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Estampa da diversidade: um modelo de inclusão “blindada” no metrô alemão

Diversity print: a model of “armored” inclusion on the German subway

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar os efeitos de sentido gerados para diversidade no discurso midiático, comumente percebido ou pretendido como inclusivo. Para tal, vale-se aqui do paradigma teórico da Análise do Discurso materialista, em especial da sua noção de discurso conforme definido por Pêcheux (1997[1969]PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69) [1969]. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (org). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, 61-161.) e de assujeitamento/determinação histórica, definidos por Orlandi (1986ORLANDI, Eni. A análise de discurso: algumas observações. D.E.L.T.A., v. 2, n. 1, 105-126, 1986. ). De modo a realizar os intuitos acima citados, foi selecionada uma campanha audiovisual produzida pelo metrô berlinense, quando da inauguração de uma estampa colorida no seu estofado. Foram estudas imagens retiradas dessa campanha do YouTube, como frames do vídeo, assim como os textos ligados ao vídeo: falas de personagens, letreiros e um texto de descrição produzido pela empresa metroviária. Os achados evidenciam que os modos de significar diversidade, em vários níveis de materialidades significantes (LAGAZZI 2020LAGAZZI, Suzy. A imagem como uma tecnologia política: o social sempre em questão. In: FARIA, Joelma; SANTANA, Juliana; NOGUEIRA, Luciana (org.). Linguagem, arte e o político. Campinas: Pontes, 2020, 91-102.), tendem a apagar o sentido de diferença/diferente e seu potencial de tensão produtiva de bons conflitos.

Palavras-chave:
Análise de Discurso materialista; diversidade; diferença/diferente; inclusão

Abstract

This article aims at analyzing the effects of meaning produced as contribution to diversity in the media discourse, commonly understood or perceived as inclusive. We used the theoretical paradigm provided by materialistic discourse analysis, especially when it comes to the concept of discourse as defined by Pêcheux (1997[1969]PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69) [1969]. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (org). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, 61-161.), and subjection/historical determination, as defined by Orlandi (1986ORLANDI, Eni. A análise de discurso: algumas observações. D.E.L.T.A., v. 2, n. 1, 105-126, 1986. ). In order to accomplish such research aims, we have analyzed a video campaign created by Berlin’s subway company, used to inaugurate a new seat print in their cars. We have used frames taken from this YouTube campaign as well as texts related to the video: characters’ dialogues, signs and a descriptive text produced by the subway company. The findings point to the fact that, in various levels of significant materiality (LAGAZZI 2020LAGAZZI, Suzy. A imagem como uma tecnologia política: o social sempre em questão. In: FARIA, Joelma; SANTANA, Juliana; NOGUEIRA, Luciana (org.). Linguagem, arte e o político. Campinas: Pontes, 2020, 91-102.), the ways of signifying diversity tend here to erase the meaning of difference/different and thus the potential to produce positive conflicts.

Key-words:
Materialistic Discourse Analysis; diversity; difference/different; inclusion

1 Introdução

Não raro os veículos de comunicação midiáticos articulam determinadas categorias em suas campanhas, produzindo sentidos com bom grau de aderência entre seus consumidores. Observem-se, por exemplo, o slogan e a imagem (Figura 1) adotados pelo GEMA/UFPEGEMA/UFPE. Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades. Disponível em: <Disponível em: http://gema-ufpe.blogspot.com/p/a-campanha-diversidade-e-legal-objetiva.html > (29/09/2022).
http://gema-ufpe.blogspot.com/p/a-campan...
(Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco). Trata-se de uma campanha de enfrentamento da violência contra gênero e sexualidade publicada num blog da Internet.

Figura 1:
A diversidade é legal!, campanha do GEMA/UFPE

A categoria por eles selecionada é a diversidade. O enunciado encontra-se no formato X é Y, em que Y é um atributo de X (nesse caso, “legal” tem valor positivo). Percebe-se no âmbito visual da campanha a presença de oito pessoas agrupadas de modos distintos (homem, homem-homem, homem-mulher, mulher-mulher, mulher), com um traçado que remete à literatura de cordel. O espaço onde se encontram esses personagens representa um ambiente que aglutina manhã e noite no mesmo plano cronológico, posto que à esquerda vemos a lua e à direita, o sol. A imagem encontra-se em preto e branco.

Para a Análise de Discurso dita materialista (doravante AD), a descrição oferecida no parágrafo anterior não dá conta dos sentidos que a campanha produz para a diversidade. Isso porque segundo Pêcheux (1997[1969]PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69) [1969]. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (org). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, 61-161.), a comunicação não se dá de maneira direta, ou seja, o emissor transmite a mensagem para o receptor, mas antes, há entre esses dois elementos determinadas formações imaginárias. Como postula o autor, ocorrem “efeitos de sentidos” entre emissor e receptor, que ocupam “lugares determinados na estrutura social” (PÊCHEUX 1997[1969]PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69) [1969]. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (org). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, 61-161.: 82). Esses lugares são mutáveis, visto que um mesmo leitor ou uma leitora podem assumir diferentes papéeis sociais em diferentes situações. Posso, assim, ler a campanha como o diretor do Núcleo acima mencionado, que encomendou a produção desse folheto e que espera algum tipo de resultado, ou como um poeta/artista visual, talvez interessado nos efeitos líricos/gráficos aqui produzidos, ou ainda como um potencial afetado ou afetada por esse tipo de violência, em busca de ajuda concreta. Cada uma dessas posições afeta as condições de leitura do texto, já que ele é fruto dessas muitas formações. Mais adiante, retomando a definição pêcheutiana, Orlandi (1986ORLANDI, Eni. A análise de discurso: algumas observações. D.E.L.T.A., v. 2, n. 1, 105-126, 1986. : 115) define discurso como “efeito de sentidos entre locutores”. Com isso, o significante verbal deixa de ser a única materialidade tangível a ser articulada na produção de sentidos de um mesmo enunciado.

Tais considerações apontam para a afirmação de que existem, por exemplo, materialidades históricas que determinam o dizer. O enunciado “A diversidade é legal!” não pode ser entendido como neutro nem como ocorrente num vácuo. Ele está sujeito aos modos de produção de sentido do seu tempo, assim como a outros processos sócio-históricos. Ele também remete e sustenta-se por uma série de não-ditos exteriores e anteriores a ele. Assim, se alguém precisa afirmar que a diversidade é legal, isso aponta para um outro efeito de sentido possível para diversidade, que deve ser diferente de legal, talvez algo que esteja contido em não-legal, os vários não-Y (valores negativos para diversidade). De fato, nem sempre a diversidade foi percebida como algo positivo, celebrável (daí a exclamação, possivelmente), especialmente por uma dada formação que pretenda uniformizar as formas de ser, de agir, de expressar sexualidade/gênero disponíveis para o indivíduo. Assim, concomitantemente a esse enunciado circulam outros ainda que vão em direções distintas de flutuação de sentido.

Além disso, ainda outros tipos de materialidades podem ser acionados a partir de um mesmo enunciado. Como afirma Lagazzi (2021LAGAZZI, Suzy. A imagem em sua potência de captura simbólica. Fórum Linguíst!co, v. 18, número especial, 5890-5902, 2021.), a imagem também tem sua potência de captura simbólica. Contrariando o conhecido adágio uma imagem vale mais que mil palavras, a autora afirma não existirem materialidades significantes mais poderosas que outras. Todas as materialidades podem nos fazer entrever os movimentos de sentidos, em busca de “práticas que sustentam as políticas linguageiras” (LAGAZZI 2020LAGAZZI, Suzy. A imagem como uma tecnologia política: o social sempre em questão. In: FARIA, Joelma; SANTANA, Juliana; NOGUEIRA, Luciana (org.). Linguagem, arte e o político. Campinas: Pontes, 2020, 91-102.: 5891). No exemplo do GEMA/UFPE mencionado anteriormente, algo da materialidade significante visual diz da diversidade. A saber, o quesito cor; no caso, preto e branco. Ora, é sabido que em campanhas sobre a diversidade em geral figura o arco-íris como significante visual típico do conceito. O colorido em geral remete à bandeira da comunidade LGBTQIAPN+. Assim, a opção por confeccionar uma campanha em preto e branco pode simbolicamente traduzir o cuidado de não excluir grupos vulnerabilizados pela violência de gênero e de sexualidade não contemplados pela sigla, como mulheres heterossexuais (mulheres cis heterossexuais), grupo sistematicamente assolado pela violência doméstica.

Portanto, nos moldes da AD, é possível afirmar que da campanha “A diversidade é legal!” emergem sentidos nem sempre associados à diversidade, ou, dito de outra forma, que ela produz efeitos de sentido distintos do que temos armazenados na nossa memória discursiva para a categoria diversidade, como diversidade é colorido. Além disso, figura aqui o efeito positivo (“legal”) para a diversidade, que implica um efeito negativo não-dito, ou seja, a ideia de que a diversidade pode ser algo negativo, a ponto de se precisar expressar o contrário, como faz a campanha pernambucana.

A campanha acima e as respectivas análises empreendidas foram aqui recrutadas nessa pesquisa por alguns motivos. Em primeiro lugar, para demonstrar a relevância e a ubiquidade da categoria diversidade em campanhas midiáticas, que é o tema e o objeto de análise do presente artigo. Além disso, buscou-se demonstrar para os leitores, de modo prático e sucinto, quais conceitos da AD serão aqui resgatados, a forma como eles se articulam na teoria, além de contribuir com exemplos práticos da metodologia de tratamento de dados recorrente em AD, muito análoga aos processos constantes nesse artigo.

Sucede que diversidade é uma categoria cujos sentidos possuem bastante flutuação e cujos elementos acabam por esbarrar numa dicotomia muito cara para o modelo de pensamento ocidental, qual seja, igual x diferente. Para Orlandi (2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.: 29), em estudo sobre os sentidos de ser diferente, discursos que se entendem engajados tendem a se pronunciar sobre minorias, igualdade, diferença, num processo de mundialização em que o diferente ocupa posição hierárquica inferior ao igual. Busca-se dissolver simbolicamente o diferente, engendrando-o num mecanismo de inclusão compulsória. Afinal, numa sociedade de modos de produção capitalista com formação neoliberal, todos precisam estar alistados “equanimemente” como potenciais consumidores dentro de algum mercado. Ser diverso, portanto, parece produzir sentidos mais vantajosos segundo essa agenda neoliberal do que o ser diferente, como sugere a autora. O diferente, em algum sentido, “assusta”, pois não se enquadra no molde atribuído para diversidade.

É justamente tal processo de “higienização” dos sentidos de ser diferente/da diferença, em prol dos sentidos produzidos para ser diverso/para diversidade, que o presente estudo pretende tematizar e analisar. A partir de dados da campanha Muster der Vielfalt (“Estampa da diversidade”, tradução própria), desenvolvida pela empresa de transportes alemã BVG, serão levantadas diversas materialidades significantes que constituem a produção de sentido de diversidade. O objetivo desse artigo é investigar de que maneira diversidade é significada e se esse processo abona ou desabona os conflitos inerentes à relação igual x diferente, como destacado anteriormente.

O artigo encontra-se dividido em 3 partes, além da Introdução. Na primeira seção, chamada Aporte teórico, parte-se das formulações de Freud sobre o inconsciente (1917FREUD, Sigmund. Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse. Imago. Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften, v. 5, n. 1, 1-7, 1917.) e do ferramental fornecido pela AD (PÊCHEUX 2009PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. ed. Traduzido por Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da UNICAMP , 2009.; ORLANDI 2007ORLANDI, Eni. A questão do assujeitamento: um caso de determinação histórica. ComCiência, n. 89, 2007. Disponível em: Disponível em: https://comciencia.br/dossies-73-184/web/handler2f25.html?section=8&edicao=26&id=296 (06/06/2024).
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), nomeadamente, dos conceitos de discurso e de assujeitamento/determinação histórica, respectivamente. Num segundo momento, busca-se levantar as tensões presentes na dicotomia igual x diferente, tão cara para o pensamento ocidental, e como elas se relacionam com diversidade (ORLANDI 2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.). Por fim, a partir do trabalho de Stephen Lanz (2007LANZ, Stephen. Berlin aufgemischt: abendländisch, multikulturell, kosmopolitisch? Die politische Konstruktion einer Einwanderungsstadt. Bielefeld: transcript Verlag, 2007.), será contemplado o processo de construção política e simbólica de Berlim como cidade da imigração e da diversidade. Na segunda seção, intitulada Análise da campanha ‘Muster der Vielfalt’, será realizado o estudo da campanha constante no título por meio de duas materialidades significantes, quais sejam, a visual e a textual, segundo o que foi estabelecido por Lagazzi (2020LAGAZZI, Suzy. A imagem como uma tecnologia política: o social sempre em questão. In: FARIA, Joelma; SANTANA, Juliana; NOGUEIRA, Luciana (org.). Linguagem, arte e o político. Campinas: Pontes, 2020, 91-102.). No âmbito visual, são analisados três casos ou interações presentes no vídeo, o que corresponde a um total de cinco frames retirados dali. No âmbito textual, são estudados textos pertinentes ao vídeo, a saber, trechos de falas entre personagens, letreiros do vídeo e o texto de descrição que o acompanha. Por fim, em Considerações finais, encontram-se algumas reflexões sobre o embate entre incluídos e excluídos, a produção de novos sentidos para diversidade e a agenda simbólica presente no fabrico de uma metrópole internacional como Berlim.

2 Aporte teórico

2.1 O eu não é senhor em sua própria morada

Ao propor uma discussão sobre ego e libido, cujos pormenores teóricos não cabem aqui, Freud (1917FREUD, Sigmund. Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse. Imago. Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften, v. 5, n. 1, 1-7, 1917.) destaca a centralidade do autoamor (Eigenliebe) para o homem. Segundo o psicanalista, o narcisismo humano vinha enfrentando revezes por conta do desenvolvimento das ciências ao longo dos anos. Em sua análise, a primeira ferida narcísica é de natureza cosmológica. O homem acreditava ser o senhor desse mundo, atribuindo à Terra um tamanho excessivamente maior do que os seus astros circundantes. No entanto, com as contribuições feitas por Copérnico, a tese do geocentrismo cai por terra, o que acaba por afastar a ideia de que o homem e seus feitos constituem o centro do universo. Num segundo momento, o homem totêmico, que fazia poucas distinções entre si e os animais, passa a acreditar-se mais distinto e menos mortal que seus coabitantes terrenos não-humanos. É como se ele buscasse legar à humanidade um status de divindade. Todavia, as descobertas de Darwin sobre as espécies demonstraram que o homem não é, do ponto de vista evolutivo, nem superior nem muito diferente de alguns animais presentes na Terra. Na verdade, o darwinismo sugere que o homem tem descendência animal, visto que a paridade genética com alguns é inquestionável.

De todas os golpes desferidos contra o autoamor humano, provavelmente o mais duro, diz o autor, foi o de caráter psicológico. Com o advento da investigação psicanalítica, percebe-se que a mente humana se organiza nos moldes de um labirinto de impulsos e instintos e de instâncias sub e superordenadas, alinhadas hierarquicamente (FREUD 1917FREUD, Sigmund. Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse. Imago. Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften, v. 5, n. 1, 1-7, 1917.: 5). Muitos desses conteúdos psíquicos são antagônicos e incompatíveis entre si. Ou seja, o homem não pode alegar agência absoluta sobre sua própria mente, posto que ela é assaz complexa e possui espaços indiretos os quais ele não pode acessar.

Assim, a um só tempo, Freud (1917FREUD, Sigmund. Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse. Imago. Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften, v. 5, n. 1, 1-7, 1917.) está nos dizendo que o homem não é o cerne do universo que habita, nem possui dotações físicas especiais e que não é senhor de sua própria mente. Como corolário dessas afirmações, o sentido que o indivíduo faz das coisas que o circundam também é comprometido por essa falta de agência e, portanto, consciência absoluta das coisas. Ora, se o inconsciente corresponde àqueles conteúdos mentais aos quais só se pode ter acesso de modo indireto, como poderia o sentido das coisas se originar do/no indivíduo? Sua mente é demasiado porosa para isso e ele está sempre sujeito a conteúdos e sentidos cuja totalidade ignora.

Além da falta da consciência plena de sua realidade mental, mais um fator compete para que a origem do sentido não resida no indivíduo. Como destaca Orlandi (2007ORLANDI, Eni. A questão do assujeitamento: um caso de determinação histórica. ComCiência, n. 89, 2007. Disponível em: Disponível em: https://comciencia.br/dossies-73-184/web/handler2f25.html?section=8&edicao=26&id=296 (06/06/2024).
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), o indivíduo já nasce com uma língua pronta, que corresponde a um sistema discursivo a reboque. Em outros termos, a ideologia o interpela/assujeita, daí indivíduo passar a sujeito. Atua, destarte, em sua constituição discursiva a chamada determinação histórica, como já destacado. O sujeito habita uma dada época e por isso é afetado por uma certa forma histórica (época feudal, moderna, contemporânea etc). A cada uma dessas formas correspondem determinadas condições materiais de existência.

A título de exemplo, como analisa o filósofo político Paulo Antunes (2020ANTUNES, Paulo. Marx, Engels e a conceção de modo(s) de produção: uma resposta ao “paradoxo no centro da teoria marxista”. Problemata: R. Intern. Fil, v. 11, n. 1, 160-182, 2020.: 167), “no feudalismo, os senhores (nobreza e clero) possuíam a terra e assim detinham o meio fundamental da produção que lhe era própria (...), mesmo que não detivessem a totalidade dos instrumentos de trabalho”. Esse é um tipo de materialidade história muito distinta da época que corresponde ao capitalismo. O sistema capitalista caracteriza-se por trocas mercantis mais intensas, pela predominância de autônomos e pela maior possibilidade de mobilidade entre estamentos sociais. A cada um desses modos de produção de bens materiais correspondem modos de produção de sentido e formações discursivas que assujeitam o indivíduo: ele não pode escapar a isso porque, como já foi dito, essas condições se instauram sócio-historicamente antes mesmo de ele nascer.

Daí a AD ser conceituada como um dispositivo de leitura dos enunciados. Por meio do trabalho analítico propiciado pela AD, pode-se tentar justamente resgatar os sentidos não expressos na superfície material do texto e não oriundos do/no sujeito. A partir da premissa teórica elaborada por Pêcheux (2009PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. ed. Traduzido por Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da UNICAMP , 2009.), o discurso é constituído e constitutivo do social e dado à materialização na linguagem. Essa definição destaca justamente a necessidade de compreensão da linguagem para além de sua materialidade pragmática ou ainda conteudística de leitura e interpretação.

2.2 Igualdade, diferença, diversidade

Dentre as formações ideológicas constituintes da forma histórica contemporânea, figura o que se convencionou chamar de neoliberalismo. Como destaca Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ), uma característica importante dessa forma histórica é a reconfiguração do Estado. Para o autor, pode-se falar sobre uma fobia do Estado, a redução do Estado ao átomo, o medo do Estado comparado ao medo da bomba atômica (2008: 103). O historiador francês atribui esse medo à “experiência soviética desde os anos 1920, a experiência alemã do nazismo, a planificação inglesa do pós-guerra” (2008: 104). Assim, esses diversos conflitos robustos contribuíram para o deterioramento da crença no Estado, ou o exílio político. Em suas palavras, “a dissidência política do século XX foi (...) um agente de difusão considerável daquilo que poderíamos chamar de antiestatismo ou fobia do Estado” (2008: 104).

Os episódios históricos acima mencionados criaram a percepção de que a intervenção sistemática do Estado na vida das pessoas acabou por furtar delas suas liberdades pessoais, o que culminou na emergência de regimes totalitaristas (FOUCAULT 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. : 111). Isso acabou por respingar nas percepções acerca da função do mercado e das instituições privadas, que passam gradualmente a assumir funções de regulação que outrora eram legadas ao Estado.

Nesse sentido, como destaca Orlandi (2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.) em seu estudo sobre a noção de minoria, “no capitalismo, o indivíduo não é visto como um ser pensante, capaz de decidir e participar, mas como consumidor potencial” (2014: 31). Ou seja, suas necessidades individuais são silenciadas. Para a autora, cria-se no modelo capitalista uma noção de democracia que submete os indivíduos a uma igualdade extrema, ou ainda a uma uniformidade. A mínima dessemelhança parece chocante no seio da uniformidade geral. A diferença é insuportável dentro desse modelo de tirania da maioria. “Os indivíduos, submetidos a esta igualdade, são de-significados, ou, como citado por JJ. Courtine (2011), a partir [...] de Orwell, os homens idênticos uns aos outros são estranhos uns aos outros” (2014: 30). Em outros termos, esses indivíduos são expropriados de suas interioridades constituintes.

Segundo Barbalho (2005BARBALHO, Alexandre; PAIVA, Raquel. Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.), a uniformidade democrática nesse sistema tende a ser garantida por meio de medidas político-econômicas. No entanto, as minorias carecem de medidas e de reconhecimento no âmbito político-cultural; exigem o reconhecimento de suas diferenças, singularidades, identidades. Caso contrário, corre-se o risco de se estabelecer uma ordem social marcada pela hierarquia da igualdade extrema, na qual o igual é o modelo, o que vem primeiro, ocupando o diferente uma posição secundária, um rascunho do igual.

Chama a atenção esse efeito de sentido de inferioridade produzido para o diferente. Isso porque no capitalismo neoliberal a diferença é justamente constitutiva da estrutura social. As condições materiais de produção são aí construídas para/a partir da desigualdade. A busca pelo reconhecimento da diferença, manobra por vezes acionada por grupos minorados para evitar seu apagamento, constitui-se, pois, quase como uma formulação paradoxal ou cínica dentro de um modelo de produção de sentidos capitalista. Como pode alguém ter que lutar pelo reconhecimento da diferença que representa, quando, em verdade, a raiz do capitalismo está fincada nas estruturas da diferença? Não se pode afirmar que o capitalismo criou a diferença, mas certamente esse é um modelo econômico que se sustenta na diferença para existir, aprofundando-a.

Um sintoma dessa contradição reside na insistência, por parte de veículos de informação em massa, em promover a chamada inclusão. A necessidade da inclusão apenas revela como o sistema que a produz é desigual em essência. Os discursos midiáticos, em especial aqueles forçosamente inclusivos, revelam em sua insistência algo que também fala antes e em outro lugar, independentemente do que está expresso no texto material. Por exemplo, hodiernamente é comum vermos campanhas de cosméticos promovendo o chamado corpo normal, com marcas, estrias, gorduras, cicatrizes etc, em oposição ao corpo “impecável”, forjado em Photoshop, antes mesmo idealizado. Dizer que um corpo normal é bonito é uma medida de inclusão que remete a um outro discurso, presente em outros espaços e produzido em outros tempos, que postula que esse tipo de corpo não é normal. A contradição reside no fato de que é justamente a permanência do discurso do corpo não-normal que espelha e instiga a comercialização de produtos que vão “corrigir” esses corpos. Dito de outro modo, o capitalismo se alimenta metaforicamente desses corpos imperfeitos para garantir sua existência como sistema econômico.

Para Orlandi (2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.: 34), “antes mesmo de nos significarmos (...) somos produzidos em nossas diferenças e seus sentidos”. Por conseguinte, “pela historicidade, interdiscurso, memória discursiva, o já-dito constitui o saber discursivo estruturado pelo esquecimento que habita em nós.” Assim, a diferença nos é constitutiva. O movimento no sentido de minorá-la tem um desenho discursivo rastreável e motivações históricas: sua materialidade emerge diante da necessidade de conquistar sempre novos mercados. Todos precisam forçosamente ser incluídos - a chamada igualdade extrema, compulsória, ou a igualdade como uniformidade, como descrito anteriormente. Essa que existia como imperativo em outras formas histórias.

2.3 Berlim: metrópole liberal, cosmopolita e acolhedora

Nessa seção, importa caracterizar sucintamente a paulatina construção simbólica de Berlim como uma metrópole diversa, dada a abarcar diferentes grupos étnicos e fluxos imigratórios e, principalmente, os conflitos ideológicos e linguageiros que daí vêm surgindo. As considerações que aqui figuram são essenciais para recepcionar os dados gerados por essa pesquisa, uma vez que no centro dela estão materialidades significantes observadas numa campanha do metrô berlinense, reduto significativo de sua urbanidade.

Em primeiro lugar, não se pode perder de vista o fato de que não só a Alemanha como um todo, mas Berlim especificamente, foram palco das robustas transformações de cunho político, social, cultural e econômico que tiveram lugar no mundo no século XX. Destarte, acompanhar o lugar do imigrante nesse contexto é uma medida que se prova produtiva para os propostos dessa investigação. Em primeiro lugar porque o fenômeno da imigração com destino a Berlim acompanhou o período convulsivo acima mencionado de forma inegável e constitui, até hoje, um tema e uma prática geradores de sentido para diversidade e cultura. Segundo porque, em grande parte, os imigrantes encarnam o papel das minorias ou daqueles que diferem da dita cultura dominante alemã.

Em seu trabalho de entrevistas com 34 protagonistas políticos atuantes em Berlim, o pesquisador de desenvolvimento e cultura urbanos Stephan Lanz (2007LANZ, Stephen. Berlin aufgemischt: abendländisch, multikulturell, kosmopolitisch? Die politische Konstruktion einer Einwanderungsstadt. Bielefeld: transcript Verlag, 2007.) destaca o aspecto tautológico da palavra imigração. Em ocasião da criação do lema “Einwanderungsstadt BĘŘŁŸÑ Under Construction2 2 Tradução própria: Berlim, cidade de imigração sob construção. A grafia BĘŘŁŸÑ tenta dar conta dos diversos sistemas alfabéticos/linguísticos utilizados pelas populações que habitam a cidade. ”, o autor destaca3 3 Tradução própria. No original: “Die Geschichte Berlins zeigt, dass europäische Metropolen ohne Zuwanderung und seit dem Entstehen von Nationalstaaten auch ohne Einwanderung, also einem auf Dauer abgelegten Überschreiten nationaler Grenzen, nicht existieren. Eine Erkenntnis lässt sich aus diesem Begriff daher lediglich ziehen, wenn man ihn auf eine deutsche Politik bezieht, die über ein Jahrhundert lang dauerhafte Einwanderungsprozesse nicht nur zu verhindern suchte deren Existenz selbst dann noch leugnete, als sie längst nicht mehr zu übersehen waren. Entgegen der historischen Realität galt nicht Migration als Normalfall (…), sondern selbst bezogen auf die großen Städte eine behauptete ethnische und kulturelle Homogenität. Eine solche prägte aber lediglich in den ersten beiden Nachkriegsjahrzehnten ein Stück weit die städtische Realität, weil der Nationalsozialismus und die Folgen des Weltkriegs die vorherige nationale, ethnische und kulturelle Diversität gewaltsam eliminiert hatten”. :

A história de Berlim mostra que desde o aparecimento dos Estados Nacionais, ou seja, também de uma sistemática e investida transposição das barreiras nacionais, as metrópoles europeias não existiram sem o conceito de imigração. Então, só se pode fazer sentido desse termo quando associamos ele a uma política alemã que ao longo de um século, não só tentou constantemente suprimir os processos imigratórios, quanto também negou sua existência, como se ela não existisse há muito tempo. Ao contrário da realidade histórica, a imigração não era considerada normalidade (...), mas sim uma suposta homogeneidade étnica e cultural mesmo nas grandes cidades. No entanto, isso só moldou a realidade até certo ponto nas duas primeiras décadas do pós-guerra, porque o Nacional-Socialismo e as consequências da Guerra Mundial eliminaram violentamente a antiga diversidade nacional, étnica e cultural. (2007: 9)

Assim, como destaca o autor, as minorias que se encaminharam repetidamente para Berlim tiveram suas realidades culturais apagadas, em prol de uma desejada homogeneidade que só existiu como resultado da força bruta. A diferença, oportunizada por esses ciclos imigratórios, sempre fez parte da vida da cidade.

Sobre esses movimentos imigratórios, em especial aqueles que tiveram lugar nas décadas de 1960 e 1970, muito se fala acerca do emprego da mão de obra estrangeira. Os trabalhadores instalados em Berlim foram em algum momento referidos em língua alemã como Gastarbeiter, ou trabalhadores convidados (LANZ 2007LANZ, Stephen. Berlin aufgemischt: abendländisch, multikulturell, kosmopolitisch? Die politische Konstruktion einer Einwanderungsstadt. Bielefeld: transcript Verlag, 2007.: 63), designação que em si já trazia problemas. Ora, a palavra Gast (= hóspede) produz um sentido de transitoriedade, como se esses trabalhadores tivessem ido para na Alemanha apenas para cumprir um curto contrato de trabalho ou para simplesmente performar um grupo de tarefas.

Na verdade, grande parte dessas pessoas estavam em busca de um novo lar e novas condições de vida, ou seja, iam para se instalar definitivamente no país. “Na esfera pública, a política dos Gastarbeiter era percebida como uma necessidade econômica e encontrou ampla aceitação”4 4 No original: “Die Politik der « Gastarbeiter »-Anwerbung galt in der Öffentlichkeit als wirtschaftliche Notwendigkeit und fand breite Zustimmung” (Tradução própria). (2007: 63), inclusive porque o emprego dessa mão-de-obra barata em determinadas funções permitia que os alemães ocupassem cargos melhores. Com isso, o encontro do europeu com o estrangeiro não representou o contato com um igual. O contraste entre “eles” e “nós” constituiu-se de maneira paternalista e a presença dos Ausländer (= estrangeiros, em oposição aos nativos) vinculava simbolicamente temas como mercado de trabalho e criminalidade.

Aos poucos, categorias muito generalistas como Gastarbeiter/Ausländer passaram a impregnar sentidos de impulsividade e violência, independentemente das diferentes origens ou das dessemelhanças culturais que caracterizavam esses povos multiétnicos. Mais uma vez, percebe-se aí a emergência da dicotomia igual (alemão) x diferente (estrangeiro), na qual o diferente configura uma derivação indesejável do igual.

Todavia, como mostra o autor, ao longo dos anos, o apagamento cultural por qual passaram essas ditas minorias étnicas em Berlim passou a ser evitado, em especial porque isso representava um entrave para a efetivação de uma democracia contemporânea e para o içamento da capital ao status de metrópole internacional. Isso está evidenciado nos achados de Lanz (2007LANZ, Stephen. Berlin aufgemischt: abendländisch, multikulturell, kosmopolitisch? Die politische Konstruktion einer Einwanderungsstadt. Bielefeld: transcript Verlag, 2007.: 240) mencionados anteriormente. A partir de suas entrevistas, emerge principalmente o desejo, por parte dos berlinenses, de serem percebidos como um povo “liberal, cosmopolita e acolhedor” (liberal, weltoffen und aufnahmebereit). Para que isso seja uma realidade, a cidade não pode dar as costas para o mundo, deve ser entendida como um local para onde se vai e de qual se sai, que “está no meio de tudo e entre os outros” (2007: 241) (Es ist zwischen allem, zwischen anderen). Campanhas como Muster der Vielfalt (Estampa da diversidade) do metrô berlinense, analisada nesse artigo, parecem vir ao encontro desse desejo identitário.

3. Análise da campanha Muster der Vielfalt

3.1 Materialidade significante: imagem

O vídeo BVG - Muster der Vielfalt analisado nesse artigo foi publicado em julho de 2022BVG. Muster der Vielfalt. 5 jul. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=86UPjA3vAMM (03/01/2024).
https://www.youtube.com/watch?v=86UPjA3v...
pela empresa alemã BVG (Berliner Verkehrsbetriebe), responsável pelo transporte público da capital do país. Com duração de 1’48”, a campanha audiovisual tem por objetivo anunciar a criação de uma estampa colorida nos assentos do sistema público de transporte, ali instalada para celebrar a diversidade (Vielfalt). O material completo foi disponibilizado tanto no YouTube5 5 A campanha se chama Estampa da Diversidade (Muster der Vielfalt, tradução minha) e pode ser visualizada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=86UPjA3vAMM (03/01/2023). quanto no Instagram e traz consigo um texto explicativo em sua legenda nas duas plataformas citadas. Como mencionado anteriormente, nessa subseção só serão estudados os elementos visuais da campanha. Na Figura 2 abaixo é possível ver o resultado da nova instalação, frame que aparece apenas no final do vídeo. O letreiro em alemão diz “Uma estampa da sua diversidade, um sinal do nosso amor” (tradução própria).

Figura 2:
Estampa motivadora da campanha audiovisual

Basicamente, trata-se de uma peça audiovisual na qual um inspetor de passagens do metrô ou cobrador (em alemão, o Kontrolleur) aparece no vagão para verificar quem está viajando regularmente, ou seja, quem de fato comprou o bilhete e pode estar ali. Aliás, aqueles que viajam cabulando essa regra em alemão são chamados de Schwarzfahrer:innen, ou seja, “passageiro/a preto/a”. Por um lado, a expressão contemporaneamente é bastante questionada, mesmo datada, por incitar discriminação racial, afinal emerge aqui o não-dito de que o passageiro branco é aquele que viaja de acordo com as normas locais. Por outro lado, para efeito da presente pesquisa, essa expressão se mostra interessante por nos dar uma pista de como que no(s) sistema(s) discursivo(s) atrelado(s) à língua alemã as formas de viajar em transportes públicos e, por seguinte, seus passageiros são significados por meio de cores.

Essa rotina de verificação de bilhetes é muito comum em alguns tipos de transporte na Alemanha, o que fica evidente no vídeo porque as pessoas esboçam pouca surpresa ou empolgação com a chegada do cobrador mencionado acima. Ele diz: “Bilhetes, por favor” de modo corriqueiro e os passageiros apenas mostram para ele os tíquetes comprados.

Em um dado momento, percebe-se que o vídeo não pretende apenas reproduzir essa rotina cotidiana do transporte alemão. Passa-se a ouvir a canção Rhythm is a dancer no fundo do vídeo (0’07’’), muito associada à cena clubber e LGBTQIAPN+ dos anos 1990. Com a chegada dessa trilha sonora, o cobrador começa a dançar e a se locomover de modo festivo, o que causa uma estranheza inicial por parte dos passageiros.

Importa salientar nesse momento a relevância dos três casos que serão analisados nessa subseção, ou seja, o motivo pelo qual eles foram escolhidos para a presente pesquisa. O primeiro caso, como será visto a seguir, é a primeira interação do cobrador com os passageiros de uma maneira que será replicada para as próximas interações. O personagem que integra essa primeira interação traz características culturais, religiosas e de gênero que conversam importantemente com os significados de diversidade. Esse critério, a saber, de relevância para o tema diversidade, guiará a escolha dos dois outros casos, respectivamente ligados a sexualidade e a raça.

Destarte, o que se segue a partir do ponto que a música começa a tocar é a aparição de vários passageiros que podem ser tipicamente percebidos como minorias, como uma mulher muçulmana (trajando um véu na cabeça), um casal gay (dois homens de mãos dadas), uma mulher idosa, um metaleiro, uma mulher negra, um cadeirante, um indiano etc. Cada vez que o cobrador intercepta essas pessoas com seu aparelho verificador de passagens, a silhueta delas é preenchida por uma determinada cor e suas feições específicas desaparecem gradualmente (verificar em Figura 3).

Figura 3:
Mulher muçulmana depois de ser “verificada” pelo cobrador; antes e depois

A partir do exemplo da Figura 3, pode-se dizer que os traços individuais de “mulher” e “muçulmana” são paulatinamente apagados pela cor azul através da verificação do cobrador, nos moldes de uma “blindagem” cromática. Segundo Houaiss e Villar (2009HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 300), blindar significa “cobrir, revestir ou envolver com qualquer material ou substância resistente ou impermeável, especialmente para abrigar ou proteger”, daí que blindado é, em sentido figurado, aquilo “que não é abalado por certos agentes ou ações; resguardado, protegido, defendido”.

Utiliza-se aqui conceitualmente a metáfora da blindagem por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a blindagem pressupõe a dicotomia fora x dentro e denota algo que é inserido justamente nesse entrelugar, uma película pensada como protetiva, o que remete também a uma série de outras dicotomias emergentes nesse trabalho, como igual x diferente, nativo x estrangeiro, subjetividade x alteridade, questão sócio-econômica x questão sócio-cultural (ORLANDI 2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.: 32), dentre outras categorias que aparecerão, como mulher x homem, heterossexual x homossexual. Segundo porque a noção de proteção presente em blindagem pressupõe um ente que está mais preparado para perceber o risco que o outro, aquele que resguarda, defende, mas também apaga, perfazendo uma dinâmica demasiado hierárquica.

Assim, pode-se dizer que a blindagem convencional pode ser entendida como positiva, posto que por vezes garante a segurança daqueles que conduzem os carros e dos conteúdos aí transportados. Já a blindagem cromática da campanha, de natureza semiótica, nessa análise é entendida como deletéria, posto que apaga os traços identificadores do diferente. Por exemplo, sem vermos o véu, não é possível identificar a afiliação cultural/religiosa da mulher. Depois que o azul toma toda sua silhueta, mal se pode dizer que se trata inclusive de uma mulher. Seus traços culturais são esvaziados em nome de uma campanha que é tanto ideológica quanto mercadológica.

Ora, o azul entra nesse frame do vídeo em nome da diversidade, mola mestra e principal objetivo da campanha aqui estudada. Como levantado anteriormente, para a forma histórica neoliberal, o igual assume um papel de maior importância discursiva que o diferente, posto que do diferente emergem elementos que não podem ser homogeneizados pela lógica do mercado. No entanto, o diferente não pode ser completamente ignorado, pois isso geraria conflitos. Logo, ele é indexado, verificado discursivamente por meio da etiqueta da diversidade. Essa diversidade, por ser discursivamente mais vaga e generalista, menos detalhada, tende a ser a aposta de algumas campanhas midiáticas que se pretendem engajadas.

Em outro sentido, também se pode afirmar que o uso do azul para representar blindadamente os caracteres mulher + muçulmana é uma escolha não usual. Isso porque o azul, ao menos segundo o cânone simbólico ocidental, costuma ser uma cor associada ao masculino ou ao que se entende como performances sociais esperadas para o masculino. Assim, embora ainda que demasiado generalistas, não se pode dizer que os significantes visuais adotados pela campanha não subvertem de alguma maneira algumas expectativas simbólicas projetadas para masculino x feminino.

Sobre o exercício de apagamento de traços individuais, esse gesto é executado por um cobrador no vídeo, que nesse caso específico é funcionário de uma empresa privada. No entanto, como cobrador ele detém o poder de decidir quem fica e quem sai daquele espaço, ou seja, a ele é conferida a autoridade, dentro daquelas circunstâncias, de decidir sobre o ir-e-vir dos cidadãos. Esse poder é mediado pelo poder de compra, uma vez que os que não compram os bilhetes devem sair do transporte. É sabido que muitas vezes o mesmo tipo de decisão sobre a permanência dos cidadãos em um local é exercido por representantes diretos do Estado, como por exemplo um policial que monitora a entrada de cidadãos num posto de saúde. Em algum sentido, a vigilância da iniciativa privada apresentada no vídeo assemelha-se fortemente a formas de controle sobre o espaço e o ir-e-vir públicos exercidas por servidores do Estado.

Sucede que no modelo neoliberal, o poder do Estado se confunde com o poder do mercado. Assim, em última instância, ainda é o poder de compra que determina o usufruto dos lugares, sejam eles públicos ou não. Público pode ser entendido como aquele local ao qual todos os iguais têm acesso. No entanto, alguns iguais são mais iguais que outros dentro do sistema capitalista, o que explica que alguns possam ocupar espaços que muitos outros não podem. O acesso aos lugares não é algo trivial em nossa sociedade. Ele é, em verdade, o resultado dessas tensões de poder entre igual x diferente. Para a manutenção dessa diferença, o sistema precisará contar com agentes de controle, como o Kontrolleur do vídeo ou um policial, em outras circunstâncias.

Até aqui, a análise está se concentrando nas imagens individuais de personagens do vídeo que são apagadas por meio das ditas cores da diversidade, ou como estamos chamando aqui, por meio de um processo de blindagem cromática. No entanto, cumpre analisar também tanto personagens distintos num mesmo frame como em frames subsequentes do vídeo. Vejam-se exemplos dos dois casos a seguir. Para a análise de personagens distintos num mesmo frame, considere-se a Figura 4:

Figura 4:
Casal gay blindado de rosa, depois de amarelo

Aqui, o vídeo mostra um casal composto por dois homens que estão sentados de mãos dadas no metrô. Como os outros passageiros, eles são tomados repentinamente pela ação do cobrador, que nesse caso “escolhe” a cor rosa para cobrir a silhueta do homem sentado à direita (Figura 4). Vale destacar que o rosa é uma materialidade significante comumente associada ao feminino na cultura ocidental. A escolha dessa cor pode sugerir uma aproximação simbólica entre indivíduos gays do sexo masculino e mulheres, como se o fato de um indivíduo escolher se relacionar com um homem automaticamente o caracterizasse de alguma forma como mulher.

Nos frames que imediatamente sucedem a Figura 4, acompanha-se a completa blindagem do casal gay. O segundo homem, sentado à esquerda, assume uma forma cromática amarelada, diferente de seu par. Se no caso da mulher muçulmana retratada na Figura 3 a blindagem cromática encobria diversos caracteres de uma pessoa, significando assim visualmente diversidade, nesse exemplo a blindagem cromática não se conclui no âmbito do casal, já que cada uma das duas pessoas, embora “apagadas” individualmente por alguma cor, não são apagadas como casal. De alguma forma, o fato de cada um indivíduo constituinte do par apresentar uma cor diferente significa que dois indivíduos gays não são percebidos como iguais apenas por se apresentarem socialmente como um casal de homens. De fato, a trajetória de suas individualidades, embora estreitadas pela forma de sexualidade exercida em comum, não pode ser idêntica. Assim, diversidade significa ainda delimitação dos dois não-iguais de um casal.

Já na Figura 5 a seguir, encontram-se agrupados dois frames que ocorrem subsequentemente um ao outro, representando dois personagens distintos.

Figura 4:
Casal gay blindado de rosa, depois de amarelo

Primeiramente, o cobrador dirige-se à mulher, “colorindo” sua silhueta completamente com rosa. Enquanto isso ocorre, o cobrador diz a ela “Porque nós amamos você!” (tradução minha, no original: Weil wir dich lieben!). Depois de concluído o processo, somos remetidos à imagem de um homem branco, que passa a ser colorido pelo mesmo tom de rosa. Para ele o cobrador diz “Você também!” (tradução minha, no original: Und dich!). O cobrador diz essa mesma frase para outros personagens na sequência, mas eles são encobertos por outras cores.

Diversos elementos aqui indicam que embora os personagens ocupem frames diferentes, eles podem ser compreendidos como uma unidade. A primeira pista é a manutenção cromática: o rosa, depois de completar a silhueta da mulher, passa a cobrir a do homem também. Além disso, a proximidade temporal entre os dois frames fala de sua contiguidade narrativa: ela aparece em 1’15”, ao passo que ele em 1’16”. Por fim, do ponto de vista linguístico, o emprego da coordenação, através da conjunção “und” (na tradução: “também”), corrobora sintaticamente o elo entre os dois personagens.

Como visto anteriormente, algumas diferenças são encobertas por meio das escolhas estéticas (visuais e linguísticas) e/ou das materialidades significantes observadas na campanha. Nesse caso especificamente, pode-se discutir a blindagem de uma tensão de raça. Os processos sócio-históricos do nosso tempo nos mostram como não é possível equiparar indivíduos pretos e brancos no contexto da campanha da BVG, ou seja, no que se refere ao acesso e à permanência de indivíduos em transportes públicos.

No entanto, pode-se afirmar que a campanha, ao significar diversidade, acaba produzindo esse efeito de sentido de equiparação da subjetividade branca à subjetividade preta. O rosa empregado, por mais colorido que seja, pode assumir ares de neutralidade compulsória, remetendo à cor branca em nossa cultura, que às vezes se presta ao apagamento simbólico de traços individuais, acenando para a uniformidade.

Assim, percebe-se que nos três casos estudados nessa subseção, diferentes atores sociais com formações ideológicas distintas, como uma mulher muçulmana, dois homens gays e uma mulher negra relativamente a um homem branco são significados por meio de diversidade, o que nos três casos representou apagamento das suas subjetividades por meio de uma cor. Na próxima subseção, passa-se à análise da materialidade significante texto na mesma campanha e à avaliação se ela se assemelha ou se desassemelha dos achados da presente seção.

3.2 Materialidade significante: texto

Nessa subseção, será analisada a materialidade significante textual da campanha, que se manifesta da seguinte maneira: (a) trechos de falas de seus personagens, capturadas em forma de legenda gerada automaticamente, (b) letreiros que constam no vídeo, assim como (c) o texto descrição que o acompanha nas plataformas YouTube/Instagram.

Sobre as falas analisadas, destaca-se um personagem de maior relevância no vídeo, embora ele não seja o único a falar. Trata-se do cobrador, posto que é ele que conduz basicamente a ação narrativa lá representada. O cobrador apresenta fala apenas em dois momentos do vídeo. No início, antes de a música começar a tocar, quando ele anuncia aos passageiros que está vindo verificar os bilhetes. A outra ocorre no fim, o que está em parte representado na Figura 5. Suas falas se constituem da seguinte maneira:

Tabela 1:
Diálogos da campanha

Da afirmação (1) pode-se depreender que “nós”, instituição privada de transporte, amamos “você”, indivíduo diverso e usuário do metrô. Não dito está aqui que outros podem não amar “você”, embora “nós” amemos, ou seja, a diversidade não é um ponto pacífico e inspiradora de amor por todos os setores da sociedade. Há, além disso, um pré-dito de que provavelmente o indivíduo diverso nem sempre foi amado, por isso é necessário reafirmar esse amor por meio da campanha. De fato, é sabido que nem sempre houve os entendimentos e, portanto, a produção de sentidos sobre aqueles indivíduos que se configuram de modo não-hegemônico em nossa forma histórica. O sentido que se fazia sobre esses indivíduos diversos inicialmente indicou que eles deveriam ser excluídos do “todo canônico”. Em um dado momento, passou-se a buscar a inclusão da diversidade, como apresentado na campanha em estudo.

Ainda o esforço de inclusão aqui parte de uma empresa, ou seja, uma instituição privada cujo objetivo principal é obtenção de lucro, mais-valia e, como tal, acúmulo de capital. Se ela se mobiliza para promover a dita inclusão, essa inclusão precisa antes atender a sua agenda mercadológica. Assim, “amar” fala de identificar o público-alvo da campanha como potencial público consumidor do serviço transporte metroviário.

Da afirmação (3) depreende-se que “nós”, empresa, “amamos todos vocês”, indivíduos diversos, como se esses vários vocês não apresentassem particularidades distintivas e culturais importantes. “Amar todos vocês” é amar os indivíduos pensando-os como um todo amorfo, posto que isso é diferente de dizer “amar cada um de vocês”, construção que destacaria o efeito de sentido de particularidade para diversidade.

No letreiro apresentado na Figura 2, tem-se o seguinte:

Tabela 2:
Letreiro da Figura 2

Da frase (4) pode-se afirmar que a diversidade corresponde a um dado grupo, qual seja, aqueles que usam o metrô berlinense, não “nós”, empresa. O uso dos pronomes sua x nosso (eurer x unserer) dá conta de demarcar essa distância social. Dito de outra forma, a diversidade é significada como circunscrita a determinados grupos, consumidores de bens de serviço e não os detentores ou donos desses bens. Esse segundo grupo, mais hegemônico, por assim dizer, aparentemente não corresponde aos sentidos formados de diversidade.

Também um “sinal do nosso amor” destaca que o amor à diversidade nem sempre está claro ou não é algo dado, ou seja, precisa ser sinalizado, reafirmado, como por meio da instalação de uma nova estampa. Caso contrário, pode ser intuído, por parte daqueles que representam a diversidade, que esse amor não existe.

Eis aqui o texto de descrição que acompanha o vídeo, seccionado em quatro parágrafos:

Tabela 3:
Texto de descrição do vídeo

A partir do parágrafo (5) do texto, pode-se intuir que “outros”, possivelmente outras empresas, prometem uma diversidade menos atraente que a empresa berlinense BVG, posto que a diversidade da concorrência tende a ser menos dinâmica. Assim, emerge de diversidade o sentido de produto de uma empresa, que como tal pode ser negociado, vendido e inclusive anunciado competitivamente numa propaganda, como o vídeo aqui estudado.

Esses achados sobre o valor dinamismo, percebido como algo desejável para uma empresa como o metrô berlinense, relacionam-se com os dados coligidos por Lanz entre os atores políticos de Berlim. Também lá figura a ideia de que uma boa metrópole deve ser dinâmica, wo man hingeht und weggeht (= para onde se vai e de onde se sai) (2007: 241). Dadas tais analogias, é como se o metrô dinâmico fosse uma amostra metonímica desse aspirado modelo de cidade dinâmica.

Em (6) intui-se que existem algumas diversidades que costumam passar despercebidas, ou que em outro momento histórico, escondê-las pode ter parecido um gesto adequado. Na forma histórica atual, é preciso que a diversidade esteja visível para todos, daí a escolha de um assento de transporte público para exibi-la.

No parágrafo (7) emerge um sentido de diversidade já observado na análise das imagens retiradas da campanha. A diversidade pode ser entendida apesar da diferença - de idade, sexo, origem, tipo de corpo, orientação sexual ou bagagem cultural. É como se a diversidade ocorresse num vácuo sócio-histórico-cultural, ou que não trouxesse em seu bojo os caracteres das distintas subjetividades e singularidades que a compõem, ou seja, uma diversidade blindada, nos termos do artigo. “Todas as pessoas de Berlim” é um sentido de diversidade que corrobora a ênfase ao todo, ao igual compulsório, o que difere de dizer “cada cidadão de Berlim”.

Em (8) podem ser feitas basicamente as mesmas considerações empregadas para a análise do letreiro do vídeo, posto que a materialidade significante textual é a mesma. No entanto, aqui figuram também os coraçõezinhos coloridos, o que remete ao “amor à diversidade”, já debatido. A reafirmação do amor pressupõe a inexistência desse amor em toda parte ou em outras formas históricas anteriores à atual.

Portanto, a partir de uma análise global tanto do material gráfico como linguístico que serviu de base para esse estudo, emergem os seguintes (efeitos de) sentidos para diversidade:

  1. A diversidade deve incluir a todos, mas não necessariamente cada um dos indivíduos. A diversidade é atravessada por efeitos de sentido que tendem ao generalismo e não à especificidade, o que significa que às vezes algumas especificidades importantes terão que ser apagadas. Visualmente, a campanha realiza isso por meio das blindagens cromáticas, ou seja, do uso das cores da diversidade. Textualmente, isso está representado por expressões como “todos” (3), (8) ou “independente de” (7).

  2. A diversidade nem sempre foi entendida como digna de amor / celebrável ou pelo menos não em todas as formas históricas. Nem a sua celebração na forma histórica presente é ubíqua. Isso fica representado com a chegada de um passageiro idoso no meio do vídeo que oferece resistência à celebração orquestrada pelo cobrador, momento (1’00”) inclusive em que a música é interrompida e as silhuetas perdem temporariamente as cores. Ele diz: “Pare! Isso são horas?” (no original: Stopp! Sieh’ mal auf die Uhr, mein Freund). Também não são todos os espaços que celebram a diversidade, por isso pode ser necessário sinalizar essa celebração textualmente (4), (8) e visualmente, ou seja, por meio da instalação de uma nova estampa no metrô.

  3. A diversidade é entendida como um produto. Ela está sendo anunciada por uma empresa em uma campanha, diversidade essa que pode aparecer nesse “mercado” em modelos menos eficazes. A diversidade da BVG é eficaz, é aquela que seu público consumidor espera, especialmente por ser dinâmica, movimentada. A dinamicidade desse produto está representada visualmente pelas danças empreendidas pelo cobrador e pelos passageiros, pela rápida movimentação das blindagens coloridas no vídeo. Textualmente, fala-se em movimento também (5).

Sobre os sentidos (i) e (iii) mencionado acima, dentro do paradigma analítico da AD e levando em consideração a noção de materialidades significantes proposta por Lagazzi (2021LAGAZZI, Suzy. A imagem em sua potência de captura simbólica. Fórum Linguíst!co, v. 18, número especial, 5890-5902, 2021.), esses corpos e essas existências subjetivas estão sendo assujeitados pelo discurso da uniformidade extrema, ou pela forma como os criadores da campanha significam diversidade. Isso ativa, interdiscursivamente, um certo não-dito: existe uma “outra” diversidade, preto-e-branca, talvez menos irreverente, menos dançante e, possivelmente, demasiado séria.

Como destaca Orlandi (2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.: 32), o que caracteriza as minorias não é exatamente um critério quantitativo, mas sim sua impossibilidade de falar. Trata-se em essência de um movimento de luta social e de transformação. Ora, como promover luta e transformação sem levar em consideração (“independente de” (7)) as especificidades dos grupos minorizados, sem voz? É mister justamente fazer com que os elementos caracterizadores dos grupos minoritários sejam destacados para que haja reconhecimento, enfrentamento, debate e mudança. No entanto, o que se observa numa campanha como essa é a tentativa de significar diversidade de modo “movimentado”, em oposição a uma diversidade paralítica, sem vida/cor, que busca definir e detalhar demais, mas que não oxigenaria o movimento das minorias.

Muitos desses discursos “coloridos”, chamados de multiculturais (ORLANDI 2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.), produzem efeitos de sentido para diversidade que passam por “aceitar” o heterogêneo. Há aí, na verdade, um deslizamento de sentido que se filia a uma formação ideológica da generalização e do abrandamento dos conflitos. Conforme já levantado anteriormente, a diferença é de-significada, aceita e tolerada, dando lugar ao sentido-substituo presente em diversidade.

No entanto, os discursos mais “preto-e-brancos” abarcam a diferença e o diferente de modo mais integral e direto. Não se trata de perceber o diferente como lugar deduzido do igual. Igualdade e diferença são os dois lados da mesma moeda, apenas sendo a igualdade portadora de uma hegemonia constituída jurídico-socialmente, o que certamente falta ao diferente. Descrentes do primado da paz, os discursos da diferença propriamente dita, ditos interculturais (ORLANDI 2014ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.), significam-na justamente como um vetor do conflito, da negociação, do entrelaçamento. Ou seja, um fator de tensão produtiva. Os sentidos multiculturais da diversidade, por sua vez, evitam esse conflito, deslocam-no discursivamente para debaixo de um molde unificador forjado pelo aparelho do Estado ou de seus artífices, como a empresa privada.

Como já mencionado, mais próximo do desfecho do vídeo, o cobrador supracitado passa a dizer aos seus passageiros diversos (não-diferentes, de-diferentes): “Porque nós amamos você” individualmente, até que no fim diz, a todos: “Porque nós amamos todos vocês.” Afinal, quem são exatamente esses todos não mencionados e apenas discursivo-metonimicamente representados por alguns corpos em vídeo? Os corpos não selecionados para representar esses sujeitos seriam menos relevantes que os corpos selecionados? Além disso, se “nós amamos todos vocês”, o interdiscurso aponta para um grupo que “não ama vocês”. Que fatia da estrutura social exatamente compõe esse grupo de não-amantes, que podem ser não-amantes de outrem? Ainda: o que haveria para não amar em “vocês” visto que “vocês”, seres diversos, são iguais aos iguais? O que essas perguntas revelam é que a diferença, ainda que alegorizada de diversidade, emerge discursivo-materialmente. Ela é, apesar de qualquer esforço discursivo de pulverizá-la.

4 Considerações finais

As investigações aqui realizadas trazem à tona uma série de sentidos para diversidade, como produto de um mercado, artefato dinâmico, fator de uniformização, que numa primeira mirada podem produzir efeitos de deleção, paternalismo, hierarquização ou que até mesmo podem soar contraditórios, visto que não exatamente advogam por uma integração das minorias. Elas são apenas tomadas em conjunto.

Como já se destacou anteriormente, esses sentidos integram um projeto de fabricação de metrópole internacional designado a Berlim, objetivo aparentemente calcado antes numa agenda mais econômica do que cultural. Isso não significa que se deve parar de falar em diversidade. Os sentidos aqui escalonados para diversidade não são os únicos possíveis, especialmente porque eles podem ser debatidos, disputados, revistos, recriados, de modo a tornar a inclusão das minorias/diferenças um processo que não se dá apesar delas, mas porque elas existem.

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  • ORLANDI, Eni. A questão do assujeitamento: um caso de determinação histórica. ComCiência, n. 89, 2007. Disponível em: Disponível em: https://comciencia.br/dossies-73-184/web/handler2f25.html?section=8&edicao=26&id=296 (06/06/2024).
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  • ORLANDI, Eni. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias. In: ORLANDI, Eni (org). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014, 29-38.
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  • PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. ed. Traduzido por Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da UNICAMP , 2009.
  • 2
    Tradução própria: Berlim, cidade de imigração sob construção. A grafia BĘŘŁŸÑ tenta dar conta dos diversos sistemas alfabéticos/linguísticos utilizados pelas populações que habitam a cidade.
  • 3
    Tradução própria. No original: “Die Geschichte Berlins zeigt, dass europäische Metropolen ohne Zuwanderung und seit dem Entstehen von Nationalstaaten auch ohne Einwanderung, also einem auf Dauer abgelegten Überschreiten nationaler Grenzen, nicht existieren. Eine Erkenntnis lässt sich aus diesem Begriff daher lediglich ziehen, wenn man ihn auf eine deutsche Politik bezieht, die über ein Jahrhundert lang dauerhafte Einwanderungsprozesse nicht nur zu verhindern suchte deren Existenz selbst dann noch leugnete, als sie längst nicht mehr zu übersehen waren. Entgegen der historischen Realität galt nicht Migration als Normalfall (…), sondern selbst bezogen auf die großen Städte eine behauptete ethnische und kulturelle Homogenität. Eine solche prägte aber lediglich in den ersten beiden Nachkriegsjahrzehnten ein Stück weit die städtische Realität, weil der Nationalsozialismus und die Folgen des Weltkriegs die vorherige nationale, ethnische und kulturelle Diversität gewaltsam eliminiert hatten”.
  • 4
    No original: “Die Politik der « Gastarbeiter »-Anwerbung galt in der Öffentlichkeit als wirtschaftliche Notwendigkeit und fand breite Zustimmung” (Tradução própria).
  • 5
    A campanha se chama Estampa da Diversidade (Muster der Vielfalt, tradução minha) e pode ser visualizada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=86UPjA3vAMM (03/01/2023).
  • 6
    As traduções constantes nessa seção, organizadas em quadros, foram todas realizadas pelo autor do presente trabalho.
Editora: Érica Schlude Wels

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    02 Maio 2024
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