Open-access PAMONHA, ALIMENTO IDENTITÁRIO E TERRITORIALIDADE

PAMONHA, IDENTITÉ ALIMENTAIRE ET TERRITORIALITÉ

Resumo

Neste artigo apresentamos a pamonha, considerada como um alimento identitário, valorizado e demandado no território da metrópole de Goiânia. Temos como objetivo analisar a temática da produção e o consumo de pamonhas como uma característica da cultura enraizada, delimitando uma territorialidade que, na contemporaneidade, alicerça a reprodução social e econômica de grupos familiares no espaço urbano. Como procedimentos metodológicos, fundamentamos nossas análises nos debates teóricos sobre alimentos tradicionais e, concomitantemente, realizamos pesquisas de campo nas feiras e espaços de comercialização de alimentos e entrevistas com ambulantes no espaço urbano de Goiânia. Evidenciamos a existência de diversos alimentos identitários em Goiás e escolhemos para esta reflexão a pamonha, por retratar a diversidade das formas de produção e consumo, além dos distintos tipos de comercialização: conduzido por grupos familiares nas feiras, gerido por comerciantes em pontos fixos e ainda apropriado pelos vendedores ambulantes. Esse alimento apresenta uma variedade de sabores, o que denota a permanência e a ressignificação da cultura. A pamonha é demandada pelos consumidores, que nela buscam alimentar a sua identidade e reforçar a territorialidade criada pelos grupos familiares. Assim, descortinar o sentido da produção e consumo da pamonha significa decifrar o valor cultural, social e econômico de um alimento identitário.

Palavras-chave: Alimento; Renda; Reprodução Social; Tradição; Bem Cultural

Résumé

Il s´agit de presenter la pamonha, considerée comme un aliment identitaire, valorisé et demandé sur le territoire de la métropole de Goiânia. Notre objectif est d'analyser cette territorialité qui sous-tend la reproduction sociale et économique contemporaine des groupes familiaux dans l'espace urbain. En tant que procédures méthodologiques, nous basons notre analyse sur des débats théoriques sur les aliments traditionnels et dans le même temps, nous avons effectué des recherches sur le terrain dans les foires et les espaces de marketing alimentaire, interviewé des vendeurs de rue. Nous avons mis en évidence plusieurs aliments identitaires à Goiás, cependant, nous avons choisi pour cet article la pamonha, elle représente la diversité des formes de production et de consommation, en plus des différents types de commercialisation: menée par des groupes familiaux lors de foires, gérée par des commerçants à des points fixes et toujours appropriée par des vendeurs de rue ou deambulants. Cette nourriture présente une variété de saveurs qui dénote la permanence et la résignification de la culture, elle est exigée par les consommateurs qui nourrissent leur identité et renforcent la territorialité créée par les groupes familiaux. Ainsi, dévoiler le sens de la production et de la consommation de la pamonha signifie déchiffrer la valeur culturelle, sociale et économique d'un aliment identitaire.

Palabras-clave: Nourriture; Revenu; Reproduction Sociale; Tradition; Bien Culturel

Abstract

In this article, we present the pamonha, which is considered as an identity food, valued and demanded in the territory of the metropolis of Goiânia. We aim to analyze the theme of production and consumption of pamonhas as a rooted culture, delimiting a territoriality that, supports on contemporaneity the social and economic representation of family groups in urban centers. As a methodological procedure, we justified our analysis in the theoretical debates about traditional food, at the same time, we ran a field research in open-air markets and sites where food were traded as well as interviews with street vendors. We highlighted several identity foods in Goiás, however, we chose the pamonha because it represents the diversity in the production, marketing, and consume, plus the different selling spots: conducted by family groups in street fairs, managed by traders in stores and also taken ahold by street vendors. This food presents a wide variety of flavors, which points out to the permanence and resignification of the culture; it is required by its consumers who inflate its identity and reassure its territoriality created by family groups. Thus, unveil the meaning of producing and consuming pamonha means to decode the cultural, social and economic value of an identity food.

Keywords: Food; Income; Social Reproduction; Tradition; Cultural asset

INTRODUÇÃO

Embora ocorram transformações nos hábitos alimentares diante da oferta de produtos processados e ultraprocessados, vinculados aos estilos de vida e aos valores comportamentais no mundo moderno, os alimentos tradicionais, culturais, artesanais ou aqui denominados identitários continuam sendo demandados e consumidos em metrópoles. Arraigados na identidade cultural da população, observam-se de forma contraditória o crescimento do consumo e a expansão da transformação tradicional do alimento impulsionada pela valorização dos saberes e fazeres. Como assevera Woortmann (2013, p. 6), nas “mais diferentes sociedades, os alimentos são não apenas comidos, mas também pensados; quer dizer, a comida possui um significado simbólico - ela expressa algo mais que os nutrientes que a compõem”. Os alimentos transformados em comida estão relacionados, para além da dimensão fisiológica, aos motes culturais e sociais, que influenciam o processo de escolha. Conforme enfatiza Claval (1995), é pela cultura ou por meio de atributos culturais que as populações fazem a sua mediação com o mundo e constroem um modo de vida particular, além de se enraizarem no território.

No espaço da metrópole Goiânia, iniciamos uma pesquisa vinculada à Geografia dos alimentos1 incutidos na cultura local. Nessa investigação surgiram várias indagações de forma recorrente, como por exemplo: Quais são os alimentos identitários, aqui entendidos como tradicionais/artesanais/culturais, demandados pela população de Goiânia? Como o mercado consumidor legitima e cotiza para manter viva a produção dos alimentos identitários? Em que medida um alimento identitário/tradicional pode ser considerado como um componente da territorialidade por grupos familiares urbanos para sua manutenção e reprodução social na metrópole?

Na busca das respostas para estas perquisições, utilizamos os seguintes procedimentos metodológicos: revisão bibliográfica com a leitura de teses, dissertações, artigos; entrevista com técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - em Goiânia; concomitantemente procedemos a incursões pela metrópole, visitando feiras livres, fazendo observações in loco, conversando com feirantes e consumidores. Em paralelo às citadas atividades, foram feitas visitas a uma escola municipal, onde foi desenvolvida uma atividade com os discentes das turmas do EJA noturno vinculada à leitura dos alimentos tradicionais consumidos na cidade de Goiânia. Além dessas atividades, foram realizadas visitas aos diferentes espaços construídos para comercialização de comidas tradicionais, com destaque para as pamonharias. Na dinâmica da pesquisa constatamos uma fartura de alimentos identitários/tradicionais na culinária do estado de Goiás: as pamonhas, o empadão goiano, as comidas elaboradas com o pequi, o arroz maria-isabel, a chica doida, o arroz com suã, as quitandas, os doces caseiros, o melado, a rapadura, entre outros. Esses alimentos compõem o cardápio variado e traduz a relação rural-urbano nas diferentes estações do ano.

Escolhemos a pamonha para esta discussão dada a sua forte espacialização com a presença das pamonharias nos diferentes bairros e sua comercialização nas feiras livres. Também, há o seu consumo por todas as classes sociais, além da diversidade de sabores, formas de produzir, comercializar, representação material e simbólica. Ademais, ela denota uma contraposição à modernização e ao avanço da massificação de alimentos.

Trazer esta discussão sobre estratégia da elaboração e comercialização de alimentos tradicionais significa descortinar o sentido dessa produção para a vida de homens e mulheres, identificando as relações entre eles, o território e os seus desdobramentos com o surgimento de outras atividades. Como nos lembra Almeida (2005, p. 323), trata-se de “interpretar o valor social a elas agregadas”. Pelo exposto e também pelo seu valor socioeconômico, esse alimento destaca-se para uma análise, pois seu consumo alicerça atualmente uma territorialidade utilizada para geração de renda e postos de trabalho no espaço urbano.

Ao analisarem a relevância da produção e consumo dos alimentos identitários como uma manifestação cultural no espaço geográfico, Menezes e Cruz (2017, p. 26) assertam que “essas estratégias ou (re)conversões aliam práticas culturais fundamentadas no saber-fazer difundido localmente com o objetivo de gerar renda e permitir que esses grupos ou famílias possam continuar no seu lugar de vida e trabalho”. Trata-se de estratégias que conformam uma territorialidade diante da expansão do desemprego e das crises econômicas que assolam o país na atualidade. Ao mesmo tempo, ressaltamos que a produção, a comercialização e o consumo da pamonha invertem a crença de que, com o domínio dos alimentos industrializados, os produtos tradicionais culturais constituiriam um vestígio de uma sociedade pré-científica e estariam fadados ao desaparecimento.

Constatamos a expansão da produção, as ressignificações e o crescimento nas investidas direcionadas ao consumo da pamonha. Nessa perspectiva, este artigo baseia-se em uma fundamentação cujo referencial é analítico-cultural, mediante a apresentação de elementos que demonstram a vitalidade desse sistema de produção na contemporaneidade com demanda ascendente no espaço metropolitano.

Além desta introdução, o presente artigo organiza-se em três seções. A segunda seção apresenta uma breve revisão da literatura sobre o tema. A terceira traz os principais resultados empíricos da pesquisa realizada em Goiânia. Por fim, a quarta seção coloca em destaque as considerações finais.

CULTURA ALIMENTAR: A APROXIMAÇÃO DO PRODUTOR-CONSUMIDOR

Os alimentos tradicionais persistem no espaço e no tempo e continuam sendo elaborados com base em saberes e fazeres transmitidos por diferentes gerações em determinados territórios. Apesar de suas ressignificações, eles conservam características relacionadas aos sabores, à textura e à cultura local. Assume-se como cultura alimentar “el conjunto de representaciones, de creencias, conocimientos y de prácticas heredadas y/o aprendidas que están asociadas a la alimentación e que son compartidas por los individuos de una cultura dada o de un grupo social determinado dentro de una cultura” (CONTRERAS; ARNAIZ, 2005, p. 37). Refere-se a alimentos que marcam a geografia e a história dos territórios, posto que se fundamentam na experiência e estão enraizados na tradição familiar. Para Woortmann (2013, p. 10), “as práticas culinárias são linguagens dinâmicas, aponta-se que a diferença entre o que é considerado culturalmente comível ou não diz respeito também a diferentes épocas, diferentes gerações, numa mesma região e grupo étnico”. Como a cultura tradicional, essa linguagem não é estática, pois ela se ressignifica no tempo e no espaço e se revaloriza na modernidade.

Ao avaliar a relação entre o tradicional e o moderno, Delfosse (1995), em análise do contexto francês, pondera que a tradição está vinculada ao consumo de produtos que se mantêm como um forte hábito, pelo fato de ser um produto típico, possuir especialidade local, estar vinculado a uma região de origem, ser produzido de acordo com técnicas de produção particulares e savoir-faire transmitido de geração em geração. A modernidade estaria associada à tendência de adaptação às novas demandas dos consumidores, principalmente em relação às mudanças nas práticas alimentares, nas embalagens dos produtos e inovações técnicas, de modo a produzir novas formas e gostos regulares, facilmente transportáveis. A autora avalia que a modernização ou a reinvenção é uma necessidade que adapta os produtos tradicionais, para que eles conquistem novos mercados.

Em consonância com os argumentos de Delfosse (1995), Garcia (2003), analisando os reflexos da globalização na cultura alimentar no Brasil, considera que, como parte da mundialização da cultura, a definição da tradição está vinculada a sentidos distintos, tendo em vista que identificamos a tradição como permanência do passado no presente. Porém, para essa autora existe a tradição da modernidade, com a inserção das reinvenções nos alimentos tradicionais, reciclando os elementos associados à memória. São alimentos que, revisando objetos, componentes evidenciados no passado, são reformulados no presente. Garcia (2003) ainda ressalta que a valorização dos produtos tradicionais está vinculada à dimensão natural, às ruralidades, à pureza e autenticidade.

Nos últimos anos, os estudos vêm mostrando que a alimentação constitui um dos traços identitários enraizados de maior solidez. E a preservação dos hábitos de determinados alimentos é buscada incessantemente pelos migrantes deslocados ou descolados do seu território, que esperam, no consumo dos produtos, uma forma de aproximação com o seu território.

Alguns migrantes, principalmente do espaço rural, para se tornarem ocupantes dos centros urbanos, carregam consigo seus hábitos, costumes e necessidades alimentares. Impossibilitados de preparar o seu roçado, criar seus animais e preparar alguns alimentos tradicionais, eles procuram, então, o mercado por esses produtos identitários.

No presente, a compra desses alimentos predomina, visto que esses migrantes não produzem mais o seu próprio alimento. Ao tornarem-se históricos, permanece o significado dos alimentos produzidos em seu cotidiano, o que concorre para seu reconhecimento e a demanda por produtos similares e de procedência. Desterritorializados do seu ambiente rural, os migrantes buscam conservar o consumo dos alimentos tradicionais calcados sobre as formas originais, mas adquirindo-os de terceiros. Assim, com traços novos produzidos no interior das residências por mãos femininas e/ou masculinas, constituem um produto com valor simbólico semelhante ao que era consumido outrora.

Ao consumirem os alimentos tradicionais, é comum reportarem-se às lembranças do passado, aos momentos em que degustavam esses alimentos juntamente com os familiares, em festas rurais nos territórios em diferentes temporalidades. Raffestin (2003) denominará esse território recordado pelos migrantes de “território de referência”, referindo-se àquele espaço que está distante atualmente do espaço em que o indivíduo viveu, de modo que, ao adquirir produtos desse território, a sua identidade estará nutrida, fortalecida.

Menezes (2013) afirma que o registro familiar da comida é memória de aromas e gostos da infância, transmitido por diferentes gerações. Conforme Mintz (2001), os alimentos estão associados ao passado daqueles que os consomem, e as técnicas utilizadas para elaborar, servir e consumir os alimentos são variadas, indicadoras de suas próprias histórias. Menezes e Cruz (2017, p. 25) corroboram com as discussões do autor e aludem que o preparo e os modos de servir os alimentos desvelam histórias, expressões culturais tradicionais “características de cada comunidade ou sociedade e também revelam inter-relações não apenas entre os indivíduos, mas também entre eles e o espaço onde estão inseridos nas diferentes sociedades e temporalidades”. Nessas histórias, as representações em torno das práticas de obtenção, preparo e consumo de alimentos auxiliam na construção e na manutenção de identidade dos grupos sociais e são essenciais em um contexto de mundialização de alimentos e de práticas culturais. Muchnick (2004) considera que o valor simbólico dos alimentos está relacionado à construção de identidades coletivas e individuais.

As pesquisas associadas ao processo de revalorização da produção tradicional evidenciam a aproximação entre produtores e consumidores. Há um movimento crescente dos consumidores em busca de alimentos produzidos na escala local, vinculados à tradição. Isto posto, observa-se que nos espaços urbanos a construção da comercialização desses alimentos ditos tradicionais, nos circuitos curtos, estreita a produção e o consumo, constituindo uma alternativa fundamental para fortalecer os grupos familiares nos territórios rural e urbano. Dessa forma, expandem-se nos espaços urbanos práticas alimentares tradicionais que se fundamentam nos saberes e fazeres criados por grupos familiares como alternativas de sobrevivência.

Não obstante, nos momentos de crise econômica e financeira o desemprego assola. Diante disso, uma das atividades evidenciadas em expansão é a produção de alimentos, inseridos no mercado informal com a comercialização de produtos in natura e a elaboração daqueles vinculados à tradição e identidade territorial.

Essa elaboração transcorre nos circuitos curtos, como as feiras, por meio da produção in loco ou da comercialização do alimento feito nas residências. Para Peiss e Schneider (2020, p. 178), as feiras, os grupos de consumo, a aquisição direta na propriedade e a venda de alimentos em barracas na beira da estrada pelos agricultores constituem mercados de proximidade, que são alicerçados em “uma relação face a face entre produtores e consumidores que interagem em um espaço físico geograficamente limitado [...], de forma que há um fluxo direto do alimento entre o espaço de produção e o consumo”. Esses mercados de proximidade são legitimados pela demanda dos consumidores urbanos pelos alimentos tradicionais e estimulam a busca e a criação de alternativas de trabalho diante das dificuldades de inserção no mercado formal, como afiançaram Menezes (2009) e Cruz (2012).

As estratégias de elaboração e comercialização dos alimentos tradicionais nos remetem às discussões feitas por Certeau (1994), ao abordar acerca das artes de fazer, das táticas e estratégias criadas pelos habitantes que produzem suas marcas nas cidades, instituindo práticas cotidianas no uso do espaço público. Não obstante, a produção dos alimentos identitários/tradicionais, fortemente alicerçada pela demanda urbana, pressupõe a busca e a criação de alternativas de trabalho perante as dificuldades de inserção no mercado formal, apoiando-se nas artes de fazer.

A configuração do espaço de comercialização nas feiras, conforme Schneider (2016), tem um papel importante nas transações econômicas no mercado informal. Vale assinalar que as relações nesse espaço estão fundamentadas, principalmente, no uso do dinheiro líquido, o que é indispensável para a reprodução social dos grupos familiares no circuito inferior da economia urbana, como discutido por Santos (2004). Entretanto, observa-se o avanço do uso do cartão de crédito, a despeito das rejeições relatadas nas discussões elaboradas pelo autor.

A cultura alimentar espraiada no espaço urbano, com suas histórias, simbolismos, tradição e ressignificação, vem sendo reapropriada e legitimada pelos consumidores. Examinar a territorialidade da produção de alimentos identitários, como o caso da pamonha, permite refletir a relevância da conformação de uma estratégia com vistas à reprodução social de grupos familiares.

DA TRADIÇÃO À RESSIGNIFICAÇÃO: DEMANDA DOS ALIMENTOS IDENTITÁRIOS NOS ESPAÇOS DA METRÓPOLE

Arrais (2013, p. 20) assevera que “Goiânia nasceu da conjunção de fatores regionais e nacionais do segundo quartel do século XX, fatores esses ligados à disputa das elites regionais, apropriada por um discurso de ocupação das áreas ‘vazias’ do Oeste brasileiro”. O processo de modernização agrícola a partir da década de 1960 contribuiu para a aceleração da migração e consequentemente da urbanização, transformando a cidade em uma metrópole populosa, centralizadora de renda e oportunidade de emprego (ARRAIS, 2013).

No último censo populacional (IBGE, 2010) foram contabilizados em Goiânia 1.302.001 habitantes. Com uma densidade demográfica de 1.776,74 hab./km2, de acordo com o IBGE, a população estimada de 2019 corresponde a 1.516.113 habitantes, o que denota o espraiamento da metrópole. Nos estudos sobre a cidade de Goiânia, Chaveiro (2001, p. 239) esclarece que a “cidade pertence ao ‘nó’ da rede dos negócios do país”, porém assevera que a tradição rural não foi eliminada. As transformações afetaram os valores tradicionais presentificados nas práticas socioculturais da população de Goiânia, todavia, os costumes tradicionais ainda são detectados. Borges (2013, p. 32) ressalta:

[..] a cidade se expandiu, adquiriu características e problemas de uma metrópole, mas alguns hábitos considerados tradicionais surgidos no início da cidade permaneceram nas práticas dos goianienses e foram se adaptando às mudanças econômicas, sociais e culturais trazidas pela modernidade.

Segundo o autor, foram sendo incorporados novos valores, que refletiram nas modificações de alguns costumes. Contudo, tais costumes considerados tradicionais não foram totalmente erodidos ou eliminados.

Dentre os diferentes costumes preservados, desponta o consumo dos alimentos tradicionais que não se prende exclusivamente à necessidade, mas à sociabilidade, à cultura, às crenças e aos hábitos arraigados nos grupos sociais. Ao analisarmos a relação entre os alimentos tradicionais e o território, é pertinente abordá-los como expressão da cultura, evidenciada nas práticas sociais e no saber fazer herdado pelos homens e mulheres.

É o caso da pamonha. Considerada como um alimento tradicional nas regiões brasileiras, a pamonha remete às festas da colheita na região Nordeste, consumida prioritariamente nas festas juninas. Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, esse alimento está atrelado igualmente às festividades da colheita, porém no Centro-Oeste seu consumo já espraiou para além do período das festas juninas.

No estado de Goiás, havia uma data especial para a produção da pamonha. Trata das pamonhadas, que consistiam em encontro ou reunião que envolvia/envolve membros familiares, amigos, vizinhos, permeado por laços de amizade, sociabilidade. Todos compartilhavam a elaboração do alimento. Esses eventos eram, e ainda são, um momento especial, festivo, desejado e esperado no ano, de regozijo e partilha, que acontece em uma casa predefinida, na roça ou nas fazendas. Barbosa (2015, p. 133) assim define esse momento:

Pamonhadas são uma espécie de comunhão ritual familiar (e para amigos e vizinhos mais íntimos), em que todo o processo de produção da pamonha (massa cozida à base de milho verde, enformada numa trouxa feita da própria palha do milho [...]) tem suas funções divididas segundo o gênero, idade e hierarquia dentro de uma família.

O autor relata os diversos tipos de recheios e a incrementação da pamonha com a ressignificação da receita: o alimento é encontrado na versão doce e salgada, assada e frita.

Esse alimento era e ainda é produzido no espaço rural, nos momentos de congratulações familiares, sobretudo no início da colheita do milho. Embora os homens participassem das pamonhadas, as mulheres foram protagonistas e extremamente importantes no sentido da preservação de gostos, paladares e costumes culinários. Conta-nos Ortêncio (1967, p. 3):

Os homens incumbidos de irem à roça quebrar e trazer o milho, cortar as pontas das espigas, as mulheres, senhoras e mocinhas, também, crianças, descascarem, outras tantas ralando, escolhendo as mais adequadas palhas, picando os queijos frescos e mais pedaços fritos de lingüiças de porco, tudo produção própria; moças cuidadosas, pacienciosas, retirando os cabelos (do milho) encrostados nas espigas, um grande tacho onde a massa temperada cozinhava com a banha de porco, mexida por enorme colher-de-pau. Depois o enchimento com a massa e os ingredientes nas palhas dobradas, amarradas com embiras das próprias palhas, com um nó para as de-sal e dois nós para as de-doce.

O processo de modernização do campo, sobretudo com o agronegócio, que resultou nas migrações e impulsionou o crescimento das cidades, particularmente da metrópole goiana, desencadeou o surgimento dessa estratégia de reprodução no espaço urbano. Entretanto, na cidade as dificuldades para elaborar as diversas etapas de produção, relacionadas por Ortêncio (1967), em decorrência da escassez do tempo, estimulam a demanda pelo alimento tradicional e impulsionam grupos familiares a produzir e comercializar essa iguaria.

De modo semelhante às farinhadas estudadas por Menezes (2013), realizadas no espaço rural sergipano para elaboração dos beijus, a pamonha era programada pela família como um momento especial, tendo o alimento valor de uso. Na cidade, os beijus tradicionais ressaltados nas pesquisas citadas anteriormente e, nesse caso, a pamonha passam a ser produzidos por grupos familiares, como valor de troca comercializada sob diferentes formas.

A tradição das pamonhadas ainda ocorre no rural. No espaço metropolitano, elas tornam-se escassas, conforme já explicado. Contudo, nas feiras livres urbanas de Goiânia tornou-se uma prática o comércio da massa e palha do milho para os que desejam fazer uma pamonhada na sua própria residência. Contrapondo-se à lógica da redução do milho nas cercanias metropolitanas, o consumo da pamonha permanece e mesmo aumenta com a compra desse produto nos estabelecimentos comerciais, nas feiras, ou ao se adquirir o produto em veículos que cruzam os bairros, setores e logradouros públicos recorrendo a alto-falantes para divulgar e comercializar a iguaria.

As pamonharias estão assentadas nos diferentes tipos de bairros e são frequentadas pelas distintas classes sociais. Nos bairros de classe média e alta, os estabelecimentos são sofisticados e o alimento apresenta um valor diferenciado, mais elevado; já nos bairros populares, simplifica-se o recheio e o preço das (Figura 1). Logo, as reuniões para a produção da pamonha são substituídas pelos encontros nesses espaços especializados para o consumo do alimento.

Figura 1
Espacialização Das Pamonharias Em Goiânia - 2020

Foram identificados 130 estabelecimentos comerciais no espaço urbano de Goiânia. Entretanto, esses números alteram-se diante das circunstâncias. Além desses pontos de vendas identificados nas redes sociais, dos quais cerca de 15% do total foram visitados, foi constatado que inúmeras lanchonetes comercializam esse alimento. A tabela 1 indica as pamonharias nos bairros e setores. Também ficou notório que vários pontos comerciais dispõem de estabelecimentos comerciais conformando pequenas redes com até três pamonharias localizadas em diferentes espaços da cidade. Esta característica está relacionada aos estabelecimentos cujos alimentos alcançam uma elevada reputação e procura pelos consumidores.

Tabela 1
Pamonharias Em Goiânia 2020.

Nesses estabelecimentos comerciais, evidencia-se a ressignificação da pamonha no que diz respeito à diversidade de sabores - pamonhas salgadas recheadas com queijo - e as pamonhas que forma ressignificadas ou reinventadas, como pamonha à moda, de frango, frango com catupiry, com linguiça e pimenta. As pamonhas tradicionais são recheadas com carne de sol desfiada, queijo, pimenta-bode e cheiro-verde, além do tipo recheada com jiló e linguiça, entre outras variações. Encontram-se também a pamonha doce, a pamonha assada de sal e a doce, chica-bacana, que não é enrolada na palha e é elaborada com a massa de milho verde, carne de sol desfiada, queijo de minas em cubos, azeitona e molho de tomate.

Essas alterações nos remetem às discussões feitas por Giard (2003, p. 212), ao referir que “os hábitos alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância, em que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias”. Enfim, essa cultura alimentar não está engessada, uma vez que constatamos alterações com a inserção de novos ingredientes, impulsionados pela demanda do mercado consumidor que estimula, assim como pelos grupos familiares, que criam novos produtos para atrair a clientela.

Para Certeau (1994), a materialização da realidade se concretiza na invenção do cotidiano por conjuntos de reinterpretações, criações, reações, conformismos que regem o acontecer diário da vida em sociedade. No caso da sociedade goiana, constatamos nesses estabelecimentos comerciais a composição e a recriação dos alimentos tradicionais, onde, além da pamonha, são vendidos a chica doida, o curau, o bolinho de milho frito com linguiça de porco, caldos e sopa de milho com frango e queijo catupiry, entre outros derivados do milho.

O valor das pamonhas é variado. O preço da pamonha doce e da de sal, consideradas tradicionais, por utilizarem uma pequena quantidade de ingredientes - milho, sal ou açúcar, óleo ou banha, queijo - é mais baixo, variando de R$ 4,00 a R$ 8,00. Também tem a ver com o bairro, o porte do estabelecimento comercial e a clientela que frequenta o espaço. Ou seja, quando o estabelecimento comercial está localizado em bairro de classe média, ou esteja localizado em bairro mais afastado, mas tenha uma elevada reputação e atraí uma clientela fixa, o valor da pamonha é mais elevado. Enquanto isso, nos bairros periféricos e nas pamonharias de estrutura mais simples, o tamanho da pamonha é menor e o valor é inferior ao cobrado pelos estabelecimentos afamados e situados nos bairros de classe média. À medida que são acrescentados outros ingredientes como a carne do sol, linguiça, entre outros, o valor da pamonha eleva-se.

Nesses estabelecimentos comerciais, a produção desse derivado do milho é semelhante à de outrora vivenciada nos espaços rurais. Observa-se a divisão de trabalho, cujas tarefas são distintas. Cabe aos homens o corte do milho, a limpeza e ralação das espigas nos raladores elétricos. De sua parte, as mulheres são encarregadas de preparar a massa e enformar a pamonha. Por vezes, também foram encontrados homens atuando na preparação da massa.

Além dos locais de venda fixos, os estabelecimentos comerciais, conforme já assinalamos, vendem a iguaria pronta para o consumo. Este comércio foi identificado em 80% das feiras livres dos bairros e setores da metrópole, assim como nas feiras especiais. Estão registradas, na Prefeitura Municipal de Goiânia, cerca de 122 feiras livres e 35 feiras especiais (PMG, 2020). Esses espaços, mais que um território de compra e venda, constituem um lugar de encontros e burburinho. Borges (2013, p. 10), em sua pesquisa sobre as feiras de Goiânia, assinala: “Espalhadas por quase todos os bairros de Goiânia, as feiras revezam todos os dias da semana, comercializam diversos produtos [...], recebem frequentadores de todas as classes sociais, são espaços democráticos, cheios de aromas, cores e sabores típicos da cultura popular”.

Ademais, fora a comercialização da pamonha pronta e a do milho ralado, também nos chamou atenção nas andanças pelas feiras livres o aroma exalado na preparação dessa iguaria derivada do milho. É preparada em dez feiras por três grupos familiares, sendo que dois destes são da mesma família - tia e sobrinhos. As artes de fazer as pamonhas e comercializar no recinto das feiras se dão há mais de 25 anos.

Nas barracas montadas, geralmente uma família coordena os trabalhos e envolve o casal, irmãos, filhos, sobrinhos, além de outros prestadores de serviço. O número de pessoas que trabalha na elaboração da pamonha varia de uma feira a outra. Observa-se o predomínio das mulheres, de forma semelhante às pamonhadas, sobretudo no tocante à elaboração da massa. Porém, igualmente às pamonharias, se dá a inserção de homens e, em alguns casos, responsabilizando-se pelo controle da parte financeira.

Inicia-se o trabalho de produção do alimento no dia anterior ao da feira, com a organização do milho, dos inúmeros vasilhames, instrumentos de trabalho, tendo em vista a montagem de uma cozinha no espaço público, além de mesas e cadeiras para os consumidores se servirem do alimento no local. Evidencia-se também o papel das redes informais na distribuição do milho a esses grupos familiares, diretamente dos agricultores, majoritariamente dos municípios de Inhumas, Catalão, entre outros que o transportam até a metrópole. No processo de produção desse alimento, há uma divisão do trabalho envolvendo os homens e mulheres: “Cada um tem sua função e não pode parar, porque a procura da pamonha é grande, fazemos várias tachadas de pamonha por dia” (M.J., feira no Setor Oeste, set. 2019).

Os homens são responsáveis pelo corte do milho, pela separação da palha para a embalagem das pamonhas, bem como pela seleção das espigas que estejam em bom estado para a produção. Além disso, são eles que ralam, de forma manual, o milho já limpo, sem palha e o cabelo. Para tanto, utilizam raladores elétricos, diferentemente das pamonhadas tradicionais no espaço rural, nas quais se empregavam ralos artesanais.

O trabalho é contínuo. Ele tem início às 6 ou 7 horas da manhã e em algumas feiras se encerra no começo da noite. As mulheres atuam na elaboração da iguaria, com o preparo da massa e dos diferentes recheios, desde as tradicionais pamonhas doce e a de sal, a pamonha à moda recheada com diversos produtos mencionados como cebola, cheiro-verde, alho, linguiça, lombo de porco. Esses também são feitos semelhantemente aos demais sabores produzidos nas pamonharias. Refere-se a produtos que são elaborados levando-se em conta o saber-fazer e a preferência dos consumidores por questões subjetivas, expressas no sabor e no aroma exalados pelas iguarias. A quantidade de panelas/tachos nos fogões industriais revela a diversidade de sabores elaborados em determinado local de venda (Figura 2).

Figura 2
Produção de pamonhas na feira do Setor Coimbra, Goiânia, 2019. Foto: S. S. M. Menezes. Pesquisa de campo. Feira do Setor Coimbra , out. 2019.

O processo de elaboração da pamonha pode ser acompanhado pelos consumidores. Estes, ao chegarem à barraca, por vezes ficam à espera do cozimento do alimento, preparado assim que é adquirido, feito no lugar. Como a demanda é elevada, os consumidores, comumente aguardam os comerciantes, que anotam a ordem dos pedidos de acordo com a hora da chegada do cliente em cadernos, até que a tachada seja cozida.

As palhas são previamente aferventadas em caldeirões, para não quebrarem no momento da colocação da massa no “copo” feito com a palha do milho pelas mulheres. Essa embalagem tradicional é encontrada em diversos estados brasileiros na região Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

De modo sequenciado, as mulheres incluem a fatia de queijo cortado e a massa pronta no copo feito com a palha, amarram a embalagem com elásticos de borracha, para diferenciar pelas cores as salgadas e as doces. Os elásticos são fervidos, para não alterarem o sabor. Em seguida, as pamonhas são postas nas panelas de alumínio com água fervente para cozinhar durante 40 a 60 minutos (Figura 3).

Figura 3
Inserção da massa no copo de palha da pamonha, Goiânia, 2019. Foto: S. S. M. Menezes. Pesquisa de campo. Feira do Setor Coimbra, out. 2019.

Os saberes e fazeres elaborados e reelaborados pelos grupos familiares responsáveis pela produção da pamonha recordam-nos a assertiva de Almeida (2017, p. 8), ao ressaltar que “os modos como preparam e como servem os alimentos - além das maneiras como nunca seriam preparados - revelam os modos mediante os quais os indivíduos de diferentes sociedades projetam suas identidades”. Embora a autora não tenha direcionada a discussão à produção desse alimento, constatamos essa afirmativa nas formas de preparar e servir e nas relações com as demandas dos consumidores.

Igualmente às pamonharias, nos pontos de vendas nas feiras são comercializados outros produtos derivados, além da massa e a palha do milho verde ralado. Vários consumidores consomem a pamonha no local e outros adquirem a massa e a palha para elaborarem a iguaria na residência. Assim narrou uma consumidora: “Eu gosto de comer a pamonha aqui, mas levo a massa para casa porque as feiras acontecem a cada oito dias, assim eu tenho como fazer a minha pamonha, e nesse tempo frio, dá mais vontade de comer pamonha. Choveu, comemos pamonha” (J.V., feira no Setor Oeste, out. 2019).

Esses espaços da pamonha na feira, também, se constituem em ponto de encontro. Neles reúnem-se homens, mulheres, jovens, adolescentes. Muitos dos consumidores têm sua origem no rural e buscam manter as tradições dos seus lugares. Essas pessoas demonstram que retêm fortes vínculos e procuram conservar os traços das culturas, das tradições e das histórias particulares da infância, adolescência. Em conversas, eles ressaltam o passado arraigado na memória, porém não se iludem com o retorno.

Os consumidores desses produtos derivados do milho pertencem às mais diferentes classes sociais. Constatamos, outrossim, que muitos consumidores, ao provarem os alimentos, revelam a lembrança com fatos passados, revelando traços da sua identidade.

Nas narrativas dos consumidores nas feiras livres, eles valorizam o alimento e sua origem rural, revitalizando, desse modo, fatos marcantes. E ao consumirem o produto, reportam-se ao território de referência:

Todos os domingos venho comer minha pamonha aqui. Às vezes venho com familiares e ficamos recordando as pamonhadas na roça com os meus parentes. Quando estou com pressa, compro e levo para casa, mas acho melhor comer aqui, porque fico lembrando das pamonhadas que fazíamos junto com a minha família. Esse é um tempo que não volta, porque todos moram hoje aqui na cidade e não tem mais roça. (A.S., feira do Setor Pedro Ludovico, Goiânia, jul. 2019).

Esses locais são emblemáticos e as dinâmicas que neles se processam exprimem resistências que expressam formas próprias de territorialidades, estratégias de reprodução no espaço urbano fundamentadas na potencialidade dos saberes, fazeres e na cultura local. Embora se trate de lugares marcados por relações econômicas, são perceptíveis as relações de confiança, entre os feirantes e os consumidores, que legitimam o consumo de alimentos identitários/tradicionais, artesanais, uma vez que esses alimentos são comercializados sem certificação, sem rótulos, sem selos de identificação, sem marcas reconhecidas (Figura 4).

Figura 4
Pamonhas prontas para a venda e consumo. Foto: S. S. M. Menezes. Pesquisa de campo. Feira do setor Pedro Ludovico, mar. 2020.

Ainda na metrópole é possível encontrar outra situação inusitada: “Está passando o carro da pamonha! Olha a pamonha!!...”. Afora o comércio ambulante realizado em carros e motocicletas, há também o comércio que se utiliza de bicicletas na venda desse alimento.

Os vendedores ambulantes geralmente residem nos municípios que conformam a região metropolitana de Goiânia. Eles deslocam-se diariamente para os bairros da capital com o objetivo de comercializar esse alimento. Esse comércio, inserido na economia informal, apresenta características típicas dos circuitos curtos de comercialização (SABOURIN, 2009) e proporciona os principais rendimentos da família.

Os homens comerciantes nos veículos móveis ressaltam que as crises e o desemprego incitaram a criação dessa alternativa de trabalho com vistas à reprodução social na cidade. Para tanto, juntamente com suas esposas rememoram o saber-fazer transmitido pelos membros familiares, aprendido na infância e adolescência, e buscam nessa atividade a renda para o sustento familiar.

Eles narram o estabelecimento de laços de amizade com os consumidores, a formação da clientela nos bairros, e alegam que consumidores de todas as idades demandam a iguaria. Todavia, são os idosos os fregueses mais regulares, por conta das dificuldades de deslocamento e das condições de saúde. Um idoso ressaltou: “Eu gosto de comprar a pamonha no carro, porque facilita pra nós, que não tenho como ir à feira comprar. Além disso, é nova, quentinha. Eu já compro há muito tempo desse vendedor” (G.S., nov. 2019). Essa narrativa remete-nos às discussões elaboradas por Cruz, Krone e Menasche (2014), ao enfatizarem que a confiança está embasada nas relações sociais locais e nas redes de interconhecimento, quando há essa relação entre quem produz e quem consome, por meio do contato direto. Como podemos notar, essas práticas estão fundamentadas nas relações de solidariedade e confiança existentes entre comerciantes e consumidores.

Muitos desses comerciantes estão conectados com as tecnologias de informação. Por exemplo, utilizam as redes sociais, o whatsapp, o sistema delivery, para facilitarem as vendas. “Os clientes telefonam, enviam mensagens com os pedidos e eu já levo separadamente cada encomenda” (J.S., dez. 2019). Tal feito denota a capacidade de adaptação e a busca de estratégias para manter os vínculos e estreitar os laços com os consumidores, tendo em vista sua dependência a essa alternativa para a sobrevivência.

Ainda em atividade realizada em uma escola municipal de Goiânia com os alunos da Educação de Jovens e Adultos - EJA -, no período noturno, refletimos com eles sobre a produção, consumo e mudança dos hábitos alimentares. Retornamos à escola em um segundo momento, para que eles apresentassem uma atividade vinculada a um alimento identitário que os representasse. A pamonha apareceu dentre os alimentos citados, com os diferentes sabores, o saber-fazer da produção, a relação cultural com o alimento, as formas de comercialização e de consumo.

Atualmente, é comum a realização de pamonhadas nas igrejas, por exemplo, aos sábados à tarde. Os fundos arrecadados com as vendas aos fiéis são utilizados para obras na estrutura da igreja ou para outros fins.

Diante da dinâmica e representatividade cultural desse alimento tradicional em Goiânia, realizamos uma consulta ao IPHAN-Goiânia para verificar a existência de algum processo de registo em curso do conhecimento e do modo de fazer da pamonha, por se tratar de um elemento da identidade cultural. Vale o registro de que o Decreto nº 3.551, de agosto de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial (BRASIL, 2000). Com isso, por exemplo, os saberes, o conhecimento e o modo de fazer o queijo minas artesanal e o acarajé das baianas foram registrados como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Em entrevista com técnicos do IPHAN, foi asseverada a não existência de processo para levantamento histórico dos conhecimentos e modo de fazer do alimento ou o denominado Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC. Até o momento não foi feita nenhuma solicitação por algum grupo proponente do registro do conhecimento, do modo de fazer do alimento. Também foi ressaltado por uma técnica que, embora seja realmente uma manifestação cultural da cidade e do estado, esse alimento é produzido, comercializado e consumido sem restrições. Em face disso, os produtores não perceberam, até o momento, a necessidade de lutar para o registro da iguaria.

CONCLUSÃO

O objetivo deste estudo foi analisar a temática da produção e o consumo de pamonhas como uma cultura enraizada que criou uma territorialidade alicerçada, contemporaneamente, na reprodução social e econômica de grupos familiares no espaço urbano. Assim, este artigo descreveu a produção de pamonhas, os espaços formais e as barracas nas feiras, além do comércio ambulante. Enfatizou a importância que o fazer pamonha tem quando as pamonhadas, na contemporaneidade, são realizadas nas igrejas com o objetivo de angariar recursos para obras assistenciais e estruturais. Ao apresentarmos as entrevistas com os consumidores, evidenciamos que a pamonha constitui um dos alimentos de sua identidade, por se tratar de uma iguaria que é enraizada no seu modo de vida.

Os consumidores fazem parte das diversas classes sociais. Eles frequentam estabelecimentos comerciais, as feiras livres, mas também adquirem a pamonha comercializada pelos ambulantes que residem nas regiões limítrofes da cidade ou mesmo de cidades da região metropolitana. Existe a conformação de relações de proximidade e laços e amizades entre os produtores e consumidores. Em síntese, os consumidores buscam no consumo da pamonha, considerada um alimento identitário, a relação saudosista que conduz parte dos consumidores à valorização de produtos impregnados de ruralidade e associados à imagem do território.

Estudar os alimentos torna-se um meio eficaz para o entendimento da identidade, modos de vida e da cultura de determinados grupos sociais. Investigar a respeito dessa temática permite apontar a relevância dos alimentos identitários/tradicionais como produtores de uma territorialidade na geração de postos de trabalho e renda no território da metrópole. Diante do avanço dos produtos massificados, ultraprocessados, ratificar a dinâmica da produção de pamonhas de forma artesanal na metrópole confirma uma contracorrente alicerçada na demanda do mercado consumidor que a legitima. Este é fundamentado na confiança e nas relações de proximidade e que contribui para a reprodução de grupos familiares. Portanto, a biocultura da pamonha constitui um alimento identitário eivado de valor cultural, social e econômico.

NOTA

  • 1
    Pesquisa desenvolvida como Estágio de Pós-Doutorado no Laboter / IESA / UFG, bolsa PNPD-CAPES 2019, no período de junho de 2019 a maio de 2020, sob orientação professora Dra. Maria Geralda de Almeida.
  • 2
    Os consumidores denominam essa feira de Feira do Moreira, pelo fato de estar próxima ao Hipermercado Moreira, localizado nas imediações da avenida Perimetral.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2020
  • Aceito
    20 Out 2020
  • Aceito
    15 Jan 2021
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