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O uso do Banco de Dados de uma pesquisa longitudinal e etnográfica: discussões teórico-metodológicas 1 1 Editor responsável: Silvio Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com 3 3 Apoio: CNPq.

El uso de la Base de Datos para investigaciones longitudinales y etnográficas: discusiones teórico-metodológicas.

Resumo

Este artigo apresenta discussão teórico-metodológica sobre uma pesquisa longitudinal e etnográfica desenvolvida de fevereiro de 2017 a março de 2020, a partir da construção de um Banco de Dados composto por videogravações, anotações em diário de campo e coleta de artefatos. Os registros permanentemente disponíveis possibilitam o desenvolvimento de pesquisas de mestrado e doutorado, inclusive, durante a pandemia da Covid-19. Considera-se que a postura êmica, a visão histórico-cultural dos sujeitos da pesquisa e a lógica de investigação construída coletivamente, por um lado, viabilizam fazer Etnografia por meio do Banco de Dados. Por outro lado, há limitações, que são compensadas pelo trabalho solidário e coletivo dos pesquisadores, quando uma das pesquisadoras participou pouco de sua construção.

Palavras-chave
Banco de Dados; Etnografia em Educação; Teoria Histórico Cultural

Resumen

Presentamos una discusión teórico-metodológica generada a partir de una investigación longitudinal y etnográfica, desarrollada entre febrero de 2017 y marzo de 2020, usando una base de datos compuesta por registros en vídeo, anotaciones en diario de campo y colecta de artefactos. Estos registros posibilitan el desarrollo de trabajos de maestría y doctorado, inclusive durante la pandemia de Covid-19. Consideramos que la postura Emica, el enfoque histórico-cultural de los sujetos de investigación y la construcción colectiva de la misma, posibilitan hacer etnografía usando bases de datos. Aunque se presentan dificultades, estas son compensadas por el trabajo colectivo y solidario de los investigadores, por ejemplo, en el caso de alguien que no participó activamente de la construcción de la base de datos.

Palabras clave
Base de datos; Etnografia em Educación; Teoria Historico-Cultural

Abstract

This article presents a theoretical and methodological discussion on a longitudinal and ethnographic research carried out from February 2017 to March 2020, based on the construction of a Database consisting of video recordings, field diary notes, and a collection of artifacts. Permanently available records enable the development of master's and doctoral studies, including during the Covid-19 pandemic. On the one hand, the emic stance, the historical-cultural view of the research subjects, and the collectively constructed ilogic of inquiry enabled the development of ethnography through the Database. On the other hand, there are limitations, which can be amended by researchers' solidary and collective work, when one of them participated very little in constructing such records.

Keywords
Database; Ethnography in Education; Cultural-Historical Theory

Introdução

Este texto tem como objetivo fazer uma discussão teórico-metodológica sobre o trabalho de pesquisa longitudinal e etnográfica por um coletivo de pesquisadoras dos campos da Educação Infantil e da Psicologia Histórico-Cultural. Especificamente, queremos discutir o contexto em que a primeira autora participou durante um mês da produção do material empírico e contou com um vasto Banco de Dados construído de fevereiro de 2017 a março de 2020 por outros pesquisadores.

O Programa de Pesquisa, Infância e Escolarização, que construiu o já referido Banco de Dados, aborda temáticas singulares que constituem as vivências dos bebês e das professoras, dentre eles o processo de inserção na EMEI Tupi4 4 Pseudônimo escolhido para a escola onde o Programa de Pesquisa foi realizado. , a construção da autonomia dos movimentos psicomotores, as origens culturais das brincadeiras, a constituição da subjetividade dos bebês, as relações de amizade, as vivências com artefatos, a construção de sentidos e significados aos letramentos, trabalho de tese da primeira autora. O Programa de Pesquisa foi devidamente submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, tendo sido aprovado sob o CAAE n.º 62621316.9.0000.5149.

Algumas questões etnográficas emergiram desse trabalho de tese: quando retomamos as filmagens e as notas de campo feitas por outros pesquisadores, estamos fazendo etnografia? Considerando uma pesquisa, que procura construir seu material empírico em um banco de dados previamente organizado, podemos falar em observação participante? Quais as vantagens e os problemas de se fazer pesquisa em bancos de dados dos quais a pesquisadora pouco participou da construção? Não temos a pretensão de responder com profundidade a todas essas questões. Contudo, julgamos necessário nos comprometer a refletir sobre elas. O processo de construção de qualquer pesquisa de qualidade é complexo e está relacionado a implicações teórico-metodológicas que decorrem das escolhas das pesquisadoras, do contexto sociopolítico e econômico. O contexto da pandemia da Covid-19 trouxe desafios para a realização das pesquisas de campo nas ciências humanas, notadamente aquelas que adotam a Etnografia e, portanto, a pesquisa qualitativa.

No Brasil, a maioria das pesquisas em educação tem-se desenvolvido a partir da abordagem qualitativa. Para Oliveira, (2013)Oliveira, A. (2013). Algumas pistas (e armadilhas) na utilização da Etnografia na Educação. Revista Educação em Foco, 16(22), 163-183. https: https://revista.uemg.br/index.php/educacaoemfoco/article/view/322/312
https://revista.uemg.br/index.php/educac...
, apesar disto, as pesquisas em educação ainda são alvo de questionamentos, “sobretudo acerca da representatividade, da subjetividade, bem como dos problemas técnicos relacionados à coleta, ao processamento e à análise dos dados” (p. 165).

A descrição etnográfica, nos termos propostos por Geertz (2008)Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. LTC., continua sendo fundamental para captarmos os sentidos e os significados que os participantes de um grupo atribuem às suas ações. Ou seja, o que torna um estudo etnográfico é o fato de procurar evidenciar os eventos, tendo como ponto de vista os envolvidos nesse evento. Conforme aponta Erickson (2004)Erickson, F. (2004). O que faz a Etnografia da escola “etnográfica”? In C. L. G. Mattos (Org.), Etnografia na Educação: Textos de Frederick Erickson. (pp. 225- 268). EDUEPB, essa ênfase no significado local foi essencial na definição de etnografia inaugurada por Malinowski.

A Etnografia Interacional (Interactional Ethnography), que hoje traduzimos no Brasil como Etnografia em Educação, foi fundada pelo Santa Barbara Classroom Discourse Group para possibilitar a prática da Etnografia na sala de aula (Putney et al., 1998Putney, L., Green, J., Dixon, C., Durán, R., Floriani, A., & Yeagar, B. (1998). Consequential progressions: exploring collective-indivudal development in a bilingual classroom. InSmagorinsky & Lee (Eds.), Constructing meaning through collaborative inquiry: Vygotskian Perspectives on literacy research (pp. 2-63). Cambridge University Press.). De acordo com Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., a Etnografia Interacional exige do pesquisador um período prolongado (um ano ou mais), tendo por pilar de sustentação os pressupostos teórico-metodológicos da Antropologia Cognitiva, da Sociolinguística Interacional e da Análise do Discurso (Gomes et al. 2017Gomes, M. F. C., Dias, M. T. M., & Vargas, P. G. (2017). Entre textos e pretextos: a produção escrita de crianças e adultos na perspectiva histórico-cultural. Editora UFMG.). Os pressupostos mencionados, embora sejam de campos diferentes, cada um com seu foco analítico, partilham a mesma visão de cultura, linguagem e discurso contextualmente constituídos pelas pessoas em diferentes espaços sociais (Castanheira, 2010Castanheira, M. L. (2010). Aprendizagem contextualizada: discurso e inclusão na sala de aula. (2. Ed.). CEALE; Autêntica.). Esse processo de construção é evidenciado pelos pesquisadores por meio de uma lógica de investigação.

Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79. destacam os princípios-chave que dão base à Etnografia como uma lógica de investigação, e não apenas como um método de pesquisa, isto é, “Etnografia como o estudo de práticas culturais; Etnografia como início de uma perspectiva contrastiva; e Etnografia como início de uma perspectiva holística” [destaques no original] (p. 27).

O primeiro princípio evidencia a Etnografia como o estudo de práticas culturais, que diz respeito a um conjunto de princípios e práticas que os membros de um determinado grupo usam para nortear suas ações. São as culturas de um referido grupo que não são fixas. Compreender a sala do berçário e as salas de atividades da EMEI Tupi como culturas implica, então, dar atenção para o que acontece ali, o que os membros do grupo fazem uns com os outros através dos eventos e do tempo. Estudar um grupo como uma cultura é se indagar sobre suas práticas e o que elas possibilitam aos seus membros. Cultura, portanto, é algo do grupo e não detenção de um único indivíduo (Green et al., 2005Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79.).

O segundo princípio trata da Etnografia como uma perspectiva contrastiva, considerando três formas:

(i) o contraste como uma base de perspectivas de triangulação de dados, métodos e teoria; (ii) a relevância contrastiva como uma forma fundamentada de se tornarem visíveis, práticas e processos êmicos; (iii) diferenças de enquadre e pontos relevantes como espaços contrastivos para a identificação de conhecimento cultural.

(Green et al., 2005Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., p. 34)

O terceiro princípio diz respeito à Etnografia como uma perspectiva holística, que, segundo Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., refere-se à identificação de uma unidade social “circunscrita”. Segundo Bloome (2012)Bloome, D. (2012). Classroom Ethnography. In M. Grenfell et al. Language, Ethnography and Education: Bridging new literacy studies and Bourdieu(pp. 7-22). Routledge, 2012. 5 5 Original em inglês. , a etnografia, que faz uma descrição holística e cultural, “busca entender o que está acontecendo, o que significa e seu significado para o grupo social a partir de uma perspectiva êmica (nativo, de dentro) ao invés de uma perspectiva ética (externa, de fora)” (p. 9, tradução nossa). Esses três princípios revelam que a Etnografia não é um conjunto de técnicas lineares de coleta de dados e inserção ao campo de pesquisa, mas uma lógica de investigação.

A partir dessa perspectiva, trazemos à discussão aspectos teórico-metodológicos para mostrar como construímos a lógica de investigação da pesquisa da primeira autora, tendo por base o já referido Banco de Dados.

Essa lógica de investigação está fundamentada nos pressupostos da Etnografia em Educação e da Teoria Histórico-Cultural. Para Gomes et al. (2017)Gomes, M. F. C., Dias, M. T. M., & Vargas, P. G. (2017). Entre textos e pretextos: a produção escrita de crianças e adultos na perspectiva histórico-cultural. Editora UFMG., a Etnografia em Educação e a Teoria Histórico-cultural se preocupam “tanto com os aspectos coletivos quanto individuais da/na sala de aula, buscando compreender dinâmica e historicamente as relações entre o individual e o social na construção de oportunidades de aprendizagem para todos” (p. 121). Entretanto, a Teoria Histórico-Cultural interroga o objetivo da Etnografia em Educação, quando não se limita aos processos de aprendizagem e analisa a unidade instrução-desenvolvimento nas salas de atividades da Educação Infantil. O foco está em compreender o desenvolvimento cultural dos bebês e crianças pequenas e suas relações com a instrução (planejamento e execução coletiva das atividades) e a autoinstrução (atividades dos bebês e crianças), ou seja, com a dialética do coletivo-individual nas salas de atividades (Vigotski, 1934Vigotski, L. S. (1934/1993). Estudio del desarrollo de los conceptos científicos em la edad infantil. In L. S. Vigotski Obras Escogidas (Tomo II, pp.181-286). Aprendizaje-Visor/1993).

Ao propor uma articulação entre as duas abordagens, Gomes et al. (2011)Gomes, M. C.; Dias, M. T. M., & Gregório, M. K. S. V. (2011, out.). Abordagem Histórico-Cultural e Etnografia Interacional: a busca da coerência. In Reunião Anual da APNED, 34, 2011, Natal, RN. consideram que tanto a Etnografia em Educação quanto a Teoria Histórico-Cultural partem do princípio de que “o desenvolvimento individual é construído por meio do desenvolvimento coletivo. Cada um dá um sentido próprio para aquilo que foi ensinado ao grupo cultural ao qual pertence” (p. 12) e, portanto, uma abordagem complementa e interroga a outra (Gomes, 2020Gomes, M. F. C. (2020). Memorial: trajetórias de uma pesquisadora e suas apropriações da Teoria histórico-cultural e da Etnografia em Educação. Brazil Publishing.).

Putney et al. (1998)Putney, L., Green, J., Dixon, C., Durán, R., Floriani, A., & Yeagar, B. (1998). Consequential progressions: exploring collective-indivudal development in a bilingual classroom. InSmagorinsky & Lee (Eds.), Constructing meaning through collaborative inquiry: Vygotskian Perspectives on literacy research (pp. 2-63). Cambridge University Press. também defendem a combinação dessas duas perspectivas que consideram mutuamente informativas para constituir a forma como o pesquisador se coloca e é colocado no locus de pesquisa. Para Gomes et al. (2011)Gomes, M. C.; Dias, M. T. M., & Gregório, M. K. S. V. (2011, out.). Abordagem Histórico-Cultural e Etnografia Interacional: a busca da coerência. In Reunião Anual da APNED, 34, 2011, Natal, RN., ao se adotarem as duas abordagens, o pesquisador aprende e apreende os significados culturais dos grupos investigados, como também constrói e reconstrói o conhecimento sobre a comunidade pesquisada. Como Vigotski não desenvolveu pesquisa de campo, tampouco aprofundou o conceito de cultura, buscamos subsídio na Etnografia em Educação para fazer pesquisa longitudinal e etnográfica em diálogo com a Teoria Histórico-cultural.

Desse diálogo e do uso do Banco de Dados do Programa de Pesquisa Infância e Escolarização, relevantes investigações foram conduzidas por meio de diferentes projetos de iniciação científica, mestrado e doutorado.

A pesquisa de Dominici (2021)Dominici, I. C. (2021). Valéria e Henrique: O entrelaçar da constituição de suas subjetividades. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. https: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/35589
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/...
, sobre a constituição das subjetividades de Valéria e Henrique em espaço coletivo de educação e cuidado é um bom exemplo. Segundo Dominici (2021)Dominici, I. C. (2021). Valéria e Henrique: O entrelaçar da constituição de suas subjetividades. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. https: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/35589
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/...
, “a constituição das subjetividades é um processo e um produto do encontro que constitui a unidade dialética entre o individual e o coletivo” (p. 15). A unidade de análise [individual-coletivo] evidencia que estão em convivência os aspectos biológicos, sociais, emocionais, culturais, discursivos e cognitivos que constituem as subjetividades de Henrique e Valéria.

Silva, E. (2021)Silva, E. B. T. (2021). Atos de criação: as origens culturais da brincadeira dos bebês. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., que se dedicou a investigar os processos de constituição da brincadeira em uma turma de dois anos na EMEI Tupi (2017-2018), defende que a historicidade dos conteúdos culturais das brincadeiras sustenta a tese de que a “brincadeira dos bebês/crianças é um ato de criação de possibilidades de participação no grupo social e sentidos para o que acontece na vida coletiva; um ato constituído pela unidade [ação-imaginação]” (p. 9).

Considerando como foco a unidade de análise [pessoa-meio], Macário (2021)Macário, A. P. (2021). Descortinando as vivências dos bebês na creche: a relação com os artefatos culturais. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. estudou as vivências de um grupo de bebês na relação com os artefatos culturais. Segundo a autora, tais vivências foram marcadas pela apropriação dos artefatos culturais disponibilizados no espaço do berçário. Dessa forma, os sentidos atribuídos à cortina, ao cobertor, às bolinhas, dentre outros, foram ampliados e transformados pelas ações dos bebês.

Ainda no contexto do Programa de Pesquisa Infância e Escolarização, Silva, V. (2023)Silva, V. T. (2023). As relações sociais de amizade na creche: um estudo de abordagem etnográfica em um grupo de crianças de zero a três anos de idade em uma instituição pública de Educação Infantil em Belo Horizonte. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. analisou o processo de imitação de uma bebê. Esse processo foi marcado pela unidade dialética [percepção-ação]. Investigando o processo de constituição das relações sociais de amizade em um grupo de crianças ao longo de três anos na EMEI Tupi, o estudo de Silva, V. (2023)Silva, V. T. (2023). As relações sociais de amizade na creche: um estudo de abordagem etnográfica em um grupo de crianças de zero a três anos de idade em uma instituição pública de Educação Infantil em Belo Horizonte. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. trouxe importante discussão para ampliar as concepções teóricas acerca das relações de amizade entre crianças menores de três anos de idade, bem como indicou subsídios para a prática pedagógica com as crianças pequenas. Assim, a realização de pesquisas longitudinais etnográficas é potente para compreender o processo de desenvolvimento cultural de bebês e crianças pequenas em contextos coletivos de cuidado e de educação.

Percebemos, portanto, que as pesquisas mencionadas buscam adotar o método da unidade de análise de Vigotski (1932/2018), pois, em contexto coletivo de educação e de cuidado, “há que se ver as pessoas que ensinam e que se desenvolvem e não as habilidades ensinadas e desenvolvidas – há que situar o ser humano no centro ... portanto, há que se perguntar o que se desenvolve e não o que é desenvolvimento” (Gomes, 2020Gomes, M. F. C. (2020). Memorial: trajetórias de uma pesquisadora e suas apropriações da Teoria histórico-cultural e da Etnografia em Educação. Brazil Publishing., p. 70).

Este artigo está organizado em seções que principiam por esta introdução (seção 1), seguida da reflexão sobre a construção do material empírico, a apresentação do Telling Case de Lúcia (seção 2), e a condução da Pesquisa Etnográfica durante uma pandemia (seção 3). A seção 4 foi dedicada à discussão das implicações éticas (seção 4) e, por fim, apresentamos as considerações finais.

A construção do material empírico a partir de um vasto Banco de Dados

Em termos quantitativos, o Banco de Dados conta com 897h21min51s de filmagens dos 231 dias de observação participante no período de 2017 a 2019. Dessa forma, consideramos, neste artigo, a produção empírica in loco do período de 2017 a 2019. Os registros são mantidos em HD externos com cópias de segurança, bem como em arquivos da nuvem Dropbox e Google Drive. A Figura 1 apresenta o percentual de dias em que se fez observação participante em cada um dos anos da pesquisa.

Figura 1
Percentual de dias observados (Banco de Dados do Programa de Pesquisa Infância e Escolarização (2021))

As informações da Figura mostram que, no ano de 2017, 80 dias foram observados, representando 42,5% dos dias letivos. No ano seguinte, houve uma greve das professoras da Rede Municipal de Educação em Belo Horizonte, MG, dessa forma, 63 dias foram observados correspondendo a 35,7% dos dias letivos. Por fim, em 2019, 88 dias foram observados, o que representou 45% dos dias letivos.

Spradley (1980)Spradley, J. P. (1980). Participant Observation. United States of America, Rinehart and Winston Editor. discute como fazer uso do método da observação participante dentro de pesquisas etnográficas. O autor considera que é preciso ter clareza sobre a natureza da Etnografia, porque outros tipos de pesquisa qualitativa fazem uso da observação participante, de estudos descritivos e da entrevista. Assim, ele chama a nossa atenção para saber o que significa, de fato, fazer uma observação participante que conduz a uma descrição e análise etnográfica.

Segundo Spradley (1980)Spradley, J. P. (1980). Participant Observation. United States of America, Rinehart and Winston Editor., o etnógrafo necessita localizar uma situação social e os informantes antes de fazer a entrevista e a observação participante. Como processo não linear de pesquisa, fazer perguntas etnográficas/analíticas, construir o material empírico, representá-lo e analisá-lo são processos necessários para construir uma lógica de investigação que seja flexível, autocorretiva, responsiva e iterativa. Neste texto, mostramos, na Figura 2, a lógica de construção da pesquisa de doutorado da primeira autora que fez uso do Banco de Dados já mencionado.

A lógica de investigação, portanto, apresenta as relações parte-todo, as possibilidades de análise iterativo-responsiva e a representação do material empírico. No início, apresentamos uma questão etnográfica geral que delimitou nosso objeto de estudo. Em seguida, partimos para a representação do material empírico em mapas de eventos e para novas questões analíticas. Essa lógica abdutiva, em que uma pergunta suscita outras, pode ser percebida pela utilização de retângulos pontilhados, indicando que um está dentro do outro ou acontecendo ao mesmo tempo. Esse movimento tem suas raízes no método da unidade de análise de Vigotski (1932/2018)Vigotski, L. S. (1932/2018). 7 Aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da Pedologia. E-papers. que se contrapõe às visões cartesianas do método de análise de decomposição em elementos.

Figura 2
Representação da lógica de investigação

Assim como Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., Castanheira (2013)Castanheira, M. L. (2013). Indexical signs within local and global contexts: case studies of changes in literacy practices across generations of working-class families in Brazil. In J. Kalman, & B. Street (Ed.), Literacy and numeracy in Latin America: Local perspectives and beyond. (pp. 95-108). Routledge. e tantos outros consideram que a conexão entre as diferentes fases do processo é representada pela sobreposição desses retângulos. A sobreposição é intencional e visa tornar visível o processo recursivo e iterativo de uma pesquisa em que se realiza a observação participante, conforme discutem Spradley (1980)Spradley, J. P. (1980). Participant Observation. United States of America, Rinehart and Winston Editor. e Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., quando afirmam que o mero uso da observação participante não constitui, por si só, o engajamento dos pesquisadores em uma pesquisa etnográfica. Ou seja, mais do que estar fisicamente no local da pesquisa, fazer observação participante envolve adotar uma perspectiva êmica, mesmo com os registros de um banco de dados. Se o pesquisador não se basear em teorias da cultura ou propor questões etnográficas para direcionar suas escolhas para o que é relevante destacar ou não do banco de dados, ou “... abranger sua interpretação pessoal a respeito da atividade observada, ele não está se engajando numa abordagem etnográfica como percebida do ponto de vista antropológico” (Green et al., 2005Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79., pp. 18-19).

A reflexão suscitada por Spradley (1980)Spradley, J. P. (1980). Participant Observation. United States of America, Rinehart and Winston Editor. e Green et al. (2005)Green, J., Dixon, C., & Zaharlic, A. (2005). A Etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, 42, 13-79. nos ajuda a fazer distinção entre dados e registros, assim como refletiram Castanheira et al. (2007)Castanheira, M. L., Green, J. L., & Dixon, C. N. (2007). Práticas de letramento em sala de aula: uma análise de ações letradas como construção social. Revista Portuguesa de Educação, 20(2), 7-38. https: https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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, ao afirmaram que “os registros não são dados até que o pesquisador aja sobre eles e use perspectivas teóricas particulares para transformar o ‘pedaço da vida’ registrado (escrito, gráfico ou áudio / vídeo) em dados para análise das questões em estudo” [ênfase no original] (p. 64).

Assim, uma das vantagens de se fazer pesquisa longitudinal etnográfica em grupo é a produção de grande quantidade de registros aos quais o pesquisador pode recorrer para construir uma lógica de investigação. O relacionamento, o estudo coletivo e o contato com as pessoas que construíram o arquivo para obter uma compreensão dos registros é parte necessária. A pesquisa, como uma atividade coletiva, construída por muitas mãos possibilitou construir a lógica de investigação da pesquisa da primeira autora, a descrição, a análise e a interpretação do material empírico tendo em vista seu tema de pesquisa – os sentidos e os significados às vivências-letramentos por parte de bebês e crianças pequenas.

Ao entrarmos em um arquivo de registros de uma pesquisa longitudinal e etnográfica, com dados coletados pelo próprio pesquisador ou por outros pesquisadores, as questões de pesquisa e o objeto de estudo nos ajudarão a identificar quais e como selecionar os eventos para elaborar um conjunto de material para análise. Se tomamos um Banco de Dados com mais de 800 horas de filmagens e três anos de registros escritos em notas de campo, inicialmente nos sentimos apreensivos e preocupados em como construir sentidos para o que vemos. A enorme quantidade de material empírico acumulado serviu, contudo, para a descrição minuciosa do cotidiano das salas de atividade de bebês e crianças pequenas, incluindo o que é muito importante, não apenas a dimensão verbal, mas também a não verbal e a coverbal.

Todos os 231 dias de observação participante foram registrados em uma ficha de observação padronizada para o grupo de pesquisa. Na Figura 3, apresentamos de forma macro o registro de um dos eventos analisados pela primeira autora que deu suporte à discussão teórico-metodológica que estamos construindo neste artigo.

Figura 3
Ficha de observação da aula do dia 04/09/2017 (Acervo do Programa de Pesquisa (2021)

Além das notas descritivas iniciais, cada pesquisadora fazia o registro ampliado ao final do dia de observação. Nesse registro, era destacado pelo menos um evento interacional que seria, posteriormente, expandido para início de análise. As notas pessoais eram reservadas às impressões pessoais, sentimentais do pesquisador. Como tais notas dependem da pergunta-chave de cada pesquisadora, portanto elas variam muito. Já as notas metodológicas eram destinadas ao registro de observações metodológicas (posicionamento da câmera, relação com as professoras etc.) e teóricas que tiveram destaque, como poderemos ver adiante na Figura 5.

Figura 5
Notas de campo baseadas em vídeos

Uma vez em contato com o acervo de vídeos, o procedimento adotado pela primeira autora foi ler todas as notas de campo, iniciando por aquelas realizadas em 2017. Depois da leitura, a autora passou a selecionar os dias de registros em que possíveis eventos de letramentos aconteciam. Nessas notas, ela procurou separar os dias em que alguma interação ocorria, envolvendo a leitura e a escrita. Após selecionar os vídeos a que seriam assistidos, passou a assistir a todos na íntegra, anotando no caderno de campo o tempo e os eventos que poderiam ser interessantes para o estudo, fazendo, assim, notas de campo baseadas em vídeos (Castanheira et al., 2007Castanheira, M. L., Green, J. L., & Dixon, C. N. (2007). Práticas de letramento em sala de aula: uma análise de ações letradas como construção social. Revista Portuguesa de Educação, 20(2), 7-38. https: https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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). O mesmo procedimento descrito anteriormente foi adotado com os registros dos anos de 2018 e 2019.

Green et al. (2011)Green, J., Castanheira, M. L., & Yeager, B. (2011). Researching the opportunities for learning for students with Learning Difficulties in Classrooms: An Ethnographic perspective. In C. Wyatt-Smith, J. Elkins, & S. Gunn, S. (Ed.) Multiple perspectives on Difficulties in learning Literacy and Numeracy(pp. 49-90). Springer. comentam os diferentes tipos de notas (metodológicas e interpretativas) na Pesquisa Etnográfica. Partindo dessa perspectiva, as autoras percebem a interpretação como uma forma de teorizar. Para elas,

essas diferentes formas de anotações tornam visíveis os processos dinâmicos e inter-relacionados de descrição, registro, interpretação, resposta e construção de significado(s) de fragmentos do(s) mundo(s) da vida em desenvolvimento de professores, alunos e outras pessoas nas salas de aula. (p. 68)

Como argumentado por Baker et al. (2008)Baker, W., Green, J., & Skukauskaite, A. (2008). Video-enabled ethnographic research: a microethnographic perspective. In G. Walford (Ed.), How to do educational ethnography. (pp. 2-40). Tufnell Press., um registro de vídeo é uma forma de nota de campo, gravada por um etnógrafo de um ângulo de visão específico. Não é um registro do evento, de toda a vida da sala de aula ou do próprio evento. Constitui a gravação de um “pedaço de vida” de um ângulo de visão específico que pode ser (re)lido para fins específicos.

As notas de campo baseadas em vídeos levaram à seleção dos eventos que, por sua vez, levaram-nos à construção de mapas de eventos, conforme Figura 4.

Figura 4
Mapa de eventos do dia 04/09/2017

Na Figura 4, na primeira coluna, procuramos marcar o início, o término e a duração dos eventos e subeventos do dia. As colunas dois e cinco apresentam, respectivamente, os eventos e sua contextualização. Cada evento foi construído, considerando o tempo gasto, com quem, com qual finalidade, onde, em que condições, com quais expectativas e com quais resultados. Os limites de um evento para outro são marcados por ciclos de atividades que estão “interacionalmente marcados pelos participantes por meio do discurso e de outras pistas de contextualização ... e mostram a natureza diferenciada da conversa e da ação” (Castanheira et al., 2007Castanheira, M. L., Green, J. L., & Dixon, C. N. (2007). Práticas de letramento em sala de aula: uma análise de ações letradas como construção social. Revista Portuguesa de Educação, 20(2), 7-38. https: https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt?script=sci_arttext&pid=S0871-91872007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_...
, p. 320).

As ações que descrevemos evidenciam a representação recursiva e iterativa da Etnografia em Educação. Conforme Baker et al. (2008)Baker, W., Green, J., & Skukauskaite, A. (2008). Video-enabled ethnographic research: a microethnographic perspective. In G. Walford (Ed.), How to do educational ethnography. (pp. 2-40). Tufnell Press., “... são práticas recursivas e iterativas dos processos de raciocínio abdutivo em que o etnógrafo se envolve em vários níveis de escala e em vários pontos no tempo dentro de um telling case” (p. 69). Telling case, ou caso expressivo, é uma narrativa detalhada de casos etnograficamente identificados, a qual fornece elementos para produzir inferências teóricas necessárias à construção de conhecimento sobre determinado tema (Mitchell, 1984Mitchell, J. C. Case studies. (1984). In R. F. Ellen, Ethnographic research: a guide to general conduct (pp. 237-241). Academic Press.).

Na Figura 5, apresentamos notas de campo que representam todas as atividades que ocorreram ao longo do dia e servem de suporte para a seleção dos eventos mais significativos para compreendermos os sentidos e os significados dos eventos de letramentos para bebês e crianças pequenas – elas foram a base para a primeira autora construir os Mapas de Eventos de Letramentos no berçário e salas de atividades de 1, 2, e 3 anos.

O procedimento adotado visava levantar o número de eventos em que a leitura e a escrita estivessem presentes, tendo em conta em que condições, quando, com quem, como e com quais consequências. Os arquivos estão organizados em HDs externos, separados em pastas por ano, mês, dias e arquivos individuais. Muitas vezes, uma pasta contém mais de 10 ou 15 arquivos, considerando todas as vezes que uma filmagem foi iniciada e concluída. Dessa forma, toda vez que a filmagem era iniciada, o contador do tempo voltava ao zero e finalizava contando o tempo desde então. Assim, podemos ver, na Figura 5, que o primeiro evento selecionado inicia no minuto 00:00:12 do arquivo 1.

As notas de campo, baseadas em vídeo, e a elaboração dos mapas de eventos nos levaram à seleção dos casos expressivos (telling case) de Lúcia e Larissa, ou seja, a um refinamento e aprofundamento de nossas análises. As bebês participaram de eventos de letramentos desde os primeiros dias na EMEI Tupi. Ao longo do tempo, as meninas vêm, cada uma com sua subjetividade, construindo sentidos e significados para esses eventos. De acordo com Putney et al. (1998)Putney, L., Green, J., Dixon, C., Durán, R., Floriani, A., & Yeagar, B. (1998). Consequential progressions: exploring collective-indivudal development in a bilingual classroom. InSmagorinsky & Lee (Eds.), Constructing meaning through collaborative inquiry: Vygotskian Perspectives on literacy research (pp. 2-63). Cambridge University Press., os casos expressivos ilustram a natureza consequente do desenvolvimento coletivo-individual. A escolha dos casos expressivos de Lúcia e Larissa, como podemos ver na representação da lógica de investigação (Figura 4), tem a potência de evidenciar como os sentidos e os significados para os eventos de letramentos foram construídos pelo grupo e por Lúcia e Larissa.

Por conta das limitações de espaço do artigo, apresentaremos apenas o caso de Lúcia. Na Figura 6, com o objetivo de refinar nossa discussão teórico-metodológica, agora no nível micro, apresentamos as transcrições7 7 As sequências discursivas são apresentadas em forma de unidades de mensagem (Message Units), que, segundo Gumperz (2013), são a menor unidade de significação demarcada pelos limites dos enunciados identificados por meio das pistas de contextualização. Assim, no quadro das transcrições, as passagens são transcritas literalmente, detalhando tanto quanto possível aspectos fonéticos, sintáticos, prosódicos e interacionais. das sequências discursivas do subevento “Lúcia e o livro Os sons dos animais” que aconteceram no dia 04/09/2017. Esse subevento aconteceu na parte da tarde do referido dia, logo depois que as professoras Juliana e Cristina trouxeram os bebês do solário para a sala de atividades do berçário. As professoras estavam preparando a sala para o jantar. Lúcia pegou um livro de plástico que estava no chão e começou a manuseá-lo balbuciando. Ela balbuciava e apontava as figuras com o dedo indicador. Lúcia abria e fechava o livro, virava-o de ponta cabeça, voltava-o para a posição original.

Figura 6
Sequências Discursivas do Subevento – “Lúcia e o livro Os sons dos animais” – 04/09/2017

O subevento dura 1 minuto e 05 segundos. Tempo considerável para uma bebê de um ano se manter engajada numa mesma atividade. Nesse tempo, Lúcia manteve sua atenção ao artefato livro de banho quase que integralmente, porém, estava atenta ao que acontecia à sua volta.

Sentada sobre as perninhas dobradas e com a coluna reta, Lúcia usou o corpo e construiu vivências, afetos e emoções que contrastavam com o primeiro subevento do dia 03/02/2017, quando acompanhava a leitura dos livros sentada no colo do pai ou amparada pelas mãos da auxiliar Adriana. Verificamos que, quando ela imitou o gesto de apontar com o dedinho, ela assumiu para si o significado desse gesto para o livro, outrora feito pelo pai. Por meio das relações sociais, os bebês se apropriam dos significados e sentidos dos livros, ao evidenciarem a transformação, o salto qualitativo de seu desenvolvimento cultural, ao significar o livro como um objeto que se pode ler, agora na posição vertical e passando suas páginas. Nas palavras de Pino (2005, p. 53)Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. Cortez., a humanização da espécie homo é uma tarefa coletiva, enquanto a humanização de cada indivíduo é “tarefa do coletivo” que, nesse caso expressivo, se constituiu de professoras, pais, avós, bebês e artefatos culturais – livros.

É, nesse contexto, que a pesquisa de doutorado da primeira autora (Penafiel, 2023Penafiel, K. J. Q. (2023). Letramentos como atividades humanas:uma investigação sobre a construção de sentidos e significados. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), identificou, na turma observada, que diversos letramentos estiveram presentes ‒ literário, musical, digital, escolar, acadêmico. Considerou-se, assim, que a unidade dialética Vivências-Letramentos se mostrou propícia para compreender os sentidos e os significados dos eventos de letramentos. Considerou-se ainda que, durante os três anos, o que contou como letramento foi-se transformando, qualitativamente, ao longo do tempo e dos eventos, quando as atribuições de sentidos e significados de Lúcia, Larissa, de seus colegas e professoras se entrelaçaram na relação dialética entre o individual e o coletivo à medida que transformaram, semioticamente, significados sociais em sentidos pessoais.

A lógica de investigação, apresentada na Figura 2, procura tornar visível o caminho percorrido na pesquisa da primeira autora, no contexto do Programa de Pesquisa. As Figuras 2 a 6 mostram o zoom que fizemos, ao partirmos de uma questão geral, que foi se desdobrando em outras questões num processo iterativo, recursivo, por meio do qual analisamos o movimento, como os bebês se transformaram ao longo dos três anos por meio da Unidade de Análise – Vivências-Letramentos.

Aqui, os pressupostos do Método da Unidade de Análise e do conceito de Vivência (Perejivanie), de Vigotski (1932/2018)Vigotski, L. S. (1932/2018). 7 Aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da Pedologia. E-papers. expressam nossa visão monista e holística de mundo para construir a lógica de investigação da pesquisa da primeira autora e das pesquisas que fizeram uso do Banco de Dados, uma vez que o estudo do desenvolvimento cultural infantil não pode ser feito por meio de processos isolados, abstratos, mas das relações sociais, dos discursos produzidos pelos participantes da pesquisa.

Fazer Pesquisa Etnográfica durante uma pandemia

Como já anunciamos, o Programa de Pesquisa Longitudinal, coordenado pelas professoras Vanessa Ferraz Almeida Neves e Maria de Fátima Cardoso Gomes, tem como objetivo acompanhar uma turma de 14 bebês desde o primeiro dia de aula na creche até o final da Educação Infantil (2017-2022), para compreendermos o desenvolvimento cultural deles em um espaço coletivo de cuidado e educação.

A primeira autora deste artigo iniciou a pesquisa de campo em fevereiro de 2020 com o objetivo de investigar a atribuição de sentidos e significados construídos por um grupo de crianças de três anos aos letramentos no contexto de uma Escola Municipal de Educação Infantil de Belo Horizonte, de 2017 a 2019. Contudo, seu primeiro contato com o campo de pesquisa se deu em dezembro de 2019, quando participou de uma reunião com as famílias das crianças que faziam parte da pesquisa juntamente com Rita8 8 Os nomes fictícios são os mesmos em todas as pesquisas que fazem uso do Banco de Dados do Programa de Pesquisa. , a professora da turma naquele ano. Em nota de campo, a primeira autora registrou que o propósito da reunião era informar aos pais das crianças que o município não mais ofertaria educação de tempo integral para crianças de 3 anos e, portanto, a turma seria desfeita. Diante dessa impossibilidade, algumas famílias decidiram mudar seus filhos de escola, o que acarretaria dificuldades na condução de nossa pesquisa, porque vínhamos, Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural na Sala de Aula (GEPSA) e Grupo de Estudos em Cultura, Educação e Infância (EnlaCEI), acompanhando e analisando o desenvolvimento cultural das 14 crianças desde o berçário até aquele ano.

Estávamos iniciando o ano de 2020, e pesquisas etnográficas e longitudinais, como a descrita aqui, exigem uma constante negociação por parte dos pesquisadores e da comunidade escolar. Por mais que o contato esteja estabelecido e consolidado, de certa forma, nada está garantido.

Desse modo, em todos os momentos, o pesquisador é o sujeito que participa, junto com os participantes, da construção de sentidos e significados, “isso significa que há uma negociação permanente de produção de linguagem entre o grupo e o pesquisador, mediada pela câmera” (Souza, S. 2003Souza, S. J. (2003). Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica em pesquisa acadêmica: questões éticas e metodológicas. In M. T. Freitas, S. J. Souza, & S. Kramer (Orgs.), Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. (pp. 78-93) Cortez., p. 90), pelas reuniões com pais, professoras, direção e coordenação das escolas. Assim, o respeito incondicional ao outro é parte do que instaura uma ética na pesquisa (Neves & Müller, 2021Neves, V., & Müller, F. (2021). Ética no encontro com bebês e seus/as cuidadores/as. In Comissão de Ética em Pesquisa da ANPEd (Org.). Ética e pesquisa em educação: subsídios. ANPEd.). Portanto, novas negociações foram feitas, como, por exemplo, procurar reunir as crianças em uma mesma turma. O que se mostrou inviável, pois, sendo a frequência em apenas um turno, os pais, que optaram por manter seus filhos nessa escola, escolheram o turno que melhor atendesse às suas necessidades. Assim, cinco crianças permaneceram na EMEI Tupi e, dessas, duas frequentaram o turno da manhã e três o turno da tarde, o que exigiu nova organização da equipe de pesquisadoras – procuramos manter duas pesquisadoras em cada turno. Na primeira semana, fizemos filmagens todos os dias da semana, e depois até março de 2020, duas vezes na semana, atendendo aos dois turnos.

A Figura 7 torna visível o movimento de início e a interrupção da construção do material empírico na EMEI Tupi em março de 2020, devido à pandemia da Covid-19.

Figura 7
Linha do tempo da pesquisa de campo

Assim, a primeira autora esteve em campo, realizando filmagens e registros em diário de campo do dia 12 de fevereiro ao dia 16 de março de 2020, quando as atividades presenciais da EMEI Tupi foram suspensas por conta da pandemia da Covid-19. Os meses seguintes foram mergulhados em sentimentos conflitantes que marcaram definitivamente a vida e as emoções das pesquisadoras diante do contexto de pandemia e da realização da pesquisa. Essa angústia não era só nossa, pesquisadores, como Hartmann (2020)Hartmann, L. (2020). Como fazer pesquisa com crianças em tempos de pandemia? Perguntemos a elas. Revista Nupeart, 24, 29-52. https: https://www.periodicos.udesc.br/index.php/nupeart/article/view/18827
https://www.periodicos.udesc.br/index.ph...
, procuraram ilustrar as primeiras semanas de isolamento social de pesquisadores da Educação como um misto de prostração, estupefação e reflexão na qual alternativas se forçavam a ser pensadas.

Nesse sentido, dada a nova situação mundial de pandemia e de isolamento, a pesquisa da primeira autora se realizou, considerando os registros, que compreendem os anos citados, de pesquisadoras dos grupos GEPSA e EnlaCEI, ambos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma das grandes vantagens de se fazer pesquisa longitudinal e coletivamente é que nunca estamos sozinhos, mesmo em momentos desoladores como o que teve início em março de 2020.

Embora o contexto adverso da pandemia da Covid-19 tenha interrompido as observações participantes, os grupos de pesquisa, anteriormente citados, procuraram manter contato com a EMEI Tupi e as famílias. Dessa forma, em conformidade com as professoras, coordenadoras pedagógicas e pesquisadoras, reuniões virtuais foram realizadas em setembro, outubro e dezembro de 2020 e abril de 2021. Tais reuniões foram nomeadas pelos grupos GEPSA e EnlaCEI como Ciclos de Estudos, durante os quais, professoras de dois turnos da EMEI e pesquisadoras discutiram temas relacionados à pesquisa longitudinal e a outras questões de interesses das participantes, tais como o brincar de meninas e meninos, o desenvolvimento cultural dos bebês no berçário, os desafios da docência na Educação Infantil em período de isolamento físico etc. As reuniões eram abertas a outras professoras da escola, não apenas às participantes iniciais da pesquisa.

Os grupos de pesquisa GEPSA e EnlaCEI procuraram também manter contato por telefone, principalmente pelo aplicativo WhatsApp, mantendo-se abertos e receptíveis às famílias. Infelizmente, nem todas retornaram as mensagens ou tentativas de contato, mas as que retornavam se mostravam muito satisfeitas com o nosso trabalho. Alguns familiares enviavam fotografias e/ou pequenos vídeos de atividades do dia a dia realizadas pelas crianças que participaram da pesquisa desde 2017. Esse contato permitiu realizar algumas entrevistas e manter o diálogo com os participantes sob um ponto de vista ético que será explicitado a seguir.

Procedimentos éticos na pesquisa presencial e virtual

Conforme orientam Neves e Müller (2021)Neves, V., & Müller, F. (2021). Ética no encontro com bebês e seus/as cuidadores/as. In Comissão de Ética em Pesquisa da ANPEd (Org.). Ética e pesquisa em educação: subsídios. ANPEd., a ética na pesquisa com bebês e crianças pequenas precisa considerar quem cuida deles. Para as autoras, a educação e o cuidado com os bebês têm sido paulatinamente inseridos nas agendas das pesquisas, das práticas pedagógicas e das políticas públicas. Assim, as questões éticas relacionadas a essas agendas precisam ser pensadas não seguindo a mesma lógica e modos de comunicação adotados com crianças maiores ou adultos. Os cuidados éticos em pesquisas que envolvem seres humanos não se esgotam nos procedimentos institucionalizados de assinatura de termos e submissão de protocolos. Autoras como Souza, M. (2010) e Barbosa (2014)Barbosa, M. C. S. (2014). A ética na Pesquisa Etnográfica com crianças: primeiras problematizações. Práxis Educativa, v. 9(1), 235-245. https: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43092014000100013
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, ao discutirem os desafios da pesquisa qualitativa com crianças, destacam que qualquer ação humana é social e, portanto, exige uma postura ética. Adotar tal postura requer de nós, pesquisadores e pesquisadoras, uma determinada concepção de ciência, de ser humano e de infância. Assim, uma pesquisa com seres humanos, sobretudo com crianças e bebês, demanda uma atitude cuidadosa, que deve ser levada a campo e, no momento da análise do material empírico, deve se traduzir em uma relação de respeito incondicional para com as pessoas envolvidas.

Tendo em conta o que apontam as autoras, podemos pensar questões éticas igualmente ao olhar para o material empírico produzido por terceiros. Embora a primeira autora não tenha estado em campo no exato momento daqueles registros, o olhar que desenvolveu como pesquisadora para o material empírico também se pauta pelo respeito incondicional de uma ética instaurada coletivamente pelas pesquisadoras do Programa de Pesquisa Infância e Escolarização.

Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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analisa questões éticas enfrentadas pelos pesquisadores que fazem pesquisa com crianças de diferentes idades e grupos sociais. A autora discute a concepção subjacente às pesquisas sob três aspectos: os nomes (verdadeiros ou fictícios) e o impacto da autoria das crianças; a utilização de imagens de crianças, seus rostos, a autorização do uso de imagens (fotografias, filmagens etc.) e, por fim, as implicações do impacto social de resultados de trabalhos científicos. Ademais, pergunta se é possível devolver os achados e, ao mesmo tempo, preservar e garantir segurança para os participantes.

Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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argumenta que, quando adotamos uma perspectiva teórico-metodológica que concebe a infância como categoria social e as crianças como cidadãos de direitos, sujeitos históricos e sociais que se constituem e constituem culturas, é fundamental que as crianças sejam percebidas como autoras. Contudo, questionamo-nos: como pensar isso com bebês e crianças pequenas? Os bebês produzem discursos? Essa questão já fora pensada por Dominici (2021)Dominici, I. C. (2021). Valéria e Henrique: O entrelaçar da constituição de suas subjetividades. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. https: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/35589
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. A autora propõe que pensemos na produção de discurso dos bebês. considerando aquilo que é significativo para a atribuição de sentidos e significados. Para Dominici (2021)Dominici, I. C. (2021). Valéria e Henrique: O entrelaçar da constituição de suas subjetividades. [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. https: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/35589
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, os bebês produzem discursos e o fazem por meio de gestos, olhares, balbucios que se ampliam para outras linguagens em uso, quando se apropriam da fala com palavras e enunciados. Adotamos o mesmo pressuposto nesta pesquisa, além disso, consideramos, assim como Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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, que pesquisar a infância exige de nós um olhar que considere a condição humana como histórica e social.

Uma outra questão importante que dá relevo à discussão dos procedimentos éticos na pesquisa com crianças é apontada por Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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quando analisa o antagonismo entre autoria e anonimato. Para a autora, deve haver um equilíbrio entre garantir a autoria das crianças como participantes do estudo que é com elas e não sobre elas, e garantir o anonimato que protege suas identidades. No âmbito das pesquisas conduzidas pelo GEPSA e EnlaCEI, procuramos equilibrar essas questões. Todavia, assim como Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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, garantir anonimato não significa usar alternativas como números, códigos ou mencionar apenas as iniciais dos participantes, uma vez que isso nega sua condição de sujeitos, desconsidera sua subjetividade, e as relega “a um anonimato incoerente com o referencial teórico que orienta a pesquisa” (p. 47). Assim, optamos por utilizar nomes fictícios para todos os participantes, os mesmos utilizados em todos os trabalhos de dissertações e teses desenvolvidos no âmbito do Programa de Pesquisa no qual este artigo está ancorado.

Outra preocupação ética diz respeito ao uso do vídeo e da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa. Kramer (2002)Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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e Souza, S. (2003)Souza, S. J. (2003). Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica em pesquisa acadêmica: questões éticas e metodológicas. In M. T. Freitas, S. J. Souza, & S. Kramer (Orgs.), Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. (pp. 78-93) Cortez. trazem reflexões pertinentes sobre as câmeras fotográficas e filmadoras no mundo contemporâneo. O registro fílmico e/ou fotográfico é objeto de cultura. Está presente no dia a dia da grande maioria das pessoas (Kramer, 2002Kramer, S. (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, 116, 41-59. https: https://www.scielo.br/j/cp/a/LtTkWtfzsbJj8LcPNzFb9zd/?format=pdf
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).

A questão também passa pelo pedido e pela concessão de autorização. Na concepção da autora, “autoria se relaciona à autorização, à autoridade e à autonomia” (p. 53). Assim, cabe-nos questionar: como garantir anonimato e autoria? Como garantir autonomia e preservar as identidades? A mesma autora responde: “Talvez o caminho que possa ajudar a encontrar alternativas de natureza ética, condizentes com a concepção de infância que nos orienta, seja diferenciar os tipos de imagens, se são de crianças, de profissionais e de instituições” (p. 53).

O uso do vídeo, das gravações, das fotografias e demais artefatos produzidos empiricamente devem ser percebidos, interpretados e analisados com cautela e profundo respeito ao outro. Esse cuidado ontológico, para Neves e Müller (2021)Neves, V., & Müller, F. (2021). Ética no encontro com bebês e seus/as cuidadores/as. In Comissão de Ética em Pesquisa da ANPEd (Org.). Ética e pesquisa em educação: subsídios. ANPEd., é permanente e implica construção e reconstrução. As autoras sugerem que estar com bebês e os adultos que cuidam deles, em contextos coletivos de educação e cuidado, pode ser elaborado como a “honra do encontro”, ou seja, “honrar o encontro tem a ver com disponibilidade, nesse caso, bilateral. Pesquisas só podem ser conduzidas com bebês se, por meio das linguagens, demonstrarem abertura para tal, o que também é válido para os seus/suas cuidadores/as” (Neves & Müller, 2021Neves, V., & Müller, F. (2021). Ética no encontro com bebês e seus/as cuidadores/as. In Comissão de Ética em Pesquisa da ANPEd (Org.). Ética e pesquisa em educação: subsídios. ANPEd., p. 4).

Considerações finais

Neste texto, buscamos fazer uma discussão teórico-metodológica sobre o uso de um Banco de Dados em plena pandemia da Covid-19 de uma perspectiva etnográfica e histórico-cultural, que leva em consideração as relações parte-todo, as relações individual-coletivo dialética e histórica. Isso porque, ao analisarmos os sentidos e os significados das vivências-letramentos de Lúcia, o fizemos sob uma lógica de investigação de três anos de pesquisa construída dia após dia, mês após mês, ano após ano na EMEI-Tupi pelos participantes do Programa de Pesquisa e pelos participantes da pesquisa em foco neste artigo. Essa construção tornou possível a condução de estudo etnográfico e longitudinal, mesmo durante a interrupção das atividades escolares em consequência da pandemia.

Possibilitou ainda refletirmos, neste artigo, sobre as questões: considerando uma pesquisa que procura construir seu material empírico em um banco de dados previamente organizado, podemos falar em observação participante? Quando retomamos as filmagens e notas de campo feitas por outros pesquisadores, estamos fazendo observação? Estamos fazendo Etnografia? Quais as vantagens e os problemas de se fazer pesquisa em Bancos de Dados dos quais o pesquisador pouco participou da construção? Como podemos fazer a distinção entre dados e registros? Como construir uma lógica de investigação por meio do Banco de Dados?

Em tempos incertos como os que estamos vivendo, contar com um grupo de pesquisa que produz coletivamente foi muito vantajoso. As vantagens se traduzem no próprio fazer da pesquisa que demanda diálogo e reflexão coletivos, de modo que o pesquisador nunca está sozinho, por assim dizer. Há a possibilidade de diálogo e discussões que podem contribuir para o processo descritivo, analítico e interpretativo.

Sobre o fazer observação participante, compreendemos que, mais do que estar fisicamente no local da pesquisa, observar envolve adotar uma perspectiva êmica e ética tendo o respeito incondicional pelo outro como fundamento. Abrange, igualmente, adotar perspectivas holísticas, contrastivas e o estudo das práticas culturais que são princípios do fazer etnográfico.

Embora tenhamos a vantagem de fazer pesquisa, tomando um extenso Banco de Dados, temos consciência das limitações que isso pode representar. Assim como pode ser vantajoso, também se apresenta como enorme desafio trabalhar com um volume extensivo de horas de filmagens. No nosso caso, demandou um trabalho intenso, em alguns momentos, cansativo e desanimador, mas, ao mesmo tempo, apresentou-se como uma alternativa viável, quando estamos impossibilitados de estar em campo pessoalmente.

Outra limitação de fazer pesquisa com o Banco de Dados, que foi construído por outros pesquisadores, diz respeito à natureza dos dados fornecidos. Nem sempre é possível verificar se a filmagem registrava o início ou o encerramento de cada evento, atividade ou dia. Recorrer às notas de campo, por vezes, ajuda, mas em outras, não. Assim, é fundamental que o contato com os pesquisadores, que estiveram in loco, seja constante.

Quando retomamos as filmagens e as notas de campo feitas por outros pesquisadores, estamos fazendo observação participante, pois, conforme apontam Anderson et al. (2016)Anderson, K. T., Stewart, O. G., & Aziz, M. B. A. (2016). Writing ourselves in: Researcher reflexivity in Ethnographic and multimodal methods for understanding what counts, to whom, and how we know. Anthropology and Educaction Quarterly, 47( 4), 385-401. https: https://www.researchgate.net/publication/309439917_Writing_Ourselves_In_Researcher_Reflexivity_in_Ethnographic_and_Multimodal_Methods_for_Understanding_What_Counts_to_Whom_and_How_We_Know_Writing_Ourselves_In
https://www.researchgate.net/publication...
, nosso acesso diferencial a textos, experiências e significados compartilhados, com base em processos iterativos de análise interpretativa (por exemplo, síntese de literatura acadêmica, teorização, aplicação de conceitos, interpretação de várias formas de dados), é filtrado por meio de nosso olhar como pesquisadores. Em suma, todos os olhares trabalham para construir significado com base nas posições socialmente situadas no tempo e no espaço, a partir das quais fazemos sentido em relação a outras posições, tanto incorporadas por outros quanto imaginadas (Anderson et al., 2016Anderson, K. T., Stewart, O. G., & Aziz, M. B. A. (2016). Writing ourselves in: Researcher reflexivity in Ethnographic and multimodal methods for understanding what counts, to whom, and how we know. Anthropology and Educaction Quarterly, 47( 4), 385-401. https: https://www.researchgate.net/publication/309439917_Writing_Ourselves_In_Researcher_Reflexivity_in_Ethnographic_and_Multimodal_Methods_for_Understanding_What_Counts_to_Whom_and_How_We_Know_Writing_Ourselves_In
https://www.researchgate.net/publication...
).

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Apoio: CNPq.
  • 4
    Pseudônimo escolhido para a escola onde o Programa de Pesquisa foi realizado.
  • 5
    Original em inglês.
  • 6
    Todos os nomes adotados são fictícios.
  • 7
    As sequências discursivas são apresentadas em forma de unidades de mensagem (Message Units), que, segundo Gumperz (2013)Gumperz, J. J. (2013). Convenções de contextualização. In B. T. Ribeiro, & P. M. Garcez, P. M. (Orgs.). Sociolinguística Interacional (2a ed., pp. 149-182). Loyola., são a menor unidade de significação demarcada pelos limites dos enunciados identificados por meio das pistas de contextualização. Assim, no quadro das transcrições, as passagens são transcritas literalmente, detalhando tanto quanto possível aspectos fonéticos, sintáticos, prosódicos e interacionais.
  • 8
    Os nomes fictícios são os mesmos em todas as pesquisas que fazem uso do Banco de Dados do Programa de Pesquisa.

Referências

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Editor responsável: Silvio Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2020
  • Revisado
    15 Ago 2023
  • Aceito
    15 Nov 2023
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