social and affective worlds. These worlds emerge from technologies of territorialisation but are not subsumed by them. The article then turns to a contrasting case, that of the apparently virtual data infrastructures and portals of open data initiatives, asking what forms of territorialisation they might constitute. The paper ends with the tentative suggestion that ‘openness’ is not a spatial form that the world is assumed to take, but is the apparatus itself of extension, the social and political machinery of de- and re-territorialisation.
Keywords:
Environmental Data; Smart Earth; Territory; Space
Resumen
Este artículo sostiene que, para abordar las formas emergentes de gobernanza y política ambiental, es necesario interrogar las afirmaciones desespaciales y no situadas de las iniciativas de datos abiertos (open data). A partir de una etnografía con un proyecto científico internacional en la Amazonía brasileña, el artículo explora la recolección cotidiana de datos ambientales en el campo como una forma de producción de espacio, a través de procesos simultáneos de reterritorialización y desterritorialización. El artículo saca a la luz el trabajo continuo y las complejas estratificaciones y pliegues de estas formaciones territoriales, así como sus capacidades para fomentar mundos sociales y afectivos ambivalentemente diferenciados. Aunque estos mundos surgen de tecnologías de territorialización, no están completamente definidos por ellas. A continuación, el artículo aborda un caso contrastante de infraestructuras y portales de datos aparentemente virtuales en iniciativas de datos abiertos, cuestionando qué formas de territorialización podrían constituir. Al final, sugiere de forma provisional que la “apertura” no es una forma espacial que supuestamente asume el mundo, sino el aparato de extensión en sí, la maquinaria social y política de desterritorialización y reterritorialización.
Palabras clave:
Datos ambientales; Smart Earth; Territorio; Espacio
Durante aproximadamente a última década, houve um aumento acentuado nos discursos que tomam dados ambientais como um recurso global para o enfrentamento da crise ambiental (Nadim 2016NADIM, Tahani. 2016. “Blind regards: Troubling data and their sentinels”. Big Data & Society , 3 (2). https://doi.org/10.1177/2053951716666301.
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). Como vários pesquisadores têm apontado, a governança ambiental orientada por dados está ganhando ritmo. Karen Bakker e Max Ritts (2018BAKKER, Karen & RITTS, Max. 2018. "Smart Earth: A meta-review and implications for environmental governance". Global Environmental Change, 52:201-211.) denominam esse modelo, que se baseia em tecnologias de monitoramento ambiental multiescalar, cada vez mais conectadas em rede, de "Smart Earth" (Terra Inteligente). Eric Nost e Jenny Goldstein também chamam a atenção para a influência que os dados ambientais exercem sobre os formuladores de políticas, governos e empresas como "[...] um recurso neutro e objetivo para a tomada de decisões responsáveis e transparentes em relação à natureza" (2021NOST, Eric & GOLDSTEIN, Jenny. 2021. “A Political Ecology of Data". Environment and Planning E: Nature and Space, 5 (1):3-17.:2) e destacam o argumento do presidente do Fundo de Defesa Ambiental dos EUA de "que chegamos à ‘quarta onda do ambientalismo’, em que as grandes quantidades de big data produzidas todos os dias superam a necessidade de governos que têm se tornado cada vez mais irresponsáveis e indiferentes" (:2-3). A fé atual no poder dos dados ambientais para lidar com tudo, desde enchentes até a fome, parece muito menos obviamente problemática do que as "soluções tecnológicas" anteriores, como as oferecidas pela geoengenharia. Quem poderia discordar do poder dos dados abertos, do compartilhamento de dados e da democracia dos dados? Parece natural que isto implique não apenas a coleta de quantidades crescentes de dados ambientais, mas também colaborações e parcerias entre atores estatais, locais e corporativos, e ambiciosas plataformas e organizações de compartilhamento de dados abertos "planetários" ou globais. Alguns exemplos dessas iniciativas de larga escala são o Intergovernmental Group on Earth Observations (Grupo Intergovernamental de Observações da Terra), o AI for Earth da Microsoft e o Programa Copernicus da Agência Espacial Europeia.
No entanto, essa confiança no poder dos dados ambientais tem sido questionada por ecologistas políticos e geógrafos críticos. A maioria deles tem apontado as maneiras pelas quais o momento atual - com o desenvolvimento dos chamados "computadores planetários" por empresas de tecnologia e o desenvolvimento privado de infraestruturas de sensoriamento remoto - repete uma relação já familiar da crise com a prática extrativista e o lucro (Nost & Colven 2022NOST, Eric & COLVEN, Emma. 2022. “Earth for AI: A Political Ecology of Data-Driven Climate Initiatives”. Geoforum, 130:23-34.). Esses autores apontam para as maneiras pelas quais a crise ambiental está servindo como justificativa para a extração de dados e as formas como eles têm se tornado valorizados nos mercados financeiros (Nost & Goldstein 2021NOST, Eric & GOLDSTEIN, Jenny. 2021. “A Political Ecology of Data". Environment and Planning E: Nature and Space, 5 (1):3-17.). Abordagens críticas em torno da big data também têm sido formuladas em outras áreas, principalmente no que se refere à extração corporativa de dados pessoais para fins lucrativos por empresas como Meta, Google e Amazon (e.g. Thatcher et al. 2016THATCHER, Jim; O’SULLIVAN, David & MAHMOUDI, Dillon. 2016. “Data colonialism through accumulation by dispossession: New metaphors for daily data”. Environment and Planning D: Society and Space , 34 (6):990-1006.; Couldry & Mejias 2019COULDRY, Nick & MEJIAS, Ulises. 2019. “Data Colonialism: Rethinking Big Data’s Relation to the Contemporary Subject”. Television & New Media, 20 (4):336-349.). Esses processos de apropriação e extração por empresas privadas têm chamado a atenção na última década, mais recentemente sob o rótulo de "colonialismo de dados" (Couldry & Mejias 2019COULDRY, Nick & MEJIAS, Ulises. 2019. “Data Colonialism: Rethinking Big Data’s Relation to the Contemporary Subject”. Television & New Media, 20 (4):336-349.), "capitalismo de plataforma" (Srnicek 2016SRNICEK, Nick. 2016. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press.) ou "capitalismo de vigilância (Zuboff 2018ZUBOFF, Shoshana. 2018. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. London: Profile Books.), e levantam preocupações mais amplas sobre a privatização, a monetização e a mercantilização de dados em geral - sejam eles dados ambientais, dados pessoais ou dados de saúde.
Esse foco na mercantilização, entretanto, tem obscurecido a atenção crítica que está sendo dada às infraestruturas dos dados ambientais que, à primeira vista, não têm o lucro como sua principal motivação. Essas iniciativas de dados abertos se baseiam em narrativas contrastantes de abertura, compartilhamento e democracia informacional. Se quisermos entender o que significa fazer política ambiental por meio de dados, é crucial que também nos voltemos a tais iniciativas, em que se presume que as práticas de dados e os imaginários que as sustentam são de alguma forma desespacializados, ilimitados e não situados. Depois de um interesse inicial nas novas formas de poder dos dados em relação ao espaço, que animou a geografia há cerca de uma década (Thatcher et al. 2016THATCHER, Jim; O’SULLIVAN, David & MAHMOUDI, Dillon. 2016. “Data colonialism through accumulation by dispossession: New metaphors for daily data”. Environment and Planning D: Society and Space , 34 (6):990-1006.), a espacialidade perdeu o protagonismo, com exceção da insistência nos tropos espaciais em torno das divisões digitais entre o norte global e o sul global. Quando se trata de dados científicos “abertos”, ainda menos pesquisadores os investigaram (embora Gabrys 2020GABRYS Jennifer. 2020. “Smart forests and data practices: From the Internet of Trees to planetary governance. Big Data & Society, 7 (1). https://doi.org/10.1177/2053951720904871.
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e Leonelli 2013LEONELLI, Sabina. 2013. “Why the Current Insistence on Open Access to Scientific Data? Big Data, Knowledge Production, and the Political Economy of Contemporary Biology”. Bulletin of Science Technology & Society, 33 (1-2):6-11. sejam exceções notáveis).13
13
Considerar também aqui a Environmental Data Governance Initiative (Iniciativa de Governança de Dados Ambientais - EDGI; cf Vera et al. 2019) e Critical GIS studies (estudos de GIS Crítico).
Neste artigo, defendo que precisamos de uma atenção renovada às espacialidades emergentes e presumidas dos dados ambientais. Isto inclui não apenas questões de acesso, mas também a investigação sobre em quais formas de espacialidade - geografias sociais, imaginários espaciais e dinâmicas - a governança de dados ambientais se baseia e se inscreve e, portanto, quais formas de política espacial ela promove.
Embora existam diferentes maneiras de abordar a questão da política espacial dos dados ambientais, neste artigo me concentro em uma forma de imaginário espacial e em um conjunto de práticas muito específicas: o território. Isto se deve, em parte, à minha tentativa de combater as afirmações desterritorializadas que têm sido feitas a respeito dos dados abertos. Uma das primeiras demonstrações promocionais on-line de uma iniciativa de dados abertos nas Ciências da Terra, por exemplo, exclamava "Countries have Borders; Earth Observations do not" (países têm fronteiras; observações da Terra não).14 14 O enunciado, posteriormente retirado do ar, encontrava-se em: http://geoss.maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=085cf926a2464132846286829864de1f. Acesso em 29/06/2016. Considerar os territórios dos dados ambientais me permitirá, entretanto, ir muito além dessa lente explicitamente geopolítica. Baseando-me na investigação de longo prazo do geógrafo Stuart Elden sobre a tecnologia política do território e, particularmente, em sua crítica às suposições de desterritorialização que caracterizaram as abordagens analíticas da globalização no início dos anos 2000, argumento que precisamos de uma abordagem relacional semelhante, que possa tratar as infraestruturas, os discursos e as práticas de dados abertos como uma forma de política espacial territorial, em que o território seja entendido como uma tecnologia política que emerge de uma determinada performance do espaço. A partir do desenvolvimento do termo por Gilles Deleuze e Félix Guattari, Elden defende uma atenção renovada à "reterritorialização" da globalização, perguntando-se sobre "como o globo está sendo reconfigurado, refeito, redividido" (2006ELDEN, Stuart. 2006. “The State of Territory Under Globalisation. Empire and the politics of reterritorialization”. Thamyris/Intersecting, 12:47-66.:57). Não vou, neste artigo, ater-me aos pormenores das conceitualizações filosóficas de Deleuze e Guattari, mas, inspirando-me na pergunta de Elden, tenho igual interesse em como analisar as reterritorializações e reconfigurações do mundo a partir das iniciativas de dados abertos na ciência ambiental.
Para começar a abordar os territórios dos dados abertos dessa forma, recorro primeiramente ao trabalho etnográfico que realizei com cientistas e técnicos de dados na Amazônia brasileira, concentrando-me na forma como os dados ambientais são coletados desde a floresta in situ, ao invés de remotamente. Embora o sensoriamento remoto tenha capturado o imaginário político contemporâneo, essa forma mais antiga de coleta de dados in situ também compartilha de muitas das práticas que caracterizam a territorialização, de acordo com Elden: cartografia, gradeamento, levantamento topográfico e a geometrização do lugar. Porém, quando se está na floresta em uma campanha de campo, medindo transectos, inserindo coordenadas no GPS ou aparando a vegetação rasteira, fica muito claro que está ocorrendo uma domesticação ativa, contínua, materialmente complicada (e muitas vezes malsucedida) do lugar. Essa compreensão experimental do que é necessário para que dados sejam coletados pode se perder sob a perspectiva do sensoriamento remoto. A coleta de dados in situ diz muito mais respeito à produção ativa de um tipo específico de espaço do que ao seu mapeamento. Mas não é só isso. A inscrição do espaço territorial no campo dessa maneira não é simplesmente reducionista, uma abstração do "espaço territorializado" a partir do "lugar situado" - mas tem implicações afetivas e sociais, além de resultar na produção de mundos sociais, mesmo que esses mundos estejam posicionados de forma ambivalente. Também não é ex nihilo. As espacialidades atuais sobrepõem-se às passadas de maneiras complexas. Uma vez que o espaço é produzido como calculável sob esses termos, ele se torna habitável para que outros mundos se fixem nele e possam se desenvolver. Ou seja, a produção do espaço envolve também a produção da diferença (Hawthorne 2019HAWTHORNE, Camilla 2019. “Black matters are spatial matters: Black geographies for the twenty-first century”. Geography Compass, 13:e12468.; McKittrick 2006MCKITTRICK, Katherine. 2006. Demonic Grounds: Black Women and the Cartographies of Struggle. Minneapolis: University of Minnesota Press.). No final do artigo, mobilizo esses insights etnográficos para levantar algumas questões sobre os imaginários territoriais e espaciais das iniciativas de dados abertos, tomando uma dessas iniciativas como um estudo de caso.
Territórios de dados sociais
Como uma tecnologia política de dominação e controle (Elden 2010ELDEN, Stuart. 2010. “Land, terrain, territory”. Progress in Human Geography , 34 (6):799-817.) que funciona em muitas dimensões espaciais, o território tem sido uma ferramenta útil para que os geógrafos críticos compreendam as coordenadas espaciais e políticas do poder, os meios pelos quais elas são implementadas e os seus efeitos. Ao se oporem a uma concepção de território como um espaço delimitado e abstrato de soberania (muitas vezes creditado aos tratados de Westfália de 1648), vários geógrafos críticos argumentaram, com uma inclinação foucaultiana, a favor de uma ideia de território como uma "tecnologia política", um "[...] processo [...] continuamente feito e refeito" (Elden 2013ELDEN, Stuart. 2013. “Secure the volume: Vertical geopolitics and the depth of power”. Political Geography, 34:35-51.:36, 2010ELDEN, Stuart. 2010. “Land, terrain, territory”. Progress in Human Geography , 34 (6):799-817.) por meio de técnicas de cálculo, medição, levantamento topográfico, cartografia (Crampton 2010CRAMPTON, Jeremy W. 2010. “Cartographic calculations of territory”. Progress in Human Geography, 35 (1):92-103.). Stuart Elden é um dos geógrafos anglófonos mais prolíficos a argumentar que o território precisa ser entendido "[...] como um modo distinto de organização social/espacial, que é histórica e geograficamente limitado e dependente, em vez de um impulso biológico ou uma necessidade social" (2010ELDEN, Stuart. 2010. “Land, terrain, territory”. Progress in Human Geography , 34 (6):799-817.:810). Com isso, ele se aproxima de outros geógrafos que estavam se opondo à ideia de um território concebido como uma área delimitada, um "contêiner da sociedade moderna" (Elden 2005ELDEN, Stuart. 2005. “Missing the Point: Globalization, Deterritorialization and the Space of the World”. Transactions of the Institute of British Geographers , 30 (1):8-19.:11, cf. Agnew 1994AGNEW, John. 1994. “The territorial trap: The geographical assumptions of international relations theory”. Review of International Political Economy, 1 (1):53-80.). Elden defende que o território pode ser mais bem entendido não como uma área de terra sob o controle soberano, mas como uma forma muito específica de se apreender e se produzir o espaço: é uma maneira de produzir um espaço calculável, cuja história remonta a Aristóteles e Descartes (Elden 2005ELDEN, Stuart. 2005. “Missing the Point: Globalization, Deterritorialization and the Space of the World”. Transactions of the Institute of British Geographers , 30 (1):8-19.).15 15 "Essencialmente, o argumento aqui é que o surgimento de uma noção de espaço se baseia em uma mudança no entendimento matemático e filosófico, relacionado particularmente à geometria. Esse desenvolvimento é acompanhado por uma mudança nas concepções do Estado e de seu território. A noção moderna de medida, que encontra seu expoente mais explícito em Descartes, vê os seres como calculáveis, como quantitativamente mensuráveis, como estendidos; para Descartes, o cálculo é a determinação fundamental do mundo" (Elden 2005:15). Segundo Elden, ao longo do Renascimento e do início do período moderno surgiu um conceito de espaço delimitado, exclusivo, calculável e abstrato e, portanto, que poderia ser "[...] sobreposto a lugares já existentes, fossem eles terra, lar ou país" como uma espécie de grade (:15-16). Essa conceituação baseou-se na ideia de ponto geométrico desenvolvida por Descartes, uma forma de geometria que poderia englobar todo o mundo. No início do período moderno, "[...] o espaço era concebido como algo que se estendia em três dimensões, qualitativamente mensurável e, portanto, passível de divisão, regulação e ordem. O sentido de ‘espaço’ - spatium -, que surge no final do período medieval e se consolida em Descartes, não é necessariamente circunscrito e dividido de maneira política em entidades soberanas separadas. Mas esse senso de espaço é uma condição necessária para tal sistema político: ele o torna possível" (Elden 2006ELDEN, Stuart. 2006. “The State of Territory Under Globalisation. Empire and the politics of reterritorialization”. Thamyris/Intersecting, 12:47-66.:55).
O território, portanto, não diz respeito, primordialmente, a fronteiras, mas é o surgimento de uma concepção específica de espaço que permite que a própria ideia de fronteiras possa se desenvolver. É também uma concepção que teve e tem correlações políticas e filosóficas, e depende de práticas "geo-métricas": "[...] estratégias de cálculo voltadas para a terra, o terreno e o território" (Elden 2013ELDEN, Stuart. 2013. “Secure the volume: Vertical geopolitics and the depth of power”. Political Geography, 34:35-51.:49), como a cartografia, a estatística e o levantamento topográfico. O território surge como uma prática e uma lógica, uma forma de espacialização que então pode dar origem a políticas territoriais de policiamento, conquista e contenção, que se evidenciam nas práticas cartográficas do colonialismo europeu. O fato de que territórios são conceitos e práticas é importante. Elden afirma que o território é constituído por meio de processos simultâneos de reterritorialização e desterritorialização, sempre em negociação com forças e entidades materiais, às quais devemos dar atenção (2006ELDEN, Stuart. 2006. “The State of Territory Under Globalisation. Empire and the politics of reterritorialization”. Thamyris/Intersecting, 12:47-66.). Embora as práticas "geo-métricas" apontadas por Elden pareçam, em sua maioria, convocar a horizontalidade - mapas, levantamentos, planos - vários autores, inclusive o próprio Elden, têm também insistido que o território seja entendido para além do bidimensional e do cartográfico, e que possa ser visto como vertical e "volumétrico" (Crampton 2010CRAMPTON, Jeremy W. 2010. “Cartographic calculations of territory”. Progress in Human Geography, 35 (1):92-103.:96 citado em Elden 2013ELDEN, Stuart. 2013. “Secure the volume: Vertical geopolitics and the depth of power”. Political Geography, 34:35-51.:35; Billé 2019BILLÉ, Franck. 2019. “Volumetric Sovereignty”. Environment and Planning D Society and Space. Forum disponível em: https://www.societyandspace.org/forums/volumetric-sovereignty.
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; Bridge 2013; cf. Elden 2021 ELDEN, Stuart. 2021. “Terrain, Politics, History”. Dialogues in Human Geography, 11 (2):170-189.para uma revisão abrangente). O "volumétrico" força a consideração do atmosférico, bem como do subsolo e do subterrâneo, além de exigir uma consideração das texturas materiais, dos fluxos e do terreno.
Quero partir desses insights para analisar as alegações de que as iniciativas de dados abertos são desterritorializadas, concentrando-me exatamente em como a reterritorialização e a desterritorialização ocorrem in situ no processo de coleta de dados ambientais. Embora as práticas de dados científicos que apresento aqui - medição da composição atmosférica, preparação dos locais de experimentos, manutenção de instrumentos científicos - possam não parecer, ou mesmo ter a intenção de ser diretamente voltadas para a territorialização da floresta, a coleta desses dados depende da ordenação e do disciplinamento do espaço, que se relacionam intimamente com a "geo-metria" descrita por Elden. Esses esforços de coleta de dados também se referem à longa história da relação entre a ciência e o império manifestos nos compromissos com o que poderíamos chamar de meio ambiente. A pesquisa científica sempre foi um elemento crucial da territorialização, desde as primeiras expedições para medir o "Novo Mundo" no século XVIII (Safier 2008SAFIER, Neil. 2008. Measuring the New World: Enlightenment Science and South America. Chicago: Chicago University Press.), passando, por exemplo, pelos levantamentos geológicos no século XIX, usados para "geologizar" o território do Canadá e torná-lo passível de novas formas de economia extrativista (Braun 2000BRAUN, Bruce. 2000. “Producing Vertical Territory: geology and governmentality in late Victorian Canada. Ecumene, 7 (1):7-46.:14), assim como pelos modelos climáticos mais recentes na Índia, mobilizados na negociação de relações internacionais (Mahoney 2014MAHONEY, Martin. 2014. “The predictive state: Science, territory and the future of the Indian climate”. Social Studies of Science, 44 (1):109-133.). No entanto, no imaginário crítico contemporâneo, a ligação entre os dados ambientais e o território tem sido frequentemente reduzida ao cartográfico, ou seja, às imagens de satélite e ao sensoriamento remoto.
Embora essas tecnologias e infraestruturas de extração de dados remotos reiterem e se apoiem no conceito de espaço geométrico descrito por Elden, a tal ponto de frequentemente serem tomadas como evidentes, o que é menos óbvio é que elas geralmente trabalham em conjunto com medições de solo feitas "no campo". Aventurando-se em campo, o que se torna claro é que essas tecnologias e práticas de espacialização, ao mesmo tempo em que territorializam, também geram formas alternativas de espaço e de lugar. Ou seja, para usar os termos de Elden, na medida em que desterritorializam, também reterritorializam, às vezes de maneiras surpreendentes. Voltando-me agora ao trabalho de campo etnográfico com cientistas e pesquisadores na Amazônia brasileira, apresento a seguir não apenas o trabalho contínuo de territorialização e as camadas de histórias e espacialidades (coloniais ou não) que estão sempre presentes quando os dados são extraídos de um terreno. Descrevo também os mundos sociais que essas coletas de dados ambientais constituem e pelos quais são constituídas, os coletores de dados e os técnicos e cientistas que trabalham para garantir sua existência contínua. Esses mundos sociais surgem como lugares de diferenciação ambivalente.
Entre 2010 e 2011, realizei um trabalho de campo etnográfico com o Large Scale Biosphere Atmosphere Experiment (Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera) na Amazônia, conhecido como LBA. Na época, esse era um projeto internacional de longo prazo liderado pelo Brasil, com sede no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) em Manaus. O projeto era composto por muitas frentes de pesquisa distintas, mas uma questão abrangente que se propunha a abordar era se a floresta amazônica estava absorvendo mais carbono do que liberando ou vice-versa. Isto era significativamente perceptível no caso dos sistemas de coleta de dados de longo prazo construídos nas últimas décadas. Esses sistemas se concentravam nas torres micrometereológicas que se estendiam por vinte metros acima da copa da floresta e eram cobertas por instrumentos que mediam continuamente tanto as variáveis que poderiam afetar o fluxo do carbono - direção e velocidade do vento, precipitação, radiação, e assim por diante - como o fluxo em si mesmo. Paralelamente a este monitoramento de longo prazo por meio das torres, supervisionado por uma equipe chamada "micro" (micro),16 16 Abreviação de "micrometeorologia", porque as torres estavam, em sua maioria, coletando dados micrometeorológicos sobre processos físicos que afetavam o fluxo vertical do carbono. havia também projetos individuais em andamento que analisavam a hidrologia, a composição do solo e a biomassa, além de visitas frequentes de cientistas não brasileiros da Europa ou dos EUA e de estudantes de doutorado do Programa de Pós-Graduação do LBA, com agendas de coleta de dados mais específicas. Portanto, havia muitas maneiras diferentes e concomitantes pelas quais os dados eram coletados, transmitidos, processados e armazenados. Os dados das torres, por exemplo, eram por vezes coletados pessoalmente, outras vezes automaticamente (embora esse sistema telemétrico ainda estivesse sendo configurado durante meu trabalho de campo e frequentemente falhasse). Para torres em locais remotos, os dados eram baixados para um disco rígido e depois enviados em um avião para então serem recolhidos no aeroporto. Os alunos de doutorado e de mestrado coletavam seus próprios dados, viajando pela floresta com a equipe micro até o local principal da pesquisa, conhecido como ZF2.
Essas infraestruturas remetem ao foco de Elden nas práticas de cálculo, levantamento, dispositivos legais, estatística e medição como produtoras de território. E, certamente, durante o período em que acompanhei a coleta de dados de vários pesquisadores na floresta, esse esforço para criar um tipo específico de espaço sempre foi um pré-requisito para qualquer coleta - desde a disposição dos transectos até a localização cuidadosa das torres ou a seleção dos locais de amostragem. Lembro-me de uma conversa particularmente confusa que tive com um micrometeorologista que, pacientemente, tentava me explicar como o ar era fracionado em "parcelas" à medida que era medido. Não parecia lhe importar o fato de que, em certo sentido, o ar não observa nenhuma divisão metrológica clara. Em outro exemplo, um estudante que estava medindo a maneira como a decomposição no solo afetava a produção de carbono passou a maior parte do tempo tentando projetar um sistema usando caixas de fibra de vidro encravadas no solo para separar e manter com precisão as áreas mensuradas e, assim, conseguir "gradear" o solo. E até mesmo para acessar os locais onde os dados estavam sendo coletados, foi necessário construir trilhas de madeira largas o suficiente para permitir a passagem de um quadriciclo pela floresta, além de pontes sobre rios e clareiras. Tudo isso criava transectos na floresta de forma linear. Em um caso, recrutaram-me para ajudar a construir uma pequena cabana plástica no meio de um parque nacional para que abrigasse um instrumento particularmente delicado que poderia medir a composição atmosférica, mas que precisava ser protegido do calor e da umidade. Para isso, foi necessário abrir cuidadosamente um espaço na vegetação rasteira, certificando-nos de que fosse plano o suficiente e de que houvesse um caminho livre para a passagem dos tubos de entrada - literalmente "criando um espaço" para o instrumento. De certo modo, esse espaço limpo e plano estava sendo sobreposto à floresta, e um sentido desse "espaço" se abstraía do "lugar". No entanto, na floresta, nada disso se parece exatamente com uma abstração, nem com uma sobreposição. Na verdade, as coisas são mais confusas e incertas do que isso.
De fato, como sustentou Mark Usher (2020USHER, Mark. 2020. “Territory incognita”. Progress in Human Geography , 44 (6):1019-1046. https://doi.org/10.1177/0309132519879492.
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), concentrar-se apenas nas práticas tecnológicas de espacialização pode marginalizar o papel voluntarioso da terra, ou do "não humano", na produção do território. Usher destaca as várias maneiras pelas quais o que ele chama de "físico" é na verdade um elemento crucial do território, argumentando que o alcance ampliado do "volumétrico" - que nos afasta do espaço abstrato 2D e nos leva a fluxos, atmosferas, oceanos, cavernas, terremotos - também nos permite ver as qualidades "nômades" do espaço territorial, "[...] obscurecendo, impedindo e evitando o domínio soberano" (Usher 2020USHER, Mark. 2020. “Territory incognita”. Progress in Human Geography , 44 (6):1019-1046. https://doi.org/10.1177/0309132519879492.
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:1035). Em uma linha diferente, Julian Clark e Alun Jones (2017CLARK, Julian & JONES, Alun. 2017. (Dis-)ordering the state: territory in Icelandic statecraft. Transactions of the Institute of British Geographers, 42 (1):123-138) também exploram a indisciplina dos vulcões e dos terremotos em seu estudo sobre a formação do Estado-nação contemporâneo da Islândia. E, certamente, durante o tempo em que estive no LBA, a coleta de dados muitas vezes estava longe de ser o que se esperava. Animais brincavam com os instrumentos, sapos caíam nos pluviômetros, abelhas faziam suas colmeias nas caixas dos registradores de dados, raios atingiam a torre. Os instrumentos ficavam cobertos de mofo se estivessem na floresta (ou de poeira e formigas se estivessem na região seca do cerrado, segundo me disseram) (Walford 2017WALFORD, Tone. 2017. “Raw Data: making relations matter”. Social Analysis, 61:2.). Muitas vezes, a equipe micro ia baixar os dados de uma das torres e acabava precisando dedicar horas ao conserto de um instrumento quebrado ou de um registrador de dados17
17
O pequeno computador que armazenava os dados dos instrumentos até que eles pudessem ser baixados.
- "soldar na floresta não é o mesmo que no laboratório!", disseram-me enquanto eu observava um deles consertando as conexões do registrador de dados com suas ferramentas dispostas precariamente a meio caminho da torre.
O terreno também costumava atrapalhar: um dos pesquisadores do LBA descobriu, durante seu doutorado, que o desnível do solo estava afetando a forma como o carbono se movia pela floresta. Enquanto as torres mediam a troca de carbono verticalmente, à medida que ele se movia entre a floresta e a atmosfera, o pesquisador notou que parte do carbono estava se acumulando e depois rolando abaixo pelas colinas, “escapando” assim de suas medições (Tota et al. 2011TOTA, Julio; FITZJARRALD, David & DA SILVA DIAS, Maria A. F. 2011. “Exchange of Carbon and Subcanopy Air Flow: Manaus LBA Site - A Complex Terrain Condition”. The Scientific World Journal, vol. 2012.). Também poderia acontecer de não conseguirem coletar nenhum dado por vários dias por causa das chuvas ou do vento, ou porque seus instrumentos - projetados para funcionar em climas europeus temperados - não funcionaram no calor ou na umidade. Os técnicos que coletavam os dados muitas vezes tinham que aprender não apenas as idiossincrasias de cada instrumento e da torre, mas também sobre a floresta e sobre como os instrumentos interagiam com ela. E não apenas isso. Uma vez alcançada, também ficou claro que a organização necessária do espaço na floresta, que a habilitava à extração de dados, implicava trabalho contínuo e, muitas vezes, negociações prolongadas com a floresta. A equipe micro gastou muito tempo na manutenção das torres e dos equipamentos e instrumentos nelas instalados - soldando conexões e retirando os sapos, como já mencionei. Mas a infraestrutura, as trilhas, as pontes e as clareiras também demandavam atenção constante. Na verdade, reparar trilhas era um dos trabalhos mais especializados das equipes de logística, já que nenhum dos cientistas conseguia realizá-lo por si só. É preciso ainda destacar que, no contexto de projetos científicos cronicamente subfinanciados, como foi o caso do LBA em alguns momentos, a natureza dessas negociações com a floresta sempre depende também das circunstâncias materiais - financiamento, acesso a instrumentos e infraestrutura. Uma pessoa com quem convivi no LBA há uma década e que agora é pós-doutoranda em uma instituição europeia bem financiada, comentou em uma conversa mais recente que uma das principais diferenças que notou entre suas duas pesquisas foi que nesta última não precisou montar e manter seu próprio experimento em campo, já que agora uma equipe de técnicos se encarregava dessas atividades.
Desse modo, podemos observar que "produzir um espaço calculável" para coletar dados não é um evento único, executado de forma limpa e fácil. Pode muito bem haver uma ideia de um espaço perfeitamente gradeado, extensível e homogêneo que sustenta os esforços de coleta de dados, mas, na prática, esse imaginário precisa ser ativamente alcançado. Os dados são o resultado de relacionamentos contínuos com a floresta, atos constantes e cotidianos de manutenção e de cuidado. Portanto, a primeira coisa que gostaria de enfatizar é que o processo de territorialização se apresenta aqui como um conjunto contínuo, às vezes frágil, de relações entre o terreno da floresta e as tecnologias, infraestruturas, técnicos e pesquisadores. A territorialização, neste caso, precisa ser constantemente criada e mantida. A abstração, em si mesma, é um trabalho contínuo e que pode não ser bem-sucedido.
Outra característica da espacialidade da territorialização encontrada em meu material etnográfico é a forma como o território é disposto em camadas, dobrado e empilhado, bem como distribuído de forma desigual. Devido ao esforço e ao custo da construção de infraestruturas na floresta, muitos dos projetos do LBA se concentraram em áreas relativamente pequenas da floresta, onde houve um investimento significativo para torná-las acessíveis, conforme já discutido. No caso da equipe de Manaus, tratava-se principalmente de uma área específica, a ZF2 (sigla para Zona Franca 2), com cerca de 34 km ao longo da rodovia e mais ou menos 10 km em uma estrada de terra que ficava cada vez mais estreita e esburacada à medida que avançávamos. Na ZF2, onde passei a maior parte do tempo durante minha pesquisa, próximo às trilhas, aos caminhos e às pontes, havia um acampamento-base com um cozinheiro que preparava nossas refeições, uma sala de jantar, um local para pendurar uma rede e uma conexão de internet muito intermitente e instável. Ao percorrer os caminhos deste acesso à floresta, por vezes também nos deparávamos com os fantasmas de experimentos passados - etiquetas enferrujadas em árvores, trincheiras outrora cavadas que já estavam sendo encobertas, restos de linha de transectos. Os esforços passados para a extração de dados sobrepunham-se aos atuais.
Mas também havia outros passados que não eram mantidos tão discretamente à sombra. Práticas anteriores de apropriação colonial vieram à tona durante o período em que realizei a pesquisa, por exemplo, na maneira como algumas pessoas falavam comigo sobre como o fluxo de dados do Brasil para a Europa e para os EUA funcionava como uma economia extrativista, uma exploração do sul global pelo norte global. Alguns comparavam essa extração à biopirataria, especificamente a do açaí. Pesquisadores que vieram dos EUA estavam cientes disso e um deles chegou a me dizer que se sentia um "imperialista científico". Outros pareciam alheios, incertos do que dizer quando perguntados por colegas brasileiros sobre para aonde os dados estavam indo e sobre quem teria acesso a eles. Mas havia, ainda, tensões entre aqueles que vinham de instituições mais bem financiadas do sul e sudeste do Brasil para fazer pesquisas na região Amazônica, e os pesquisadores dos estados ao norte do país. Nestes casos ficou claro que as espacialidades do controle territorial não repousavam simplesmente sob as formações globalizadas mais contemporâneas, mas eram ativamente desencadeadas e vivenciadas pelas pessoas.
Além disso, o nome da área de pesquisa se refere à Zona Franca de Manaus, uma zona econômica livre de regulamentações comerciais criada nas décadas de 1950 e 1960 para estimular o desenvolvimento econômico na região e povoar a área. Entretanto, à época, não houve recursos para amparar o fluxo subsequente de pessoas para a cidade, o que se traduziu em uma "[...] precária informalidade. Não havia infraestrutura e moradias suficientes para acomodar as massas de trabalhadores pouco qualificados, que se tornaram trabalhadores fabris mal remunerados e subempregados" (Kanai 2013KANAI, Juan Miguel. 2013. “On the peripheries of planetary urbanization: globalizing Manaus and its expanding impact”. Environment and Planning D: Society and Space , 32:1071-1087. :2392). Como a maioria dos técnicos que coletavam os dados e cuidavam dos locais de pesquisa no LBA era de moradores da região de Manaus, é preciso considerarmos que as formações econômicas neoliberais do território também são uma parte importante dessa história. E, é claro, paralelamente a tudo isso, também se colocam as lutas intermináveis dos povos indígenas no Brasil por seu território, pela demarcação e proteção de suas terras. Enquanto estive no LBA, isso raramente era discutido abertamente, ao menos não na minha frente. O único exemplo foi em relação à torre meteorológica do LBA perto de São Gabriel da Cachoeira, no Parque Nacional do Pico da Neblina, que exigiu negociação com autoridades estaduais e lideranças indígenas da região. De modo mais geral, durante o período em que realizei a pesquisa, tomei conhecimento sobre discussões a respeito de outros contextos em que pesquisadores almejavam trabalhar em determinadas áreas no Brasil, mas cada vez mais eram confrontados com os direitos territoriais indígenas, à medida que um número crescente de comunidades exigia a obtenção de suas licenças e permissões. Ao mesmo tempo, como demonstram os recentes acontecimentos políticos no Brasil, sabemos que esses direitos estão constantemente sob risco e ameaça.
Embora esteja além do escopo deste artigo traçar uma história dos séculos de colonização do Brasil e da violenta desapropriação das terras de povos indígenas que a acompanha, bem como da subsequente história econômica da região, a pesquisa etnográfica mostra que essas histórias não se conservam simplesmente adormecidas sob relações mais contemporâneas, mas são constantemente reiteradas em versões retorcidas. Theo Vurdubakis e Raoni Rajão mapeiam, por exemplo, como a pesquisa científica foi inscrita em modelos de desenvolvimento que se estabeleceram a partir da militarização da Amazônia e do policiamento de suas fronteiras. Os autores descrevem como o intenso monitoramento remoto da região Amazônica foi iniciado pelos militares brasileiros na década de 1980, preocupados com a possibilidade de colonos de países vizinhos estarem "se infiltrando em partes remotas da região", ao mesmo tempo em que fazendeiros do Nordeste eram incentivados a colonizar a área (Vurdubakis & Rajão 2022VURDUBAKIS, Theo & RAJÃO, Raoni. 2022. “Envisioning Amazonia: Geospatial technology, legality and the (dis)enchantments of infrastructure”. Environment and Planning. E: Nature and Space, 5 (1):81-103.:83). Assim, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) foi criado com a intenção expressa de "[...] 'fornecer informações para melhorar o processo de ocupação da Amazônia' (Novaes et al. 1980NOVAES RA et al. 1980. Relatório de atividades do ano de 1979: Departamento de sensoriamento remoto e programas da área. São José dos Campos: INPE.:10)" (:84). Vurdubakis e Rajão acompanham como essa preocupação com a soberania lentamente se transformou em um discurso sobre desenvolvimento. Os cientistas do INPE estiveram intimamente envolvidos nessa transformação, uma vez que as questões associadas à colonização da Amazônia (como o desmatamento, por exemplo) de repente se tornaram problemas que exigiam medição e monitoramento científicos: "A floresta amazônica não era mais uma selva impenetrável esperando para ser domada pelo empreendimento humano, mas um ecossistema frágil que precisava de proteção" (:85). Isto levou à criação do órgão de fiscalização ambiental Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), responsável pelo controle do desmatamento na região. E, de fato, em vários locais que visitei na Amazônia, os cientistas do LBA mantinham contato frequente com funcionários do Instituto. Portanto, a maneira como essas diferentes formas de expansão territorial surgiram e ressurgiram durante meu trabalho de campo foi complexa, multiescalar e temporalmente diferenciada.
Neste contexto, a territorialização emerge em um registro temporal como uma camada contínua de reivindicações espaciais e, na verdade, de formas específicas de espaço. Essas minhas observações se aproximam da ideia de "polimorfia espacial" de Bob Jessop, Neil Brenner e Martin Jones, quando pensam em como diferentes tipos de formação espacial - rede, lugares, escalas e territórios, especificamente - podem ser entrelaçados e, principalmente, podem resultar em configurações socioespaciais relacionais contraditórias, conflitantes e voláteis (2008JESSOP, Bob; BRENNER, Neil & JONES, Martin. 2008. "Theorizing sociospatial relations”. Environment and Planning D: Society and Space, 26 (3):389-401.:394). Como Byrne et al. apontam em relação às reivindicações territoriais no Nepal, "[...] a construção do território [...] é o efeito do emaranhado de diferentes políticas e práticas territoriais" (2016BRYNE Sarah; NIGHTINGALE, Andrea J. & KORF, Benedict. 2016. “Making territory: War, post-war, and the entangled scales of contested forest governance in Mid-Western Nepal”. Development and Change, 47 (6):1269-1293.:1272). Os autores exploram a maneira como uma floresta nepalesa tem sido objeto de contestação pelo Departamento Florestal, por rebeldes maoístas, por funcionários distritais e por notáveis locais, bem como por Grupos de Usuários Comunitários da Floresta (Community Forest User Groups) desde a década de 1960. A partir do exame de esforços mais recentes para a reinscrição de fronteiras como parte da federalização nepalesa, eles nos apresentam a territorialização como "um processo multissituado e constituinte de uma infinidade de espaços políticos" (:1273), por vezes contraditórios. De modo semelhante, o uso da ideia de "palimpsesto" por Thomas Sigler (2014SIGLER, Thomas. 2014. “Panama as Palimpsest: The Reformulation of the ‘Transit Corridor’ in a Global Economy”. International Journal of Urban and Regional Research, 38 (3):886-902.) ao descrever a reinscrição de "camadas" de territorialidade no corredor de trânsito do Panamá também permite mostrar como os territórios são "[...] tecidos que foram reformulados várias vezes ao longo da história" (:887). Em vez de usar o termo palimpséstico para demonstrar como o território sobrescreve as estruturas e as relações socioculturais, Stigler destaca as camadas inerentes à própria territorialização. Isto possibilita não apenas uma abordagem historicizada, mas também uma abordagem temporal mais abrangente que leva em conta a efemeridade das formações territoriais. Todas essas noções nos permitem tanto ver um efeito de camadas, à medida que diferentes conjuntos de tecnologias, práticas e reivindicações são empilhados uns sobre os outros ao longo do tempo e por diferentes atores, quanto questionar como elas são relacionadas entre si e podem perdurar ao longo do tempo.18 18 Para além do escopo deste artigo, mas também crucial neste ponto, são os trabalhos dos estudos raciais críticos (critical race studies), que enfatizam como o passado (socioespacial) não está simplesmente submerso ou escrito sobre, pois pode ser constantemente reinscrito. A noção de "vida após a escravidão", de Saidiya Hartman, destaca não apenas o efeito que a escravidão teve sobre as pessoas escravizadas ao cortar violentamente sua conexão com seus parentes e suas histórias, mas também exige que reconheçamos como "[...] vidas negras ainda são ameaçadas e desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram enraizados séculos atrás" (2007:6).
Reconhecer essa dobra e a pluralidade dos espaços territoriais é, de fato, crucial para entendermos as forças socialmente produtivas da territorialização - sua capacidade de produzir, por exemplo, noções de cidadania ou de Estado - e também as possibilidades políticas para aqueles que vivem nesses espaços territorialmente emaranhados. O último ponto que gostaria de destacar a partir de meu material etnográfico é a maneira como essas tecnologias territoriais têm socialidades que as constituem e pelas quais são constituídas. Por um lado, os técnicos, mateiros (técnicos da floresta) e coletores de dados que passavam a maior parte do tempo no acampamento base da ZF2 na floresta estavam certamente em uma economia de trabalho precária e me contavam de seu desejo por mais estabilidade e dinheiro (Walford, no prelo). Por outro lado, eles me diziam que adoravam sair para a floresta e se referiam a si mesmos como uma "família". Alguns deles tiveram que ficar no acampamento-base, longe de suas famílias em Manaus, por semanas a fio, e estavam constantemente entrando e saindo da floresta. Havia um senso muito claro de conexão afetiva entre eles e a floresta, assim como entre eles mesmos (vários se conheciam há anos, já que coletores de dados e mateiros experientes eram difíceis de se encontrar). Havia também um forte contraste com os pesquisadores europeus ou norte-americanos que vinham ao país para campanhas circunscritas de coleta de dados, permanecendo no acampamento-base por poucos dias a cada vez. Em sua maioria, eles não falavam português e, portanto, não participavam das frequentes brincadeiras e piadas entre os coletores de dados e os técnicos de longa data, dos quais, muitas vezes, dependiam totalmente para a realização de suas coletas. Em uma ocasião, um dispositivo de armazenamento de dados pertencente a um dos pesquisadores estrangeiros desapareceu, e ele acusou alguém dentre os técnicos e funcionários do LBA no acampamento-base de tê-lo pegado. Houve indignação na equipe e uma recusa absoluta de que alguém pudesse ter feito isso. Após uma busca mais extensa, o dispositivo foi encontrado em um Land Rover. Mas foi evidente o imediatismo da resposta afetiva e a forma como os técnicos se uniram. Como essas infraestruturas e configurações territoriais são estabelecidas por longos períodos de tempo, elas criam universos relacionais ao seu redor. Esse processo se assemelha muito às observações de Cal Biruk (2018BIRUK, Cal. 2018. Cooking Data: culture and politics in an African Research World. Durham, NC: Duke University Press.) sobre os "mundos dos surveys" que se aglutinam em torno da coleta de dados sobre saúde no Malawi. Biruk desenha habilmente os complexos conjuntos de relações que emergem por meio da coleta de dados "bons e limpos", seja entre o coletor de dados e aqueles que têm seus dados coletados, entre demógrafos, entre trabalhadores humanitários e a população local, ou entre antropólogos e aqueles que tentam conhecer. Novamente, a coleta de dados, na interpretação de Biruk, não é um evento único, uma extração limpa de informações. Por mais que alguns pesquisadores desejem que seja, esse procedimento traz à existência e sustenta certos tipos de mundos ricos em texturas e subjetificações (:5).
Poderíamos interpretar o surgimento de tais mundos de pesquisa, que se acumulam material e afetivamente em torno da coleta de dados, como uma espécie de enraizamento ou enxerto de mundos sociais nos espaços padronizados, quadriculados e territorializados da produção de conhecimento científico. Isto também remonta ao uso que Anna Tsing, Jennifer Deger, Alder Keleman Saxena e Feifei Zhou fazem de "ecologias ferais" em seu Feral Atlas (Atlas Feral): "[...] ou seja, ecologias que foram incentivadas por infraestruturas construídas pelo homem, mas que se desenvolveram e se espalharam para além do controle humano".19 19 Disponível em: https://feralatlas.org/#:~:text=The%20More%2DThan%2DHuman%20Anthropocene&text=Seventy%2Dnine%20field%20reports%20from,and%20spread%20beyond%20human%20control. Acesso em 01/07/2024. Da mesma forma, os mundos sociais de coleta de dados que encontrei estavam brotando de infraestruturas que não tinham a intenção de fomentá-los. Mas, ao mesmo tempo, uma ótica espacial também aponta para o modo como - longe de padronizar, identificar e abstrair - "criar espaço" também é sempre uma questão de "criar diferenças" (Hawthorne & Lewis 2023HAWTHORNE, Camilla & SCOTT LEWIS, Jovan. 2023. The Black Geographic: Praxis, Resistance, Futurity. Durham, NC: Duke University Press .). Os estudos da Geografia Negra (Black Geography) têm sido fundamentais para enfatizar a maneira como a criação de espaço não é um processo abstrato e neutro, mas histórico e, ainda, como distribui e situa as pessoas como espacialmente diferenciadas: sem lugar, nas margens, estrangeiros (Hawthorne 2019HARTMAN, Saidiya. 2007. Lose Your Mother: A Journey along the Atlantic Slave Route. New York: Farrar, Straus and Giroux.; cf. McKittrick 2006MCKITTRICK, Katherine. 2006. Demonic Grounds: Black Women and the Cartographies of Struggle. Minneapolis: University of Minnesota Press., 2011MCKITTRICK, Katherine. 2011. “On plantations, prisons, and a Black sense of place”. Social & Cultural Geography, 12 (8):947-963.). De acordo com Camilla Hawthorne:
Tal ênfase contraria as tendências de longa data na disciplina da geografia, nas quais os negros eram vistos como desprovidos de geografia (devido ao intenso comércio transatlântico de escravos); ou como vítimas da geografia (devido às práticas contínuas de deslocamento e de segregação espacial). Em conjunto, esses modos de análise apagam o senso de lugar dos negros (McKittrick 2011MCKITTRICK, Katherine. 2011. “On plantations, prisons, and a Black sense of place”. Social & Cultural Geography, 12 (8):947-963.) e perpetuam uma perigosa compreensão do espaço como transparente, das geografias como estáticas, inertes e evidentes, e dos arranjos espaciais atuais como naturais, inocentes e a-históricos (McKittrick 2006MCKITTRICK, Katherine. 2011. “On plantations, prisons, and a Black sense of place”. Social & Cultural Geography, 12 (8):947-963.:5-6 citado em Hawthorne 2019HAWTHORNE, Camilla 2019. “Black matters are spatial matters: Black geographies for the twenty-first century”. Geography Compass, 13:e12468.:5).
"Tornar o espaço calculável", nos termos de Elden, também deve ser lido por meio dessa lente uma vez que tais práticas de cálculo, como a “geo-metria”, são tecnologias políticas restritas a apenas algumas pessoas, enquanto outras se tornam objetos do cálculo e da espacialização. Como observa Katherine McKittrick, em tais regimes, "[...] as populações subalternas não têm relação com a produção do espaço" (em Hawthorne & Lewis 2023HAWTHORNE, Camilla & SCOTT LEWIS, Jovan. 2023. The Black Geographic: Praxis, Resistance, Futurity. Durham, NC: Duke University Press .:). A geo-metria também eclipsa suas próprias capacidades de política espacial para além da contenção, o que fica evidente no exemplo acima mencionado. Os “mundos sociais de dados” que se desenvolvem ao longo dos sulcos cortados pelas práticas de territorialização permitem a proliferação e o florescimento relacional, ao mesmo tempo em que localizam aqueles que “vivem lá” como criminosos em potencial.
Voltando ao contexto das reivindicações desterritorializadas de iniciativas emergentes de dados abertos e das formas corolárias de política ambiental, parece evidente que esses mundos sociais de coleta de dados ambientais devem ser mantidos em mente quando se pensa sobre o que significa "abertura" (Walford 2021WALFORD, Tone. 2021. “Data - Ova - Gene - Data”. Journal of Royal Anthropological Institute, 27, s1.). Esse é um movimento etnográfico familiar: aterrar abstrações no cotidiano e, dessa forma, restringir seu poder. Além disso, em vez de apenas contrapor as narrativas de abertura infinita - desterritorialização - com realidades sociais situadas - reterritorialização -, podemos começar a interrogar e desemaranhar os correlatos espaciais da própria abertura. Ou seja, podemos nos perguntar: se entendermos que o espaço está sempre carregado de diferenças, que tipo de criação de espaço é a abertura? Que formas de territorialização fazem emergir? Abordarei este assunto na seção final do artigo.
Dos dados abertos à Earth Intelligence
Embora no contexto acima eu aterre os dados ambientais nos locais de seu surgimento e coleta, locais que são simultaneamente territórios e mundos sociais, para finalizar, eu me volto às maneiras pelas quais dados ambientais podem ser vistos como desterritorializados à medida que se tornam parte de imaginários espaciais de abertura, fluxo e democracia informacional planetária. Aqui me concentro especialmente no Intergovernmental Group on Earth Observations (Grupo Intergovernamental de Observações da Terra - GEO). Quando examinamos o site do GEO, os mundos sociais de coleta de dados que acabei de apresentar parecem ter ficado para trás. Os dados entram em um espaço aparentemente virtual de bancos, portais, infraestruturas e formatações de dados. Neste ponto, no entanto, volto-me uma vez mais ao trabalho de Elden, que no início dos anos 2000 se opunha a uma abordagem análoga da globalização, que sugeria o fim do território e do Estado e a ascensão de uma época de total desterritorialização. O autor argumenta que a globalização não "escapa da lógica do território" (2005ELDEN, Stuart. 2005. “Missing the Point: Globalization, Deterritorialization and the Space of the World”. Transactions of the Institute of British Geographers , 30 (1):8-19.:16), mas a amplia para abranger o mundo inteiro:
A globalização - ontologicamente - baseia-se exatamente na mesma ideia de espaço homogêneo e calculável. É, efetivamente, uma continuação do pensamento cartesiano por outros meios. O que pode ter acontecido é que o espaço abstrato que impusemos sobre o mundo é tomado cada vez mais como real em si mesmo, e não mais como um reflexo de algo que procura representar (Elden 2005ELDEN, Stuart. 2005. “Missing the Point: Globalization, Deterritorialization and the Space of the World”. Transactions of the Institute of British Geographers , 30 (1):8-19.:16).
Atendendo ao apelo de Elden, pergunto-me que tipo de reterritorialização está ocorrendo nas mudanças, globais ou planetárias, em direção a iniciativas cada vez mais ambiciosas de dados ambientais abertos? Para começar a responder a esta indagação, gostaria de apresentar brevemente o Intergovernmental Group on Earth Observations (GEO). Trata-se de uma organização que tem como objetivo fornecer dados da Terra "para todos", ou seja, desenvolver infraestruturas para compartilhar dados em todo o mundo, bem como promover parcerias e colaborações voltadas a este fim. Ela é formada por agências governamentais, organizações civis e do terceiro setor, universidades e institutos de pesquisa. Como não realizei etnografia com esta organização, estou me baseando em seu site e nos documentos nele abrigados. Mas este material é suficiente para começar a delinear as lógicas ou os imaginários espaciais que sustentam essas iniciativas. Voltando-nos à forma como o GEO se apresenta on-line, certamente podemos identificar as marcas registradas de muitos outros projetos de dados abertos. Seu site nos informa:
Nosso planeta enfrenta desafios que não cessam nas fronteiras. Desde as questões urgentes das mudanças climáticas, a alarmante perda da biodiversidade, até a poluição generalizada que afeta nossas terras, céus e mares, há muito em jogo. Embora os desafios sejam integrados, a resposta global geralmente permanece fragmentada. Em meio ao fluxo cada vez maior de informações e fontes de dados, há uma lacuna notável nas parcerias globais coesas. É aqui que a GEO entra em cena, esforçando-se para unificar esses esforços fragmentados e defendendo a inclusão na busca por soluções holísticas para os desafios globais.20 20 Disponível em: https://earthobservations.org/mission/geo-at-a-glance. Acesso em 01/07/2024.
Há claramente um apelo a uma ideia específica do problema que o GEO, como representante da humanidade, enfrenta: o fato de o planeta ser um todo integrado, mas nossas “respostas” serem fragmentadas. Como, então, integrar também a governança da Terra a fim de garantir “soluções holísticas” para os problemas globais? Durante o tempo em que estive acompanhando essa iniciativa de longe (cerca de quatro anos), o GEO deixou de ser uma organização fragmentada e virtual como parecia a princípio e, aos poucos, se estabeleceu em uma série de projetos e programas de pesquisa diferentes, lidando com tudo, desde a perda de biodiversidade até a segurança da água. Mas houve também uma consolidação deliberada em torno de outro termo mobilizador: Earth Intelligence (Inteligência Terrestre). Como podemos ver acima, o problema não são apenas as respostas fragmentadas às catástrofes ambientais globais. O problema também é, de fato, a "inundação cada vez maior de informações e de fontes de dados". Se outrora o apelo costumava ser "dados abertos para todos", ele agora se transformou em "Earth Intelligence para todos", de modo que a missão do GEO passou a ser:
[...] coproduzir soluções de Earth Intelligence voltadas para o usuário. Ao coletar e compartilhar informações vitais, que vão desde imagens de satélite de florestas até leituras de temperatura oceânica e muito mais, a GEO oferece uma visão abrangente do bem-estar do nosso planeta, permitindo-nos monitorar e proteger sua saúde. Esses não são apenas conjuntos de dados; eles são as ferramentas que informam as decisões, moldando políticas e iniciativas que orientam a sociedade para um futuro sustentável em todo o mundo.21 21 Disponível em: https://earthobservations.org/mission/geo-at-a-glance. Acesso em 01/07/2024.
O próprio GEO narra essa mudança nos documentos do Plano Estratégico disponíveis em seu site: de 2005 a 2015, o foco estava em "dados para todos"; de 2016 a 2025, em "serviços para todos"; de 2025 em diante, o objetivo é "Earth Intelligence for All" (Inteligência Terrestre para todos). (GEO 2024:3).22 22 Disponível em: https://earthobservations.org/resources#key - Documento completo da estratégia pós-2025 do GEO. Acesso em 01/07/2024. No mesmo documento, o GEO define o que entende por "Earth Intelligence":
A Earth Intelligence compreende conhecimentos e percepções integrados derivados das ciências sociais e da Terra que informam decisões estratégicas, desenvolvem habilidades e capacitam a sociedade para enfrentar desafios ambientais, sociais e econômicos. Seu design é baseado nas necessidades dos usuários em todas as escalas e setores, e integra dados de observação da Terra, dados socioeconômicos, pesquisa e ciência, observações dos cidadãos, conhecimento indígena e outras fontes de informação, combinando-os com modelagem, previsão e análise de cenários (GEO 2024GEO. 2024. https://earthobservations.org/organization/governance.
https://earthobservations.org/organizati... :15).23 23 Disponível em: https://earthobservations.org/resources#key - Documento completo da estratégia pós-2025 do GEO. Acesso em 01/07/2024.
Uma mudança adicional pode ser observada com a ênfase direta e deliberada na equidade: o que significa "para todos"? “O GEO buscará a equidade global na observação da Terra, disponibilizando recursos e oportunidades que levem a melhores resultados em comunidades com necessidades e capacidades variadas” (GEO 2024GEO. 2024. https://earthobservations.org/organization/governance.
https://earthobservations.org/organizati...
:15).
O que é interessante aqui é a tensão entre um apelo a um mundo integrado que precisa de mais do que uma resposta fragmentada e um reconhecimento de como diferentes grupos de pessoas podem ocupar esse mundo. É claro que este é um estilo muito genérico de redação e apresentação. Sem dúvida, há muito mais acontecendo no GEO do que essas frases de efeito deixam transparecer. No entanto, elas estão sinalizando um imaginário espacial muito específico e familiar. Eu me apoio na ideia de "imaginários" espaciais de Gonin et al. (2024GONIN, Alexis; ETELAIN, Jeanne; MANIGLIER, Patrice & BRIGHENTI, Andre Mubi. 2024. "Terrestrial territories: From the Globe to Gaia, a new ground for territory".Dialogues in Human Geography: 1-19.), que desenvolvem as críticas de Elden à globalização, observando que, por trás das tecnologias de cálculo, há o que esses autores chamam de "imaginário espacial" do "globo". Caracterizado como um produto da Renascença, um "novo conceito da Terra" (:7), mas "[...] concebido como uma extensão homogênea, uniforme e contínua" (:7), o argumento de Gonin et al. coincide até certo ponto com o de Elden. No entanto, eles vão adiante e argumentam que o Antropoceno marca a passagem de "globo" para "Gaia" no imaginário espacial: “Gaia é [...] uma Terra que se apresenta como muito mais heterogênea, dinâmica e irregular do que se pensava anteriormente, não mais divisível em unidades discretas, idênticas e justapostas que possam ser reivindicadas ou ocupadas por um grupo ou uma instituição” (:3).
Gaia, argumentam (por meio de uma leitura atenta do pouco que Latour escreveu sobre a ideia de "território"), não está vinculada a um governo soberano, mas a uma entidade planetária. Ela própria é um ator territorial, não uma moldura dentro da qual outros agentes podem atuar. Mas também não é um "todo harmonioso", nem a soma de suas partes. Em vez disso, Gaia é uma "[...] entidade profundamente múltipla, plural e inerentemente diferenciada" (:11), intrinsecamente dividida, ou ainda "[...] uma rede em constante evolução de processos físicos, químicos e biológicos acoplados, onde rocha, solo, água, ar e organismos vivos moldam o planeta por meio de suas atividades e interações combinadas" (:10). Neste sentido, a recusa a restringir Gaia significa que ela pode se tornar "[...] uma ponte entre diferentes narrativas e um ponto de encontro para diversas vozes [...] Ela não apenas detém o potencial de remodelar nossa compreensão coletiva da Terra, mas também de criar uma plataforma mais inclusiva para a produção de conhecimento" (:9). Gaia, argumentam, exige uma nova compreensão, portanto, da territorialização que possa levar em conta essa heterogeneidade radical.
Se existe uma mudança no imaginário espacial do globo para Gaia, então seria bem possível que os dados abertos fossem seu correlato territorial. Como Gonin et al apontam, Gaia emerge da "[...] racionalidade moderna, ancorada em modos científicos de investigação, instrumentos técnicos, modelos matemáticos, conjuntos de dados e assim por diante" (:9). Gaia, então, poderia ser um imaginário espacial que emerge e sustenta os tipos de iniciativas de dados abertos que me interesso por interrogar. Mas não parece ser o caso. Na forma como o GEO apresenta esse imaginário, há um claro apelo ao mundo como unificado e integrado. Para eles, o mundo pode estar em crise, ou seja, estar em um estado de desordenamento, mas o real problema repousa nas respostas desintegradas da humanidade, decorrentes de práticas ruins (porque fragmentadas) de manejo de dados. Qualquer diferença passa a ser reenquadrada como diversidade - como um tipo de multiculturalismo que ainda tem algo a acrescentar a um mundo unificado em luta contra variados desastres ambientais. A aritmética, neste caso, é ainda unitária e global, muito distante da Gaia que Gonin et al. nos apresentam.
Mas algo mudou. Quero me deter na passagem de dados abertos para Inteligência Terrestre que caracteriza o GEO em sua visão para o futuro. Isto está em sintonia com o que Halpern et al. (2021HALPERN Orit; JAGODA, Patrick.; KIRKWOOD, Jeffrey West & WEATHERBY, Leif. 2021. “Surplus Data: an introduction”. Critical Inquiry, 48 (2):197-210.) chamaram de mudança de "big data" para "dados excedentes". Aqui, o excedente indica a transformação da "quantidade" em "qualidade" ou, como também afirmam, o excedente é a própria qualidade da quantidade:
O paradigma big é uma designação quantitativa dos próprios dados; o excedente é a qualidade do social após o aumento quantitativo. Essa transformação da quantidade para a qualidade exige uma nova concepção da relação entre o que está sendo medido e representado pelos dados e sua eficácia e impacto no mundo (:199).
Em outro contexto, aquele do dilúvio de dados na genômica, Jenny Reardon (2018REARDON, Jenny. 2018. The Postgenomic Condition: Ethics, Justice, and Knowledge after the Genome. Chicago: University of Chicago Press.) abordou essa mudança como o surgimento da "condição pós-genômica", que se caracteriza pela busca do que chama de "significado": agora que coletamos todos esses dados genômicos, o que eles significam e para quem? Essa mudança para uma busca por "inteligência", "qualidade" ou "significado" é uma característica do momento atual dos dados, no qual, novamente citando Halpern et al.,
[...] a transformação de um recurso finito, embora extremamente volumoso, em uma fonte aparentemente infinita de valor, por meio da recombinação e descoberta de novas relações e padrões no mesmo conjunto de dados... Essa forma de derivação e otimização se baseia na extensão da vida útil dos dados para além do uso previsto em sua coleta inicial (2021HALPERN Orit; JAGODA, Patrick.; KIRKWOOD, Jeffrey West & WEATHERBY, Leif. 2021. “Surplus Data: an introduction”. Critical Inquiry, 48 (2):197-210.:200-201).
Para voltarmos à questão da política espacial, é com o termo "extensão" que gostaria de encerrar. A desterritorialização e a reterritorialização parecem se basear em uma série de abstrações e sobreposições, por mais difíceis ou frágeis que sejam. Isto remete à antiga tensão entre o mapa e o que é mapeado, o que implica uma dinâmica de representação, mesmo que performativa, na qual o mapa cria o que é mapeado. Aquilo com que nos deparamos em iniciativas como o GEO são infraestruturas e imaginários de extensão e recombinação - espacialidades “achatadas”.24 24 Curiosamente, é também assim que Gonin et al. (2024:10) caracterizam Gaia: "Essa falta de totalidade significa que Gaia nada mais é do que 'o que esses agentes entrelaçados têm produzido por meio de seus emaranhados' (Latour & Lenton, 2019:664). Em outras palavras, Gaia é algo que é 'adicionado' - uma 'extensão', como colocado por Sébastien Dutreuil - ao lado de suas partes: 'o todo não é nada acima das partes, mas está em continuidade com as partes - a palavra parte sendo uma maneira de nomear desajeitadamente como os elementos se sobrepõem uns aos outros' (Latour & Lenton, 2019:677)." Portanto, sou menos otimista do que eles em relação ao potencial radical de Gaia como imaginário espacial. Embora possa defender uma geometria espacial holística integrada, na qual tudo se soma, o GEO funciona como uma extensão infinita que a complexifica indefinidamente: inteligência terrestre (que é tudo) para todos (todo mundo). O GEO não se enquadra como um mapa, ele é o meio para se fazer um mapa. Na verdade, o meio de se fazer um milhão de mapas. Nesta perspectiva, a abertura, como afirmei anteriormente, não é uma forma espacial que o mundo supostamente assume, mas o tecido conjuntivo entre os mundos, o aparato do excedente. É a maquinaria social e política de desterritorialização e reterritorialização, não aquilo que está sendo territorializado - tão ampla que se torna sua própria entidade. Desta forma, a abertura nos força a confrontar um terceiro elemento do velho adágio: não se trata nem de mapa nem de território, mas do que está no meio, a materialização da relação entre os dois. As infraestruturas, os portais, os sites, os bancos de dados e as comunidades de pessoas que os constroem e trabalham com eles instanciam essa relação, além de mantê-la e renová-la constantemente. No entanto, ao materializar essas relações desta forma, também apresentam a possibilidade de que possam ser arranjadas de um modo diferente.
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13
Considerar também aqui a Environmental Data Governance Initiative (Iniciativa de Governança de Dados Ambientais - EDGI; cf Vera et al. 2019VERA, Lourdes; WALKER, Dawn; MURPHY, Michelle; MANSFIELD, Becky; SIAD Ladan Mohamed; OGDEN, Jessica & EDGI. 2019. "When data justice and environmental justice meet: formulating a response to extractive logic through environmental data justice". Information, Communication & Society, 22 (7):1012-1028.) e Critical GIS studies (estudos de GIS Crítico).
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14
O enunciado, posteriormente retirado do ar, encontrava-se em: http://geoss.maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=085cf926a2464132846286829864de1f. Acesso em 29/06/2016.
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15
"Essencialmente, o argumento aqui é que o surgimento de uma noção de espaço se baseia em uma mudança no entendimento matemático e filosófico, relacionado particularmente à geometria. Esse desenvolvimento é acompanhado por uma mudança nas concepções do Estado e de seu território. A noção moderna de medida, que encontra seu expoente mais explícito em Descartes, vê os seres como calculáveis, como quantitativamente mensuráveis, como estendidos; para Descartes, o cálculo é a determinação fundamental do mundo" (Elden 2005ELDEN, Stuart. 2005. “Missing the Point: Globalization, Deterritorialization and the Space of the World”. Transactions of the Institute of British Geographers , 30 (1):8-19.:15).
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Abreviação de "micrometeorologia", porque as torres estavam, em sua maioria, coletando dados micrometeorológicos sobre processos físicos que afetavam o fluxo vertical do carbono.
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O pequeno computador que armazenava os dados dos instrumentos até que eles pudessem ser baixados.
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18
Para além do escopo deste artigo, mas também crucial neste ponto, são os trabalhos dos estudos raciais críticos (critical race studies), que enfatizam como o passado (socioespacial) não está simplesmente submerso ou escrito sobre, pois pode ser constantemente reinscrito. A noção de "vida após a escravidão", de Saidiya Hartman, destaca não apenas o efeito que a escravidão teve sobre as pessoas escravizadas ao cortar violentamente sua conexão com seus parentes e suas histórias, mas também exige que reconheçamos como "[...] vidas negras ainda são ameaçadas e desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram enraizados séculos atrás" (2007HARTMAN, Saidiya. 2007. Lose Your Mother: A Journey along the Atlantic Slave Route. New York: Farrar, Straus and Giroux.:6).
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20
Disponível em: https://earthobservations.org/mission/geo-at-a-glance. Acesso em 01/07/2024.
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21
Disponível em: https://earthobservations.org/mission/geo-at-a-glance. Acesso em 01/07/2024.
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22
Disponível em: https://earthobservations.org/resources#key - Documento completo da estratégia pós-2025 do GEO. Acesso em 01/07/2024.
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23
Disponível em: https://earthobservations.org/resources#key - Documento completo da estratégia pós-2025 do GEO. Acesso em 01/07/2024.
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Curiosamente, é também assim que Gonin et al. (2024GONIN, Alexis; ETELAIN, Jeanne; MANIGLIER, Patrice & BRIGHENTI, Andre Mubi. 2024. "Terrestrial territories: From the Globe to Gaia, a new ground for territory".Dialogues in Human Geography: 1-19.:10) caracterizam Gaia: "Essa falta de totalidade significa que Gaia nada mais é do que 'o que esses agentes entrelaçados têm produzido por meio de seus emaranhados' (Latour & Lenton, 2019DUTREIL, Sébastien. 2020. “Gaia is alive”. In: B. Latour & P. Weibel (eds.), Critical Zones. The Science and Politics of Landing on Earth. Karlsruhe: ZKM. pp. 180-183.:664). Em outras palavras, Gaia é algo que é 'adicionado' - uma 'extensão', como colocado por Sébastien DutreuilLATOUR, Bruno & LENTON, Timothy M. 2019. "Extending the domain of freedom, or why Gaia is so hard to understand".Critical Inquiry , 45 (3):659-680. - ao lado de suas partes: 'o todo não é nada acima das partes, mas está em continuidade com as partes - a palavra parte sendo uma maneira de nomear desajeitadamente como os elementos se sobrepõem uns aos outros' (Latour & Lenton, 2019LATOUR, Bruno & LENTON, Timothy M. 2019. "Extending the domain of freedom, or why Gaia is so hard to understand".Critical Inquiry , 45 (3):659-680.:677)." Portanto, sou menos otimista do que eles em relação ao potencial radical de Gaia como imaginário espacial.
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Traduzido por Carolina Barbosa Lindquist, Vanessa Parreira Perin e Sara R. Munhoz.
Editado por
Editora-Chefe:
Editor Adjunto:
Editor Associado:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
27 Mar 2023 -
Aceito
18 Jul 2024